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A história infantil como recurso na compreensão do processo saúde-doença pela criança com HIV

El cuento infantil como recurso en la comprensión del proceso salud-enfermedad por niños con HIV

Resumos

O estudo analisou como uma história infantil, contendo questões relacionadas à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, contribui para a compreensão do processo saúde-doença pela criança com o Vírus da Imunodeficiência Humana. Foi realizado, em Porto Alegre, RS, entre maio e dezembro de 2011. Participaram cinco crianças, com idades entre sete e nove anos, e seus cuidadores. Utilizou-se grupo focal e entrevista, e os dados foram submetidos à análise temática de conteúdo. Emergiram duas categorias: Identificação com a história e a relação com o processo saúde-doença e Compreensão da história e do processo saúde-doença. Os resultados demonstraram que a história infantil é um recurso para conversar com as crianças sobre o processo saúde-doença sem revelar o diagnóstico, levando a uma compreensão de si e do tratamento. Considera-se que esse recurso pode ser uma estratégia para auxiliar os cuidadores e profissionais da saúde a iniciar o processo de revelação do diagnóstico.

Enfermagem; Criança; HIV; Literatura infanto-juvenil


El estudio analizó cómo el cuento infantil con cuestiones sobre el SIDA contribuye a la comprensión del proceso salud-enfermedad por el niño con VIH. Fue realizado en clínica pediátrica de Porto Alegre/RS, de mayo a diciembre de 2011. Participaron cinco niños entre siete y nueve años y sus cuidadores. Los datos fueran recogidos en grupo focal y entrevista y analizados por medio del análisis temático de contenido. Emergieron dos categorías: La identificación con la historia y la relación con el proceso salud-enfermedad; y La comprensión de la historia y del proceso salud-enfermedad. Los resultados demostraron que el cuento infantil es un recurso para hablar con niños sobre el proceso salud-enfermedad, sin revelar el diagnóstico, llevándolos a una comprensión de su situación y la importancia del tratamiento. Consideramos que ese recurso puede ser una estrategia para ayudar a cuidadores y a profesionales de salud para iniciar el proceso de revelación.

Enfermería; Niño; VIH; Literatura infanto-juvenil


This study analyzed how a story for children related to AIDS contributed to the understanding of the health-disease process of children with HIV. It was conducted at the Pediatric Clinic in Porto Alegre/RS from May to December 2011. The participants were five children aged between seven and nine years and their caregivers. The data were collected by a focal group through interviews and submitted to thematic content analysis. Two categories were found: identification with the story, relationship with the health-disease process, understanding of the story, and the health-disease process. The results demonstrated that stories for children are resources to talk about the health-disease process with children without revealing the diagnosis, leading them to understand their situation and the importance of treatment. We considered that this resource may be a strategy to help the caregivers and health professionals to initiate the process of revelation of diagnosis.

Nursing; Child; HIV; Juvenile literature


ARTIGO ORIGINAL

A história infantil como recurso na compreensão do processo saúde-doença pela criança com HIV

El cuento infantil como recurso en la comprensión del proceso salud-enfermedad por niños con HIV

Jeanine Porto BrondaniI; Eva Neri Rubim PedroII

IMestre em Enfermagem pela Escola de Enfermagem (EE) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora substituta do Departamento Materno Infantil da EE/ UFRGS. Professora da Faculdade de Enfermagem da Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT). Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

IIDoutora em Educação. Professora Associada da EE/UFRGS. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Endereço para correspondência Endereço do autor / Dirección del autor / Author's address Jeanine Porto Brondani Rua Sarmento Leite, 763, ap. 905, Centro Histórico 90050-170, Porto Alegre, RS E-mail: jeaninebrondani@yahoo.com.br

RESUMO

O estudo analisou como uma história infantil, contendo questões relacionadas à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, contribui para a compreensão do processo saúde-doença pela criança com o Vírus da Imunodeficiência Humana. Foi realizado, em Porto Alegre, RS, entre maio e dezembro de 2011. Participaram cinco crianças, com idades entre sete e nove anos, e seus cuidadores. Utilizou-se grupo focal e entrevista, e os dados foram submetidos à análise temática de conteúdo. Emergiram duas categorias: Identificação com a história e a relação com o processo saúde-doença e Compreensão da história e do processo saúde-doença. Os resultados demonstraram que a história infantil é um recurso para conversar com as crianças sobre o processo saúde-doença sem revelar o diagnóstico, levando a uma compreensão de si e do tratamento. Considera-se que esse recurso pode ser uma estratégia para auxiliar os cuidadores e profissionais da saúde a iniciar o processo de revelação do diagnóstico.

Descritores: Enfermagem. Criança. HIV. Literatura infanto-juvenil.

RESUMEN

El estudio analizó cómo el cuento infantil con cuestiones sobre el SIDA contribuye a la comprensión del proceso salud-enfermedad por el niño con VIH. Fue realizado en clínica pediátrica de Porto Alegre/RS, de mayo a diciembre de 2011. Participaron cinco niños entre siete y nueve años y sus cuidadores. Los datos fueran recogidos en grupo focal y entrevista y analizados por medio del análisis temático de contenido. Emergieron dos categorías: La identificación con la historia y la relación con el proceso salud-enfermedad; y La comprensión de la historia y del proceso salud-enfermedad. Los resultados demostraron que el cuento infantil es un recurso para hablar con niños sobre el proceso salud-enfermedad, sin revelar el diagnóstico, llevándolos a una comprensión de su situación y la importancia del tratamiento. Consideramos que ese recurso puede ser una estrategia para ayudar a cuidadores y a profesionales de salud para iniciar el proceso de revelación.

Descriptores: Enfermería. Niño. VIH. Literatura infanto-juvenil.

INTRODUÇÃO

Após 30 anos dos primeiros casos de Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (aids) no Brasil, ainda estão presentes o estigma e preconceito associado a esta condição. As crianças infectadas por transmissão vertical crescem com o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), frequentam escola, tem atividades de lazer, mas muitas não conhecem seu estado de saúde a não ser como portadores de uma doença crônica que necessita de acompanhamento durante toda a vida.

De acordo com a evolução da epidemia, o estigma dos "grupos de risco", caracterizou esses sujeitos de acordo com um conjunto de conceitos (psicológicos, sociais, políticos, médicos) que fizeram com que as pessoas soropositivas fossem reduzidas ao outro portador do vírus que precisa guardar um segredo sobre si (1).

Nas crianças, o desconhecimento sobre seu diagnóstico, pode gerar consequencias no tratamento, como a não adesão aos medicamentos ou resistência ao acompanhamento ambulatorial. Pela dificuldade em conversar com as crianças, as famílias adotam estratégias de ocultamento e muitas vezes necessitam de apoio profissional para a revelação ou mesmo para iniciar o processo(2).

Nesse sentido, realizou-se esse estudo na perspectiva de apontar uma alternativa de cuidado que possa ser utilizada pelos familiares e profissionais envolvidos com a aids infantil, em especial a enfermagem. Recomenda-se que encontros de cuidado com a criança objetivando esclarecimentos sobre o processo saúde-doença realize-se em atividades semanais ou quinzenais, tenha entrevistas com familiares, atentando para fantasias, angústias e temores além da estimulação da criança a expressar-se de forma espontânea sobre o assunto(2). Nesse ímpeto, construiu-se uma história voltada para esse público buscando a identificação com situações similares àquelas que a criança vive e convive.

Portanto, este artigo versa sobre a utilização de uma história infantil criada para mostrar o viver de personagens - crianças com aids, abordando a relação familiar e escolar, qualidades e defeitos, sofrimentos e alegrias. "A descoberta de Pedro e Júlia: conversando sobre saúde e doença", é constituída de cinco capítulos e foi construída para contemplar um discurso alternativo sobre o HIV na infância.

Desse modo, acredita-se que a prática de contação desta história estimula conversas entre as crianças, na busca de minimizar preconceitos, e oportunizando que crianças com necessidades de acompanhamento contínuo possam ter mais qualidade no viver e (con) viver. A construção de um texto precisa estimular a busca do enfrentamento de questões fundamentais da existência humana, que também atinja as crianças(3).

Para não revelar à criança o diagnóstico de aids, cuidados foram tomados na construção textual como formas de contágio, designação da doença e diagnósticos dos pais na busca de colocar elementos importantes para o processamento de informações sociais. Poucos são os estudos que buscam entender o desenvolvimento por meio de histórias infantis. É uma área a ser explorada como recurso na saúde infantil(4).

A literatura é capaz de reunir a ficção e a verdade. A arte de contar, de compartilhar, de criar e recriar universos sociais também constrói conhecimentos históricos e culturais. Desta forma, assume um compromisso indireto educacional, sendo considerado mediador da aprendizagem humana(5).

Esse artigo é resultado de uma pesquisa, que deu origem a dissertação "A história infantil como recurso na compreensão do processo saúde-doença pela criança com HIV"(6), cujo objetivo foi analisar como a história infantil contendo questões relacionadas ao HIV/aids (uso contínuo de medicação, sigilo, segredo, efeitos colaterais, exames, internações) contribui para a compreensão do processo saúde-doença pela criança com HIV. Selecionou-se para esse artigo apresentar como a história infantil pode contribuir para desencadear uma conversa com as crianças a respeito do seu tratamento.

MÉTODO

Trata-se de um estudo com abordagem qualitativa, descritiva e exploratória. Foi realizado no Ambulatório de Pediatria do Grupo Hospitalar Conceição, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Participaram cinco crianças entre sete e nove anos que residiam em Porto Alegre e grande Porto Alegre, utilizavam medicação, desconheciam o diagnóstico com o nome "HIV/aids", não estavam em situação de abrigo, não apresentavam problemas de cognição; e um cuidador responsável por cada criança. A participação do responsável foi apenas a de fornecer os dados que pudessem caracterizar as crianças, como, endereço, escolaridade, renda familiar, número de irmãos entre ouros aspectos, além de informarem se a criança tinha conhecimento ou não do seu diagnóstico.

A coleta de dados iniciou após esse contato com o objetivo de apresentar a pesquisa e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Res. 196/96, do CNS). As cinco crianças participantes assinaram o Termo de Assentimento no primeiro encontro grupal, quando foram explicadas as atividades de pesquisa. Foram realizados, quinzenalmente, três encontros de grupo focal com as mesmas crianças e foram gravados em áudio.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Grupo Hospitalar Conceição (nº 10-199). A psicóloga da instituição participou da coleta de dados para o apoio às possíveis intercorrências, como revelação acidental do diagnóstico ou desencadeamento de sentimentos que pudessem trazer desconforto às crianças. Uma das crianças conhecia o diagnóstico sem a anuência da família e esta revelou somente à pesquisadora ao final do último encontro. Houve o encaminhamento da criança e cuidadora ao setor de psicologia.

A atividade disparadora nos encontros foi a contação de capítulos da história "A descoberta de Pedro e Júlia: conversando sobre saúde e doença" a fim de respeitar a compreensão das questões envolvidas no processo saúde-doença. Os encontros foram realizados, em local previamente combinado, conhecido pelas crianças e sem interferência de outras pessoas.

Para garantir o anonimato, os nomes dos participantes foram substituídos pelos códigos: criança 1 (C1), criança 2 (C2)..., e grupos 1 (G1), 2 (G2) e 3 (G3) e a pesquisadora identificada por P.

As informações obtidas foram transcritas na íntegra e submetidas á análise temática de conteúdo(7), buscando unidades de significação nas falas dos sujeitos que deram origem aos temas e categorias.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os temas evidenciados originaram as categorias denominadas: identificação com a história e a relação com o processo saúde-doença e compreensão do texto e do processo saúde-doença.

Identificação com a história e a relação com o processo saúde-doença

Essa categoria agrega percepções de como as crianças conseguiram se identificar com a situação dos personagens da história. Esses, usam medicamentos "com gosto de azeite", conversam sobre isso, reconhecem esta dificuldade, mas continuam o tratamento. O mesmo é possível constatar nas falas das crianças.

Como é que era o remédio que a Júlia e o Pedro tomavam? (P. G1)

Parecia um gosto de azeite. Os dois tomam o mesmo. Tinham remédio igual. (C2. G1)

Não sei [...]. Meu remédio tem gosto de ruim, amargo. (C3. G3)

Tinha gosto de cachaça. (C1. G1)

Eu me lembro [...]. Era com gosto de azedo, era ruim. Não gostavam de tomar. (C4. G2)

Eu também tomo um ruim. É bem ruim. (C2. G2)

Sabe-se que a terapia antirretroviral é necessária e fundamental para a sobrevivência de quem vive com HIV. Compõem-se de diferentes medicamentos que precisam ser ingeridos diariamente, em vários horários. Para as crianças, os fármacos são disponibilizados em solução e em comprimidos. A solução é pouco aceita por muitas crianças devido à palatabilidade, mesmo assim, as crianças precisam usar tais medicamentos e nas falas, expressam um pouco desta experiência.

Um estudo recente com crianças portadoras do HIV/aids, realizado em Porto Alegre, mostrou que as mesmas classificaram os antirretrovirais como: desagradável, que ardia e que grudava na garganta e que tinha gosto horrível(8).

Em relação ao uso contínuo das medicações, o conhecimento deste, é normalmente, restrito apenas à família. A criança aprende a usar a medicação reservadamente e também a não contar aos amigos ou colegas de escola sobre isso, mesmo que não compreenda o real motivo deste sigilo. Quando este segredo é revelado, há a preocupação com a confiança no outro.

Quem sabe que vocês tomam remédio? (P. G2)

Minha mãe. Minha vó. Meu vô. Meu tio e meu outro tio. (C4. G2)

A minha mãe. Só minha mãe e eu. (C2. G2)

A minha mãe, o meu primo. O meu primo k. e a C. Ela falou pras colegas dela e ela prometeu pra mim que não ia falar. (C5. G3)

Meu pai, minha mãe. O meu pai e minha mãe também tomam. (C3. G3)

Um estudo sobre a resiliência apontou que a família e os amigos constituem-se em fatores de proteção expressivos àqueles que precisam enfrentar a doença, e dentre as relações, a familiar é a principal fonte de apoio para as pessoas soropositivas(9).

A terapia antirretroviral contribuiu com a qualidade de vida aos que vivem com HIV. Contudo, com o prolongamento do tempo de utilização e tratamentos cada vez mais complexos, as implicações para o viver cotidiano das crianças altera suas rotinas, suas relações e sua vida social(8), como nas falas a seguir:

E no colégio alguém sabe sobre o remédio? (P. G3)

Não. (C3. G3)

Não. (C2. G2)

Não. Só a professora (C4. G3)

Senão ficam olhando diferente. (C3. G3)

No colégio eu fico com a boca calada. Eu só conto pra uma guria, e a guria sabe guardar segredo bem direitinho. Eu falei pra ela. Se eu contar um segredo pra você, você não vai falar? Aí, daí eu falei pra ela, daí ela não falou pra ninguém. Dai eu perguntei pra todo mundo e disseram "não ela não falou". (C5. G2)

No caso destas crianças, que desconhecem seus diagnósticos, a preocupação é com o uso da medicação, que para elas tem determinado significado, e que não pode ser revelado e isso é aprendido em casa, em tentativas de diálogo com os familiares, como descrito abaixo.

Vocês perguntam em casa do remédio? (P. G3)

Eu pergunto [...] Eu pergunto todo dia, porque eu tenho que tomar, acordo ela e já pergunto, ela diz, é por causa do coração [...]. (C3. G3)

Eu pergunto, se eu to melhor, se eu não to? Eu pergunto uma coisa todo dia pra minha mãe. (C5. G2)

A minha mãe não conversa. (C3. G3)

Nunca? (P. G3)

Nunca. (C3. G3)

A manutenção do segredo normalmente é mantida até que, na perspectiva da família, a criança cresça o suficiente para entender o que é a doença e tenha condições de se cuidar, ou até que a família consiga conversar sobre o assunto(10).

Apesar do tema revelação do diagnóstico ser foco de estudos e estar presente na literatura, ainda não se tem uma certeza para conduzir e explicar questões complexas da terapêutica, como o sigilo, o sistema imunológico e o estigma entre outros aspectos, que levem as crianças a um entendimento claro de sua situação. A experiências das autoras junto a essa população tem demonstrado isso. Por esses e outros motivos como o medo da rejeição, a culpa e o preconceito, fazem com que os familiares escondam das crianças o verdadeiro motivo do tratamento.

Revelar a condição de saúde para alguém implica em ter coragem de se expor, de perceber como o outro irá receber e ainda interpretar tal informação. O medo do estigma da aids ainda é muito forte e inibe as pessoas a realizarem esta ação, principalmente por parte dos familiares. Com isso, também perdem a oportunidade de ter apoio, contribuindo para a exclusão e o preconceito(9).

Quanto aos exames de sangue, esse é citado na história na visita da personagem ao amigo no hospital. Questionadas sobre o procedimento, manifestaram assim suas percepções.

Eles fizeram exames de sangue na historinha? (P. G1)

Eles fizeram exames de sangue. Ele não chorou. (C2. G1)

O Pedro tirou [sangue]. (C3. G1)

Ele colocou uma coisa assim no braço pra tomar remédio e depois que ele saiu do hospital ele ficou bem melhor. Eu tive que fazer um exame de sangue pra saber se tava com uma bactéria. (C1. G1)

Tem que enfiar a agulha. O exame que tem que fazer sem chorar. Oh sora! Eu já tomei aqui [apontando pra o braço]. (C4. G3)

Eu não choro. (C3. G3)

Eu também não. (C5. G3)

É possível constatar que, existe uma manifestação de sentimentos pelas crianças quando expressam suas vivências por meio da discussão grupal, ou seja, a contação da história produziu momentos de expressão de sentimentos.

Sabe-se que as punções estão entre as situações mais estressantes para a criança, comuns em ambiente hospitalar e ambulatórios. Uma maneira muito peculiar para a minimização do estresse causado por procedimentos invasivos é a utilização do brincar para expressar sentimentos. Nesse caso a história assumiu esse papel e também, estimulou a participação no seu processo terapêutico(11).

Outro tema que emergiu ouvindo a história foi a amizade. Depois da família, as relações se estendem aos amigos. Uma amizade não tem idade para começar e na infância está muito ligada às brincadeiras. As falas a seguir demonstram isso.

[...] eles são muito amigos, eles são colegas de aula, eles vão pra aula juntos, eles moram um do lado do outro [...]. (P. G1)

Eles brincam junto também. E eles andam de bicicleta. (C1. G1)

Eu tenho um amigo. (C1. G1)

Eu tenho [amiga]. A T. Ela tem dez [anos]. (C4. G1)

Tenho, a A., a T. e a M. (C5. G1)

Elas me convidam pra brincar de panelinha. (C5. G1)

Da mesma forma que qualquer criança, as com HIV brincam com seus amigos, desenvolvem suas capacidades e habilidades, e merecem ter suas oportunidades de educação e convívio respeitadas e garantidas.

A hospitalização do personagem da história, o Pedro, foi outra situação que despertou curiosidade entre as crianças e acredita-se ser justamente a identificação com esta, que trouxe lembranças, pois é muito frequente na vida das crianças soropositivas, devido as doenças oportunistas. Pode-se identificar nas falas a relação das crianças com o hospital.

Tu já ficou no hospital internada? (P. G3)

Eu era aqui [nesse hospital]. (C5. G2)

Eu também foi aqui [idem]. (C2. G2)

Foi aqui C4? (C5. G2)

[Criança responde que sim com a cabeça].

Eu não gosto quando eu fico internado. (C2. G2)

Nem eu. (C4. G2)

Eu fiquei bastante [tempo]. (C1. G1)

Eu só não lembro quantos anos eu tinha. (C2. G1)

Quando eu fique [internado] eu tinha seis [anos]. (C5. G1)

Eu tinha 7. (C3. G1)

A hospitalização tem representações para a criança distintas daquelas em que está acostumada a viver. O ambiente é diferente do que está acostumada e também cercada de pessoas que não conhece e que precisam constantemente tocá-las, conversar, fazer procedimentos dolorosos, o que deixa a criança ansiosa e com medo em muitas situações(11).

Outra circunstância da história foi a expectativa de futuro. O capítulo foi pensado e escrito propositalmente para conhecer das crianças as suas perspectivas de sonhar, de cuidar-se, dos seus projetos de vida. Os personagens sonham com futuro pessoal e profissional. A identificação com os personagens está descrito a seguir.

E no futuro, o que tu queres ser? (P. G3)

Motorista de táxi [...]. Porque eu quero dirigir. (C3. G3)

Professora. (C4. G3)

Doutora. (C5. G3)

O Pedro quer ser Motorista [...]. Depois ele não quer mais ser [...]. Ele quer namorar. (C3. G3)

Ele quer ficar do lado da Júlia [Personagem da história]. (C5. G3)

Ele quer ficar com a Júlia [idem]. (C4. G3)

A perspectiva de futuro das crianças com aids é na atualidade diferente daquela do início da epidemia quando elas nasciam já condenadas à morte. Portanto, se faz necessário oportunizar espaços de discussão para esta geração, agora adolescente ou adulto jovem que vê o futuro com muitas possibilidades como qualquer outro cidadão(1).

Com relação à sexualidade, a abordagem da história versa sobre o namoro entre os personagens Pedro e Júlia, quando adolescentes. Esta situação despertou curiosidade e conversas entre as crianças.

Compreensão da história e do processo saúde-doença

Esta categoria analisa informações expressas pelas crianças brincando e ouvindo história sem julgamentos e também considerando novos conhecimentos provenientes da fala de seus colegas que contribuíram para suas reflexões. Pode-se inferir que compreenderam ou pelo menos iniciaram um processo real de compreensão do processo saúde doença.

Eu tomo [remédio] por causa do meu peito. (C2. G1)

Eu não sei! (C3. G1)

Eu tomo [remédio] pra eu fica bem e não ficar no hospital. (C1. G1)

Pro meu coração. (C3. G3)

Ao referirem que não sabem de sua doença real, justificando que é por causa do peito, do coração entre outras, mostram o quanto realmente desconhecem ou ainda que essas são as justificativas aceitas por elas e suas famílias, mesmo que de modos velados.

A revelação parcial, tanto da necessidade do tratamento quanto da doença em si, é caracterizada quando algumas questões relacionadas ao HIV são reveladas às crianças com objetivo da melhorar a adesão à medicação e criar relações de confiança. Além disso, na medida em que o nome da doença não tem significado para a criança, não existe a necessidade de revelar. Assim, paulatinamente vão-se revelando questões até chegar a etapa de contar que é HIV/Aids(12).

O conhecimento de fatores que envolvem a doença tem influência na autopercepção da criança ao conhecer o diagnóstico. Este fator pode ser positivo quando é construído a partir de instituições sérias como a escola e os serviços de saúde a fim de esclarecer questões e buscar um discurso menos preconceituoso(13).

Recontar uma história evocando lembranças é uma experiência partilhada que também produz reflexões. As crianças fazem isso buscando compreender a simultaneidade das situações e participações no mundo e a experiência rememorada varia de acordo com o envolvimento delas na experiência coletiva(14).

Ao compartilhar a experiência do uso dos antirretrovirais, elas reavivaram suas vivências em relação ao tratamento o qual é fundamental para a eficácia da terapêutica e a construção de materiais escritos em conjunto com o profissional pode ser uma boa estratégia para a adesão(15). Aqui se acrescenta que uma história contada também pode se constituir de um instrumento que, associado a outros materiais escritos ajude na adesão aos medicamentos, em se tratando de crianças. Essa, ao ouvir ou manipular e ler este objeto disponível pode utilizá-lo de diferentes maneiras, seja no serviço de saúde, seja no domicílio.

Quanto ao processo de revelação do diagnóstico ou mesmo da necessidade do tratamento medicamentoso, os objetos disponíveis, sejam de forma escrita, manipulada ou mesmo brincando, precisam contemplar a condição psíquica da criança no sentido de cuidado do familiar ou profissional, ao abordar questões que as protejam de uma situação de preconceito futuro.

Em relação ao segredo as falas foram as seguintes:

Segredo é quando alguém conta e não pode falar nada porque senão eles ficam chateados e não são mais amigos. (C2. G2)

E quando o Pedro e a Júlia chegaram na escola, tinha um monte de gente. O que eles fizeram? (P. G2)

E eles não falaram nada. Eles esperaram todo mundo sair, pro Pedro falar [...]. (C2. G2)

Não podia falar perto dos colegas dele. E nem perto dos guri da rua dele. Eu não falei pra ninguém. (C4. G3)

Agora todo mundo vai sair daqui guardando um segredo. (C5. G3)

Aprender a guardar segredo sobre sua condição é uma estratégia que poderá protegê-las. Nesse caso, estimular as crianças a guardar segredo sobre o tratamento é também cuidá-las, pois infelizmente a sociedade ainda age com preconceito com quem vive com HIV, e para as crianças, sentir o preconceito, pode ser ainda mais prejudicial que com os adultos devido a imaturidade cognitiva. Escolher a quem contar e o que contar é uma ação que precisa ser apreendida pelas crianças.

Construir uma estratégia junto com o profissional que assiste a criança é a melhor maneira de revelar o diagnóstico(13). Essa quando planejada com base na educação em saúde pode ser de grande valia não só ao indivíduo infectado, no caso, a criança, mas também a família, a qual é fundamental para o apoio psicológico(16).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A complexidade do HIV/aids na infância ainda se constitui de um grande desafio para os cuidadores e profissionais da saúde. Abordar essa temática com as crianças não pode ser reduzida a situações simples e fáceis, e ao mesmo tempo não pode ser difícil de entender.

Assim, construiu-se uma história com as informações sobre o processo saúde-doença relacionadas ao HIV para crianças. Vários ensaios foram criados, muitos descartados e recriados, numa dinâmica própria, buscando relacionar com o viver das crianças.

Portanto "A descoberta de Pedro e Júlia: conversando sobre saúde e doença" foi construída e contada neste estudo objetivando analisar como poderia contribuir para a compreensão do processo saúde-doença pela criança com aids.

Este trabalho mostrou que é possível conversar com a criança com HIV sobre sua situação, sem revelar o diagnóstico, sem mentir e ainda assim protegê-las, utilizando-se desta história como ferramenta.

Espera-se que os serviços de saúde possam utilizar este instrumento para a revelação do tratamento, do diagnóstico e servir como uma das ações de educação em saúde, visando reduzir o preconceito e discutir planos terapêuticos com as crianças e familiares.

Para a criança, os resultados deste recurso poderão trazer benefícios como: exercício de ações de educação em saúde, a compreensão do estado de saúde, a participação no processo terapêutico, a adesão ao tratamento, e o estímulo a convivência com outras crianças que se encontram em situação semelhante e com realidades muito próximas às suas. A história traz ainda uma contribuição direta para a prática da enfermagem junto à criança pois pode servir de uma intervenção educativa na promoção de cuidado.

Espera-se também que este trabalho possa subsidiar outras pesquisas, discussões em serviços de saúde e meios acadêmicos pois, diferente de muitos estudos nos quais os resultados são a partir de dados de adultos, neste, são as percepções das crianças sobre o processo saúde-doença relacionados ao HIV/aids que foram analisadas.

Recebido em: 04.06.2012

Aprovado em: 17.01.2013

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      04 Jun 2012
    • Aceito
      17 Jan 2013
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