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Práticas alimentares de crianças desnutridas menores de dois anos de idade

Hábitos alimentarios de niños malnutridos menores de dos años de edad

Resumos

Analisar práticas alimentares de crianças desnutridas menores de dois anos. Estudo exploratório e descritivo, com análise qualitativa dos dados, realizado a partir de observação participante e entrevistas. Participaram 42 sujeitos. Os dados foram submetidos à análise temática. Ao explorar as práticas alimentares dessas crianças, os temas que emergiram foram: quem prepara a alimentação e o que é preparado; como são preparados os alimentos; a rotina alimentar das crianças; onde e como as crianças são servidas. A alimentação era pouco variada; láctea, no café da manhã e lanches, e no almoço com alimentos como arroz, batata, feijão e, às vezes, carnes. Frutas e hortaliças eram escassas, e alimentos industrializados estavam presentes em todos os domicílios. Foi possível apreender o cotidiano das práticas alimentares, suas inadequações, insuficiência de alimentos, higiene precária dos alimentos complementares, influência das avós, ambiente inadequado às refeições e situação de vida das famílias.

Lactente; Alimentação; Transtornos da nutrição do lactente; Mães


Analizar los hábitos alimentarios de niños malnutridos menores de dos años. Estudio exploratorio descriptivo cualitativo, con análisis temático de datos, recolectados por observación participante y entrevistas. Participaron 42 sujetos. Los siguientes temas emergieron de indagaciones acerca de los hábitos alimentarios de los niños: quién prepara la alimentación y qué se prepara; cómo se preparan los alimentos; cómo es la rutina alimentaria de los niños; dónde y cómo los niños son servidos. La alimentación era variada poco, con alimentos lácteos en el desayuno y meriendas; y alimentos como arroz, patatas, frijoles y carne a veces para el almuerzo. Frutas y verduras eran escasas y alimentos procesados estaban presentes en todas las casas. Fue posible saber acerca del cotidiano de las prácticas alimentarias, sus inadecuaciones, insuficiencia de alimentos, higiene precaria de alimentos complementarios, influencia de las abuelas, ambiente inadecuado para comidas y situación de vida de las familias.

Lactante; Alimentación; Trastornos de la nutrición del lactante; Madres


OBJECTIVE: Analyze food practices of unnourished children under two years old. METHOD: Exploratory, descriptive and qualitative study. Data were collected through participant observation and interviews. Participants were 42 subjects. The data were subjected to thematic analysis. RESULTS: The following themes emerged when addressing the eating habits of those children: Who prepares the food and what is prepared; How foods are prepared; Children's eating routine; Where and how children are served. Food was varied little, with lacteous food at breakfast and snacks, and with food such as rice, potatoes, beans and sometimes meat at lunch. Fruits and vegetables were scarce and processed foods were present in all homes. CONCLUSION: It was possible to learn the daily eating habits, their inadequacies, insufficient food, poor hygiene of complementary food, influence of grandmothers, inappropriate environment for meals and families' living situation.

Infant; Feeding; Infant malnutrition; Mothers


ARTIGO ORIGINAL

Práticas alimentares de crianças desnutridas menores de dois anos de idade

Hábitos alimentarios de niños malnutridos menores de dos años de edad

Paula ChuproskiI; Priscila Antunes TsupalII; Maria Cândida de Carvalho FurtadoIII; Débora Falleiros de MelloIV

IProfessora Assistente do Departamento de Nutrição da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Guarapuava, Paraná, Brasil

IIProfessor Assistente do Departamento de Nutrição da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Guarapuava, Paraná, Brasil

IIIProfessora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da Escola e Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil

IVProfessora Associada do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil

Endereço do autor Endereço do autor: Paula Chuproski Saldan Rua Camargo Varela de Sá, 03, Vila Carli 85040-080, Guarapuava, PR E-mail: pchuproski@unicentro.br

RESUMO

Analisar práticas alimentares de crianças desnutridas menores de dois anos. Estudo exploratório e descritivo, com análise qualitativa dos dados, realizado a partir de observação participante e entrevistas. Participaram 42 sujeitos. Os dados foram submetidos à análise temática. Ao explorar as práticas alimentares dessas crianças, os temas que emergiram foram: quem prepara a alimentação e o que é preparado; como são preparados os alimentos; a rotina alimentar das crianças; onde e como as crianças são servidas. A alimentação era pouco variada; láctea, no café da manhã e lanches, e no almoço com alimentos como arroz, batata, feijão e, às vezes, carnes. Frutas e hortaliças eram escassas, e alimentos industrializados estavam presentes em todos os domicílios. Foi possível apreender o cotidiano das práticas alimentares, suas inadequações, insuficiência de alimentos, higiene precária dos alimentos complementares, influência das avós, ambiente inadequado às refeições e situação de vida das famílias.

Descritores: Lactente. Alimentação. Transtornos da nutrição do lactente. Mães.

RESUMEN

Analizar los hábitos alimentarios de niños malnutridos menores de dos años. Estudio exploratorio descriptivo cualitativo, con análisis temático de datos, recolectados por observación participante y entrevistas. Participaron 42 sujetos. Los siguientes temas emergieron de indagaciones acerca de los hábitos alimentarios de los niños: quién prepara la alimentación y qué se prepara; cómo se preparan los alimentos; cómo es la rutina alimentaria de los niños; dónde y cómo los niños son servidos. La alimentación era variada poco, con alimentos lácteos en el desayuno y meriendas; y alimentos como arroz, patatas, frijoles y carne a veces para el almuerzo. Frutas y verduras eran escasas y alimentos procesados estaban presentes en todas las casas. Fue posible saber acerca del cotidiano de las prácticas alimentarias, sus inadecuaciones, insuficiencia de alimentos, higiene precaria de alimentos complementarios, influencia de las abuelas, ambiente inadecuado para comidas y situación de vida de las familias.

Descriptores: Lactante. Alimentación. Trastornos de la nutrición del lactante. Madres.

INTRODUÇÃO

Os dois primeiros anos de vida caracterizam-se por intenso crescimento e desenvolvimento e a alimentação nesse período tem repercussões ao longo da vida. A nutrição adequada é fundamental na prevenção de distúrbios nutricionais como desnutrição, obesidade e anemia. Nessa fase, recomenda-se que a criança receba leite materno exclusivamente até os seis meses e após se inicie a introdução da alimentação complementar mantendo a amamentação até os dois anos ou mais(1-4).

A situação atual da alimentação complementar caracteriza-se com a introdução precoce de alimentos, refeição de sal tardia e consumo de alimentos não saudáveis(5-6). Vários fatores estão associados a esse panorama, destacando-se idade, escolaridade e trabalho materno, primiparidade e nível socioeconômico da família(5-8). No entanto, as práticas alimentares ultrapassam as recomendações nutricionais dando espaço à identidade cultural, memória familiar expressa nas escolhas, modos de preparação, consumo e desejos por certos alimentos(9).

Estudos sobre práticas alimentares na infância elucidam algumas dessas questões como decisivas na alimentação de crianças. As mães apresentam dúvidas quanto à alimentação complementar, sofrem influência das mulheres da família que já alimentaram suas crianças, oferecem ao filho o que consideram adequado e alimentos comuns à família(10-13).

As diretrizes políticas apontam a necessidade de garantir quantidade e qualidade dos alimentos disponíveis, promover práticas alimentares saudáveis, prevenir e controlar agravos nutricionais e estimular ações intersetoriais para um efetivo acesso aos alimentos(14). A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2008-2009(15) mostra melhora na situação alimentar das famílias brasileiras nos últimos anos, representada pela avaliação das condições de vida. No entanto, existem famílias que sobrevivem com renda insuficiente para o provimento de alimentos.

Estudos apontam diminuição da desnutrição infantil, porém, ela é um problema que atinge crianças de famílias com condições socioeconômicas desfavoráveis, sendo considerada uma doença multicausal com influência direta da alimentação e indireta do meio em que se vive(16-17).

Em virtude da alimentação infantil influenciar o estado nutricional da criança, este estudo buscou analisar as práticas alimentares de crianças desnutridas menores de dois anos e descrever aspectos relevantes sobre a alimentação dessas crianças em uma realidade contextualizada.

MÉTODO

Estudo exploratório descritivo de abordagem qualitativa(18) realizado na cidade de Guarapuava, estado do Paraná. Optou-se por esse delineamento para captar experiências familiares e explorar o cotidiano da alimentação de crianças desnutridas no ambiente onde aconteciam.

Para a seleção das crianças, primeiramente, realizou-se avaliação antropométrica de todas as crianças menores de dois anos, em quatro unidades de saúde localizadas na região periférica do município. Foram incluídas aquelas que apresentavam os índices antropométricos peso/idade (P/I) e/ou estatura/idade (E/I) abaixo do percentil três. Esse ponto de corte é recomendado para classificar crianças que apresentam baixo peso para idade e baixa estatura para idade(19).

A escolha dos participantes foi intencional, com vistas a estudar as especificidades das experiências de famílias com crianças desnutridas. Os critérios de inclusão adotados foram: crianças menores de dois anos, desnutridas, em seguimento em unidades de saúde e mães que permanecessem no domicílio a maior parte do tempo. Os critérios de exclusão foram: crianças prematuras, com peso ao nascer inferior a 2500g, gemelares, com outros problemas de saúde, frequentadoras de creches, cuidadas por outros responsáveis que não as mães e mães que trabalhassem fora do domicílio. A partir desse levantamento, foram encontradas 25 famílias com crianças desnutridas, sendo que participaram do estudo oito famílias, compostas por oito mães, quatro pais, 11 irmãos, cinco avós, quatro tios e dois primos, totalizando 42 sujeitos.

Para coleta dos dados foram utilizadas técnicas de observação participante e entrevista semi-estruturada, com enfoque nas práticas alimentares nos domicílios. A observação foi conduzida por meio de visitas domiciliares semanais às moradias das crianças, de acordo com o horário estabelecido pelas mães. Foram realizadas, em média, sete visitas por família, totalizando 56 visitas domiciliares, com duração de uma hora e meia a duas horas cada. Anotações em diário de campo, ressaltando os pontos de destaque para o foco do estudo, foram feitas durante e após cada visita. As entrevistas foram realizadas com as mães nos domicílios, tendo por base um roteiro elaborado com questões sobre a desnutrição infantil, sendo as mesmas conduzidas, geralmente, no último dia de observação das práticas alimentares, com duração de 30 a 45 minutos, gravadas com permissão das mães. Os dados da observação participante e das entrevistas tiveram o consentimento dos sujeitos envolvidos na pesquisa.

Os dados foram submetidos à análise temática(18). A organização de todo o material empírico foi processada durante e após a coleta dos dados. A análise implicou em leitura e releituras da transcrição, com leitura flutuante do conjunto, procurando identificar tendências e idéias relevantes das práticas alimentares e dos relatos das mães, inseridas em seus contextos de vida.

As notas extraídas dos oito diários de campo estão representadas pela legenda DC (DC1, DC2, ... DC8) e as falas das oito entrevistas pela legenda E (E1, E2, ... E8), garantindo o anonimato dos sujeitos. O presente estudo foi realizado de acordo com as Normas e Diretrizes Éticas da Resolução CNS 196/96 do Ministério da Saúde e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) (Ofício nº 0113/2007 – COMEP/UNICENTRO).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ao explorar as práticas alimentares das crianças emergiram os temas: Quem prepara a alimentação e o que é preparado; Como são preparados os alimentos; A rotina alimentar das crianças; Onde e como as crianças são servidas. Os resultados possibilitaram compreender que a alimentação das crianças estava condicionada a fatores sociais, econômicos, culturais e emocionais, e essa apreensão trouxe subsídios para as ações de saúde e alimentação da criança pequena.

As crianças tinham idade entre 11 e 23 meses, caracterizavam-se como desnutridas (índices P/I e/ou E/I abaixo do percentil três)(19), com história de hospitalizações por infecções respiratórias e intestinais e todas foram amamentadas, sendo o menor período de oito meses e o maior de um ano e 11 meses. O período de introdução dos alimentos complementares ocorreu entre o terceiro e o quarto mês de vida. Algumas crianças eram filhos de mães adolescentes, a escolaridade materna era baixa (menos de oito anos de estudo), algumas mães tinham mais de três filhos e o pai nem sempre coabitava com a criança.

Quem prepara a alimentação e o que é preparado

As mães eram as principais responsáveis pelo preparo da alimentação das crianças e em três residências as avós exerciam papel fundamental na confecção da alimentação e nas escolhas alimentares das crianças. A atividade doméstica de preparação da alimentação persiste como tarefa feminina nesse e em outros estudos que abordam práticas alimentares(10,20). As avós influenciavam a alimentação das crianças, recomendando às mães o que preparar e oferecer à criança.

A avó disse 'não dê carne, senão ela não come a comida'. A mãe passou a oferecer somente a sopa com pedaços de cenoura e abobrinha, deixando a carne de lado (DC2).

As mães sentem-se mais seguras e preferem seguir as experiências das avós e de outros membros familiares que já tiveram um filho às recomendações dos profissionais de saúde, desse modo a influência das avós pode ter consequências positivas ou negativas na alimentação infantil(10-11).

As visitas domiciliares eram realizadas próximo do horário em que se preparava a refeição e, geralmente, foi acompanhado o almoço, o lanche da tarde e, algumas vezes, o café da manhã. Seguem abaixo refeições oferecidas às crianças:

Café da manhã: Café com leite e rosquinha frita (DC1).

Almoço: Arroz, caldo de feijão, macarrão, carne de porco e iogurte (DC3).

Lanche da tarde: Papa de leite, bolacha doce e farinha láctea (DC8).

A alimentação era láctea no café da manhã e lanche da tarde. No almoço a combinação arroz com feijão estava presente em várias refeições, batata e macarrão eram ofertados mesmo tendo arroz, mostrando excesso de carboidrato, enquanto a carne não estava presente em todas as refeições. Frutas e hortaliças apareceram nos relatos das mães como exemplos de alimentação saudável, porém no cotidiano elas não ofereciam esses alimentos aos filhos.

"[...]" Acho que tem que escolhê bem os alimentos que dá pra criança, não dá só bobagem, dá verdura, bastante legumes, frutas, que criança tem que comê bastante "[...]" (E5).

Apenas duas mães ofereceram frutas aos filhos durante as observações realizadas. Foi possível visualizar em algumas casas a disponibilidade de frutas como maçã, banana, laranja e limão. As hortaliças também apareceram poucas vezes e, geralmente, estavam presentes nas sopas.

Os alimentos industrializados estavam presentes em todas as casas visitadas e foram observados embutidos, enlatados, produtos com corantes artificiais, alimentos muito salgados, adocicados, refrigerantes, bolachas recheadas e maionese. Vários desses alimentos eram considerados inadequados pelas mães e só deveriam estar presentes na alimentação esporadicamente, contudo nos relatos apreendeu-se que o discurso era distinto da prática.

"[...]" dependendo da comida, tem coisa que não pode dá, né, de certas idade. Bobagem, bolacha com recheio, iogurte, refrigerante, essas coisa mais bobagem "[...]" (E8).

As mães traziam nas falas aspectos da alimentação saudável e do discurso científico, no entanto, no momento da preparação e das escolhas alimentares eram influenciadas pela situação socioeconômica, preferências alimentares, cultura e alimentos disponíveis no domicílio. No presente estudo não foi investigada diretamente a renda mensal das famílias, mas durante as visitas domiciliares situações levaram a crer que a questão econômica poderia interferir na alimentação da criança.

Em dois domicílios foi possível notar que logo que a família recebia o salário ou a transferência de renda de programas assistenciais havia maior quantidade e variedade de alimentos disponíveis, já na metade desse período a disponibilidade estava reduzida e se resumia aos alimentos básicos (arroz, feijão, macarrão). Alimentos como frutas, verduras e carnes acabavam e só seriam repostos com o próximo rendimento.

A alimentação, além de necessidade biológica, é fenômeno sociocultural, e as escolhas alimentares se baseiam no entorno cultural que define a seleção alimentar ditando normas que prescrevem, proíbem ou permitem o que comer(9). Alimentos industrializados, considerados não saudáveis do ponto de vista nutricional, são prenhes de valor simbólico e estão associados à dimensão afetiva, ou seja, oferecer o que não é fundamental traduz-se para pais e filhos em demonstração de afeto, mesmo que esse consumo signifique a privação de outros bens(20).

Os pais associam que o excesso desses alimentos pode deixar a criança propensa a doenças e ser prejudicial à saúde, entretanto, justificam a oferta pelo crescimento e desenvolvimento adequados ou pela aceitação melhor desse tipo de alimento(13).

Como são preparados os alimentos

No preparo das refeições oferecidas às crianças, emergiram aspectos referentes à higiene dos alimentos, destacando-se a conservação e o armazenamento dos alimentos, higiene das mãos, utensílios, ambiente da cozinha e hábito de fumar das mães. Abaixo, têm-se notas de campo com alguns desses aspectos:

No almoço a avó aqueceu virado de feijão armazenado em uma panela, acrescentou sal e gordura armazenada em um vidro, parecia gordura de resto de frituras (DC5).

A mãe limpou o nariz da filha e voltou preparar a refeição, não a observei lavar as mãos (DC1).

No preparo dos alimentos, as mães não tinham o hábito de lavar as mãos frequentemente. As mamadeiras eram higienizadas juntamente com outros utensílios utilizando-se água e sabão, ou apenas água. Observaram-se mamadeiras com restos de alimentos em armários, mesas e estantes, e, alimentos perecíveis como leite, sob temperatura ambiente. Algumas mães tinham dificuldade em organizar a cozinha, as mesas ficavam cheias de alimentos de refeições anteriores e utensílios sujos, e havia roupas pelo chão. Três mães fumavam durante o preparo das refeições, enquanto amamentavam e próximas das crianças.

As práticas de higiene podiam interferir no estado de saúde das crianças ao propiciar a contaminação dos alimentos. A higiene dos alimentos complementares previne e reduz a ocorrência de doenças diarréicas e suas repercussões negativas no estado nutricional das crianças(2-4). No entanto, os domicílios tinham poucos cômodos e a cozinha nem sempre estava equipada com mobiliário adequado, em função da dificuldade financeira das famílias. Além disso, é difícil mudar hábitos estabelecidos ao longo da vida e as mães podiam não identificar perigos nas práticas adotadas. As mães tinham baixa escolaridade o que também poderia interferir nas boas práticas de higiene dificultando o entendimento dos perigos associados à falta de higiene.

A rotina alimentar das crianças

Os alimentos do café da manhã das crianças eram, basicamente, leite e cereais (Mucilon® e farinha láctea) oferecidos na forma de papas, mingaus ou na mamadeira. O café puro ou com leite também apareceu em relatos e observações.

No almoço as crianças consumiam os alimentos da família (arroz, feijão, macarrão, batata e carnes), porém duas mães faziam sopa. Os lanches tinham alimentos do café da manhã, entretanto as frutas in natura ou com cereais foram citadas pelas mães.

O jantar assemelhou-se ao almoço, porém alimentos como mingaus e sopas apareceram. As crianças que eram amamentadas recebiam leite materno antes de dormir e as demais a mamadeira.

A partir dos relatos maternos e das observações, foi possível apreender que a dieta das crianças era pouco variada, as carnes não eram oferecidas diariamente e geralmente os alimentos ofertados às crianças eram leite, cereais, arroz, macarrão, farinhas, biscoitos, batata e feijão. As sopas faziam parte das refeições principais, uma prática comum entre algumas mães, porém esse tipo de preparação apresenta baixa densidade energética e deve ser desaconselhada(2).

Variedade de alimentos deve ser oferecida à criança para garantir que os nutrientes necessários sejam consumidos e para formação dos hábitos alimentares. As carnes, aves, peixes ou ovos fornecem nutrientes como ferro e zinco; os grãos e leguminosas na mesma refeição garantem proteínas de qualidade; as frutas e hortaliças são fontes de vitaminas; e o leite e derivados fontes de proteína e cálcio(1-4). As recomendações de organismos nacionais e internacionais podiam não ser cumpridas pelas mães em função da situação socioeconômica, preferências alimentares, cultura e alimentos disponíveis no domicílio.

A fase da alimentação complementar é considerada crítica e as mães apresentam dúvidas sobre o que pode ser oferecido à criança(12,17). Além das dúvidas acerca da alimentação da criança a dieta pouco variada poderia ser reflexo da situação socioeconômica da família, conforme relato abaixo:

"[...]" Eu acho que o que nóis podemô faze nóis fazemô por ela, e já digo a gente é pobre, eles não passam do bom e do melhor, mas pelo menos um feijão com arroz tem "[...]" (E1).

Dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares(15) mostram que 75% das famílias apresentam dificuldades para chegar ao final do mês com o rendimento total e 35,5% referem que a quantidade de alimentos consumidos é insuficiente. A pesquisa aponta melhoras quando se compara os dados atuais com os da versão anterior (2002-2003), porém, ainda, um número expressivo de brasileiros não dispõe de alimentos suficientes para o mês. Esses dados reforçam, em parte, a desnutrição como um problema social que acomete famílias de classes menos favorecidas(16-17).

Onde e como as crianças são servidas

As crianças eram servidas pelas mães, avós, irmãos ou se alimentavam sozinhas. Quando alimentadas pelas mães ou avós ingeriam maior quantidade de alimento, porém, quando comiam sozinhas apresentavam dificuldade em manusear o talher, acabavam comendo com as mãos, derrubavam os alimentos na roupa ou no chão, brincavam com o alimento e, assim, consumiam menor quantidade de comida. Além disso, juntavam alimentos caídos no chão ou na roupa e os ingeriam, as mães nem sempre estavam atentas, o que poderia representar risco de contaminação desses alimentos e, consequentemente, interferir na saúde das crianças. Abaixo, nota de campo que evidencia tal situação:

A criança tinha dificuldade para comer sozinha, o macarrão escorregava da colher e caia na roupa, ela pegava com a mão, depois tentava novamente com a colher e assim foi comendo devagar (DC1).

Os adultos devem incentivar a criança tomar líquidos em copos, manipular alimentos e comer sozinha, porém sempre sob supervisão para se certificarem de que ela está ingerindo o suficiente, isso não é tarefa fácil e requer paciência, pois a criança come vagarosamente, pode sujar-se e distrair-se facilmente(2,4).

As mães e avós normalmente estavam cuidando de outras crianças, do preparo da refeição da família e das atividades domésticas, o que poderia dificultar o oferecimento da refeição e a supervisão da criança que se alimentava sozinha.

As refeições eram servidas na cozinha ou na sala e as crianças comiam no colo das mães, sentadas em cadeiras, sofás, carrinhos, no chão e em pé. As casas nem sempre dispunham de cômodos e mobiliários adequados às refeições, as crianças não permaneciam paradas para comer, estavam brincando, assistindo televisão, andando, o que deixava as mães ansiosas, pois nem sempre as crianças comiam o suficiente.

O ambiente onde se oferece a alimentação é fundamental, pois favorece ou não a ingestão alimentar. A criança deve estar confortável no momento da alimentação, porém isso nem sempre é possível para boa parte da população que dispõe de más condições de habitação e higiene, situação econômica desfavorável e padrões socioculturais difíceis de serem mudados(2). Verificou-se que os aspectos relacionados ao ambiente não favoreciam a ingestão alimentar das crianças do estudo, o que poderia comprometer o estado nutricional das mesmas.

As crianças, quando alimentadas pelas mães e avós, ingeriam primeiro os alimentos fontes de carboidrato (arroz, macarrão e batata misturados ao caldo do feijão ou da sopa) e a carne era servida ao final da refeição. Mães e avós não ofereciam carne porque achavam que a criança ficava mastigando o alimento por muito tempo e acabava não comendo os outros alimentos. Ao final da refeição quando ofereciam carne à criança esta já estava satisfeita e acabava não comendo ou ingeria pequena quantidade do alimento.

A carne ficou no prato e só ao final da refeição a mãe despedaçou e serviu ao filho, mas ele não comeu (DC3).

Alimentos de origem animal, especialmente as carnes, fornecem proteínas de alta qualidade e são fontes de ferro heme, que é melhor aproveitado pelo organismo. Grãos e leguminosas, como arroz e feijão, deveriam ser consumidos diariamente na mesma refeição, para garantir a quantidade adequada de proteína de qualidade, se produtos de origem animal não são ingeridos em quantidades suficientes(1-4).

Algumas mães colocavam nos pratos o caldo do feijão e poucos grãos e, quando ofereciam às crianças serviam, principalmente, o caldo. O grão do feijão era visto como pesado, poderia causar diarréia e a criança não conseguiria mastigar e engolir. A alimentação infantil é permeada por crenças alimentares transmitidas entre gerações (avós, vizinhas, tias e madrinhas) que podem interferir na formação dos hábitos alimentares da criança.

Ao oferecer primeiro alguns alimentos em detrimento de outros e o não oferecimento do grão do feijão mostrava que as mães desenvolviam mecanismos de interpretação de experiências com a alimentação da criança, passando a dominar a quantidade e o tipo de alimento a ser oferecido, de acordo com o que acreditavam ser o mais apropriado naquela refeição(9-10).

Outra prática observada nas refeições (almoço), em cinco domicílios, foi o oferecimento de leite e derivados junto ou logo após o término da refeição.

A mãe preparou o prato do filho: arroz, macarrão e caldo de feijão, e num copo colocou iogurte. "[...]" Ela foi intercalando a comida e o iogurte "[...]" (DC3).

Nas principais refeições recomenda-se evitar leite, chá, mate ou café, porque eles diminuem a absorção do ferro não heme(2-3). Contudo, na ânsia de que a criança fique alimentada, algumas mães apresentam práticas alimentares inadequadas, tais como substituir a comida por mamadeira ou leite, a partir de queixas de que a criança não come ou não mastiga(12).

As mães e avós serviam as carnes ao final das refeições, não ofereciam o grão do feijão e, ainda, ofereciam leite que interfere na absorção do ferro não heme. Essas práticas alimentares podiam estar interferindo na ingestão e absorção de nutrientes indispensáveis ao organismo. Por outro lado, o oferecimento de leite após as refeições podia ser uma forma de compensar a quantidade inferior de alimentos ingeridos pela criança.

CONCLUSÃO

Nesse estudo, houve um entendimento de que o estado nutricional das crianças estava relacionado à alimentação pouco variada, influência das avós, higiene precária dos alimentos complementares, práticas alimentares inadequadas, insuficiência de alimentos, ambiente inadequado às refeições e situação de vida das famílias.

Conhecer o ambiente onde as crianças vivem, a situação de vida das famílias e os seus valores e crenças pode ajudar os profissionais de saúde na promoção de práticas alimentares saudáveis, com alimentos adequados do ponto de vista da qualidade e da aceitação cultural, e no direcionamento do tratamento da desnutrição.

Este estudo limitou-se a aprofundar o cotidiano das práticas alimentares de crianças desnutridas, vinculadas a quatro unidades de saúde de um município, de forma que os resultados não podem ser generalizados. Cabe ressaltar que outros espaços de discussão e de pesquisas poderão trazer outras dimensões, sendo importante o desenvolvimento de estudos que investiguem as estratégias utilizadas pelos profissionais de saúde para integrar os conhecimentos de alimentação às necessidades da população infantil.

Recebido em: 28.05.2011

Aprovado em: 13.11.2012

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  • Endereço do autor:

    Paula Chuproski Saldan
    Rua Camargo Varela de Sá, 03, Vila Carli
    85040-080, Guarapuava, PR
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      28 Maio 2011
    • Aceito
      13 Nov 2012
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