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O significado do acidente de trabalho com material biológico para os profissionais de enfermagem

El significado del accidente de trabajo con material biológico para los profesionales de enfermería

The significance of accidents involving biological material to nursing professionals

Resumos

O objetivo deste estudo foi compreender o significado dos acidentes de trabalho com exposição a material biológico na perspectiva dos profissionais de enfermagem. De caráter exploratório com abordagem qualitativa pela análise de conteúdo de Bardin. No período de 2001 a 2006 ocorreram 87 acidentes com material biológico, sendo que destes, oito eram soropositivos para hepatite B e C e Síndrome da Imunodeficiência Adquirida/Vírus da Imunodeficiência Humana. Para coleta de dados utilizou-se entrevista com perguntas norteadoras. Ao indagar esses profissionais sobre o significado dos acidentes, emergiram quatro categorias: situação de risco; percepção de perigo; fatalidade e sentimentos. Embora não seja estratégia de esclarecimento, mas é fato que organização de trabalho e ações educativas tem impacto considerável para diminuir esse tipo de acidente, diminuindo prejuízos na vida dos acidentados.

Saúde do trabalhador; Exposição ocupacional; Exposição a agentes biológicos; Estresse psicológico; Ambiente de trabalho


El objetivo de este estudio ha sido comprender el significado de accidentes de trabajo con exposición a material biológico, desde la perspectiva de los profesionales de enfermería. De carácter exploratorio con enfoque cualitativo por el análisis de contenido de Bardin. En el período de 2001 a 2006 ocurrieron 87 accidentes con material biológico, de estos, ocho eran seropositivos para hepatitis B y C y Síndrome de la Inmunodeficiencia Adquirida/Virus de la Inmunodeficiencia Humana. Para recoger datos se ha utilizado entrevista con preguntas. Al preguntar a esos profesionales sobre el significado de los accidentes, han surgido cuatro categorías: situación de riesgo, percepción de peligro, fatalidad y sentimientos. Aunque no sea estrategia de aclaración, pero es un hecho que la organización de trabajo y acciones educativas tienen impacto considerable para disminuir ese tipo de accidente, disminuyendo perjuicios en la vida de los accidentados.

Salud laboral; Exposición profesional; Exposición a agentes biológicos; Estrés psicológico; Ambiente de trabajo


The objective of this present study was to understand the significance of occupational accidents with exposure to biological material from the perspective of nursing professionals. This study is exploratory with qualitative approach using Bardin's content analysis. 87 accidents involving biological material occurred in the period between 2001 and 2006, among them, eight were seropositive for hepatitis B and C and Acquired Immunodeficiency Syndrome/Human Immunodeficiency Virus. In order to collect data, it was used interview with oriented questions. When inquiring these professionals about the significance of these accidents, four categories emerged: risk situation, danger perception, fatality and feelings. Although it is not strategy of enlightenment, but it is fact that work organization and educative actions have considerable impact in order to reduce this type of accident, also reducing detriment to life of professionals who were involved in accidents.

Occupational health; Occupational exposure; Exposure to biological agents; Stress, psychological; Working environment


ARTIGO ORIGINAL

O significado do acidente de trabalho com material biológico para os profissionais de enfermagem1 1 Estudo originado da dissertação de Mestrado apresentada em 2008 na Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (UNESP).

El significado del accidente de trabajo con material biológico para los profesionales de enfermería

The significance of accidents involving biological material to nursing professionals

Maristela Aparecida Magri MagagniniI; Suelen Alves RochaII; Jairo Aparecido AyresIII

IMestre em Enfermagem, Professora Auxiliar de Ensino das Faculdades Integradas Padre Albino (FIPA), Catanduva, São Paulo, Brasil

IIEnfermeira, Aluna do Programa de Residência em Saúde da Família da Faculdade de Medicina de Botucatu da UNESP, Botucatu, São Paulo, Brasil

IIIDoutor em Doenças Tropicais, Professor do Departamento de Enfermagem da Faculdade de Medicina de Botucatu da UNESP, Botucatu, São Paulo, Brasil

Endereço do autor Dirección del autor / Author's address Endereço do autor / : Jairo Aparecido Ayres UNESP - Faculdade de Medicina de Botucatu Departamento de Enfermagem Campus Universitário Rubião Jr, s/nº 18603-970, Botucatu, SP E-mail: ayres@fmb.unesp.br

RESUMO

O objetivo deste estudo foi compreender o significado dos acidentes de trabalho com exposição a material biológico na perspectiva dos profissionais de enfermagem. De caráter exploratório com abordagem qualitativa pela análise de conteúdo de Bardin. No período de 2001 a 2006 ocorreram 87 acidentes com material biológico, sendo que destes, oito eram soropositivos para hepatite B e C e Síndrome da Imunodeficiência Adquirida/Vírus da Imunodeficiência Humana. Para coleta de dados utilizou-se entrevista com perguntas norteadoras. Ao indagar esses profissionais sobre o significado dos acidentes, emergiram quatro categorias: situação de risco; percepção de perigo; fatalidade e sentimentos. Embora não seja estratégia de esclarecimento, mas é fato que organização de trabalho e ações educativas tem impacto considerável para diminuir esse tipo de acidente, diminuindo prejuízos na vida dos acidentados.

Descritores: Saúde do trabalhador. Exposição ocupacional. Exposição a agentes biológicos. Estresse psicológico. Ambiente de trabalho.

RESUMEN

El objetivo de este estudio ha sido comprender el significado de accidentes de trabajo con exposición a material biológico, desde la perspectiva de los profesionales de enfermería. De carácter exploratorio con enfoque cualitativo por el análisis de contenido de Bardin. En el período de 2001 a 2006 ocurrieron 87 accidentes con material biológico, de estos, ocho eran seropositivos para hepatitis B y C y Síndrome de la Inmunodeficiencia Adquirida/Virus de la Inmunodeficiencia Humana. Para recoger datos se ha utilizado entrevista con preguntas. Al preguntar a esos profesionales sobre el significado de los accidentes, han surgido cuatro categorías: situación de riesgo, percepción de peligro, fatalidad y sentimientos. Aunque no sea estrategia de aclaración, pero es un hecho que la organización de trabajo y acciones educativas tienen impacto considerable para disminuir ese tipo de accidente, disminuyendo perjuicios en la vida de los accidentados.

Descriptores: Salud laboral. Exposición profesional. Exposición a agentes biológicos. Estrés psicológico. Ambiente de trabajo.

ABSTRACT

The objective of this present study was to understand the significance of occupational accidents with exposure to biological material from the perspective of nursing professionals. This study is exploratory with qualitative approach using Bardin's content analysis. 87 accidents involving biological material occurred in the period between 2001 and 2006, among them, eight were seropositive for hepatitis B and C and Acquired Immunodeficiency Syndrome/Human Immunodeficiency Virus. In order to collect data, it was used interview with oriented questions. When inquiring these professionals about the significance of these accidents, four categories emerged: risk situation, danger perception, fatality and feelings. Although it is not strategy of enlightenment, but it is fact that work organization and educative actions have considerable impact in order to reduce this type of accident, also reducing detriment to life of professionals who were involved in accidents.

Descriptors: Occupational health. Occupational exposure. Exposure to biological agents. Stress, psychological. Working environment.

INTRODUÇÃO

As atividades da equipe de enfermagem nas instituições hospitalares caracterizam-se pela prestação do cuidado nas 24 horas do dia, ininterruptamente, permitindo a continuidade da assistência. Isto implica em permanecer grande parte da jornada de trabalho em contato direto com o paciente.

Desta forma, verifica-se que estes profissionais estão sujeitos a elevado grau de risco ocupacional, destacando-se a exposição aos agentes biológicos. Pode-se elencar cerca de 22 doenças passíveis de serem transmitidas por meio da interação paciente/profissional de saúde, sendo os patógenos veiculados pelo sangue e representantes do maior impacto na saúde do trabalhador os vírus da hepatite C (HCV), da hepatite B (HBV) e da imunodeficiência humana (HIV), causador da Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida (AIDS)(1).

A partir da epidemia da HIV/AIDS nos anos 80, foram implementadas medidas para proteção dos profissionais nos serviços de saúde, com destaque para as chamadas Precauções Universais (PU), estabelecidas em 1996 pelos Centers for Disease Control and Prevention (CDC)(2). Essas devem ser empregadas na assistência a todos os pacientes, independente de sua patologia, na manipulação de sangue, secreções, excreções, contato com mucosas e pele não-íntegra. Incluem o uso de equipamentos de proteção individual (EPI), bem como cuidados na manipulação e descarte de materiais perfurocortantes contaminados(3). Embora estabelecida a obrigatoriedade do cumprimento das PU, em situações de risco de contaminação, os acidentes não deixaram de existir, configurando ainda grave problema entre as equipes de saúde, principalmente as atuantes em ambiente hospitalar.

No Brasil, a Norma Regulamentadora (NR) 32, objetiva estabelecer diretrizes básicas para a implementar medidas de proteção à segurança e à saúde dos trabalhadores dos serviços de saúde, bem como daqueles que exercem atividades de promoção e assistência à saúde em geral. Dentre as normas estabelecidas são preconizados o uso de EPI, a higienização das mãos, a vacinação contra hepatite B, tétano e difteria, entre outras disposições(4). Em complementação, a Portaria nº 939, de 19 de novembro de 2008, determinou o prazo de dois anos, a partir da data de sua publicação, para as empresas substituírem os materiais perfurocortantes por outros com dispositivo de segurança(5).

Existem no mundo aproximadamente 325 milhões de portadores crônicos da hepatite B e 170 milhões da hepatite C. No Brasil, são cerca de dois e três milhões, respectivamente. A maioria das pessoas desconhece sua condição sorológica, fato que agrava ainda mais a contenção da cadeia de transmissão destas infecções(6). Estima-se que o risco de contaminação acidental após exposição percutânea é de aproximadamente 0,3% para o HIV, podendo atingir até 40% para HBV e variando entre 2% e 18% para o HCV(7).

Após um acidente, envolvendo sangue e/ou fluidos corporais potencialmente contaminados, o profissional deve receber atendimento profilático de emergência, uma vez que, para atingir maior eficácia em relação ao HIV e a hepatite B, as intervenções necessitam ser precocemente realizadas.

A Previdência Social registrou num período de quatro anos 1.875.190 acidentes de trabalho, e destes 15.293 com óbitos e 72.020 com incapacidade permanente. Fato que acarreta prejuízos aos trabalhadores e as instituições empregadoras, além de gerar custos significativos aos cofres públicos no Brasil(8).

Nesta perspectiva, questiona-se: A experiência de acidente do trabalho vivenciada pelo profissional de saúde pode oferecer subsídios para a prevenção desta ocorrência?

Portanto, este estudo, que é derivado de uma dissertação de Mestrado(9), pretende compreender o significado dos acidentes de trabalho com exposição a material biológico na perspectiva dos profissionais de enfermagem acometidos num hospital do interior paulista, no período de 2001 a 2006.

METODOLOGIA

Investigação de natureza exploratória com abordagem qualitativa, realizada numa instituição hospitalar do interior paulista de grande porte e alta complexidade. Os sujeitos do estudo foram trabalhadores da equipe de enfermagem, envolvendo as três categorias profissionais, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, acometidos por acidentes de trabalho com material biológico de paciente fonte de HIV, hepatite B e C, no período de 2001 a 2006. A partir das fichas de notificação de acidentes biológicos com profissionais da saúde, obtidas no Setor de Engenharia, Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT), identificou-se que dos 87 acidentes ocorridos no período, oito foram com pacientes portadores de HIV, hepatite B e C.

A coleta de dados foi realizada após a obtenção de parecer favorável do Comitê de Ética da Faculdade de Medicina de Catanduva (FAMECA), conforme ofício 48/06, e a autorização dos atores que participaram deste estudo, conforme Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que aprovou as diretrizes e as normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos(10).

Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, no período de junho a julho de 2006, em sala destinada para esse fim. Sendo as questões norteadoras: 1) Conte-me como foi o acidente que aconteceu com você em (data do acidente)? 2) O que você acha que ocasionou o acidente? 3) O que você pensou na época com relação aos riscos que estava correndo por causa deste acidente? 4) Qual foi o significado deste acontecimento na sua vida profissional, familiar e social naquela época?

As entrevistas foram gravadas, transcritas na íntegra, e deletadas após a coleção de dados. As informações obtidas foram codificadas segundo a primeira letra da categoria profissional, ou seja, enfermeiro (E), técnico de enfermagem (T) e auxiliar de enfermagem (A), garantindo o anonimato dos trabalhadores, sendo ainda numeradas de 1 a 8.

Para tratamento dos dados qualitativos utilizou-se a análise de conteúdo, na abordagem representacional e do tipo temática desenvolvida por Bardin(11). A análise de conteúdo desdobra-se em três fases, a saber: pré-análise; exploração do material; tratamento dos dados, inferência e interpretação. Na primeira fase o pesquisador realiza o contato inicial com o material (leitura flutuante). Na segunda fase os dados são codificados, sendo necessárias três escolhas: o recorte (escolha das unidades); a enumeração (escolha das regras de contagem); a classificação e a agregação (escolha das categorias). Na terceira fase os dados brutos são trabalhados maneira a serem significativos e válidos(11).

Para análise dos dados utilizou-se o referencial de normas de segurança no trabalho, baseado na literatura científica atual sobre o tema.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A amostra foi composta por quatro mulheres e quatro homens, sendo um enfermeiro, três auxiliares e quatro técnicos de enfermagem. O tipo de exposição predominante foi percutânea (75%), tendo o sangue como material biológico (80,5%). Dentre os pacientes envolvidos, cinco eram portadores de HIV, um de hepatite B, um de hepatite C e um co-infectado com HIV e hepatite C.

A partir da análise de conteúdo foi possível construir quatro categorias com suas respectivas unidades temáticas que permitem a compreensão do significado dos acidentes na perspectiva dos profissionais acometidos.

Situação de risco

Sinaliza as situações, envolvendo profissionais de enfermagem, paciente e ambiente de trabalho, que potencializam o risco de acidentes.

Visando a qualidade da assistência e a redução da incidência de acidentes de ocupacionais, faz-se necessário o planejamento e organização das atividades assistenciais. Não basta ao profissional o conhecimento técnico científico, deve considerar o contexto da assistência, a complexidade do paciente e avaliar suas competências pessoais, solicitando auxílio quando necessário.

O paciente estava agitado, e eu fui realizar o procedimento sozinha sem ajuda de ninguém [...] (T3).

Os profissionais de enfermagem, no seu dia-a-dia, desconhecem a relação saúde-doença no ambiente laboral, pois se encontram despreparados para reconhecer que este ambiente pode causar danos a sua saúde(12).

[...] Sim eu estava colhendo sangue para tipagem da criança, a gente colhe o sangue da mãozinha do bebê e segurando a mãozinha eu com luvas ele puxou a mão, escapando a agulha e pegando no meu dedo [...] (T2).

A criança que se encontra hospitalizada e diante de novas situações como o ambiente, pessoas estranhas e procedimentos terapêuticos, por vezes dolorosos, pode ter reações como medo e desespero, levando ao choro e a agitação, no sentido de demonstrar que não quer ser agredida. Portanto, ao executar procedimentos com crianças, situações como esta são previstas, exigindo do profissional uma avaliação e um julgamento prévio da necessidade de auxílio. Lembrando que a literatura aponta elevado coeficiente de risco de acidentes nas unidades de internação pediátricas(12).

Há quem afirme que a saúde do trabalhador pode ser comprometida pelo não uso dos equipamentos de proteção, expondo-os a riscos no ambiente laboral, podendo ser este ato inconsciente por parte dos trabalhadores(7), que deveriam considerar que todo paciente é um potencial de infecção(13).

A colega de trabalho não estava conseguindo puncionar e me chamou para dar uma ajuda e no momento em que eu fui puncionar com o escalpe, o paciente estava agitado, ele fez um movimento brusco e eu me perfurei, não estava usando luvas, não se sabia o diagnóstico do paciente até então [...] (T6).

É importante ressaltar que o profissional deve ter preparo para executar procedimentos sob seu domínio, com segurança e consciência dos riscos envolvidos.

Em estudo realizado com trabalhadores de um hospital universitário, constaram a negligência do outro como fator determinante para a ocorrência do acidente(13). A imprudência também foi apontada por profissionais da equipe de enfermagem como causa de acidentes com material perfurocortante(6).

A negligência é definida como um descuido e falta de implementação de medidas preventivas que caracterizam certos atos como omissos(14). Por definição compreende-se que a imperícia refere-se ao ato perigoso relacionado à falta de precaução, constante no ambiente de saúde.

A imprudência profissional pode estar relacionada à experiência e à prática adquirida durante vários anos, e que levam os profissionais a adquirirem uma postura de autoconfiança. Enquanto a negligência apresenta-se como a ausência de cuidados razoáveis exigidos na assistência. Esses atos ocorrem em detrimento do nível educacional dos envolvidos, mas podem ser associados ao seu contexto de vida.

O paciente tinha acabado de ir a óbito, ele era HIV positivo e foi retirado o escalpe do paciente e deixado na cama do paciente e eu peguei o escalpe que estava na cama e fui desprezar, foi onde que eu me furei [...] (A7).

Um pouco de imprudência, na agitação em que o paciente estava, não tinha como, porque do jeito que ele puxou o braço, normalmente eu ia me furar, a minha imprudência era não estar usando o EPI [...] (T6).

Percebe-se que mesmo dotado de conhecimentos técnicos e experiência, o trabalhador não consegue deixar de lado velhos hábitos, não incorporando mudanças(5). Neste caso, conhece o risco, porém o comportamento não é modificado.

O código de ética de enfermagem é muito claro no que diz respeito aos danos decorrentes de imperícia, negligência e imprudência em relação à pessoa, família e coletividade. Portanto, o profissional deve possuir competência técnica, científica e ética para assumir responsabilidades(15).

Observa-se ainda que a escassez de materiais e equipamentos, a falta de substituição e de manutenção, ou seja, a falta de investimento em recursos materiais pode também contribuir para a ocorrência do acidente.

Ao colher sangue de uma paciente, soro positivo para HIV, o tubo estava fraco devido a esterilização, o frasco quebrou e eu vim a me perfurar, ainda bem que eu estava de luvas (T4).

Os recursos materiais devem possibilitar aos trabalhadores segurança durante a execução dos procedimentos, no que se refere à qualidade e quantidade, para não desqualificar a assistência e não trazer risco ocupacional(7).

Pelos depoimentos analisados percebe-se que as situações de risco ainda persistem entre os componentes da equipe de saúde, indicando que há necessidade de sensibilização dos profissionais diretamente ligados à assistência e dos gestores em relação aos riscos ocupacionais. Ressalta-se que os avanços tecnológicos objetivam oferecer maior segurança na realização dos procedimentos terapêuticos que poderiam propiciar a ocorrência de acidentes com envolvimento da equipe de saúde e dos pacientes.

Percepção de perigo

Sinaliza que ao passar pela situação real do risco da soroconversão o profissional percebe a necessidade da conscientização do autocuidado.

Eu só fiquei mais atento em tudo que eu fazia eu já usava os materiais de proteção e comecei utilizar mais ainda e o paciente com grande risco de contaminação eu passei a usar duas luvas em cada mão eu acho que aumentou um pouco mais a percepção do perigo (A1).

Em estudo sobre acidentes ocupacionais envolvendo pacientes portadores do HIV, profissionais acidentados passaram a utilizar mais os EPI e redobraram o cuidado na execução dos procedimentos(16). O que evidencia a precisão de vivenciar situações de risco para mudar o comportamento relacionado à adoção de medidas de autoproteção.

No entanto, ao praticar a ideologia defensiva, que é destinada a lutar contra um perigo e risco reais, o trabalhador consciente toma precauções individuais em excesso, o que pode afetar sua produtividade(17).

As ações de conscientização quanto ao risco potencial de acidentes com material biológico são fundamentais. Devem ser adotadas medidas preventivas, com a finalidade de evitar possíveis acidentes, garantindo a saúde do profissional(18).

Fatalidade

Esta relacionada a situação inesperada, o profissional de enfermagem relata que não realizava nenhum procedimento que oferecesse risco de exposição.

Fui realizar apenas a troca de uma torneirinha, na hora em que eu fui desconectar da cânula, espirrou uma gota de sangue no meu olho [...] (T3).

Em estudos sobre acidentes com materiais perfurocortantes em hospitais públicos, os trabalhadores participantes consideraram a fatalidade como causa do acidentes(18). Fato comprovado quando justificam o acidente como algo que simplesmente "aconteceu".

No entanto, os profissionais da equipe de enfermagem possuem conhecimentos e recursos materiais para se protegerem. Ao negligenciar o emprego de tais recursos, justificados na autoconfiança que adquirem ao longo de sua trajetória profissional, contribuem para o incremento de acidentes dessa natureza. Em alguns casos, consideram-se imunes aos agentes infecciosos e livres das consequências pessoais. Infelizmente, alguns só adotam uma postura diferenciada por meio do prejuízo de outrem.

Sentimentos/Emoções

Os acidentes com exposição à material biológico afetam o trabalhador tanto na esfera psicológica quanto emocionalmente, devido à espera dos resultados de exames sorológicos e a possibilidade da soroconversão(19). Revelou-se reações como medo, culpa, desespero possíveis desencadeadoras do sofrimento psíquico.

Na hora que eu percebi que eu tinha furado o dedo eu olhava e não acreditava e comecei a chorar e comecei a pensar no que podia acontecer comigo [...] (T2).

No dia do acidente eu fiquei com medo, como ele era HIV positivo, fiquei com medo de ele ter Hepatite C, para a Hepatite B eu era imune, fiquei tranquila em relação a Hepatite B e temerosa com a Hepatite C, era meu medo maior (E5).

[...] eu acho que foi talvez o mau jeito de eu ter desprezado [...] (A7).

Nossa Senhora eu fiquei desesperada porque nunca tinha acontecido comigo isto e como eu sabia que o paciente era HIV positivo e ele foi a óbito por causa disso eu fiquei desesperada. No meu pensamento eu já achava que eu estava com o vírus e ele tinha algum problema de Hepatite também, eu achei que tudo eu já tinha também, não sabia como agir, o que fazer, o mundo pra mim acabou [...] (A7).

O conflito de sentir-se entre a vida e a morte, vivenciado pela pessoa contaminada é avassalador para o trabalhador da saúde. Estudo a respeito das repercussões de acidentes com perfurocortantes mostrou que o medo relacionou-se, principalmente, à possibilidade de contaminação ocupacional e consequente aquisição de alguma patologia, como hepatite ou AIDS. Foi associado ainda à possibilidade da ocorrência de outro acidente e ao desconhecimento da sorologia do paciente fonte(20).

Por outro lado, no presente estudo, os profissionais que se acidentaram expressaram tranquilidade quanto a hepatite B, justificada pelo fato de possuírem esquema de vacinação completo contra a doença e terem conhecimento do resultado comprobatório do exame de anti-HBs reagente.

Corroborando com os achados desta investigação, um estudo realizado sobre acidentes desta natureza, aponta que inicialmente os indivíduos não tinham visibilidade do processo de trabalho como um todo e sua capacidade de gerar a exposição, por isso atribuíram a culpa do acidente a si próprios(7).

Em estudo relacionado o impacto do acidente os profissionais destacam o desespero como principal sentimento vivenciado no momento de desconhecimento do diagnóstico do paciente fonte e/ou quando acontece a confirmação da transmissão ocupacional(20).

Os sentimentos de medo e culpa após a exposição ocupacional podem ser desencadeados pelas condições organizacionais do processo de trabalho, podendo ainda acarretar uma carga psíquica levando ao comprometimento mental(7).

O sofrimento psíquico pode ser entendido como a capacidade de reagir frente à dor e às exigências do trabalho, um sinal de que os trabalhadores precisam transformar o processo laboral(21).

A organização do trabalho exerce sobre o homem uma ação específica, cujo impacto ocorre no psiquismo. Em algumas circunstâncias surge o sofrimento, podendo ser atribuído à história de cada indivíduo em relação a seus projetos, esperanças, desejos e à organização de trabalho que o ignora. O sofrimento se inicia quando o indivíduo perde a relação com o trabalho, não podendo realizar mudança nas tarefas, a fim de direcioná-las de acordo com suas necessidades fisiológicas e desejos(17).

Eu passei muito mal, porque eu não sabia bem o que poderia acontecer eu só consegui me acalmar depois que eu passei com o médico ele me orientou me mostrou as estatísticas, mas de imediato eu fique bastante abalado. O psicológico meu foi lá no chão, porque a situação difícil, complicado, sinceramente eu tive vontade de abandonar a profissão, [...] eu não tinha vontade de sair de casa de me relacionar com ninguém [...] (T6).

Em suas atividades laborais, a equipe de enfermagem está exposta a diversas cargas de trabalho, que podem gerar desgaste. Quando o profissional sofre um acidente ocupacional com material biológico, essas cargas podem ser potencializadas, principalmente a psíquica, devido a possibilidade da soroconversão, sendo percebida por reações negativas, revoltantes e repercussões pessoais, profissionais e sociais.

Os sentimentos manifestados após a exposição a fluidos biológicos, como o medo de adoecer e a culpa inconsciente do acidente, levam o trabalhador a um sofrimento psíquico e ao desprazer no trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos depoimentos evidencia que o trabalhador de enfermagem não reconhece o ambiente laboral como preditor potencial de acidentes ocupacionais, não observa o contexto da assistência antes de planejar e executar suas atividades. No entanto, quando reconhece os riscos a que está exposto, não modifica o comportamento, não se sente vulnerável devido à autoconfiança adquirida com os anos de experiência técnica profissional.

Após a exposição biológica a possibilidade de soroconversão, dentre outros fatores, desencadeia sentimentos e emoções promotores do sofrimento psíquico que sinaliza a urgência da transformação do processo de trabalho.

A experiência do acidente de trabalho vivenciada pelo profissional de enfermagem apontou a necessidade da educação permanente abordando temas referentes ao planejamento e a execução dos procedimentos técnicos, bem como o reconhecimento e não banalização dos riscos ocupacionais. Ressalta-se ainda a importância do papel do gestor na promoção da saúde dos trabalhadores, por meio da adoção de políticas de prevenção e proteção, aquisição de recursos materiais suficientes e adequados, bem como adequação quantitativa e qualitativa dos recursos humanos.

Recebido em: 29/07/2010

Aprovado em: 01/06/2011

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    Estudo originado da dissertação de Mestrado apresentada em 2008 na Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (UNESP).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Ago 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Recebido
      29 Jul 2010
    • Aceito
      01 Jun 2011
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