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Internação por ordem judicial: dilemas éticos vivenciados por enfermeiros

Internación por orden judicial: dilemas éticos vividos por enfermeros

Resumos

Pesquisa qualitativa, cujo objetivo foi descrever as situações vivenciadas e os dilemas éticos dos enfermeiros no percurso de encaminhamento e recebimento, por ordem judicial, de pacientes com indicação de internação em Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Foi efetivada entrevista parcialmente estruturada com 10 enfermeiros, que atuam em UTI e 10 que atuam em emergência de hospitais públicos e privados da região metropolitana de Porto Alegre, Brasil. Os dados foram submetidos à análise temática. Os resultados indicam que os enfermeiros vivenciam dilemas éticos consequentes aos problemas de superlotação das UTI e das emergências, da precária tecnologia especializada, da orientação quanto ao benefício concedido pela lei. Concluiu-se que é fundamental a participação dos enfermeiros em debates que possibilitem mapear as diferentes instâncias que têm promovido esta situação, muitas vezes caótica.

Enfermagem; Assistência à saúde; Ética; Unidades de terapia intensiva; Hospitalização


Investigación cualitativa cuyo objetivo fue describir las situaciones vividas y los dilemas éticos de los enfermeros en el transcurso del envío y recibimiento por orden judicial de pacientes con indicación de internamiento en la Unidad de Cuidados Intensivos (UCI). Se realizó una entrevista parcialmente estructurada con 10 enfermeros que actuaban en la UCI y 10 que actuaban en Emergencias de hospitales públicos y privados de la región metropolitana de Porto Alegre, Brasil. Los datos fueron analizados según el Análisis Temático. Los resultados indican que los enfermeros experimentan dilemas éticos consiguientes problemas de hacinamiento en emergencia y UCI, especialista en tecnología pobre, la orientación en cuanto a los beneficios establecidos por la ley. Se concluye que es fundamental la participación de los enfermeros en debates que posibiliten mapear las diferentes instancias que han promovido esta situación muchas veces caótica.

Enfermería; Prestación de atención de salud; Ética; Unidades de cuidados intensivos; Hospitalización


A qualitative study aimed at describing the situations experienced and the ethical dilemmas of nurses in the process of referring and receiving hospitalized patients by court order who require admission to the Intensive Care Unit (ICU). A partially structured interview was conducted with 10 nurses who worked in the ICU and 10 who worked in the Emergency Room (ER) in public and private hospitals in the metropolitan area of Porto Alegre, Brazil. The data was analyzed following the Semantic Analysis. The results indicated that nurses experienced ethical dilemmas associated with problems of overcrowding in emergency rooms and ICUs, poor specialized technology and orientation as to the benefits provided by law. We concluded that it is essential for nurses to participate in discussions that allow the planning of the different instances that have been promoting this often chaotic situation.

Nursing; Delivery health care; Ethics; Intensive care units; Hospitalization


ARTIGO ORIGINAL

Internação por ordem judicial: dilemas éticos vivenciados por enfermeiros

Internación por orden judicial: dilemas éticos vividos por enfermeros

Mara Ambrosina de Oliveira VargasI; Flávia Regina Souza RamosII; Dulcinéia Ghizoni SchneiderIII; Nadir SchneiderIV; Alessandra Ceci dos SantosV; Sandra Maria Cezar LealVI

IEnfermeira, Doutora em Filosofia em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora do Departamento e Programa de Pós-graduação em Enfermagem (UFSC). Pesquisadora e Vice líder do Grupo de Pesquisa PRÁXIS/UFSC – trabalho, cidadania, saúde e Enfermagem. Florianópolis, SC, Brasil

IIEnfermeira, Doutora em Filosofia em Enfermagem (UFSC). Professora do Departamento e Programa de Pós-graduação em Enfermagem (UFSC). Pesquisadora (CNPq) e Líder do Grupo de Pesquisa PRÁXIS/UFSC. Florianópolis, SC, Brasil

IIIEnfermeira, Doutora em Filosofia em Enfermagem (UFSC). Professora da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Membro do Grupo de Pesquisa PRÁXIS/UFSC. Diretora do Centro de Estudos e Pesquisas da ABEn- Seção SC. Florianópolis, SC, Brasil

IVEnfermeira, Especialista em Enfermagem em Terapia Intensiva pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Atua na UTI Hospital Regina/Novo Hamburgo e na Emergência do Hospital Municipal de Novo Hamburgo. Novo Hamburgo, RS, Brasil

VEnfermeira, Especialista em Enfermagem em Terapia Intensiva pela UNISINOS. Atua na UTI Hospital Regina/Novo Hamburgo. Novo Hamburgo, RS, Brasil.

VIDoutora em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Docente da UNISINOS. Membro do Grupo de Estudo em Saúde Coletiva (GESC)/UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil

Endereço para correspondência Endereço do autor / Dirección del autor / Author's address Mara Ambrosina de Oliveira Vargas Departamento de Enfermagem Centro Ciências da Saúde – UFSC Campus Universitário, s/n, Trindade 88040-970, Florianópolis, SC E-mail: mara@ccs.ufsc.br

RESUMO

Pesquisa qualitativa, cujo objetivo foi descrever as situações vivenciadas e os dilemas éticos dos enfermeiros no percurso de encaminhamento e recebimento, por ordem judicial, de pacientes com indicação de internação em Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Foi efetivada entrevista parcialmente estruturada com 10 enfermeiros, que atuam em UTI e 10 que atuam em emergência de hospitais públicos e privados da região metropolitana de Porto Alegre, Brasil. Os dados foram submetidos à análise temática. Os resultados indicam que os enfermeiros vivenciam dilemas éticos consequentes aos problemas de superlotação das UTI e das emergências, da precária tecnologia especializada, da orientação quanto ao benefício concedido pela lei. Concluiu-se que é fundamental a participação dos enfermeiros em debates que possibilitem mapear as diferentes instâncias que têm promovido esta situação, muitas vezes caótica.

Descritores: Enfermagem. Assistência à saúde. Ética. Unidades de terapia intensiva. Hospitalização.

RESUMEN

Investigación cualitativa cuyo objetivo fue describir las situaciones vividas y los dilemas éticos de los enfermeros en el transcurso del envío y recibimiento por orden judicial de pacientes con indicación de internamiento en la Unidad de Cuidados Intensivos (UCI). Se realizó una entrevista parcialmente estructurada con 10 enfermeros que actuaban en la UCI y 10 que actuaban en Emergencias de hospitales públicos y privados de la región metropolitana de Porto Alegre, Brasil. Los datos fueron analizados según el Análisis Temático. Los resultados indican que los enfermeros experimentan dilemas éticos consiguientes problemas de hacinamiento en emergencia y UCI, especialista en tecnología pobre, la orientación en cuanto a los beneficios establecidos por la ley. Se concluye que es fundamental la participación de los enfermeros en debates que posibiliten mapear las diferentes instancias que han promovido esta situación muchas veces caótica.

Descriptores: Enfermería. Prestación de atención de salud. Ética. Unidades de cuidados intensivos. Hospitalización.

INTRODUÇÃO

A Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é uma unidade especializada no atendimento de pacientes graves ou potencialmente graves, que conta com uma assistência médica e de enfermagem contínua e especializada e dispõe de equipamentos diferenciados para tal atendimento(1).

O censo realizado pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), em 2009, referenda recomendações do Minstério da Saúde, ao indicar a necessidade de 4 a 10% de leitos de UTI do total de leitos hospitalares (o que corresponde a 1-3 leitos de UTI para cada 10 mil habitantes). O Brasil conta com 25.367 leitos de UTI distribuídos em 2.342 UTI, em 403 municípios, mas esta distribuição é desigual. O resultado é um insuficiente índice de cobertura de leitos versus população em 51,9% das unidades federativas (menos de 1 leito de UTI para cada 10 mil habitantes). No Rio Grande do Sul conta-se com 1,7 leitos para cada 10 mil habitantes, mas 39,5% das UTI encontram-se em instituição privada, 33,5% em hospitais filantrópicos e 25,2% pertencem a hospitais públicos(2).

Os profissionais da saúde constatam em seu cotidiano que a demanda por leitos de UTI é muito maior que a oferta, o que torna o atendimento aos pacientes graves cada vez mais distante do cuidado humanizado e de excelência. Humanizar, neste caso, é tornar efetiva a assistência ao indivíduo criticamente doente, seguindo a premissa de que todo paciente tem direito a um atendimento qualificado, à dignidade pessoal e à informação clara(1).

A inviabilidade crescente de disponibilizar tecnologia à serviço da vida e da saúde dos usuários do sistema público de saúde é uma importante forma de desumanização(1). A consolidação dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) é processual e contínua e um grande desafio se refere a concretização dos princípios éticos interligados aos seus princípios operacionais(3).

Os artigos 196 e 197 da Constituição Federal de 1988 referem que a saúde e a sua recuperação está assegurada igualitariamente a todos os cidadãos, o que deve ser garantida pelo Estado e União por meio do SUS(4). Portanto, nos casos de indisponibilidade de vaga hospitalar no serviço público é responsabilidade do gestor providenciar leito do SUS em serviço privado, garantindo assim o direito à recuperação da saúde dos cidadãos. Para tal foram criadas as políticas e estratégias que abrangem tanto a questão da Regulação de Leitos do Estado, como da Vaga Zero e da Internação por Ordem Judicial, com o propósito de diminuir e auxiliar no processo de procura por vagas(5).

As internações por decisões judiciais ocorrem quando o município ou o Estado não possui condições ou meios de garantir uma assistência adequada ao paciente grave ou gravíssimo, em situações de urgência/emergência que representam risco à vida deste indivíduo. Nesta circunstância, ciente da gravidade do seu familiar e da necessidade de um leito em outro centro, a família recorre ao Ministério Público ou ao seu advogado para proceder ou deferir uma liminar. Esta é uma ação contra o município e o Estado encaminhada à Central de Leitos do Estado, buscando um leito de UTI(6).

A reivindicação da sociedade e dos profissionais da saúde por mais leitos em UTI nos estabelecimentos de saúde não é um fato recente e também atinge os profissionais da saúde. A gravidade dos pacientes que aguardam um leito na UTI exige dos profissionais a tomada decisões rápidas e precisas, para evitar sequelas e aumentar a sobrevida dos mesmos, além de suscitar constantes dilemas éticos.

Os dilemas éticos ocorrem quando existem diferentes percepções sobre uma mesma situação, que colocam o indivíduo entre duas proposições opostas. Normalmente nestas situações há valores morais em conflito e a decisão por uma opção torna inválida a outra(7).

Reconhecer as situações dilemáticas é um passo importante na construção de sujeitos éticos, pois muitas vezes não são percebidos os problemas, os conflitos, as dúvidas. Na verdade, deixa-se de enxergar e, frequentemente, fica-se indiferente aos problemas vivenciados no cotidiano(8).

No entanto, a ação do enfermeiro na prática profissional deve ser embasada na reflexão ética, já que o agir ético contempla conhecimentos práticos, técnicos, teóricos. Logo, o trabalho em UTI, além de habilidades e competências de ordem técnico-científica, se configura também pela exigência de habilidades e competências emocionais, relacionais, éticas e políticas(1). Nesta perspectiva, considera-se que a relevância deste estudo centra-se na possibilidade de visibilizar a internação por ordem judicial como uma das instâncias que demandam do enfermeiro posições éticas frentes a conflitos e problemáticas complexas. O objetivo do estudo foi descrever as situações vivenciadas e os dilemas éticos dos enfermeiros no percurso de encaminhamento e recebimento, por ordem judicial, de pacientes com indicação de internação em UTI.

MÉTODO

Estudo de natureza qualitativa, exploratória e descritiva, oriundo de uma monografia(9) realizada para obtenção de título Especialista em Enfermagem em Terapia Intensiva. Participaram desta pesquisa 10 enfermeiros que atuam em UTI e 10 que atuam em emergência de instituições privadas e públicas da região metropolitana de Porto Alegre, nos turnos manhã, tarde e noite. Os 10 enfermeiros que atuam em emergência são os que vivenciam a situação de encaminhamento de pacientes e os 10 enfermeiros que atuam em UTI vivenciam a situação de recebimento de pacientes com internação por ordem judicial em suas instituições. A amostragem foi estabelecida pela estratégia de rede, permitindo aos informantes que indicassem outros participantes para o estudo, desde que não ultrapassasse o quantitativo de dois informantes locados na mesma instituição de saúde.

Os dados foram coletados por meio de uma entrevista parcialmente estruturada, entre os meses de setembro a outubro de 2010. As entrevistas foram realizadas em local previamente determinado pelos informantes do estudo e gravadas (áudio). As pesquisadoras contataram por telefone, e-mail ou pessoalmente os profissionais enfermeiros, que manifestaram interesse no assunto. O Projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, sob protocolo nº 10/090. Aos informantes do estudo foi solicitada assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e garantido o caráter confidencial e sigiloso das informações. As falas são identificadas através da letra E seguida por um número de 1 a 20. A análise das informações segue o modelo de Análise Temática.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Os resultados das entrevistas possibilitaram a análise dos temas "Dilemas éticos diante do encaminhamento de paciente para UTI por ordem judicial" e "Dilemas éticos dos enfermeiros que vivenciam a internação por ordem judicial".

Dilemas éticos diante do encaminhamento de paciente para UTI por ordem judicial

Atualmente, a ética vem sendo uma preocupação cada vez mais constante na sociedade, principalmente na área da saúde, onde as modificações em relação às formas de intervenção e cuidados ocorre de maneira rápida e significativa. Por este motivo é que a enfermagem busca qualificar suas idéias e questionamentos em relação a própria prática e aos consequentes dilemas éticos vivenciados no seu cotidiano. Estes profissionais necessitam empregar esforços coletivos na busca de soluções para um melhor atendimento ao paciente, também porque são eles que permanecem por longos períodos ao lado dos pacientes(10).

Quando se fala em ética, várias abordagens são possíveis em razão da magnitude das situações vivenciadas pelos profissionais na prática. Uma vertente relevante à esta temática é a da bioética da proteção em seu compromisso com a saúde pública. Em seu sentido operacional remete a explicitar aquilo que deve ser protegido, quem deve proteger o quê e para quem a proteção está dirigida. Em particular, a população (ou os grupos populacionais a serem protegidos em suas necessidades específicas) deve ser esclarecida sobre as medidas protetoras, para evitar que sejam entendidas como arbitrárias, tornando-as, ineficazes(11).

O cuidar eticamente é uma atitude que leva à reflexão. Nesta situação, o agir está presente a cada momento em que se reconhece que o paciente necessita de cuidados mais complexos e de tecnologia avançada(8). É por este motivo que se deve dispor de tudo que é possível para a defesa da vida.

O enfermeiro deve atuar com responsabilidade ética e social e compromisso com a cidadania, promovendo o cuidado integral do paciente. Entretanto, dilemas éticos e conflitos com a realidade restringem as possibilidades de melhor desempenho e autonomia do enfermeiro e, muitas vezes, levam ao distanciamento entre o que deve ser feito e o que é possível fazer em determinada situação(12). Os relatos abaixo sinalizam os dilemas vivenciado pelos enfermeiros em relação à falta de condições adequadas para prestar um cuidado digno ao paciente.

Temos uma demanda de pacientes grave muito maior do que temos capacidade para atender e prestar assistência adequada (E 13).

Ficamos numa situação difícil, num impasse, a família nos pressionando por uma definição, por outro lado é o teu papel como ser humano, são pacientes que vão morrer se a gente ficar parado (E 16).

Nós temos a obrigação de preservar a vida do paciente (E 18).

Estes enfermeiros mostram situações de dilemas éticos, traduzidos na contingência de possuírem ou não tecnologia, estrutura física e recursos humanos necessários para manter a vida deste paciente. Na maioria das vezes os enfermeiros sabem o que é preciso fazer para oferecer um cuidado que respeite o direito à saúde assegurado pela Constituição Federal.

A desilusão e a frustração vivenciados pelos enfermeiros podem passar despercebidos em sua dimensão moral, pois eles enfrentam um constante conflito entre o que a enfermagem considera ideal e o que de fato é realidade(13). No entanto, é pertinente lembrar que tais conflitos podem se caracterizar como problemas, o que está evidenciado nas falas dos informantes E13 e E16. Ou seja, muitas vezes não se está apenas diante de duas proposições opostas e conflitantes. Ao contrário, se está diante de problemas. Neste sentido, os problemas são questões abertas que não se sabe se serão resolvidos e como o serão. A solução não está presente desde o princípio e, portanto, a questão não está na eleição entre duas ou mais possíveis respostas, mas na busca de uma resposta própria e adequada. A mentalidade problemática parte sempre do suposto de que a realidade é muito mais rica e complexa do que tudo o que se possa conceber, e que, portanto, existe uma inadequação básica entre a realidade e o raciocínio. Nada pode abranger toda a riqueza da realidade mais simples(14).

As situações em que os enfermeiros vivenciam a necessidade de encaminhamento do paciente sinalizam dilemas éticos expressados nas falas a seguir:

Quando vejo que o paciente precisa de UTI, e não temos, eu oriento a família a procurar a promotoria (E 11).

Orientei, foi pensando na única forma de salvamento deste paciente (E 13).

Estas falas sinalizam o dilema ético do enfermeiro na sua decisão de orientar ou não o familiar acerca do "real" estado de saúde do paciente. Nesta perspectiva, sabe-se que a informação é um meio que o paciente e seus familiares dispõem para tomar decisões acerca de seu tratamento e situação vivenciada(1).

A comunicação e a orientação são fundamentais para o atendimento ao paciente crítico, pois tendo o enfermeiro uma comunicação efetiva com a família, proporcionará segurança, identificará suas dificuldades, oferecerá apoio necessário, uma maior confiança e excelência da prática da enfermagem(15).

Atualmente a família vem ocupando um lugar importante no contexto hospitalar através de leis e diretrizes políticas que estão cada vez mais mudando a forma de cuidado, tornando a relação entre os profissionais, pacientes e familiares mais solidárias, procurando uma melhor promoção de saúde, vida e compromisso com os direitos de todos. Portanto, os profissionais de saúde buscam satisfazer as expectativas dos familiares em relação ao cuidado e tratamento de seu ente querido(16).

Os relatos dos enfermeiros demonstram que é importante manter uma comunicação efetiva, clara e uma boa orientação para que os pacientes e seus familiares procurem seus direitos. Estes direitos se traduzem em um atendimento, obtido por livre demanda ou por uma ordem judicial, em uma instituição que possa assistir as necessidades emergentes do paciente.

É dever do Ministério Público garantir atendimento à saúde do cidadão através de medidas judiciais. Assim, o promotor de justiça pode propor ações cíveis que zelem pelos interesses de incapazes que se encontram em situações graves de saúde ou a qualquer momento que necessitar(17).

No cotidiano do trabalho a enfermagem deve, além de buscar promover um cuidado de excelência, otimizar a orientação e a comunicação adequada com a família, para que os direitos dos pacientes sejam assegurados. É notório que cuidar é mais que um ato, atenção e dedicação, é uma atitude que gera preocupação, responsabilidade e reconhecimento do o outro como cidadão(18).

Dilemas éticos dos enfermeiros que vivenciam a internação por ordem judicial

Observa-se diariamente que muitos enfermeiros permanecem silenciosos frente a atitudes tomadas por superiores e por leis as quais não podem contestar. Por mais que vivenciem situações de doença, agonia, frustrações e morte, se imobilizam e sofrem pela impotência, a culpa e o receio diante da impossibilidade de executar o que consideram correto(13). As falas a seguir sinalizam o pensamento de enfemeiros que têm a experiência de receber encaminhamentos por ordem judicial:

Eles acham que é simplesmente dizer que: "eu quero que interne na UTI "tal", de "tal" hospital; e não é assim que funciona na realidade, para eles é muito fácil determinar as coisas (E 1).

Às vezes tenho vontade de dizer: vem aqui e escolhe qual você vai mandar desligar o respirador, para colocar este que você está querendo. Falta bom senso neste sentido (E 1).

Quando menos esperei estava entrando o juiz. A nossa declaração de nada vale (E 4).

A ação do enfermeiro deve ser embasada no agir ético. Em inúmeras situações em que os enfermeiros poderiam contribuir para tomada de decisão frente ao cuidado do paciente, já que levam em conta valores como responsabilidade, tolerância, honestidade, compreensão e sobretudo solidariedade, enfrentam vários dilemas éticos por terem que cumprir decisões e tratamentos com os quais não concordam(18).

É um pouco irritante se sentir de mãos atadas e obrigada a ter que fazer uma coisa que você acha que não é justo (E 7).

Entra-se em conflito ético-pessoal e profissional, pois queremos salvar vidas, mas hoje em dia, em função da grande quantidade de pacientes e a escassez de leitos de UTI, acaba-se por selecionar quem deve viver e quem não vai ter esta chance, isso é muito triste, pois poderia ser meu filho, meu marido, minha mãe (E 10).

Dilemas éticos evidenciados nos relatos colhidos apontam o desequilíbrio nas relações de poder no que se refere ao cuidado e ao bem estar do paciente. É um dilema participar do processo de escolha entre quem fica e quem sai da UTI. Nestes casos, os enfermeiros sabem qual deveria ser a ação moralmente correta, o cuidado adequado e a tecnologia necessária para prestar o atendimento ideal ao paciente, mas encontram-se impossibilitados de agir pela força da ordem e da lei.

Os enfermeiros acrescentam que na grande maioria dos casos de internação por ordem judicial, os juízes não acreditam em suas palavras, deslocando-se até a UTI para conferir se estão falando a verdade. Certificam-se, assim, da existência ou não da superlotação e das reais condições dos pacientes que estão internados na unidade.

É evidente que o fato de participar do processo de escolha entre quem permanece e quem sai da UTI causa angústia aos enfermeiros, pois estes zelam pela vida do paciente e sabem que muitos só estão saindo para disponibilizar sua vaga para outro, que está internando por ordem judicial. Logo, a angústia centra-se no conhecimento dos enfermeiros de que, muitas vezes, a alta precoce do paciente da UTI ocasiona instabilidade hemodinâmica e agravamento do seu quadro atual, podendo levá-lo graves consequências.

O compromisso do profissional é cuidar do outro sem discriminação política, social, religiosa ou econômica, não impondo a ele valores e critérios, respeitando suas opções e criando oportunidades para que o mesmo exerça seus direitos. O exercício da enfermagem é tão variado e constitui-se de inúmeros detalhes que para cada profissional assume uma importância ímpar.

Nos preparamos para um nível sócio econômico mais baixo, acreditando que são pessoas que realmente necessitam muito, porém na maioria dos casos encontramos familiares bem vestidos, pessoas bem instruídas, que acredito eu, não estejam agindo de má fé, mas não estão querendo arcar com os custos de uma internação privada (E1).

Em alguns casos são familiares de renda baixa, mas existem os de renda média até alta, que tentam impor a internação de seus familiares (E2).

Paciente de menor gravidade, mas por serem pessoas influentes na sociedade e possuírem influências políticas, acabam por conseguir a internação, mesmo que por avaliação de gravidade não fosse necessário (E5).

Todos têm direito a saúde sem distinção, o triste é que as pessoas mais humildes não sabem de seus direitos, e as pessoas que possuem uma situação econômica ou cultural melhor acabam por fazer valer seus direitos (E10).

Os enfermeiros verbalizam os dilemas éticos vivenciados por eles em relação aos familiares dos pacientes que internam na UTI. Segundo dados coletados, os que possuem um melhor padrão econômico, influência política, que são conhecedores da lei e cientes de seus direitos como cidadão, acabam beneficiando-se em relação aos que são leigos e não possuem conhecimento de seus direitos. Neste caso, os enfermeiros sentem-se frustrados pelo fato de saberem que todos, ricos e pobres, têm direito à saúde sem distinção, mas vivenciam a angústia e o desespero de pessoas que se sentem à mercê da própria sorte, experimentando a possibilidade de morte de um familiar por não conseguirem interna-lo na UTI.

Atualmente a medicina de alta tecnologia está equipada para prevenir e curar doenças, em contrapartida a maioria da população não possui recursos para pagar os seus altos custos(19). Enquanto alguns pacientes tem acesso por meios próprios aos tratamentos necessários para a recuperação das doenças que ameaçam sua vida, a maioria deve contar com a proteção e o acesso a que tem direito, mas que são limitados pelos recursos excassos e as fragilidades do sistema.

Destaca-se que valores éticos, tais como a equidade e a justiça são transgredidos, não porque pacientes com maior poder aquisitivo sobrevivem por terem tido acesso à alta tecnologia, mas porque os menos favorecidos economicamente podem evoluir para óbito aguardando o tratamento indicado para sua recuperação.

É nesse contexto que o enfermeiro sente-se responsável pelo paciente, responsável por zelar por sua integridade física, pelo seu tratamento, cuidado e bem estar, conforme previsto no Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem em seus princípios fundamentais.

Contudo, é pertinente indagar de que modo este enfermeiro poderá ser instrumentalizado para atuar de forma crítica nas diferentes esferas da gestão do sistema. Isto é, para que este profissional possa participar de modo estratégico e efetivo na consolidação dos princípios filosóficos e organizacionais que constituem o SUS, os conhecimentos técnicos-científicos relacionados à assistência à saúde e ao gerenciamento de serviços, parecem não ser suficientes(20).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados relativos à categoria dilemas éticos diante do encaminhamento de paciente para UTI por ordem judicial, evidenciam que esta situação ocorre porque em algumas institucionais de saúde ainda há condições inadequadas para prestar um cuidado digno ao paciente. Nesta direção, o dilema ético expressa-se quando o enfermeiro está diante da questão de manter ou não o paciente em um local que não possui tecnologia, estrutura física e recursos humanos necessários para manter a vida do paciente. Os enfermeiros, ainda, experimentam a angústia dos familiares que necessitam de internação em unidades especializadas.

A categoria dilemas éticos dos enfermeiros que vivenciam a internação por ordem judicial sinaliza, dentre os resultados, o dilema do enfermeiro diante da sua participação no processo de escolha entre quem sai e quem permanece na UTI. Ou seja, as UTI aptas para atender este tipo de paciente, muitas vezes, enfrentam a situação de já estarem lotadas e, mediante a ordem judicial, alguém terá que sair. Neste sentido, a angústia do enfermeiro centra-se no conhecimento de que a alta precoce do paciente pode resultar em complicações, por vezes graves.

Diante dos relatos apresentados pelos enfermeiros, constata-se que é fundamental a participação destes em debates que envolvam dilemas éticos em UTI. Compete, também, aos profissionais, assumirem politicamente, propostas que busquem mapear as diferentes instâncias que tem promovido esta situação muitas vezes caótica. A bioética da proteção pode subsidiar esta discussão quando enfatiza as situações das pessoas vulneráveis e vulneradas, as quais necessitam de cuidados, para evitar situações que as coloquem em risco e/ou promovam adoecimento.

Esta pesquisa reflete uma realidade local na qual existe um quantitativo maior de hospitais privados e filantrópicos em relação aos hospitais públicos. Deste modo, sugere-se que a pesquisa possa ser desenvolvida em outras regiões, as quais apresentem realidades semelhantes ou diferentes. Ainda, são fundamentais os estudos sobre o tema aqui abordado para que sustentem a discussão sobre os dilemas éticos vivenciados por vários enfermeiros na prática da enfermagem, principalmente em UTI e Emergência.

Recebido em: 20.03.2012

Aprovado em: 16.01.2013

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  • Endereço do autor / Dirección del autor / Author's address

    Mara Ambrosina de Oliveira Vargas
    Departamento de Enfermagem
    Centro Ciências da Saúde – UFSC
    Campus Universitário, s/n, Trindade
    88040-970, Florianópolis, SC
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      20 Mar 2012
    • Aceito
      16 Jan 2013
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