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Risco de vida e natureza do SAMU: demanda não pertinente e implicações para a enfermagem

Riesgo de vida y naturaleza del SAMU: perspectivas de los usuarios e implicaciones para la enfermería

Resumos

O artigo faz um recorte na análise realizada em um estudo qualitativo, desenvolvido em 2009, cujo objetivo foi investigar a demanda de pedidos de socorro ao Serviço de Atendimento Móvel de Urgência/Porto Alegre (SAMU), por ele classificada como não pertinente. As informações foram obtidas em 16 entrevistas semiestruturadas, realizadas com os solicitantes desta demanda, utilizando-se, como orientação metodológica, a Teoria Fundamentada nos Dados. O artigo aborda o conteúdo da subcategoria "Entrando em conflito com a regulação do SAMU na avaliação do risco de vida", enfocando as divergências entre a regulação e a percepção dos usuários sobre o funcionamento do serviço e significado de "risco de vida", fatores implicados na construção da demanda não pertinente. A importância da Enfermagem, neste cenário, está na sua competência para realizar ações de educação em primeiros socorros e para participar de projetos intersetoriais capazes de intervir em situações geradoras de vulnerabilidade.

Serviços de saúde; Serviços médicos de emergência; Risco; Enfermagem em emergência; Promoção da saúde


El artículo hace un corte del análisis en un estudio cualitativo desarrollado en 2009 cuyo objetivo fue investigar la demanda de pedidos de socorro al Servicio de Atendimiento Móvil de Urgencia/Porto Alegre (SAMU) que la clasificó como no pertinente. Las informaciones resultaron de 16 entrevistas semiestructuradas con los sujetos de esta demanda, utilizándose como orientación metodológica la Teoría Fundamentada. El artículo aborda el contenido de la subcategoría "Entrando en conflicto con la regulación del SAMU en la evaluación del riesgo de vida", enfocando las divergencias entre la regulación y la percepción de los usuarios acerca del funcionamiento del servicio y significado de "riesgo de vida", factores implicados en la construcción de la demanda no pertinente. La Enfermería se destaca en este escenario por su competencia en realizar acciones de educación sobre primeros socorros y participar de proyectos intersectoriales capaces de intervenir en situaciones generadoras de vulnerabilidad.

Servicios de salud; Servicios médicos de urgencia; Riesgo; Enfermería de urgencia; Promoción de la salud


The article is part of a qualitative study analisys developed in 2009 aiming at investigating the demand of emergency calls to the Emergency Mobile Attendance Service/Porto Alegre (SAMU) that classifies it as non-pertinent. The information was gathered from 16 semi-structured interviews with the subjects of that demand, by utilizing as a methodological guideline the Grounded Theory. The article approaches the content of the sub-category "Entering into conflict with SAMU regulation in the evaluation of life-threatening", by focusing the divergences between the regulation and the users' perception about the operation of the service and the meaning of "life-threatening", factors implied in the construction of the non-pertinent demand. The importance of Nursing within this scenery is in its competence to perform education actions about first aid and to participate in projects among sectors which are able to intervene in situations that generate vulnerability.

Health services; Emergency Medical Services; Risk; Emergency Nursing; Health Promotion


ARTIGO ORIGINAL

Risco de vida e natureza do SAMU: demanda não pertinente e implicações para a enfermagem

Riesgo de vida y naturaleza del SAMU: perspectivas de los usuarios e implicaciones para la enfermería

Andréa Márian VeroneseI; Dora Lúcia Leidens Corrêa de OliveiraII ; Karoline NastIII

IEnfermeira do SAMU, Doutora em Enfermagem, Membro do Grupo de Estudos em Promoção da Saúde (GEPS). Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

IIEnfermeira, PhD em Educação, Professora do PPGENF/UFRGS, Coordenadora do GEPS. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

IIIEnfermeira, Mestranda do PPGENF/UFRGS, Bolsista da CAPES, Membro do GEPS. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Endereço do autor Endereço do autor: Andréa Márian Veronese Rua Comendador Castro, 140, Ipanema 91760-200, Porto Alegre, RS E-mail: andreamv@terra.com.br

RESUMO

O artigo faz um recorte na análise realizada em um estudo qualitativo, desenvolvido em 2009, cujo objetivo foi investigar a demanda de pedidos de socorro ao Serviço de Atendimento Móvel de Urgência/Porto Alegre (SAMU), por ele classificada como não pertinente. As informações foram obtidas em 16 entrevistas semiestruturadas, realizadas com os solicitantes desta demanda, utilizando-se, como orientação metodológica, a Teoria Fundamentada nos Dados. O artigo aborda o conteúdo da subcategoria "Entrando em conflito com a regulação do SAMU na avaliação do risco de vida", enfocando as divergências entre a regulação e a percepção dos usuários sobre o funcionamento do serviço e significado de "risco de vida", fatores implicados na construção da demanda não pertinente. A importância da Enfermagem, neste cenário, está na sua competência para realizar ações de educação em primeiros socorros e para participar de projetos intersetoriais capazes de intervir em situações geradoras de vulnerabilidade.

Descritores: Serviços de saúde. Serviços médicos de emergência. Risco. Enfermagem em emergência. Promoção da saúde.

RESUMEN

El artículo hace un corte del análisis en un estudio cualitativo desarrollado en 2009 cuyo objetivo fue investigar la demanda de pedidos de socorro al Servicio de Atendimiento Móvil de Urgencia/Porto Alegre (SAMU) que la clasificó como no pertinente. Las informaciones resultaron de 16 entrevistas semiestructuradas con los sujetos de esta demanda, utilizándose como orientación metodológica la Teoría Fundamentada. El artículo aborda el contenido de la subcategoría "Entrando en conflicto con la regulación del SAMU en la evaluación del riesgo de vida", enfocando las divergencias entre la regulación y la percepción de los usuarios acerca del funcionamiento del servicio y significado de "riesgo de vida", factores implicados en la construcción de la demanda no pertinente. La Enfermería se destaca en este escenario por su competencia en realizar acciones de educación sobre primeros socorros y participar de proyectos intersectoriales capaces de intervenir en situaciones generadoras de vulnerabilidad.

Descriptores: Servicios de salud. Servicios médicos de urgencia. Riesgo. Enfermería de urgencia. Promoción de la salud.

INTRODUÇÃO

O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) presta atendimento pré-hospitalar móvel, procurando chegar, precocemente, à vítima após ter ocorrido um agravo à sua saúde (de natureza clínica, cirúrgica, obstétrica, traumática ou psiquiátrica) que possa levar ao sofrimento, sequelas ou à morte. A sua missão é atender e/ou transportar essas vítimas a um serviço do Sistema Único de Saúde (SUS)(1). Exemplos de problemas de saúde pertinentes à natureza do SAMU são: parada cardiorrespiratória, dificuldade respiratória severa, convulsões, lesões por acidentes de trânsito e quedas, queimaduras, afogamentos, agressões, choques elétricos, além de outras situações envolvendo risco de vida (RV)(2) iminente.

O acesso ao SAMU ocorre por meio de um número telefônico único nacional e gratuito, o 192. Tendo por base critérios da legislação(1,3), médicos reguladores (MRs) triam as chamadas e decidem se serão ou não atendidas, avaliando o nível de gravidade de cada caso. Estando o nível de gravidade presumido dentro dos parâmetros de RV, estabelecidos como característicos de casos para este serviço atender, enviam-se, ao local da ocorrência, os recursos para o atendimento. Caso julgue a não necessidade do envio de ambulâncias, o MR explica sua decisão e esclarece o demandante do socorro quanto a outras medidas a serem adotadas. Estes pedidos de atendimento, que não correspondem aos critérios definidores de RV adotados pelo SAMU, são classificados pelo serviço como não pertinentes (NP)(3).

Nos últimos anos, tem se observado uma demanda importante de solicitações de socorro NP ao SAMU/Porto Alegre. Em 2006, por exemplo, 38% das regulações realizadas foram assim classificadas. A existência de uma considerável demanda NP (DNP) é um problema, tanto para a gestão do serviço, quanto para a população. Há, pelo menos, dois motivos para que a DNP seja um transtorno: (1) despende tempo da regulação que poderia ser utilizado para atender os chamados pertinentes e, portanto, mais graves e (2) resulta num contingente de usuários que, sem o atendimento do SAMU, precisará encontrar, sozinho, outra porta de entrada ao sistema, o que nem sempre é tarefa fácil, além de gerar estresse quando a situação em questão é avaliada como sendo de RV por quem solicita o serviço(4).

Tendo em conta a problemática descrita acima, considera-se relevante compreender o processo de construção da DNP. O estudo desse fenômeno traz subsídios para a gestão dos serviços no âmbito do SUS e, em particular, à gestão do SAMU e à Enfermagem, contribuindo para o planejamento de ações de atenção às urgências.

A Enfermagem tem papel de destaque no SAMU ao atuar na gerência e, também, em atividades que extrapolam a assistência aos usuários. Além disto, a categoria participa na educação em serviço e na orientação do atendimento às urgências, intersetorialmente como por exemplo: à guarda municipal, aos fiscais de trânsito, aos professores de escolas, entre outros.

A origem do artigo foi a pesquisa intitulada "Risco de vida na perspectiva de usuários do serviço de atendimento móvel de urgência que foram solicitantes da DNP – subsídios para a gestão do serviço"(4). Este estudo deu origem a três categorias: "Buscando socorro no SAMU", "Desfechos das situações relacionadas aos pedidos não atendidos de socorro" e "Vulnerabilidades produzindo risco de vida". Ele é um recorte dos resultados da pesquisa, dedicando atenção à percepção dos usuários sobre o funcionamento do serviço e sobre o significado de "risco de vida", presentes com destaque na análise na subcategoria "Entrando em conflito com a regulação do SAMU na avaliação do risco de vida", vinculado à primeira categoria.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A pesquisa ocorreu, em Porto Alegre, em 2009(4). O tipo de estudo foi misto sequencial. Foram utilizados dois métodos em sequência, portanto o trabalho de pesquisa ocorreu em duas etapas(4). Na primeira, realizou-se uma análise descritiva do banco de dados do SAMU para conhecer a distribuição das chamadas ao 192, correspondentes a pedidos de socorro considerados NP à natureza do serviço. Os resultados descritivos não serão abordados no artigo, mas ressalta-se que possibilitaram a seleção de um bairro para que fossem realizadas as entrevistas com os sujeitos da DNP.

O critério de escolha do bairro foi a sua localização em uma das três regiões da cidade com maior DNP e que, entre os bairros daquela região, fosse o bairro com maior DNP. Escolhido o bairro Cavalhada, pertencente à região Centro-Sul, iniciou-se a segunda etapa do estudo.

Na segunda etapa, realizou-se 16 entrevistas semiestruturadas, todas gravadas e transcritas por uma das autoras do artigo. Destas, cinco ocorreram em 2008 e foram utilizadas como piloto para aprimoramento do roteiro da entrevista(4). Os itens do roteiro eram: 1) Descreva a situação que o fez ligar para o SAMU; 2) Você buscou outro serviço de saúde antes do SAMU?; 3) Explique situações que você considera RV; O caso que motivou você a buscar socorro no SAMU era uma situação de RV?; 4) Você não pode fazer nada além de chamar o SAMU? Por quê? 5) Por que você pensou que o SAMU iria lhe atender? 6) O que é o SAMU para você? Como funciona? 7) Já teve algum curso de primeiros socorros(PS)? Onde? 10) Como é o seu bairro? (lazer, saúde, educação, saneamento, segurança). Com esse roteiro final, as demais 11 entrevistas, objeto da análise, foram realizadas entre março e outubro de 2009. O convite, para os sujeitos participarem da pesquisa, ocorreu através do número telefônico registrado no banco de dados do SAMU. Algumas das entrevistas não puderam ser presenciais e foram realizadas via telefone pela dificuldade de localizar os entrevistados nas suas residências durante o dia e pela falta de segurança às pesquisadoras em algumas áreas do bairro(5).

Os critérios de inclusão do entrevistado foram aceitar participar do estudo e lembrar detalhes do seu pedido de socorro ao SAMU. Foram excluídos do estudo, em torno de uma centena de sujeitos.

A análise das entrevistas foi realizada conforme a Teoria Fundamentada (TF) a qual preconiza concomitância entre o trabalho de campo e a análise dos dados(6). Diferente de outras metodologias qualitativas, ao invés de categorias pré-definidas, na TF, a análise se dá a partir de codificações do conteúdo que o pesquisador vai percebendo nos dados que estão sendo coletados(6). Na análise, realizaram-se três tipos de codificações: a aberta, a seletiva e a axial. Para a primeira codificação, procedeu-se o exame das linhas da transcrição das entrevistas e o recorte das unidades de análise. Na segunda, agruparam-se essas unidades de dados empíricos em categorias. Na terceira e última codificação, realizou-se a integração das categorias(4). Conforme havia a necessidade de aprofundar alguma categoria, eram realizadas mais entrevistas, dando origem ao que se denomina amostragem teórica do estudo(4).

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre sob número 121. Os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou gravaram a sua concordância em participar da pesquisa.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados evidenciam, principalmente, que existem divergências entre a perspectiva de RV dos solicitantes do SAMU e os critérios utilizados pela regulação do serviço para demandar ambulâncias. Tais divergências, discutidas a seguir, contribuem para a construção da DNP.

Entrando em conflito com a regulação do SAMU na avaliação de risco de vida

A gravidade de um risco de vida é o principal critério utilizado pelo SAMU para avaliar a necessidade ou não do envio de uma ambulância para o atendimento. No âmbito da triagem realizada pela regulação do serviço, o MR a avalia com base na semiologia de protocolos específicos a partir das informações fornecidas pelos usuários(1,3).

A análise das informações coletadas revela conflitos entre os usuários e os MRs, principalmente com relação à definição de risco de vida e, consequentemente, sobre o funcionamento e a natureza do serviço. À medida que as entrevistas evoluíam e os usuários referiam sua percepção sobre como o SAMU funciona, emergiam, nos depoimentos, suas concepções de risco de vida. A análise sugere que estes são fatores implicados com a construção da DNP.

O que os usuários sabem sobre o SAMU?

Embasados nas suas vivências, os entrevistados informavam, quase sempre adequadamente, a finalidade do SAMU, quando ele deve ser acionado, sua estrutura e o seu processo de trabalho. As falas, a seguir, ilustram a adequação do conhecimento destes usuários sobre o tipo de atendimento prestado pelo SAMU:

SAMU é uma ambulância para emergência, para socorrer, salvar vidas (E1).

Eu penso que, num caso de urgência, são eles que tu tens que chamar (E2).

Embora as falas acima não tenham mencionado que as situações de urgência, a serem atendidas, devem representar RV iminente, o que é indicado como missão do serviço(2), o termo "salvar vidas" sugere certa aproximação com os critérios definidores de uma demanda pertinente. A identificação do SAMU como "uma ambulância" indica, além disto, conhecimento sobre a característica de mobilidade do serviço, especificada na sua própria denominação. As informações, coletadas na pesquisa, permitem inferir que este conhecimento sobre o SAMU é apreendido no cotidiano.

Meus familiares já usaram (E9).

Porque vários casos eu já vi aqui onde eu moro e o SAMU veio (E5).

Aqui, volta e meia tem um desmaio e o SAMU vem rapidinho (E6).

Há um estudo sobre acessibilidade a atendimentos pelo SUS que corrobora com os resultados da presente pesquisa(7). A sua autora concluiu que o processo de tomada de decisão, sobre qual serviço acessar, leva em conta uma avaliação dos serviços disponíveis, a partir de experiências pessoais e, também, de situações vivenciadas por outros usuários(7). Em ambos os casos, as experiências cotidianas são geradoras de conhecimento sobre o serviço.

Com relação à estrutura do serviço, a análise dos dados sugere que a presença de médicos e a disponibilidade de recursos para o atendimento, como por exemplo, o pronto acesso a medicamentos, são conhecimentos sobre o SAMU que influenciam a escolha dos usuários por este serviço. Entende-se, por "estrutura do serviço", o conjunto de recursos tecnológicos e a capacidade técnico-científica dos profissionais que, nele, atuam(8). Os conhecimentos dos entrevistados sobre os recursos disponíveis e a agilidade da equipe do SAMU foram evidenciados em algumas das suas justificativas para chamar o serviço:

O SAMU atende quando a gente chama, porque tem médicos, sei que são médicos eficientes (E5).

Se de repente o SAMU tivesse vindo e um médico tivesse examinado ele... (E6).

Porque o SAMU tem os remédios ali dentro [da ambulância] (E7).

A ideia, de que a presença de um médico competente e a pronta disponibilidade de recursos para atendimento são condições para a eficiência de um serviço de saúde, sugere que a tomada de decisão sobre que serviço chamar, em caso de situação percebida como urgente, é influenciada pelo processo de medicalização social, marcante na sociedade contemporânea(9). A medicalização repercute na geração de dependência das pessoas a cuidados biomédicos, a tratamentos farmacológicos e à realização de exames(9), reduzindo sua autonomia para atender agravos de saúde.

A supervalorização da prontidão e eficiência da biomedicina nos atendimentos de saúde não é uma característica apenas de compreensões populares sobre quem deve atender uma urgência. Produzida e reproduzida na cultura, a ênfase no uso do saber biomédico, para o manejo de agravos de saúde, perpassa as situações que demandam intervenção. Observa-se esta situação também em relação à prevenção de agravos e à recuperação da saúde.

Por outro lado, esta supervalorização não tem sido acompanhada, em igual medida, por investimentos na promoção da autonomia da população para o cuidado em saúde, em especial nos PS. Na atualidade, a tendência é priorizar o ensino de PS para estudantes e profissionais de saúde(10). É bem provável que se este conhecimento fosse disponibilizado para a população em geral, como um investimento dos enfermeiros na promoção da sua saúde, diminuiria a dependência dos usuários para o atendimento às suas urgências.

Emerge, desta reflexão, o argumento de que a produção e socialização de conhecimentos sobre PS poderiam diminuir a DNP, reduzindo a vulnerabilidade da população(10).

Se por um lado, no geral, os usuários demonstraram ter um bom conhecimento sobre o funcionamento do serviço, por outro, em algumas situações revelaram percepções inadequadas. Por exemplo, a ideia de que as ambulâncias são meios de transporte.

Pra que eles têm essas coisas aí [ambulâncias], se eles não podem carregar os pacientes? (E8).

O SAMU tem que estar em momentos que as pessoas não têm condições de pegar um táxi e ir pro pronto socorro (E9).

Atendimentos pré-hospitalares incluem cuidados que vão desde uma imobilização até a ressuscitação cardiorrespiratória para, finalmente, fazer o transporte adequado para outro serviço de saúde(2), ou seja, quando há necessidade de atendimento de saúde antes de chegar ao hospital. Nesta perspectiva, transportar pessoas com algum agravo à saúde, que não ofereça RV e/ou impossibilitados de se locomover por falta transporte, não é função do SAMU.

Apesar das especificidades do atendimento do SAMU estarem centradas, prioritariamente, em situações clínico-biológicas, a demanda da população, ao serviço, não está atrelada apenas a estas situações. Problemas sociais também originam interesse no atendimento pelo serviço, como por exemplo: falta de dinheiro, incerteza sobre o que fazer no caso de algum agravo à saúde, falta de uma rede de apoio mais próxima, e outros(7). Neste sentido, o estudo sugere que há divergências entre os critérios de prioridade estabelecidos pelos MRs e a motivação da população para buscar atendimento, resultando em uma DNP(4). A análise dos dados sugere, também, que, nem sempre, a população conhece o modo como se dá a triagem e a avaliação de risco das situações comunicadas por telefone aos MRs. Corroboram, com a análise, os resultados de outro estudo que concluiram que os usuários do SAMU desconhecem a organização do serviço(11). As falas abaixo ilustram este argumento:

Olha [o SAMU] é uma salvação, pena que é muito demorado, tem que passar pro enfermeiro, depois tem que passar pro doutor (E3).

Foram muitas perguntas, muitas dúvidas [...] eles achavam que a gente estava mentindo [...] (E4).

Da mesma forma que ocorre em todos os serviços de urgência, onde é grande a demanda por atendimento, no SAMU, conforme referido anteriormente, também há uma triagem dos casos para classificar o risco da situação(11). A falta de compreensão dos usuários sobre a importância deste processo de triagem pode originar dúvidas sobre a seriedade e finalidade dos questionamentos que, usualmente, são feitos pelo MR. Além disso, alguns usuários expressaram confusão sobre qual é o profissional que tria, quando envolveram o enfermeiro neste processo. A compreensão desse processo, por parte da população, é importante, pois agiliza o atendimento, visto que essa é a porta de entrada do serviço(7).

No geral, os solicitantes do SAMU têm um bom conhecimento sobre o serviço, porém, em certos momentos, ficam evidenciadas algumas inadequações, como por exemplo, a ideia de que o SAMU serve apenas para transportar pessoas para os hospitais, independente do nível de gravidade da situação a ser atendida. A análise, a seguir, vai trazer, com mais destaque, esta questão, que envolve conflitos entre o significado de "RV" para usuários e profissionais da regulação do serviço.

Significados de risco de vida: divergências entre usuários e SAMU

O potencial de RV, envolvido na situação, é o critério utilizado, pelo SAMU, para definir o nível de prioridade do atendimento(1). As informações coletadas são reveladoras de divergências entre os usuários e os MRs quanto aos parâmetros para a definição de uma situação de RV. Por exemplo, na narrativa de uma situação que originou pedido de socorro ao SAMU, o usuário questiona a avaliação sobre o RV envolvido:

Uma pessoa já de idade, com o problema que ele tem [diabete, infecção no pé] e com a febre que ele estava, fraco de não se alimentar porque não tinha fome, acho que isso aí é um RV. Eu acho que para mim e para qualquer pessoa. E para eles [regulação do SAMU] não é (E10).

Na avaliação do usuário, a co-morbidade do indivíduo, a idade avançada e a sua fraqueza são indícios de RV, porém, como a fala acima sugere, este diagnóstico não foi confirmado pelo médico do SAMU. Os dados indicam que a definição de RV dos usuários resulta de experiências objetivas de sofrimento, influenciadas pelo meio e pela sua condição social(12). Este modo de dar sentido à "RV" conflita com o processo de avaliação dos MRs, evidenciando, a exemplo de outras pesquisas, que percepções de risco são heterogêneas e contexto-tempo dependentes(7).

Na análise dos dados, classificaram-se as respostas dos solicitantes à pergunta "O caso que motivou você a buscar socorro no SAMU era uma situação de RV?", em: "casos de risco iminente de vida (gravidade severa)"; "casos em que o solicitante não sabia se havia RV e/ou não sabia se esse risco poderia vir a existir se não fosse atendido (gravidade indeterminada)" e "casos sem RV (gravidade pequena)". Para se comparar a avaliação do RV feita por usuários e profissionais do SAMU, a mesma análise foi realizada nos registros, feitos pelos MRs no Banco de Dados, no momento em que avaliaram os pedidos de socorro dos entrevistados. Na maioria dos casos (82%), os solicitantes entrevistados pediram socorro ao SAMU porque julgaram suas situações como de gravidade severa, ou seja, com risco iminente de vida. Somente um dos casos foi avaliado, pelo solicitante, como de gravidade pequena e, da mesma forma, apenas um caso foi julgado como de gravidade indeterminada. De modo proporcionalmente inverso, na avaliação da regulação deste serviço, a maioria dos casos (70%) foi avaliada como de gravidade pequena, seguida pelos de gravidade média (20%) e pelos de gravidade indeterminada (10%)(4).

Os percentuais reforçam o argumento, apresentado anteriormente, de que o julgamento do RV se dá a partir de diferenças entre parâmetros ou perspectivas utilizadas em tal avaliação. Para os MRs, a definição de uma situação de RV tem um conteúdo predominantemente biológico, embasado em evidências epidemiológicas. Em contrapartida, para os solicitantes, a definição de RV engloba conteúdos menos técnicos, embora não menos objetivos (ou mais subjetivos) que as definições biomédicas(4). As falas seguintes foram as respostas obtidas à pergunta mencionada anteriormente:

[...] ele [marido] sentiu uma forte queimação no estômago e achei estranho, porque ele nunca sentiu isto. Pensei que era grave, a gente não tem carro, não tinha como ele pegar ônibus ou lotação (E3).

Eu acho que ele [irmão] poderia ter corrido o risco de parar de respirar e eu não ia saber o que fazer (E7).

Ele [marido] disse que sentiu uma tontura, então disse para respirar fundo, daí ele disse que passou, quando eu olhei pra ele de novo, ele caiu! Saí correndo pra rua gritando socorro, mas nenhum vizinho ouviu (E5).

Para os solicitantes, a presunção de gravidade de um agravo à saúde parece não implicar, apenas, avaliações focadas no agravo em si, podendo incluir, também, um julgamento da situação em que o agravo está inserido. Compõem este julgamento, os limites do contexto e aspectos emocionais presentes no momento do pedido de socorro. Os depoimentos exemplificam a ênfase a estes limites como definidores da gravidade da situação: "a gente não tem carro, não tinha como pegar ônibus ou lotação"; "eu não ia saber o que fazer"; "nunca sentiu isto". As condições para resolver ou minimizar, pessoalmente, o sofrimento gerado pelo agravo à saúde de alguém próximo nem sempre são as ideais. A falta de recursos e o desconhecimento ou despreparo para avaliar e atender a necessidade de PS são geradores de ansiedade. Neste cenário, é evidente a busca por ajuda imediata, o que gera a associação entre a presunção de RV e a demanda por atendimento do SAMU.

As chamadas telefônicas dos solicitantes entrevistados eram relativas a situações envolvendo algum familiar, vizinho ou amigo do solicitante(4). A angústia de testemunhar o sofrimento do outro, aliada à impotência frente às limitações pessoais para eliminar ou minimizar este sofrimento, resulta na necessidade de obter ajuda o mais rápido possível. A necessidade é sentida mesmo que, de início, o solicitante não perceba a situação como de iminente RV ou não tenha certeza disto.

Em tais circunstâncias, conseguir um meio de transporte, que pode ser uma ambulância, acaba se impondo como uma necessidade urgente. Outro aspecto a considerar é que, em situações de agravo agudo, nem sempre as pessoas, que podem ajudar, estão preparadas, emocionalmente, para isto, principalmente se há uma relação mais próxima entre elas. Não são todas as pessoas que têm perfil para atender urgências. Mesmo entre profissionais da saúde, que têm conhecimento sobre o que fazer diante de um agravo agudo, há aqueles que não apresentam as condições emocionais para lidar com tais situações. A legislação do serviço de atendimento pré-hospitalar reconhece essa limitação e coloca, como requisitos gerais para os seus profissionais, a disposição pessoal para a atividade, o equilíbrio emocional e o autocontrole(1).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não compete ao SAMU, um serviço de alta complexidade na área das urgências, atender a demanda de pedidos de socorro que não são compatíveis com a natureza do serviço. Tampouco as situações, que originam os pedidos de socorro considerados NP ao SAMU, são problemas a serem resolvidos unicamente no âmbito do setor saúde. Trata-se de problemas que extrapolam esse setor e, portanto, uma rede de recursos precisa ser ativada, de modo a minimizar ou resolver as situações de vulnerabilidade que originam a DNP.

A limitação da pesquisa é que a mesma foi realizada, especificamente, em um bairro. Apesar deste fator limitante, as percepções dos usuários acerca do funcionamento do serviço e do significado de RV podem ser consideradas para a compreensão da DNP procedente de outros locais. Os resultados trazem importantes subsídios para a reflexão sobre os possíveis cenários que originam os pedidos de socorro de usuários que, no entanto, são considerados pelo serviço como NP.

A credibilidade do SAMU e a possível facilidade e rapidez na resolução das necessidades das pessoas fazem com que elas procurem esse serviço. Assim, o serviço recebe casos que poderiam ser atendidos em níveis primários do sistema de saúde, como ocorre em outros pronto-atendimentos. Isso sugere que a interpretação do agravo à saúde, como de RV ou como um atendimento de competência do SAMU, leva os usuários a optarem por esta "porta de entrada" no sistema de saúde, ao invés de aguardarem atendimento em locais em que poderia ser mais demorada a resolução de um problema percebido como grave.

A atuação da Enfermagem é fundamental para a redução da DNP. Iniciativas dos enfermeiros do SAMU: educação da população para a atuação em PS, realização de estudos que explorem as percepções dos usuários sobre agravos de saúde – o que são e o que fazer diante dos mesmos – e participação em projetos intersetoriais capazes de intervir em situações geradoras de vulnerabilidade são algumas das estratégias possíveis neste contexto.

Recebido em: 14.03.2012

Aprovado em: 19.10.2012

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    91760-200, Porto Alegre, RS
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      14 Mar 2012
    • Aceito
      19 Out 2012
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