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Os múltiplos papéis sociais de mulheres cuidadoras-leigas de crianças hospitalizadas

The multiple social roles of lay caregiver women of hospitalized children

Los múltiples papeles sociales de mujeres cuidadoras-legas de niños hospitalizados

Resumos

Trata-se de uma pesquisa qualitativa do tipo descritivo-exploratória e intervencionista junto a nove mulheres cuidadoras-leigas de crianças em tratamento oncológico. Os objetivos foram apresentar os múltiplos papéis sociais desempenhados pelas mulheres cuidadoras-leigas de crianças com câncer e discutir o seu papel de cuidadora diante da sociedade. O estudo foi realizado no período entre março e abril de 2007 no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Na coleta de dados utilizou-se a técnica de grupo focal. Os resultados, analisados mediante a análise temática, evidenciaram os múltiplos papéis sociais desempenhados pelas mulheres, principais cuidadoras da sociedade, independente do contexto. As considerações finais instigam um debate, pelas instâncias educacionais, políticas e sociais, acerca da redistribuição dos papéis sociais, principalmente a responsabilidade familiar entre o homem e a mulher. A participação da equipe de enfermagem pode efetivar-se pela compreensão desses papéis, impostos pela situação, além de facilitar a inclusão da família na relação de cuidado.

Saúde da mulher; Cuidadores; Família


It is a qualitative, descriptive, exploratory, and interventionist research carried out with nine lay caregiver women of children undergoing oncologic treatment. The objectives were presenting the multiple social roles performed by lay caregiver women of children with cancer and discussing the caregiver role before society. The study was carried out in March and April 2007 in the Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil. The data collection was performed with the focal group technique. The results were analyzed through the analysis of thematic content which evidenced the multiple social roles performed by women, the main caregivers of society, independent of the context. Final considerations instigate a discussion among educational, political and social instances about the redistribution of social roles, mainly the family responsibility between man and woman. The nursing team participation can take place by the comprehension of these roles, imposed by the condition, besides facilitating the family inclusion in the care relationship.

Women's health; Caregivers; Family


Es una investigación cualitativa, descriptiva-exploratoria e intervencionista con nueve mujeres cuidadoras-legas de niños en tratamiento oncológico. Presentado los múltiples papeles sociales desempeñados por las mujeres cuidadoras-legas de niños con cáncer y discute el papel de cuidadora delante de la sociedad. El estudio ocurrió en marzo y abril, 2007 en el Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. En la recolección de datos, se utilizó la técnica de grupo focal. Los resultados, analizados mediante el análisis de contenido temático, evidenciaron los múltiples papeles sociales desempeñados por las mujeres, las principales cuidadoras de la sociedad, independiente del contexto. Las consideraciones finales instigan un debate entre las instancias educacionales, políticas y sociales sobre la redistribución de papeles sociales, principalmente la responsabilidad familiar, entre hombre y mujer. La participación del grupo de enfermería puede darse por la comprensión de estos papeles, impuestos por la situación, además de facilitar la inclusión de la familia en la relación del cuidado.

Salud de la mujer; Cuidadores; Familia


ARTIGO ORIGINAL

Os múltiplos papéis sociais de mulheres cuidadoras-leigas de crianças hospitalizadasª a Artigo extraído da dissertação de Mestrado apresentada em 2007 no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem (PPGENF) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.

Los múltiples papeles sociales de mujeres cuidadoras-legas de niños hospitalizados

The multiple social roles of lay caregiver women of hospitalized children

Wiliam WegnerI; Eva Neri Rubim PedroII

IMestre em Enfermagem, Doutorando em Enfermagem pelo PPGENF-UFRGS, Professor do Centro Universitário Metodista IPA, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

IIDoutora em Educação, Professora Associada da Escola de Enfermagem da UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Endereço do autor Endereço do autor: Wiliam Wegner Rua Jacinto Gomes, 635, ap. 202, Santana 90040-270, Porto Alegre, RS E-mail: wiliamwegner@yahoo.com.br

RESUMO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa do tipo descritivo-exploratória e intervencionista junto a nove mulheres cuidadoras-leigas de crianças em tratamento oncológico. Os objetivos foram apresentar os múltiplos papéis sociais desempenhados pelas mulheres cuidadoras-leigas de crianças com câncer e discutir o seu papel de cuidadora diante da sociedade. O estudo foi realizado no período entre março e abril de 2007 no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Na coleta de dados utilizou-se a técnica de grupo focal. Os resultados, analisados mediante a análise temática, evidenciaram os múltiplos papéis sociais desempenhados pelas mulheres, principais cuidadoras da sociedade, independente do contexto. As considerações finais instigam um debate, pelas instâncias educacionais, políticas e sociais, acerca da redistribuição dos papéis sociais, principalmente a responsabilidade familiar entre o homem e a mulher. A participação da equipe de enfermagem pode efetivar-se pela compreensão desses papéis, impostos pela situação, além de facilitar a inclusão da família na relação de cuidado.

Descritores: Saúde da mulher. Cuidadores. Família.

RESUMEN

Es una investigación cualitativa, descriptiva-exploratoria e intervencionista con nueve mujeres cuidadoras-legas de niños en tratamiento oncológico. Presentado los múltiples papeles sociales desempeñados por las mujeres cuidadoras-legas de niños con cáncer y discute el papel de cuidadora delante de la sociedad. El estudio ocurrió en marzo y abril, 2007 en el Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. En la recolección de datos, se utilizó la técnica de grupo focal. Los resultados, analizados mediante el análisis de contenido temático, evidenciaron los múltiples papeles sociales desempeñados por las mujeres, las principales cuidadoras de la sociedad, independiente del contexto. Las consideraciones finales instigan un debate entre las instancias educacionales, políticas y sociales sobre la redistribución de papeles sociales, principalmente la responsabilidad familiar, entre hombre y mujer. La participación del grupo de enfermería puede darse por la comprensión de estos papeles, impuestos por la situación, además de facilitar la inclusión de la familia en la relación del cuidado.

Descriptores: Salud de la mujer. Cuidadores. Familia.

ABSTRACT

It is a qualitative, descriptive, exploratory, and interventionist research carried out with nine lay caregiver women of children undergoing oncologic treatment. The objectives were presenting the multiple social roles performed by lay caregiver women of children with cancer and discussing the caregiver role before society. The study was carried out in March and April 2007 in the Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil. The data collection was performed with the focal group technique. The results were analyzed through the analysis of thematic content which evidenced the multiple social roles performed by women, the main caregivers of society, independent of the context. Final considerations instigate a discussion among educational, political and social instances about the redistribution of social roles, mainly the family responsibility between man and woman. The nursing team participation can take place by the comprehension of these roles, imposed by the condition, besides facilitating the family inclusion in the care relationship.

Descriptors: Women's health. Caregivers. Family.

INTRODUÇÃO

Esse artigo é um recorte de um estudo que abordou a temática das mulheres cuidadoras leigas de crianças com câncer intitulado "Concepções de Saúde de Mulheres Cuidadoras-Leigas: estratégias à sua promoção da saúde"(1), cujo objetivo era conhecer as concepções de saúde de mulheres cuidadoras-leigas de crianças com câncer; explorar as concepções de cuidado dessas mulheres, proporcionando uma reflexão entre a situação concreta e a idealizada, além de refletir e propor estratégias de educação em saúde a partir dos aspectos identificados na pesquisa. Apresentam-se, nesse texto, os resultados obtidos na investigação, que dizem respeito às condições de mulheres cuidadoras e às repercussões de seus múltiplos papéis nos seus contextos de vida e, também, às implicações para a enfermagem.

Atualmente a mulher desempenha múltiplos papéis impostos pelo meio social que, muitas vezes, impede-lhe de optar por aqueles que melhor se adaptem a sua realidade. A mulher, ao cuidar, estabelece uma relação de autoridade e dependência, contradizendo os pressupostos de autonomia e emancipação incentivados(2).

Às mulheres, compete a implementação do cuidado em tudo que cresce e se desenvolve, prolongando-se até a morte; a mulher há de ser a cuidadora principal nas etapas do ciclo vital(3). Elas têm conquistado espaços fundamentais à sua afirmação social e, principalmente, valorização perante a sociedade por meio dos papéis que vêm desempenhando com competência seja na família ou na comunidade. Dentre os vários papéis por ela desempenhados, o de cuidadora é histórica e culturalmente o mais evidenciado e assimilado. Quando se trata de cuidar/acompanhar um familiar em situação de hospitalização, seja ele, filho, esposo, mãe/pai, é a mulher que está implicitamente associada como cuidadora principal da família.

O conceito de cuidadores-leigos abrange as pessoas que oferecem cuidados ao enfermo, seja no hospital ou na família, mas realizam suas atividades isentos de remuneração ou formação especializada para tal ofício(4). Por isso, as mulheres participantes dessa investigação são denominadas de cuidadoras-leigas.

Essas mulheres, cuidadoras, assumem inúmeros papéis sociais concomitantes e determinados pelo meio sócio-histórico-cultural, independente da sua vontade, e conseguem desenvolver condições de sobrevivência mesmo que de uma forma imposta, fato que não lhes permite uma reflexão crítica, a qual possibilite o despertar de autonomia e emancipação. O fato que considerou-se relevante para o estudo foi a problemática do acompanhante de paciente pediátrico em situação de internação hospitalar. A experiência tem demonstrado que as mulheres são as principais acompanhantes de pacientes hospitalizados e, no caso de crianças, são também muitas vezes as responsáveis por cuidados, o que suscitou questionamentos referentes às repercussões que essa situação pode acarretar na vida delas além das implicações que podem ter, para a enfermagem, a presença contínua dessas mulheres no ambiente de cuidado.

Os objetivos do presente artigo são: apresentar os múltiplos papéis sociais desempenhados pelas mulheres cuidadoras-leigas de criança com câncer e discutir o papel de cuidadora diante da sociedade.

MÉTODO

Utilizou-se a abordagem qualitativa do tipo descritivo-exploratório e intervencionista.

A pesquisa qualitativa constitui-se da análise sistemática de informações coletadas de caráter mais subjetivo, voltando-se para a compreensão dos fenômenos de modo mais amplo e profundo a partir das experiências pessoais dos indivíduos(5,6). A estratégia intervencionista está atrelada ao caráter do grupo focal enquanto sistemática que possibilita a ação-reflexão-ação ancorada na problematização coletivas das circunstâncias de vida das participantes.

O estudo desenvolvido na Unidade de Oncologia Pediátrica (UOP) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Rio Grande do Sul, contou com a participação de nove mulheres acompanhantes de crianças em tratamento oncológico e que no momento da seleção dos sujeitos, atendessem aos seguintes critérios de inclusão: ter idade superior a 18 anos, conhecimento do diagnóstico da criança por um período superior a seis meses e aceitar participar do estudo.

A técnica utilizada - grupo focal - foi organizada mediante uma agenda de seis encontros com temáticas pré-determinadas concernentes aos objetivos do estudo. O grupo focal é uma técnica de investigação que coleta as informações através da interação grupal sobre um tópico predeterminado pelo pesquisador e o seu substrato consiste nas discussões e reflexões potencializadas pela interação grupal(7,8). O pesquisador fez a condução dos encontros e houve a participação de um observador previamente treinado.

As informações foram coletadas por meio de gravação e após transcrição, foram organizadas e codificadas mediante o apoio do software QSR Nvivo® na versão 2.0 como ferramenta facilitadora no agrupamento dos dados coletados. Este software é essencial na compilação e síntese das idéias do pesquisador, pois permite a possibilidade de reavaliar os materiais que estão sendo analisados, ou seja, pode-se acrescentar, ligar, modificar, reescrever e cruzar as informações(1). Após esta etapa, foi realizada a análise e interpretação das informações do tipo temática(9) que permitiram a formulação de cinco categorias temáticas e subcategorias.

Os preceitos bioéticos foram respeitados e seguidos de acordo com as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa em Seres Humanos da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde(10). O projeto foi aprovado pelo Grupo de Pesquisa e Pós-Graduação (GPPG) do HCPA, sob protocolo número 06-135. Para fins de preservação do anonimato, as mulheres selecionadas foram identificadas pela letra P para participante e por números de um a nove; já os encontros foram codificados como G1 para remeter ao Grupo Focal 1 e assim sucessivamente.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

No presente artigo, apresenta-se a categoria "Múltiplo desempenho de papéis sociais: mulher/mãe/cuidadora e o contexto familiar" e suas subcategorias: mulher como principal cuidadora; mulher como principal cuidadora na saúde/doença e alterações no contexto da família.

O determinismo social imposto pelo sistema capitalista brasileiro faz transparecer a figura feminina ligada à subalternidade dos processos produtivos e secundário em relação ao masculino, principalmente ligada ao proletariado, no qual a mulher assume o papel de cuidado dos filhos doentes e afazeres domésticos, independente de exercer sua força produtiva remunerada(11). As características das participantes da pesquisa evidenciam que é fundamental lembrar que essas mulheres cuidadoras-leigas são mães, pobres e vivenciam uma doença grave no contexto familiar, que têm dificuldades de inserção no mundo do trabalho devido ao adoecimento de um filho, que justifica o porquê da preocupação dos pesquisadores com elas a partir da sua cultura, que reforça o seu papel de principal cuidadora. Quem seria este cuidador senão a própria mãe, a partir da cultura das participantes?

A seguir seguem as subcategorias que discutem os dados empíricos do estudo frente ao exposto na literatura, além das concepções dos pesquisadores quanto à temática.

A mulher como principal cuidadora

A mulher foi considerada pelas participantes da pesquisa como a única e principal executora do cuidado em diferentes âmbitos (familiar, domiciliar, hospitalar, comunitário, entre outros). A função cuidadora abrange questões relacionadas à geratividade, ao instinto materno e às dificuldades do homem em desempenhar o cuidado com os filhos. Destacam-se alguns depoimentos provenientes das discussões em grupo que ilustram isto:

Sempre é a mãe! [...] acho que é desde sempre isso, a mulher é responsável pela família (G1P1).

Eu acho que eles [sociedade] acham que a mãe tem mais condições de cuidar do filho (G1P4).

Tu cuida da criança, da casa, cuida do estudo, né! trabalha e cuida dele, o pai não trabalha (G1P3).

A geratividade é um conceito presente nas percepções das mulheres em geral e bem evidente nessas cuidadoras-leigas, o qual diz respeito ao aprendizado do cuidado que perpassa diferentes gerações, sendo por isto contínuo, ou seja, a mãe ensina a filha, que ensina as suas filhas com auxílio da avó; tias, primas, todas as pessoas do gênero feminino estão inclusas no ensino do cuidado familiar. Isto tem fortes influências culturais que caracterizam práticas seculares e cuidados leigos próprios, mas a sobrevivência destes princípios pode estar comprometida, principalmente pela busca de mudança de papéis da mulher contemporânea.

A geratividade é um referencial proveniente da psicologia, que teve Erikson como precursor, o qual a definia como procriatividade, produtividade e criatividade(12).

As participantes do estudo excluem o homem/pai e não compartilham com o mesmo os cuidados inerentes à criança doente, o que demonstra que o papel materno que persiste ao longo da história, na maioria das vezes, não é dividido com outros atores da família (pai, irmãos, avôs, entre outros). Isto contextualiza uma contradição importante evidenciada nas mulheres cuidadoras/leigas: elas reclamam que estão sozinhas e abandonadas no ambiente hospitalar, mas percebe-se que há poucas oportunidades para que a família se inclua no processo de cuidado da criança. Por um lado, a sociedade reforça esta centralização e individualismo no cuidado a criança doente e hospitalizada, porém, de outro, percebe-se uma acomodação dos pais em não lutarem pela sua inclusão e participação, ou mesmo por não saberem como fazer para se sentirem aceitos e demonstrarem a sua responsabilidade com o cuidado do filho doente.

Alguns estudos têm apontado a necessidade de inclusão do homem nos cuidados com os filhos, como por exemplo, o repensar as identidades de gênero, o envolvimento do pai no cuidado de crianças com doenças crônicas, a inserção do homem/pai nos cuidados com o recém-nascido em alojamento conjunto, entre outros(11,13,14). O contexto das famílias destas mulheres também merece ser discutido, pois a maioria é proveniente do modelo nuclear, no qual o desempenho de papéis é fixo e pré-determinado e elas aceitavam.

Outro aspecto destacado pelas mulheres retrata a divisão dos papéis sociais aliado ao instinto materno, próprio e exclusivo da mulher, no qual homem e mulher apresentam suas funções estritamente separadas:

A função do homem é pôr o alimento em casa, a da mãe é cuidar de todo o resto, da educação, das doenças. Geralmente é o instinto materno que cuida de toda essa função (G1P1).

Pode-se inferir que o homem contemporâneo talvez esteja interessado em modificar parte deste determinismo devido às mudanças que vêm acontecendo na estrutura social, assim como também a própria mulher, que está começando a abdicar de alguns aspectos impregnados há séculos na sua vida, como as tarefas domésticas e o cuidado dos filhos. Os estudos sobre gênero têm evidenciado esta provável transformação e necessidade imediata do compartilhamento de papéis sociais(11,15,16).

Sob a ótica das participantes a sociedade impõe o papel social à mulher como principal cuidadora, não existindo alternativas. Outra questão que fragiliza as mulheres, participantes desse estudo, é a responsabilização da mulher frente aos cuidados com o filho doente e hospitalizado:

Eu acho que é isso que a sociedade pensa. A gente cuida porque a gente gosta, porque a gente ama, porque a gente acha que tem que ser a gente mesma. Mas a sociedade acha que é obrigação, que a mãe abrir mão de cuidar de um filho prá fazer outra coisa não é responsável, acho que a sociedade impôs isso prá gente. Então a obrigação é da mulher de cuidar da família (G1P1).

Discutir as possibilidades de inclusão do homem e, quiçá, o compartilhamento de responsabilidades conforme as disponibilidades de ambos nesta mudança cultural e social, é uma alternativa que se apresenta nos dias atuais. Porém, cabem alguns questionamentos: quais seriam as estratégias para preparar alguém a exercer o cuidado? Há alternativas para se instrumentalizar alguém a cuidar? Sabe-se que o cuidar faz parte das características singulares do ser humano, todos podem aprender e compreender o cuidar sob diferentes perspectivas. A mulher poderia ensinar e compartilhar com o homem o desempenho desse papel na sociedade contemporânea?

Muitas vezes, esquecidas de si, as mulheres postergam um debate urgente: a divisão desigual das responsabilidades da família e a injustiça de ter que dar conta, sozinha, de um trabalho do qual todos usufruem. Contudo pesquisas têm demonstrado que o homem está se preparando para dividir responsabilidades com a mulher, já reivindicando sua inclusão no cuidado à criança, como, por exemplo, acompanhando o filho internado no hospital, executando atividade de cuidado com a criança (banho, troca de fraldas, oferecimento da alimentação, entre outras), mas também preocupando-se com a mulher/mãe inserida neste contexto(13,14).

A mulher como principal cuidadora na saúde/doença

O processo saúde/doença é um evento que mobiliza a figura feminina no desempenho do cuidar desde os primeiros relatos históricos que discutem alterações na saúde do ser humano. A mulher é considerada símbolo de fecundidade e participante ativa nas práticas rituais que envolvem a concepção e o nascimento, sendo por isto de sua competência todos os cuidados que abrangem as crianças, doentes e moribundos(2).

Essas mulheres cuidadoras-leigas reconhecem esta função e atribuem algumas justificativas para explicá-la:

Então tudo que eles lembram é a mãe, a mãe faz o mamá, eu acho que é a pessoa mais próxima, a gente carrega eles por nove meses, deu aquele afeto para eles, né, se sentem seguros, confiam [...] (G1P3).

É que a gente está desde o início da doença, a gente começa desde o início acompanhando, quem está de fora não sabe o que a gente passa aqui dentro [...] (G1P6).

A mãe aceita o filho de qualquer jeito [...] só não aceita perder, o resto ela aceita tudo [...] o pai não aceita as doenças nem de um, nem do outro, ele incomoda bastante, ele não quer que eu venha pra cá pra fazer o tratamento, então tudo é só eu (G1P8).

Esses relatos evidenciam a mãe como principal cuidadora na saúde/doença, a qual inicia o cuidar na concepção e o vínculo estabelecido entre a mãe e o seu filho serve de suporte para o seu crescimento e desenvolvimento ao longo do ciclo vital. Quaisquer alterações que desviem o processo natural de crescimento e desenvolvimento acarretam preocupações na figura materna que podem trazer repercussões diretas e indiretas na sua vida social, familiar e pessoal.

No domínio leigo a sociedade reconhece a mulher como a principal provedora de cuidados de saúde, e normalmente as mães e avós são as principais figuras envolvidas(17). Outro aspecto mencionado diz respeito à negação da possibilidade de perda do filho, o que passa a ser uma das situações em que as mães demonstram realmente a sua desestruturação como ser humano, traduzido pela expressão de impotência e fragilidade.

A experiência dos pesquisadores tem demonstrado que, muitas vezes, o pai apóia e participa intensamente no cuidado do filho doente, mas nem sempre é assim; o oposto também acontece e eles se distanciam, deixando esse cuidado e acompanhamento exclusivo à mãe. Entre essas mulheres cuidadoras-leigas os dois papéis foram identificados. Um estudo realizado em uma unidade de internação pediátrica de um hospital universitário que objetivava compreender a vivência familiar da criança com doença crônica frente à hospitalização ressaltou que a figura paterna está cada vez mais presente junto à mãe, oferecendo participação nos cuidados com o filho e apoio emocional à mãe(13).

As participantes da pesquisa concedem à mulher/mãe o direito e obrigação de cuidar dos filhos, parecendo ser essa uma ação exclusiva da mãe, não-compartilhável, inclusive envolvendo pré-julgamentos e juízos de valor. Os depoimentos confirmam isto:

Mãe que não cuida do seu filho não é mãe! [...] (G1P6).

Uma mãe tem que cuidar de um filho. Uma mãe que não cuida do seu filho não merece nem ter filho! [...] (G1P9).

Tem umas que abandonam o serviço para cuidar, abandonam tudo para estar ali com eles (G1P3).

Existe uma valorização e destaque entre os diferentes papéis assumidos pela mãe e a dedicação exclusiva e única ao filho. O abandono das atividades que fazem parte da vida das mulheres tem caráter secundário, mas o cuidado ao filho não é delegável ou partilhado, conforme as participantes.

Sabe-se que a vida das mães que acompanham e cuidam de crianças com câncer apresenta mudanças drásticas como, por exemplo, a saída do emprego, o abandono de todas as atividades de vida diária, a dedicação exclusiva ao cuidado do filho e as mudanças na dinâmica familiar(13,18,19). O cuidar de uma criança com câncer inclui peculiaridades que dificilmente são vivenciadas em outras doenças, o que torna essas mulheres, cuidadoras diferenciadas. O meio social postula às mães, que aceitam e reproduzem essa cobrança, mas esta dedicação traz alguns ônus que podem repercutir negativamente no cotidiano das mulheres, entre eles, o múltiplo desempenho de papéis e responsabilização total quanto à vida/saúde dos filhos.

Alterações no contexto da família

A estrutura familiar de cada uma dessas mulheres cuidadoras-leigas constitui-se dos filhos, irmãos, companheiros e demais familiares, sendo que as modificações que acontecem nessas famílias são advindas muitas vezes da própria situação de doença da criança. As alterações que acontecem no contexto da família estendem-se desde a desestruturação familiar pela separação/divórcio até a confusão de papéis ou rupturas na dinâmica familiar, levando muitas vezes a perdas importantes nos laços familiares e sociais. Porém, a família tem assumido, cada vez mais, parte da responsabilidade de cuidar de seus membros(13).

O divórcio e/ou separação em situação de doença acontece mediante a saída da mulher do habitat de origem, deixando lacunas na relação homem/mulher/família ou, ainda, por desinteresse do homem/pai no acompanhamento e participação no cuidado ao filho doente. Identificou-se desestruturação intrafamiliar entre as mulheres pesquisadas, principalmente com relação aos demais filhos/irmãos da criança hospitalizada. Os cuidadores leigos priorizam apenas o ente que necessita de cuidados imediatos, desconsiderando a si e todo o contexto familiar(3).

Repensar os papéis sociais da mulher na sociedade, principalmente na redivisão de papéis e funções, é um fato que necessita de discussões, mas este movimento se torna viável à medida que houver propostas incorporadoras e equânimes de desempenho de papéis(11,15,16,20).

A família enfrenta toda a trajetória da doença da criança priorizando o cumprimento de um dever social, ou seja, proteger a criança contra o sofrimento e dor característicos da doença e da hospitalização, e, para isto, poderia haver nos profissionais de saúde o apoio e preparo para o exercício desse papel social(13,19). Os relatos demonstram tais aspectos:

Houve até casos de casais se separarem depois que começa o tratamento, não sei por que, ninguém conseguiu até hoje dizer [...] (G1P1).

É muito difícil! A gente que tem outros filhos se dedica só para esse (G3P2).

As pessoas são muito egoístas, cada um tem a sua vida. No início eles até dão força, mas depois cada um vai viver a sua vida, não faz muita questão (G1P6).

Todas estas questões corroboram diretamente na centralização do papel social da mulher como principal cuidadora e base da família. O meio social e comunitário incentiva tal comportamento, sobrecarregando a mulher com múltiplos papéis. Certamente, com o envolvimento e participação de outros membros da família diante da ocorrência da hospitalização de um de seus membros, poderia tornar menos árdua essa experiência e contribuiria para uma convivência mais solidária de todos os envolvidos com o problema.

É papel dos profissionais de saúde implementar tais ações que objetivem a coesão e união da família frente aos agravos próprios da doença da criança(13,19). Porém, sabe-se das dificuldades encontradas no cotidiano hospitalar, que apresenta uma série de variáveis que impedem ou pelo menos desestimulam esses profissionais a planejarem e exercerem ações de cuidado voltado às famílias. Conforme apresentado, discutido e concordado entre todas as mulheres, o cuidado é essencialmente centrado na criança, o que foi muito elogiado, mas a família ou quem acompanha a criança, torna-se muitas vezes invisíveis aos olhos da equipe de saúde.

A vida dessas mulheres cuidadoras antes da doença da criança era considerada favorável conforme as suas expectativas e percepções de qualidade de vida. O convívio familiar, o trabalho, o estudo eram atividades importantes que faziam parte do cotidiano antes das mudanças ocasionadas pela doença da criança. O relato a seguir clarifica isto:

Era tudo uma maravilha! Trabalhava a semana toda, fim de semana a gente saía, se divertia, era muito bom antes da doença! Nem pensava que um dia ia passar por isso! (G3P2).

O trabalho das mulheres, fora de casa, adquire caráter secundário quando a mãe passa a ser a principal cuidadora da criança doente, e percebe-se que a mulher apenas faz uma troca de papéis e não um agregar, pois ela assume estritamente o cuidado do filho doente(19).

A saída do emprego ou até a perda dele são fatos comuns às pesquisadas, principalmente porque nenhuma possuía atividade remunerada fixa no momento da pesquisa. A preocupação com os demais integrantes família, que passam distantes e sem contato com a mulher cuidadora, além das dificuldades financeiras e espaciais para maior contato familiar, são inquietações verbalizadas constantemente pelas participantes:

Aí depois que ele começou a ficar doente eu larguei do serviço, não conseguia cuidar direito da casa, porque era um dia no hospital e o outro também [...] (G3P4).

A gente começa a pensar como é que está em casa, a gente pensa em um monte de coisas! (G4P4).

As mudanças no contexto familiar acontecem independentemente da vontade das mulheres. A situação criada pela doença do filho impõe-lhes a condição de permanência junto ao filho, sem questionamentos ou, mesmo, tempo para se organizarem e planejarem os arranjos da casa, o cuidado aos demais filhos e a condição financeira, entre outras situações. Percebem-se desprotegidas, despreparadas para esse enfrentamento, a mercê de rotinas hospitalares rígidas, com alterações de seu cotidiano de forma brusca e, ainda, a única responsável, na maioria das vezes, pelo acompanhamento e cuidado da criança.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os papéis sociais das mulheres cuidadoras-leigas ficaram evidentes, confirmando que são múltiplos e amplos. O papel de mãe e principal cuidadora foi um dos mais discutidos nos encontros grupais, mas podem existir ainda outros papéis como, por exemplo, mantenedora, chefe de família, autônoma, formadora e divulgadora de opinião. Admite-se que os encontros grupais tenham sido propulsores desta problematização no íntimo das mulheres cuidadoras-leigas, as quais demonstraram desejo de autonomia e senso crítico quanto a esses papéis sociais desempenhados até aquele momento. Portanto, a mulher cuidadora-leiga, concomitantemente, consegue ser mulher/mãe/cuidadora nessa sociedade que ainda, de forma tímida, a percebe como co-participante no desenvolvimento da nação.

A mulher foi considerada a principal cuidadora da nossa sociedade, ampliando este papel ao cuidado em situações de saúde e doença. O que se percebeu com este múltiplo desempenho de papéis foram as alterações na dinâmica familiar, principalmente a desestruturação familiar. O homem é excluído pela mulher como uma alternativa para compartilhar o cuidar da criança hospitalizada e assim esse comportamento, associado à longa permanência fora do lar de origem, propicia a ruptura dos laços familiares entre o casal e demais integrantes da família.

Um debate que se faz necessário, pelas instâncias educacionais, políticas, sociais, entre outras, é a redistribuição dos papéis sociais, principalmente a responsabilidade familiar entre o homem e a mulher. Entretanto, o cuidado do filho em situações de doença ainda permanece como um papel irrevogável da mãe, parecendo ser uma obrigação não-compartilhada e produtora de valorização e reconhecimento social.

As alterações no contexto familiar compreendem a confusão de papéis, modificações na dinâmica familiar e, muitas vezes, o divórcio do casal. Contudo, a doença da criança acaba sendo a principal justificativa para tais acontecimentos na vida da mulher cuidadora-leiga, embora outras limitações relacionadas ao trabalho, estudo e convívio social transformem o cotidiano da mulher que acompanha seu filho no hospital. Problematiza-se que o desempenho de múltiplos papéis como mulher/mãe/cuidadora potencializa os obstáculos na sua vida. A enfermagem necessita desenvolver cada vez mais propostas incorporadas para amenizar esta situação incluindo a família na relação de cuidado com a criança hospitalizada.

O estudo realizado aguçou novas inquietações no pesquisador como por exemplo: de que modo aproximar os cuidadores-leigos de criança e profissionais de saúde para compartilhar papéis? A mulher/mãe/cuidadora está preparada para compartilhar suas múltiplas atribuições? Assim, é interessante discutir com a família e a comunidade a representação dos papéis socialmente determinados, a fim de se desenvolver a emancipação da mulher, frente aos diversos estereótipos impregnados cultural e historicamente, através de propostas educativas e libertadoras.

Recebido em: 18/08/2009

Aprovado em: 31/03/2010

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    Artigo extraído da dissertação de Mestrado apresentada em 2007 no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem (PPGENF) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      18 Ago 2009
    • Aceito
      31 Mar 2010
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