Acessibilidade / Reportar erro

Cotidianos de famílias de crianças convivendo com doenças crônicas: microssistemas em intersecção com vulnerabilidades individuais

Daily life of children living with chronic diseases: microsystems in the intersection with individual vulnerability

Diario de vida de las familias de los niños que viven con enfermedades crónicas: microsistemas en la intersección con la vulnerabilidad individual

Resumos

Situações de vulnerabilidade do ambiente onde criança e família estão inseridas podem ser traduzidas em condições de vida e desenvolvimento. Este estudo objetivou conhecer as percepções dos familiares sobre as situações de vulnerabilidade e seus componentes, relacionados com o ambiente ecológico, de crianças que convivem com doenças crônicas, hospitalizadas em um Hospital-Escola do Município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Trata-se de uma pesquisa qualitativa na perspectiva de um estudo exploratório descritivo. A coleta de informações ocorreu com nove participantes, utilizando dinâmicas de criatividade e sensibilidade, analisadas conforme referencial da Análise de Conteúdo. Emergiram três categorias de análise, sendo aqui explorada o microssistema familiar como constructo do componente individual da vulnerabilidade. A busca de uma intersecção demonstra que um componente individual da vulnerabilidade possui reflexos na constituição do microssistema, o que reafirma a importância de se visualizar o individuo como constructo e construtor do ambiente onde transcorre sua existência.

Vulnerabilidade; Família; Enfermagem pediátrica


Vulnerability situations the environment where a child and its family are inserted may be translated into life and development conditions. This study aimed to learn the perceptions by the family of vulnerability situations and its components, related to the ecological environment, in children who face chronic diseases, hospitalized in a Hospital School in the city of Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil. It is a quantitative research from the perspective of a descriptive exploratory study. Data was collected from nine participants, by using dynamic activities of creativity and sensibility, analyzed according to the Content Analysis referential. Three categories of analysis emerged, and here the familiar micro-system was explored as construct of the individual component of vulnerability. The search for an intersection demonstrates that an individual component of vulnerability has reflexes on the micro-system constitution, which reinforces the importance of envisioning the individual as construct and constructor of the environment where his/her existence takes place.

Vulnerability; Family; Pediatric nursing


Situaciones de vulnerabilidad del entorno donde el niño y su familia están integrados se pueden manifestar en condiciones de vida y desarrollo. Este estudio tiene como objetivo conocer las percepciones de los familiares acerca de las situaciones de vulnerabilidad y sus componentes, relacionados con el ambiente ecológico, de niños que conviven con enfermedades crónicas, hospitalizados en un Hospital Universitario en la ciudad de Porto Alegre, Estado de Rio Grande do Sul, Brasil. Se trata de una investigación cualitativa en la perspectiva de un estudio exploratorio descriptivo. La recopilación de informaciones abarcó nueve participantes, utilizando dinámicas de creatividad y sensibilidad, analizadas teniendo como referencia el análisis de contenido. Surgieron tres categorías de análisis, siendo aquí explorado el microsistema familiar como objeto de la construcción del componente individual de la vulnerabilidad. La búsqueda de una intersección muestra que un componente individual de la vulnerabilidad tiene reflejos en la constitución del microsistema, lo que reafirma la importancia de visualizar el individuo como el objeto de la construcción y también como el constructor del ambiente donde transcurre su existencia.

Vulnerabilidad; Familia; Enfermería pediátrica


ARTIGO ORIGINAL

Cotidianos de famílias de crianças convivendo com doenças crônicas: microssistemas em intersecção com vulnerabilidades individuaisa a Artigo originado de dissertação de Mestrado apresentada em 2009 ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Diario de vida de las familias de los niños que viven con enfermedades crónicas: microsistemas en la intersección con la vulnerabilidad individual

Daily life of children living with chronic diseases: microsystems in the intersection with individual vulnerability

Maria de Lourdes Rodrigues PedrosoI; Maria da Graça Corso da MottaII

IMestre em Enfermagem, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

IIDoutora em Filosofia da Enfermagem, Professora Assistente da Escola de Enfermagem da UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Endereço da autora Endereço da autora: Maria de Lourdes Rodrigues Pedroso Rua Santana, 549, ap. 202, Bairro Santana 90040-373, Porto Alegre, RS E-mail: malupedroso@gmail.com

RESUMO

Situações de vulnerabilidade do ambiente onde criança e família estão inseridas podem ser traduzidas em condições de vida e desenvolvimento. Este estudo objetivou conhecer as percepções dos familiares sobre as situações de vulnerabilidade e seus componentes, relacionados com o ambiente ecológico, de crianças que convivem com doenças crônicas, hospitalizadas em um Hospital-Escola do Município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Trata-se de uma pesquisa qualitativa na perspectiva de um estudo exploratório descritivo. A coleta de informações ocorreu com nove participantes, utilizando dinâmicas de criatividade e sensibilidade, analisadas conforme referencial da Análise de Conteúdo. Emergiram três categorias de análise, sendo aqui explorada o microssistema familiar como constructo do componente individual da vulnerabilidade. A busca de uma intersecção demonstra que um componente individual da vulnerabilidade possui reflexos na constituição do microssistema, o que reafirma a importância de se visualizar o individuo como constructo e construtor do ambiente onde transcorre sua existência.

Descritores: Vulnerabilidade. Família. Enfermagem pediátrica.

RESUMEN

Situaciones de vulnerabilidad del entorno donde el niño y su familia están integrados se pueden manifestar en condiciones de vida y desarrollo. Este estudio tiene como objetivo conocer las percepciones de los familiares acerca de las situaciones de vulnerabilidad y sus componentes, relacionados con el ambiente ecológico, de niños que conviven con enfermedades crónicas, hospitalizados en un Hospital Universitario en la ciudad de Porto Alegre, Estado de Rio Grande do Sul, Brasil. Se trata de una investigación cualitativa en la perspectiva de un estudio exploratorio descriptivo. La recopilación de informaciones abarcó nueve participantes, utilizando dinámicas de creatividad y sensibilidad, analizadas teniendo como referencia el análisis de contenido. Surgieron tres categorías de análisis, siendo aquí explorado el microsistema familiar como objeto de la construcción del componente individual de la vulnerabilidad. La búsqueda de una intersección muestra que un componente individual de la vulnerabilidad tiene reflejos en la constitución del microsistema, lo que reafirma la importancia de visualizar el individuo como el objeto de la construcción y también como el constructor del ambiente donde transcurre su existencia.

Descriptores: Vulnerabilidad. Familia. Enfermería pediátrica.

ABSTRACT

Vulnerability situations the environment where a child and its family are inserted may be translated into life and development conditions. This study aimed to learn the perceptions by the family of vulnerability situations and its components, related to the ecological environment, in children who face chronic diseases, hospitalized in a Hospital School in the city of Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil. It is a quantitative research from the perspective of a descriptive exploratory study. Data was collected from nine participants, by using dynamic activities of creativity and sensibility, analyzed according to the Content Analysis referential. Three categories of analysis emerged, and here the familiar micro-system was explored as construct of the individual component of vulnerability. The search for an intersection demonstrates that an individual component of vulnerability has reflexes on the micro-system constitution, which reinforces the importance of envisioning the individual as construct and constructor of the environment where his/her existence takes place.

Descriptors: Vulnerability. Family. Pediatric nursing.

INTRODUÇÃO

Este artigo propõe-se a apresentar elementos que compõem os resultados da pesquisa intitulada "Situações de Vulnerabilidade e Ambiente Ecológico: intersecções no cotidiano de famílias de crianças convivendo com doenças crônicas", realizada com familiares de crianças que convivem com doenças crônicas hospitalizadas em Unidades de Internação Pediátricas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, tendo por objetivo conhecer as percepções destes sobre os componentes das situações de vulnerabilidade e sua relação com o ambiente ecológico(1).

O conhecimento acerca do contexto em que uma família está inserida é fundamental para que se possa estabelecer um planejamento adequado das ações de saúde voltadas à promoção de seu bem-estar. O cenário em que as atitudes de transformação dos condicionantes de vulnerabilidades estão alocadas é representado, muitas vezes, por conflitos e dilemas, agravados pelo fato de se possuir um filho hospitalizado, principalmente em virtude de uma patologia com aspectos de cronicidade e de prognóstico reservado.

A vulnerabilidade pode ser resumida como o movimento de considerar a chance de exposição das pessoas ao adoecimento como a resultante de um conjunto de aspectos não apenas individuais, mas também coletivos e contextuais que acarretam maior suscetibilidade à infecção e ao adoecimento e, de modo inseparável, maior ou menor disponibilidade de recursos de todas as ordens para se proteger de ambos(2).

Uma das divisões conceituais que operacionalizam o conceito de vulnerabilidade, e que é utilizada no presente estudo, é a organização em vulnerabilidade social, individual e programática(2). O modelo de vulnerabilidade que interliga os aspectos individuais, sociais e programáticos reconhece a determinação social da doença e se coloca como um convite para renovar as práticas de saúde, como práticas sociais e históricas, envolvendo diversos setores da sociedade(3).

O ambiente ecológico é concebido como uma série de estruturas encaixadas, uma dentro da outra. No nível mais interno está o ambiente imediato, que contém a pessoa em desenvolvimento, como, por exemplo, a casa ou uma sala de aula. No próximo nível encontra-se não só o ambiente simples, mas as relações entre eles, no terceiro nível se invoca a hipótese de que o desenvolvimento é afetado por ambientes nos quais a pessoa nem sequer está presente(4).

O ambiente é definido como relevante para os processos desenvolvimentais, não se limita a um ambiente único, imediato, mas inclui interconexões entre esses ambientes, assim como as influências internas, oriundas de meios mais amplos. As situações de vulnerabilidade existentes em cada um dos ambientes, às quais a criança está sujeita, podem ser caracterizadas como, por exemplo, socioeconômicas, culturais, religiosas, biológicas. Todas elas podem ser de grande impacto quando se apresentam no meio mais imediato da criança, ou seja, a família(4).

Salienta-se a importância de se apresentar os resultados de um estudo sobre a percepção da família, sobre a responsabilidade que possui não somente sobre o cuidado para com a criança, mas também sobre o meio em que ela está inserida e sua relação com ele. Espera-se que, a partir desta pesquisa, fomente-se a discussão a respeito desta temática, pois esta necessita de constante aprimoramento e atitudes resolutivas, pautadas em conhecimento científico, aliado à humanidade, à sensibilidade e espírito transformador, ferramentas indispensáveis ao cotidiano de cuidado da inseparável unidade criança-família.

METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, desenvolvida na perspectiva de um estudo exploratório descritivo, realizado em Unidades de Internação Pediátricas do Hospital de Clínicas do Município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, que prestam atendimento a crianças em situações de agravos à saúde, mais especificamente: Unidade de Internação Pediátrica Norte – 10º N, Unidade de Internação Pediátrica Sul – 10º S.

As participantes foram familiares de crianças que convivem com uma patologia crônica, internadas nas referidas unidades e selecionadas de forma intencional em um número de nove. O número de participantes foi considerado suficiente usando-se o critério da saturação das informações(5).

A coleta de informações ocorreu por meio de entrevistas com a construção de um genograma e um ecomapa das famílias para maior conhecimento da estruturação da dinâmica familiar dos participantes, oficinas de criatividade e sensibilidade e observação participante. A coleta de informações ocorreu nos meses de junho e julho do ano de 2009. Os materiais foram analisados conforme referencial de Análise de Conteúdo(6). Esta etapa estabelece uma compreensão dos dados coletados, confirma ou não os pressupostos da pesquisa e amplia o conhecimento sobre o assunto pesquisado articulando-o ao contexto cultural do qual faz parte.

Aos informantes selecionados foi apresentado um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, informando os objetivos do estudo e que este não apresentava riscos, bem como sobre o caráter voluntário de suas participações com possibilidade de desistência a qualquer momento, sem qualquer prejuízo às suas pessoas, e garantia de anonimato, exemplificada pela utilização de códigos numéricos na divulgação dos resultados da pesquisa, sendo que os trechos das falas dos participantes foram obtidos no momento das oficinas de criatividade e sensibilidade.

A coleta de informações teve início após aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, registrado sob o protocolo nº 09-081.

RESULTADOS

Neste estudo emergiram três categorias que foram submetidas à análise, sendo elas: Microssistema Familiar: constructo do componente individual da vulnerabilidade, Vulnerabilidade Programática e sua inserção no mesossistema das instituições de saúde, A família como espelho de vulnerabilidades: a estruturação do macrossistema, sendo que a primeira delas será explorada neste artigo.

Doença Crônica: enfrentamento baseado na mobilização de forças individuais

Nesta subcategoria são evidenciados aspectos que co-existem no microssistema familiar, no qual a criança que convive com doença crônica se encontra. Estes aspectos são diretamente influenciados pelas situações de vulnerabilidade, sendo constituídos mais especificamente pelo seu componente individual. Este é representado pela capacidade efetiva de transformar suas práticas e pelas verdades que regem seus modos de ver a vida.

O microssistema familiar é aquele constituído de indivíduos, logo, quando este sofre alguma perturbação, como a ocasionada pela enfermidade de uma criança, possui suas bases abaladas, ou seja, pessoas se desestruturam, tornam-se fragilizadas, e lhes são exigidas atitudes que mobilizam novas forças, novos conhecimentos(7). As situações de vulnerabilidade, nestes momentos, se tornam mais visíveis, um novo mundo de desafios cotidianos se descortina, trazendo à tona novos medos, novas dificuldades.

O desafio de se responsabilizar pelo cuidado a uma criança cronicamente enferma pode ser recebido de diversas formas pelo indivíduo. Em muitos dos casos, a notícia da doença crônica é recebida por estas pessoas, primeiramente no ambiente das dúvidas, do medo do desconhecido. O caminho se mostra escuro, o que vislumbram é apenas a iminência do sofrimento ou do possível afastamento de seus filhos.

Os pais apresentam um processo de adaptação à doença e às hospitalizações dos filhos. Percebe-se que de maneira geral reagem com medo, angústia e até desespero. Estes passam por um período de adaptação a nova realidade, de forma singular, visto que são pessoas únicas, com histórias de vida e experiências diferentes, sendo assim, manifestam de maneira peculiar os sentimentos, a forma de reagir, as atitudes e a aceitação(8).

O protagonismo da situação de se ter um filho convivendo com uma doença crônica é da criança e de sua família. Um olhar a fundo possibilita constatar que neste momento estão sendo mobilizadas forças, coragem e superação interiores, desde o instante em que foram convidados a lutarem pela vida de seus filhos, como explicitado nas falas a seguir:

Eles [crianças] passam para a gente uma coisa que nem a gente sabe o que é. Uma força que nem a gente sabe que tem. A vida muda totalmente. Porque na vida da gente foi assim, do nada, simplesmente um dia acordar e vir um caminhão de coisas. A vida muda e faltam-nos meios (P.3).

Enquanto a gente vive, a gente procura dar o máximo que pode, como mãe, como avó, como ser humano. Para bonito ninguém está aqui, a gente tem um tempo e se este tempo for ocupado, mesmo com o sofrimento, embora o sofrimento traga bastante amadurecimento para as pessoas, tudo é válido. Porque estás fazendo a tua parte. Um ato de amor (P.1).

A falta de conhecimento destes em relação às doenças crônicas, o que gera sentimentos como insegurança e impotência, mas ao mesmo tempo cria a vontade de busca por informações, por notícias de novos tratamentos ou de casos parecidos com os de seus filhos que tenham acontecido em outros locais.

Obter informações detalhadas em relação à doença faz com que a família sinta-se instrumentalizada para acompanhar, atuar e gerenciar os acontecimentos e as etapas do tratamento da criança, possibilitando que o caminho, que antes era obscuro, comece a se iluminar perante seu entendimento(9). Alguns participantes evidenciam estes aspectos em suas falas, como demonstrado a seguir:

Quando eu soube que ela [criança] tinha essa doença, eu nem sabia o que era. Eu procuro correr atrás, pesquiso, buscando conhecimento. È difícil, porque na minha cidade ninguém conhece (P.3).

Começou com o diagnóstico, uma nuvem escura, nós no meio de uma nuvem fechada. Dificuldade maior mesmo foi de aceitar (P.7).

Os participantes relatam que diante da aquisição de conhecimentos acerca da patologia, o primeiro passo é o "estar junto", demonstrando uma presença constante e procurando fazer com que a criança se insira como guerreira, na batalha pela própria vida. As falas a seguir conferem exemplos destas situações:

Tem a rebeldia mesmo em aceitar ter que conviver com uma criança, a fazendo crescer sabendo que ela tem uma doença grave e que ela tem que aceitar. Ela também se torna rebelde (P.3).

A gente tem espírito de luta. Tanto que ele melhorou bastante com a internação. No começo foi meio difícil, mas depois ele aceitou. Ele viu que ele precisava lutar pela vida dele (P.9).

A condição crônica da criança demanda muito aprendizado da família, pois esta deve preparar a criança para o futuro, ensiná-la a enfrentar sua doença e conviver com suas limitações, incentivando-a a realizar atividades possíveis, estimulando sua independência(10).

Uma das maiores armas contra os aspectos vulnerabilizantes da família, oriundos da situação de doença crônica da criança, é a esperança. Junto a esta questão se dá encontro da pessoa com a sua espiritualidade. Esta é colocada em primeiro lugar, como o mais efetivo auxílio ao qual os pais e familiares possuem. A espiritualidade estrutura pensamentos organiza ações, possibilita entendimentos, é o que nos expressam as falas a seguir:

Em primeiro lugar, a gente tinha Deus. Termos fé, em primeiro lugar, porque nós sabemos que ela pode ter complicações, mas a gente espera que tudo dê certo, que ela possa vir a ser uma pessoa normal novamente, nós temos essa esperança (P.7).

Nós temos que nos mantermos conscientes de que para Deus nada é impossível, sempre que eu tenho um problema eu me ajoelho e rezo. O ser humano deve acreditar. Nem que seja para buscar forças para enfrentar os problemas difíceis que vocês [participantes] estão enfrentando. Que Nossa Senhora dê essas forças a todos. Tanto é que ela [criança] estava quase morrendo, e eu dizia para ela [criança], tu vai sair dessa (P.1).

A família acredita que um futuro sem a doença acontecerá, sente a esperança de encontrar a cura para a criança, seja por meio do surgimento de novos medicamentos, ou por um milagre, e nisto é fortalecida por uma religiosidade muito forte(11).

As vulnerabilidades que incidem sobre o microssistema familiar da criança, podem adquirir suas conotações de acordo com o sistema de crenças de seus componentes e na prática de cuidado, essas significações são fundamentais, devendo ser valorizadas e incorporadas ao processo de cuidar, não somente da criança, mas de sua família.

Família: estratégia de superação das limitações impostas pela doença

A organização familiar constitui o microssistema imediato da criança portadora de uma patologia crônica. Logo, possui uma importância fundamental na sua vida, por isso nesta subcategoria propõe-se uma reflexão que, mergulhe em seu comportamento diante da situação de doença de um de seus membros, priorizando o aspecto da família que enquanto vulnerável é, ao mesmo tempo, vulnerabilizadora de seus componentes.

A família é um sistema inserido em um contexto social e histórico. Pensar sobre a família, portanto, é adentrar no mundo da realidade e do imaginário, do sonho e da utopia. É lembrar o passado, viver o presente e projetar o futuro. É entender como o ontem interfere no hoje e como este se direciona para o amanhã. É ver que a família encontra-se na temporalidade, escrevendo a sua própria história(12).

A maneira como a criança e família enfrentam a doença crônica está associada a fatores na organização e interação familiar. Quando o mecanismo regulador do sistema familiar se mostra disfuncional, possui um impacto negativo na vida da criança e da família. Este contexto disfuncional pode, por sua vez, contribuir para agravar o quadro dificultando a adesão aos tratamentos, a adaptação a doença e a qualidade de vida das crianças(13).

Segundo as verbalizações dos participantes, duas atitudes contraditórias, por parte de membros das famílias, dividem o contexto em que ocorre o processo de tratamento da criança. A primeira diz respeito à valiosa ajuda que alguns participantes relatam que lhes é oferecida. A outra, em radical oposição a esta, diz respeito ao abandono, à segregação e à falta de solidariedade, oriundas do interior da organização familiar, o que constitui um microssistema vulnerável na sua essência.

A presença da família é decisiva para o cuidado da criança, significa segurança, preserva seu mundo, mantém vivos os laços de afeto e colabora com o cotidiano gerado pelo elo criança-hospital. O cuidador familiar necessita de apoio para o enfrentamento e adaptação as novas circunstancias, possibilitando que este adquira força e coragem para prosseguir na caminhada com um filho doente(11).

Uma família unida, mesmo que imersa em inúmeras dificuldades, ou seja, mesmo que unindo suas vulnerabilidades individuais, transforma esta fusão em uma mola propulsora de atitudes na busca pela recuperação da criança, pois um se constitui em suporte do outro. Os participantes enaltecem a ajuda recebida por outras pessoas no cotidiano de cuidado à criança, especialmente as de sua família, como evidenciam as falas a seguir:

Todos da minha família nos auxiliam. Meu esposo ajuda a gente bastante também. Ele cuida, dá banho, troca fralda. Faz tudo. Minha mãe, nossa, me ajuda em tudo. E meu pai também (P.8).

Deus coloca as pessoas certas no meu caminho, na hora que eu preciso. A gente não anda sozinho no mundo. Acho que sozinho é muito difícil, muito pesado. Tudo que é dividido se torna mais leve (P.1).

Tinha o apoio dos parentes, e da comunidade. Está todo mundo unido querendo que ela melhore. Nas situações é preciso ter base familiar muito sólida (P.7).

Durante a sua experiência com a doença da criança, a mãe depara-se com adversidades de diversas naturezas que precisam ser superadas para alcançar o grande propósito de cuidar da criança. O preconceito e a desconsideração em relação à situação da doença da criança são os elementos que mais a abatem(10). É o que é explicitado nos trechos das falas a seguir:

Os meus parentes são de fora. Para mim foi tudo muito difícil, eu sempre tive que ficar sozinha com ela, até quando estava grávida do meu outro filho eu ficava direto com ela aqui [hospital]. Porque o meu marido trabalhava, não podia ficar (P.2).

Na comunidade é uma dificuldade. Tem coisas que geram constrangimentos. Mas graças a Deus, a gente vai sabendo levar. Tem muitas pessoas da própria família, que chegam a um ponto de dizer: "Cada um com o seu problema" (P.9).

A situação de doença crônica da criança não se apresenta isoladamente. Problemas e necessidades coexistem no cotidiano e, quando não se encontram auxílios para que estes sejam minimizados, transformam-se em fatores estressores e de grande sofrimento. O afastamento, por parte de membros da família, repercute em vários setores da vida, em especial na questão do suporte financeiro e do auxílio a cuidados com outros filhos.

A compaixão diante de situações como o abandono ou a negligência, e a solidariedade que gera um apoio mútuo entre as famílias, são virtudes presentes no contexto de cuidado a crianças portadoras de doenças crônicas. Mesmo imersos em um momento onde se poderiam existir atitudes voltadas à própria sobrevivência, o preocupar-se, o comover-se pelo outro habita os sentimentos dos familiares, promovendo, muitas vezes, o estabelecimento de verdadeiras comunidades. As seguintes falam evidenciam estes sentimentos:

Eu fico louca de pena das crianças. Essas mães que deixam os filhos. Tem uma gurizinha ali no quarto que a mãe nunca veio ver. Eu choro. Tem gente que diz que criança não entende, mas entende sim. Entende melhor do que nós (P.6).

A gente que está em um hospital grande às vezes enxerga situações como, por exemplo, a avó é responsável pela filha da filha, ou seja, pelos cuidados da neta. Então se nota que falta, não é? Esta estrutura, não é? (P.7).

O que eu vejo é que cada um tem o seu problema, mas aqui a gente compartilha, a gente conversa muito. Se tiver que chorar uma no ombro da outra, a gente chora, a gente desabafa (P.8).

A vivência de uma relação calorosa, íntima e contínua com a mãe, ou, uma com uma pessoa que desempenha, regular e constantemente, o papel de mãe, mostra-se essencial à saúde mental do bebê. É essa relação rica e compensadora, enriquecida de inúmeras maneiras pelas relações com os pais e familiares, que a comunidade científica julga estar na base da personalidade e da saúde mental(14,15).

Nesta categoria foi possível evidenciar exemplos de vulnerabilidades individuais, presentes na formação do microssistema familiar. Mais do que fomentar a discussão sobre a origem dessas vulnerabilidades, o que poderia nos levar aos equívocos como os da culpabilização e vitimização, refletimos acerca de estratégias de superação destas, verbalizadas pelos participantes da pesquisa.

A família é a principal responsável pelo desenvolvimento das crianças, pois elas ainda não são capazes de realizarem o autocuidado. Nesta perspectiva, a família torna-se o foco da elaboração do plano de cuidados, o qual se preocupa com o ambiente que a cerca e com a adequação das orientações à sua realidade e às suas limitações(16).

Quando nos deparamos com a situação de famílias que convivem com a situação de doença crônica da criança, observamos a busca pela superação do plano de suscetibilidades ao qual estão expostos, movidos por uma das maiores, senão a maior, forças propulsoras do ser humano, a luta pela vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposição de constituir um estudo com famílias de crianças que convivem com doenças crônicas exige do pesquisador uma atitude de seriedade e, ao mesmo tempo, sensibilidade. Além disso, preparo específico, com uma abordagem instrumentalizada e efetiva, sem perder o foco do objetivo a que se destina, porém exercitando o respeito às singularidades e às necessidades dos pesquisados.

Evidenciou-se nas expressões dos participantes que, ao possuir uma situação de vulnerabilidade individual como a falta de conhecimento sobre a doença, as crianças são atingidas diretamente e as famílias são exigidas de uma forma sobre humana.

Os resultados desse estudo conduzem a afirmação de que existe a intersecção, manifesta nos elementos práticos da vida cotidiana das famílias de crianças com doenças crônicas, entre os pressupostos da Teoria Socio-Ecológica e os elementos do Marco Conceitual da Vulnerabilidade.

A busca desta intersecção propicia constatar que um componente de vulnerabilidade tem seus reflexos na constituição de todos os outros, bem como de que existe uma ressonância de acontecimentos presentes em um sistema para os demais do ambiente bioecológico. Esta comprovação leva à reflexão sobre a responsabilização individual das ações no contexto em que a pessoa se encontra, bem como reafirma a importância de visualizar o individuo como construtor, mas também constructo do ambiente onde transcorre sua existência.

Esta pesquisa possui inserção na área de Enfermagem Pediátrica. Sendo assim, algumas recomendações e aproximações dos achados teóricos com questões da prática de enfermagem se fazem pertinentes para o cuidado, mas também nos âmbitos do ensino e da pesquisa.

No que se refere à assistência de enfermagem direta à criança, é imprescindível o reconhecimento das dificuldades existentes na vida de uma família. Os profissionais, tendo como ponto de partida o interesse pela detecção das situações de vulnerabilidade individual, possuem a capacidade de apontarem propostas e alternativas de possíveis soluções para os reflexos destas, bem como indicam meios de implementá-las.

A formação profissional da enfermagem alicerça e constitui valores e regras de atuação frente ao cuidado prestado, não somente às crianças. Neste contexto é que se insere a importância de incitar o futuro profissional à reflexão sobre as situações de vulnerabilidade e a relação com o ambiente bioecológico dos indivíduos. A academia constitui espaço apropriado para desenvolvimento destas práticas. Estudos que dêem voz aos familiares de crianças que convivem com a doença crônica valorizam seus pensamentos e suas expressões e são de relevância para a qualificação do cuidado.

Recebido em: 23/01/2010

Aprovado em: 27/12/2010

  • 1 Pedroso MLR. Situações de vulnerabilidade e ambiente ecológico: intersecções no cotidiano de crianças convivendo com doenças crônicas [dissertação]. Porto Alegre: Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2009.
  • 2 Ayres JRCM. Vulnerabilidade e avaliação de ações preventivas: HIV/AIDS e abuso de drogas entre adolescentes. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 1996.
  • 3 Sánchez AIM, Bertolozzi MR. Pode o conceito de vulnerabilidade apoiar a construção do conhecimento em Saúde Coletiva? Ciênc Saúde Colet. 2007;12(2):319-24.
  • 4 Bronfenbrenner UA. Ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas; 1996.
  • 5 Polit DF, Beck CT, Hungler BP. Fundamentos de pesquisa em enfermagem: métodos, avaliação e utilização. 5Ş ed. Porto Alegre: Artmed; 2004.
  • 6 Minayo MCS, organizadora. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 26Ş ed. Petrópolis: Vozes; 2007.
  • 7 Polonia AC, Dessen MA, Silva NP. O modelo bioecológico de Bronfenbrenner: contribuições para o desenvolvimento humano. In: Dessen MA, Costa Junior AL, organizadores. A ciência do desenvolvimento humano: tendências atuais e perspectivas futuras. Porto Alegre: Artmed; 2005. p. 71-89.
  • 8 Mittag BF, Wall ML. Pais com filhos internados na UTI Neonatal: sentimentos e percepções. Fam Saúde Desenv. 2004;6(2):134-45.
  • 9 Pedroso MLR. Influências das vulnerabilidades sócio-econômicas no cuidado às crianças em unidades de internação pediátricas: a visão do enfermeiro [monografia]. Porto Alegre: Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2008.
  • 10 Rossato LM, Angelo M, Silva CAA. Cuidando para a criança crescer apesar da dor: a experiência da família. Rev Latino-Am Enfermagem. 2007;15(4):556-62.
  • 11 Motta MGC. Cuidado humanizado no ensino de enfermagem. Rev Bras Enferm. 2004;57(6):758-60.
  • 12 Meira MCR, Centa ML. A evolução da família e suas implicações na educação dos filhos. Fam Saúde Desenv. 2003;5(3):223-30.
  • 13 Viana V, Barbosa MC, Guimarães J. Doença crónica na criança: factores familiares e qualidade de vida. Psicol Saúde Doenças. 2007;8(1):117-27.
  • 14 Boing E, Crepaldi MA. O efeito do abandono para o desenvolvimento psicológico dos bebes e a maternagem como fator de proteção. Estud Psicol. 2004;21(3):211-26.
  • 15 Bowlby J. Cuidados maternos e saúde mental. São Paulo: Martins Fontes; 1988.
  • 16 Zanatta EA, Motta MGC. Saberes e práticas das mães no cuidado à criança de zero a seis meses. Rev Gaúcha Enferm. 2007;28(4):556-63.
  • Endereço da autora:
    Maria de Lourdes Rodrigues Pedroso
    Rua Santana, 549, ap. 202, Bairro Santana
    90040-373, Porto Alegre, RS
    E-mail:
  • a
    Artigo originado de dissertação de Mestrado apresentada em 2009 ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Jun 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Recebido
      23 Jan 2010
    • Aceito
      27 Dez 2010
    Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escola de Enfermagem Rua São Manoel, 963 -Campus da Saúde , 90.620-110 - Porto Alegre - RS - Brasil, Fone: (55 51) 3308-5242 / Fax: (55 51) 3308-5436 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: revista@enf.ufrgs.br