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Concepções de profissionais da estratégia saúde da família sobre saúde mental

Conceptos de profesionales sobre la Estratégia de Salud de la Familia con relación a la salud mental

Resumos

A pesquisa objetivou analisar as concepções dos profissionais de uma equipe de Estratégia Saúde da Família (ESF) acerca do que entendem por saúde mental. Estudo descritivo-exploratório, com abordagem qualitativa, realizado com 16 profissionais de uma equipe de ESF do município de Guaiúba, CE. A coleta de dados ocorreu durante os meses de janeiro e fevereiro de 2011, por meio do grupo focal no qual os diálogos foram audiogravados e transcritos. Após, utilizou-se a análise de conteúdo, na qual emergiram as categorias: "Falando de saúde mental x Pensando em transtorno mental" e "Compreendendo a saúde mental de forma ampliada". Constatou-se que alguns profissionais revelam ter concepções restritas, centradas no transtorno mental, e outros entendem saúde mental de forma mais ampliada, reconhecendo a dinamicidade do processo saúde-doença mental, com a identificação de aspectos que influenciam na saúde mental das pessoas.

Saúde mental; Programa saúde da família; Assistência em saúde mental; Atenção primária à saúde


La investigación tuvo como objetivo analizar los conceptos de los profesionales de un equipo de Estrategia de Salud de la Familia (ESF) sobre lo que ellos entienden por salud mental. Se trató de un estudio de carácter descriptivo-investigador con abordaje cualitativo, realizado con 16 profesionales de un equipo de ESF de la ciudad de Guaiúba, estado de Ceará. La recolección de datos se llevó a cabo durante los meses de enero y febrero de 2011, por medio de grupo focal en el cual los diálogos fueron grabados y transcritos. Se utilizó el análisis de contenido del cual emergieron las categorías: "Hablando de salud mental versus Pensando en trastorno mental" y "Comprendiendo la salud mental de forma amplia". Se constató que algunos profesionales tienen conceptos restrictos, centrados en el trastorno mental, y otros entienden la salud mental de forma más amplia, reconociendo la dinámica del proceso salud- enfermedad mental.

Salud mental; Programa de salud familiar; Atención en salud mental; Atención primaria de salud


The aim of this study was to analyze what professionals from a team within the Family Health Strategy (FHS) understand mental health to be. This descriptive and exploratory study with a qualitative approach was conducted with 16 professionals from a FHS team in the city of Guaiúba, CE, Brazil. Data were collected during January and February 2011 through focal groups in which the dialogues were recorded and later transcribed for analysis. The following categories emerged from content analysis: "Talking about mental health vs. Thinking about mental disorder" and "Understanding mental health more broadly". Some professionals revealed restricted, mental disorder-centered conceptions, while others understood mental health more broadly, recognizing the dynamics of the health-disease continuum and identifying aspects that influence one's mental health.

Mental health; Family health program; Mental health assistance; Primary health care


ARTIGO ORIGINAL

Concepções de profissionais da estratégia saúde da família sobre saúde mental

Conceptos de profesionales sobre la Estratégia de Salud de la Familia con relación a la salud mental

Tatiana Maria Coelho VelosoI; Maria Conceição Bernardo de Mello e SouzaII

IEnfermeira. Mestre em Ciências pelo Programa de Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil

IIEnfermeira. Professora Livre- docente do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência Dirección del autor / Author's address Endereço do autor / Tatiana Maria Coelho Veloso Rua Rui Barbosa, 519, ap. 11, Centro 14015-120, Ribeirão Preto, SP E-mail: tatimcveloso@yahoo.com.br

RESUMO

A pesquisa objetivou analisar as concepções dos profissionais de uma equipe de Estratégia Saúde da Família (ESF) acerca do que entendem por saúde mental. Estudo descritivo-exploratório, com abordagem qualitativa, realizado com 16 profissionais de uma equipe de ESF do município de Guaiúba, CE. A coleta de dados ocorreu durante os meses de janeiro e fevereiro de 2011, por meio do grupo focal no qual os diálogos foram audiogravados e transcritos. Após, utilizou-se a análise de conteúdo, na qual emergiram as categorias: "Falando de saúde mental x Pensando em transtorno mental" e "Compreendendo a saúde mental de forma ampliada". Constatou-se que alguns profissionais revelam ter concepções restritas, centradas no transtorno mental, e outros entendem saúde mental de forma mais ampliada, reconhecendo a dinamicidade do processo saúde-doença mental, com a identificação de aspectos que influenciam na saúde mental das pessoas.

Descritores: Saúde mental. Programa saúde da família. Assistência em saúde mental. Atenção primária à saúde.

RESUMEN

La investigación tuvo como objetivo analizar los conceptos de los profesionales de un equipo de Estrategia de Salud de la Familia (ESF) sobre lo que ellos entienden por salud mental. Se trató de un estudio de carácter descriptivo-investigador con abordaje cualitativo, realizado con 16 profesionales de un equipo de ESF de la ciudad de Guaiúba, estado de Ceará. La recolección de datos se llevó a cabo durante los meses de enero y febrero de 2011, por medio de grupo focal en el cual los diálogos fueron grabados y transcritos. Se utilizó el análisis de contenido del cual emergieron las categorías: "Hablando de salud mental versus Pensando en trastorno mental" y "Comprendiendo la salud mental de forma amplia". Se constató que algunos profesionales tienen conceptos restrictos, centrados en el trastorno mental, y otros entienden la salud mental de forma más amplia, reconociendo la dinámica del proceso salud- enfermedad mental.

Descriptores: Salud mental. Programa de salud familiar. Atención en salud mental. Atención primaria de salud.

INTRODUÇÃO

Transcorridos 20 anos do processo de implantação e implementação do SUS, o Ministério da Saúde (MS), em 2006, estabeleceu como eixo estruturante do sistema de saúde, a Atenção Básica em Saúde. Para sua operacionalização, define a Estratégia Saúde da Família (ESF) como desenho organizacional prioritário para o fortalecimento da Atenção, a fim de contribuir na viabilização e concretização dos princípios do SUS(1).

A ESF atua em um território geograficamente definido, com uma equipe multiprofissional, realizando ações de promoção da saúde e prevenção de doenças, e tem se tornado a estratégia prioritária na consolidação da assistência básica brasileira. Isto tem acontecido concomitantemente com o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira, a qual busca transformações qualitativas no modelo de saúde e especificamente, na assistência à saúde mental(2).

Esta reforma tem se constituído num movimento histórico e revolucionário, quebrando paradigmas da assistência psiquiátrica, com o deslocamento da intervenção centrada nos hospitais psiquiátricos, para a comunidade, bem como o centro de interesse somente da doença, para a pessoa. Com o intuito de alcançar este objetivo, novos espaços são propostos para assistência em saúde mental: os centros de atenção psicossociais (CAPS), as residências terapêuticas (RT), os hospitais dias (HD) e a atenção básica(2-3).

Quanto à atenção básica, acredita-se que a vinculação com a saúde mental precisa acontecer o mais precocemente possível, pois são as equipes de saúde da família que conhecem a realidade local e constituem a porta de entrada para o sistema de saúde. Sendo assim, espera-se a resolutividade de um grande número de problemas, em saúde mental ou em outras áreas. Além disso, por sua proximidade com famílias e comunidades podem realizar ações de promoção à saúde mental e ser um recurso para a ressocialização dos portadores de transtornos mentais(3).

As ações de saúde mental na atenção básica, conforme sugere o Ministério da Saúde (MS), por meio da Política Nacional de Saúde Mental (PNSM), devem transcender o modelo tradicional, medicalizante e investir em promoção da saúde, considerando a singularidade das pessoas, seu protagonismo, rompendo com o estigma da doença.

No entanto, alguns estudos revelam que as concepções dos profissionais que atuam na atenção básica referentes à saúde mental, ainda estão relacionadas a estereótipos acerca do comportamento considerado normal, misticismos e presença de sensações como medo e despreparo(4-5). Mas há também equipes que compreendem saúde mental a partir de uma perspectiva ampliada, e buscam incorporar em suas práticas a subjetividade e singularidade demandada pelos usuários no território(6).

Neste sentido, constitui-se como questão de pesquisa: o que pensam os profissionais de uma equipe de ESF acerca de saúde mental? Pois as práticas em saúde, e no caso específico, as de saúde mental, desenvolvidas nos serviços, de forma consciente ou não, estão relacionadas a um conjunto de concepções que a embasam. Desta forma, compreender como os profissionais de saúde entendem o que seja saúde mental poderá apontar caminhos necessários para uma efetiva mudança do paradigma psiquiátrico, a fim de superar o modelo asilar.

Assim, o objetivo deste estudo foi analisar as concepções dos profissionais de uma equipe de ESF acerca do que entendem por saúde mental.

METODOLOGIA

Trata-se de estudo com abordagem qualitativa, na qual se buscou gerar dados que permitissem uma compreensão da complexidade da realidade estudada. A pesquisa é do tipo descritiva-exploratória, pois teve o intuito de conhecer características de determinados grupos além de desenvolver e esclarecer conceitos e ideias, para proporcionar maior familiaridade com o problema, a fim de aprofundar em pesquisas posteriores(7).

Os dados analisados neste artigo constituem parte de uma dissertação, denominada "Ações de saúde mental desenvolvidas no cotidiano de uma equipe de Estratégia Saúde da Família: possibilidades e limites"(8).

A pesquisa foi realizada em uma unidade básica de saúde da família do município de Guaiúba-CE, região metropolitana de Fortaleza (CE). A escolha deu-se por sorteio dentre as oito equipes de ESF implantadas no município. O critério de inclusão dos sujeitos foi ser membro da equipe de ESF sorteada e o critério de exclusão foi estar de férias ou qualquer outro tipo de afastamento durante o período de realização da coleta de dados da pesquisa.

Assim, participaram 16 profissionais, um médico, uma enfermeira, uma dentista, duas auxiliares de enfermagem, uma auxiliar de saúde bucal, seis agentes comunitários de saúde, dois profissionais da recepção, uma pessoa que dispensa as medicações e uma pessoa que é responsável pelos serviços gerais. Eles foram, para fins deste estudo, identificados por nomes fictícios.

A coleta de dados ocorreu durante os meses de janeiro e fevereiro de 2011, por meio de quatro grupos focais em que a pesquisadora assumiu o papel de moderadora, e outra pessoa com experiência em pesquisa, o papel de observadora e operadora de áudio. O local dos encontros foi a própria Unidade Básica de Saúde da Família, na sala de consultas de enfermagem, por ser ampla, climatizada e permitir a privacidade aos sujeitos.

Durante os grupos, os diálogos foram áudio gravados, utilizando um gravador digital profissional portátil. Após isto, foram transcritos e interpretados a partir da análise de conteúdo(9), que se dá mediante três etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados obtidos/interpretação. Na primeira etapa, o pesquisador se aproxima e se apropria do material de campo. Na segunda, busca-se classificar o material para que se atinja o núcleo de compreensão do texto. Por fim, escolhe as categorias responsáveis pela especificação dos temas e são propostas inferências, relacionando-as com o quadro teórico pertinente.

A investigação respeitou os princípios bioéticos postulados na Resolução 196/96(10) do Conselho Nacional de Saúde, tendo sido o Protocolo do Projeto de Pesquisa aprovado pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, sob o Nº 1221/2010.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Da análise dos dados, emergiram 2 categorias "Falando de saúde mental x Pensando em transtorno mental" e "Compreendendo a saúde mental de forma ampliada".

"Falando de saúde mental x Pensando em transtorno mental"

Dentre as concepções reveladas pelos profissionais durante os grupos focais, estava a de vinculação da saúde mental a um comportamento ou ação de uma pessoa dentro da normalidade, como pode ser observada nos depoimentos a seguir:

A saúde mental é todo o psicológico de uma pessoa, se ela realmente age dentro das maneiras corretas [...], se funciona normal, se tem algum distúrbio (Lídia).

[...] é um equilíbrio entre o pensar e o agir, uma coerência no comportamento [...] (Rebeca).

Pode-se perceber que fora do padrão "esperado" de normalidade, há um campo inexplorado, genericamente denominado de doença, transtorno ou distúrbio. O que é considerado normal dentro do comportamento humano irá variar conforme a sociedade a qual se estuda ou vive e o tempo histórico de que se trata. No dia-a-dia, um fato ser socialmente aceito, o caracteriza como um comportamento normal(11).

O normal e o patológico são categorias normativas, que propõem ou impõem regras às pessoas. Determinadas áreas do conhecimento estabelecem padrões de comportamento ou funcionamento que determinam o padrão de um organismo sadio. A partir de médias estatísticas do que se deve esperar como funcionamento e expressão da maioria e a partir da cultura, os critérios de avaliação são construídos. Mas a verdade é que os conceitos de normal e patológico são extremamente relativos em virtude de suas definições serem inerentes a um contexto histórico-cultural(12).

Em consequência a essa idéia de normal ou patológico, há uma concepção de saúde e doença como situações opostas, ou se tem um ou outro, no caso, saúde mental como ausência de doença, em que o estado individual de saúde exclui a ocorrência de doença.

A visão da saúde como ausência de doença é muito difundida no senso comum. Considerando ao longo da história os esforços direcionados para a explicação da doença, o conceito de saúde foi negligenciado, ou colocado em segundo plano, sendo entendida como a "não-doença". Para a maior parte da população, frente à hegemonia do modelo biomédico, saúde é não estar doente. No entanto, há que se perceber que se trata de uma definição restrita, pois nem sempre a ausência de sintomas indica condição saudável, além do fato da existência de pessoas com doenças crônicas que se sentem com saúde(13).

Muito próxima dessa concepção, tem-se a de saúde mental como tratamento da doença. Pode-se imaginar que nessa forma de entender, saúde mental é uma meta a ser alcançada mediante intervenção terapêutica e pode-se supor que só aqueles que apresentam alguma doença precisariam de intervenção no campo da saúde mental.

[...] eu acho que é o acompanhamento e tratamento da mente do ser humano (Sara).

[...] só tem acompanhamento mental, as pessoas que têm problemas mentais. Uma pessoa normal, como vai ter um acompanhamento desse tipo? (Lídia).

Tal visão também é restrita, apesar de muito comum nos serviços de saúde, pois reduz as intervenções em saúde mental como estritamentesendo uma assistência ao paciente com transtorno mental. Porém, o paradigma atual em saúde aponta a necessidade de ampliar o olhar sobre o objeto de trabalho dos profissionais, sendo consideradas as ações de promoção da saúde essenciais para concretizar as propostas da ESF, frente o seu papel de reforma do modelo assistencial hegemônico.

O conceito de promoção à saúde deveria ser entendido como um eixo, em que, a partir dele, vários aspectos poderiam ser articulados. Assim, ações sobre fatores inespecíficos poderiam melhorar as condições de vida da população, com um impacto favorável sobre diversas formas de adoecimento, inclusive o mental(14).

O termo saúde mental também foi utilizado para denominar, genericamente, o grupo de pessoas que necessita ou faz tratamento em virtude de algum transtorno mental, conhecido popularmente como o "grupo da saúde mental". Apesar do termo utilizar a palavra "saúde", é perceptível que, na verdade, há uma referência àquele grupo de pessoas com transtorno mental.

Eu acho que são todos tratados como saúde mental [...]. Acho que não pode mais ser tratado como doença [...]. Eu vi isso em algum canto [...], não pode mais ser tratado como doido e sim como saúde mental (Sara).

Esse depoimento evidencia como, para alguns profissionais, as questões da Reforma Psiquiátrica apresentam-se confusas, até mesmo distorcidas, ocorrendo no erro de representar apenas uma troca de termos, "transposições mecânicas que não vão além da repetição da mesma essência do modo asilar, ainda que em novas fisionomias", sem entender de forma ampla os preceitos nos quais a Reforma está embasada(15).

Em sua dimensão epistemológica, a Reforma Psiquiátrica caracteriza-se por um conjunto de questões que implicam a desconstrução de conceitos essenciais da psiquiatria, como saúde e doença mental, terapêutica, normalidade, dentre outros, não apenas negando, mas produzindo novos conceitos rumo a um novo marco teórico. Não se trata de um novo olhar, mas de uma ruptura epistemológica a partir de uma atenção em outro foco, instigando a produção de conhecimento sobre as relações possíveis de serem feitas mediante linhas que dialogam e articulam diferentes disciplinas(16).

Houve também quem considerasse saúde mental como a forma com que se cuida das pessoas com transtornos mentais, como pode ser visto a seguir:

[...] é o cuidar da pessoa, [...] se a pessoa é doente mental e é tratada como mental, como louco, ele nunca vai mudar [...]. Mas trata o mental com carinho, com atenção, conversando [...] têm uns [...], que só atenção resolve [...]. A saúde mental para mim é o tratamento que a gente, pessoas normais, tem com o paciente (Maria).

Esta forma de compreender saúde mental traz em si aspectos de um cuidado humanizado, caracterizado por atitudes como carinho, atenção, conversa, apontando para uma preocupação e envolvimento além dos aspectos biológicos.

A importância do cuidar nas práticas em saúde é fundamentalmente o desenvolvimento de atitudes e espaços de genuíno encontro, em que se permite uma permeabilidade do técnico ao não técnico, buscando uma maior autenticidade. Nesse sentido, a dimensão dialógica no encontro entre usuários e profissionais, a partir de uma abertura para ouvir o outro, rompendo o monólogo técnico-científico, é a mais básica condição de ações de saúde na direção do cuidar(17).

Pode-se supor que uma relação construída a partir dessa perspectiva, por favorecer segurança e bem-estar, interfere positivamente na saúde mental da pessoa cuidada. No entanto, a fala apresenta uma contradição, pois, sob a ótica do cuidado, a relação entre profissional e usuário poderia ser mais horizontal, não havendo essa diferença demarcadora de relações de poder desiguais, entre "nós", os que sabem, no caso, os "normais" e "eles", os que ouvem, os "anormais".

"Compreendendo a saúde mental de forma ampliada"

Nesta categoria,a concepção revelada é de uma compreensão ampliada de saúde mental, com o reconhecimento de aspectos que influenciam na saúde mental das pessoas.

Algumas pessoas do grupo apontaram para um entendimento de saúde mental como algo mais que ausência de doenças. A saúde e a doença são entendidas como estados dinâmicos, que caracterizam o processo natural da vida, em decorrência de momentos específicos que são mais geradores de saúde ou desencadeadores de quadro de sofrimento psíquico com ou sem transtorno, como se pode observar, a seguir:

[...] saúde da mente, que pode estar saudável, ou pode adoecer. Depende da ocasião, do momento [...] (Ana).

Desta forma, o grupo passou a pensar o termo saúde mental muito mais relacionado com as experiências pessoais de vida. Reconheceram que saúde e doença não são tão estanques, excludentes, e que podem coexistir, manifestando-se no dia-a-dia na forma de comportamentos que ora se aproximam ora se distanciam do que eles compreendem ser sua pessoa.

Os participantes mencionaram a relação direta entre a saúde mental e a saúde física:

[...] às vezes, o desequilíbrio emocional é tão grande, que reflete na sua parte orgânica. É preciso que haja um equilíbrio... Com tratamento dos dois lados, uma coisa concomitante, porque a gente não pode viver uma pessoa separadamente, corpo de um lado e espírito ou mente do outro [...]. Se você não trata essa questão, invariavelmente ela vai refletir no seu orgânico (Rebeca).

Nessa perspectiva, a diminuição da saúde mental reflete-se no corpo, ocasionando doenças físicas de cunho psicológico, sendo denominadas de doenças psicossomáticas ou somatização, caracterizadas pela presença de vários sintomas sem explicação médica, associadas, com freqüência a um sofrimento psíquico e muito comum nos serviços de atenção básica à saúde(18).

Tal idéia traz em si uma concepção não fragmentada do ser humano. Mas até que ponto essa concepção influencia no tipo de cuidado que é ofertado na unidade de saúde? A atenção para além do corpo físico tem sido preocupação dos serviços?

Para além destas reflexões, a discussão no grupo passou a ser o reconhecimento de fatores que influenciavam a saúde mental deles mesmos ou das pessoas próximas. Assim, apontaram como favorecedores de saúde mental: a vivência de uma religião, mediante a oração ou o apoio de religiosos, o apoio de familiares e amigos na disposição para escutar, o fato de estar em uma situação economicamente mais favorável.

Como também foi visto em outro estudo, os participantes entenderam que fatores não específicos do setor saúde contribuem diretamente para uma melhor saúde mental, como o apoio de familiares e amigos e práticas religiosas(11).

Entende-se que saúde mental é consequência de múltiplas e complexas interações de aspectos biológicos, psicológicos e sociais, e, dentre os determinantes sociais da saúde mental, estão fatores como condições laborais, educação, pobreza, habitação, urbanização, precocidade em vivências estressantes(19).

A partir disso, pôde-se inferir que o grupo, mesmo sem ter "consciência" discutiu outro modelo de entender o processo saúde-doença, o de determinação social. Nele, várias dimensões da vida envolvidas nesse processo, como os aspectos históricos, econômicos, sociais, culturais, biológicos, ambientais e psicológicos são articulados e denominados de Determinantes Sociais da Saúde (DSS). Nesse modelo, as condições de vida e trabalho das pessoas e dos grupos populacionais estão diretamente relacionados com as suas situações de saúde(20).

Apesar de o grupo investigado demonstrar uma superação da concepção estritamente biologicista, não foi muito discutida a dimensão coletiva envolvida no processo saúde-doença, como o papel da estrutura social e a responsabilidade do Estado interferindo nesse processo.

Nessa forma de compreender, a noção de "causa" da doença é substituída pela de "determinantes e condicionantes", buscando uma explicação mais abrangente, integrando as varias dimensões da vida de forma sistêmica. Esse conhecimento deverá repercutir em intervenções, desde políticas de saúde às práticas de saúde em serviços que estejam empenhados em promover estilos de vida saudáveis, com a redução de fatores de risco para o sofrimento psíquico(19). Para tanto, faz-se necessário uma revisão acerca do objeto, dos sujeitos, dos meios de trabalho e formas de organização dessa prática, olhando não apenas para a doença(20).

Refletindo acerca de suas práticas cotidianas, uma discussão envolveu o grupo e questionaram a si mesmos a importância que tem se dado a determinadas opções terapêuticas, como o extremo valor da medicação em detrimento de outros aspectos que os participantes julgavam importantes ao se realizar a assistência em saúde mental.

O ambiente familiar e suas relações foi apontado como fator de adoecimento psíquico. No entanto, nos serviços de ESF, que se propõem a ter o cuidado com foco na família, qual tem sido o olhar dos profissionais de saúde para essa questão? Como a família é integrada ao cuidado? Que tipo de demanda a família apresenta? Estariam sobrecarregados, desorientados, culpabilizados ou esquecidos?

É de grande importância essa discussão por se tratar de uma equipe que trabalha diretamente com famílias, mas também por entender que romper com o modo asilar, proposto pela Reforma Psiquiátrica, implica instaurar o modo psicossocial, que dentre outros aspectos, compreende a família de forma diferenciada.

No modo asilar, a ênfase está no indivíduo, visto como doente, tanto em relação à família como ao seu contexto social mais amplo e, por isso, a intervenção será centrada nele. Ele é entendido como o centro do problema e a família só se aproximará do cuidado com uma função pedagógica e assistencial(15).

No modo psicossocial, considera-se que o indivíduo não é o único que merece atenção, sendo relevante a inclusão da família, e eventualmente, a inclusão de um grupo mais ampliado, em virtude da ênfase que se dá ao indivíduo em seu grupo familiar e social, compreendendo-os como agentes de mudança. A razão disso está em entender que o transtorno mental não é um fenômeno individual, mas social e como tal deverá ser pensado. Assim, as formas de participação da família superam as posturas assistencial e orientadora, características do modo asilar(15).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através dos depoimentos nesta pesquisa, constatou-se que alguns profissionais da ESF conceberam saúde mental a partir de uma perspectiva restrita, centrada no transtorno mental, e outros apresentaram uma compreensão mais ampliada, entendendo a dinamicidade do processo saúde-doença mental e identificando a influência de vários fatores, que muitas vezes, transcendem o setor saúde.

Faz-se necessário que este conceito ampliado de saúde mental tome proporções concretas, mediante inserção de formas de identificação dos principais determinantes sociais relacionados a um maior sofrimento psíquico e, a partir daí, as equipes de ESF planejem atividades para promoção de saúde mental.

Acredita-se ser de suma importância o desenvolvimento de projetos que estimulem as equipes a se articularem para oferecer atividades integradas às opções de lazer, esporte e cultura que os municípios já dispõem. Além disso, pensar ações que possam fortalecer o vínculo familiar, integrando a família ao cuidado, sendo esta uma das formas importantes de superação do modelo asilar.

Recebido em: 05.04.2012

Aprovado em: 04.02.2013

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      05 Abr 2012
    • Aceito
      04 Fev 2013
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