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Significado do cuidado às crianças vítimas de violência na ótica dos profissionais de saúde

Significado del cuidado de los niños víctimas de la violencia desde la perspectiva de los profesionales de salud

Resumos

Objetivou-se descrever os significados do cuidado atribuídos por profissionais na atenção a crianças vítimas de maus tratos. Trata-se de pesquisa descritiva de natureza qualitativa, realizada com 14 profissionais em uma emergência pediátrica de hospital de Fortaleza, no período de março a junho de 2010, por meio de entrevista semiestruturada. Nos resultados, identificaram-se duas categorias: "sentimentos e sofrimento do profissional de saúde" e "limitações à prática profissional no cuidar de crianças violentadas". Dentre os sentimentos expressos, estava a compaixão em relação às crianças maltratadas, sendo esta um motivador profissional. Aqueles considerados negativos foram indignação e ira contra o agressor. Concluiu-se que o cuidar de crianças vítimas de violência constitui um desafio para os profissionais de saúde dos serviços de emergência, por envolver aspectos biopsicossociais que ultrapassam a lesão corporal propriamente dita e o universo hospitalar.

Maus tratos infantis; Cuidado da criança; Assistência à saúde; Emoções


Descripción de los significados atribuidos por profesionales de la salud en su práctica profesional con niños maltratados. Estudio descriptivo y cualitativo realizado con 14 profesionales de la salud de una sala de emergencia pediátrica en un hospital de Fortaleza, Brasil, entre marzo y junio de 2010, a través de una entrevista semiestructurada. Los resultados identificaron dos categorías: Los sentimientos y sufrimientos de los profesionales de la salud y las limitaciones a la práctica profesional en el cuidado de los niños maltratados. Entre los sentimientos expresados tomó la palabra sobre la compasión hacia los niños abusados, al ser un motivador profesional. Aquellos considerados negativos fueron rabia e ira contra el agresor. El tratamiento de niños maltratados es un desafío para los profesionales de la salud en los servicios de emergencia, ya que involucra aspectos biopsicosociales que van mucho más allá de las lesiones físicas y del entorno hospitalario.

Maltrato a los niños; Cuidado del niño; Prestación de atención de salud; Emociones


The aim of this study was to describe the significance of the care attributed by professionals in attending child victims of abuse. This descriptive study, using a qualitative approach, was developed with 14 professionals in the pediatric emergency unit of a hospital in Fortaleza, in the period between March and June of 2010, by means of semi-structured interviews. The results identified two categories: 'Feelings and suffering of the health professional' and 'Limitations of the professional practice in the care of abused children'. The emotions expressed included compassion towards abused children, which was a motivation for professionals. Negative feelings included rage and anger against the aggressor. In conclusion, the care of child victims of violence is a challenge for health professionals from emergency services, as it involves biopsychosocial aspects that go beyond the injury itself and the hospital universe.

Child abuse; Child care; Delivery of health care; Emotions


ARTIGO ORIGINAL

Significado do cuidado às crianças vítimas de violência na ótica dos profissionais de saúde

Significado del cuidado de los niños víctimas de la violencia desde la perspectiva de los profesionales de salud

Luciana Vilma Oliveira Quintino AmaralI; Annatália Meneses de Amorim GomesII; Sarah Vieira FigueiredoIII; Ilvana Lima Verde GomesIV

IHospital Universitário Wálter Cantídio e Hospital Distrital Nossa Senhora da Conceição. Enfermeira assistencial. Mestre em Saúde Pública pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Fortaleza, Ceará, Brasil

IIUECE. Psicóloga e Assistente Social. Doutora em Ciências da Saúde pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Docente dos Mestrados Profissionais Saúde da Família e Ensino na Saúde e Acadêmico de Saúde Pública da UECE. Consutora do Ministério da Saúde da Política Nacional de Humanização. Fortaleza, Ceará, Brasil

IIIUECE. Enfermeira. Discente do Programa de Mestrado Acadêmico em Saúde Pública da UECE. Enfermeira do Hospital Geral Waldemar de Alcântara. Integrante do Grupo de Pesquisa Cuidados à Saúde da Criança e do Adolescente e Enfermagem (CNPq). Fortaleza, Ceará, Brasil

IVUECE. Enfermeira. Doutora em Saúde pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ/IMS). Docente da UECE, Mestrado Acadêmico em Saúde Pública e Mestrado Profissional em Saúde da Criança e do Adolescente. Enfermeira do Hospital Geral de Fortaleza (Comitê de Ética em Pesquisa e Educação Permanente em Saúde). Fortaleza, Ceará, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Ilvana Lima Verde Gomes Rua J. da Penha, 631, ap. 1003, Centro 60110-120, Fortaleza, CE E-mail: ilverde@gmail.com

RESUMO

Objetivou-se descrever os significados do cuidado atribuídos por profissionais na atenção a crianças vítimas de maus tratos. Trata-se de pesquisa descritiva de natureza qualitativa, realizada com 14 profissionais em uma emergência pediátrica de hospital de Fortaleza, no período de março a junho de 2010, por meio de entrevista semiestruturada. Nos resultados, identificaram-se duas categorias: "sentimentos e sofrimento do profissional de saúde" e "limitações à prática profissional no cuidar de crianças violentadas". Dentre os sentimentos expressos, estava a compaixão em relação às crianças maltratadas, sendo esta um motivador profissional. Aqueles considerados negativos foram indignação e ira contra o agressor. Concluiu-se que o cuidar de crianças vítimas de violência constitui um desafio para os profissionais de saúde dos serviços de emergência, por envolver aspectos biopsicossociais que ultrapassam a lesão corporal propriamente dita e o universo hospitalar.

Descritores: Maus tratos infantis. Cuidado da criança. Assistência à saúde. Emoções.

RESUMEN

Descripción de los significados atribuidos por profesionales de la salud en su práctica profesional con niños maltratados. Estudio descriptivo y cualitativo realizado con 14 profesionales de la salud de una sala de emergencia pediátrica en un hospital de Fortaleza, Brasil, entre marzo y junio de 2010, a través de una entrevista semiestructurada. Los resultados identificaron dos categorías: Los sentimientos y sufrimientos de los profesionales de la salud y las limitaciones a la práctica profesional en el cuidado de los niños maltratados. Entre los sentimientos expresados tomó la palabra sobre la compasión hacia los niños abusados, al ser un motivador profesional. Aquellos considerados negativos fueron rabia e ira contra el agresor. El tratamiento de niños maltratados es un desafío para los profesionales de la salud en los servicios de emergencia, ya que involucra aspectos biopsicosociales que van mucho más allá de las lesiones físicas y del entorno hospitalario.

Descriptores: Maltrato a los niños. Cuidado del niño. Prestación de atención de salud. Emociones.

INTRODUÇÃO

A violência é motivo crescente de preocupação para a sociedade em geral, acompanha toda a história e as transformações da humanidade, e está presente nas diferentes esferas da vida social. O número de vítimas deste agravo aumentou significativamente nos últimos anos, constituindo-se entre as principais causas de morbimortalidade no mundo, e as crianças são um dos alvos majoritários(1). Dentre as principais causas de mortalidade entre as crianças, as externas (acidentes e violências) foram responsáveis por mais de 120.000 óbitos no ano de 2006 no Brasil, constituindo-se como a primeira causa de óbito entre crianças e adolescentes a partir de um ano de idade(2-3).

Assim, o aumento da violência com crianças nos últimos anos destaca-se como um grave problema de saúde pública, porém os serviços de saúde se mostram despreparados para atender a esta demanda de forma integral, sensível e competente(4-5).

Considerando que as vítimas de maus-tratos necessitam de atendimento nos serviços de saúde, os profissionais de saúde devem estar capacitados para atendê-las e às famílias, no aspecto técnico, emocional e das condições estruturais. Desse modo, deve-se fazer uso de conhecimentos e recursos adequados que ampliem o grau de corresponsabilização dos profissionais, das instâncias gestoras, jurídicas e redes de proteção e apoio(6).

Esse cuidado integral abrange o acolhimento à singularidade e ao sofrimento emocional de cada criança no seu contexto de vida e família, a detecção dos maus-tratos, a notificação e o encaminhamento para as redes de proteção e apoio, de modo a garantir às crianças os seus direitos, um cuidado digno e mais resolubilidade(4,7).

Apesar da implementação de políticas públicas direcionadas ao enfrentamento desse fenômeno, do estabelecimento de aparato legal e dos progressos nas conquistas dos direitos das crianças, sobretudo com origem na década de 1990, pela efetivação do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), persiste uma distância entre o discurso oficial e a prática(8).

Embora exista o imperativo ético e legal para a realização de denúncias pelos profissionais da saúde, pesquisas apontam a omissão na notificação dos casos, o que dificulta a execução da lei e concorre para manter as crianças vulneráveis a esses maus-tratos; além do despreparo técnico e emocional das equipes em lidar com a problemática social e a desarticulação da rede de serviços, que não fornece o suporte necessário(4,7,9).

Neste contexto, o ambiente da emergência hospitalar, pelo fato de consistir em porta de entrada da rede de atenção a saúde, é o locus privilegiado onde a violência se torna visível e declarada(9). É preciso, portanto, o desenvolvimento de arranjos institucionais para o atendimento de crianças violentadas.

Nessa perspectiva, questionou-se: que significados os profissionais de saúde tem atribuído ao cuidado de crianças vítimas de maus-tratos? Estudos neste campo são incipientes, pois grande parte das pesquisas científicas sobre a temática abordam apenas os aspectos epidemiológicos dos maus-tratos e suas repercussões no crescimento e desenvolvimento infantil. Destaca-se, portanto, a importância de investigações que forneçam aprofundamento e subsídios para o aprimoramento da atenção às crianças e aos adolescentes vítimas de maus-tratos(9).

Com suporte no exposto, evidenciou-se a relevância de estudar esse fenômeno, visando descrever o significado que os profissionais atribuem ao cuidado das crianças vitimadas por maus-tratos.

METODOLOGIA

Este é um estudo descritivo, originado da pesquisa de dissertação intitulada "Maus tratos infantis: significados e experiências de profissionais de saúde", de natureza qualitativa, uma vez que permite ao pesquisador desvelar sentimentos e pensamentos das pessoas acerca da forma como vivem e se relacionam com o mundo(3,10). Realizou-se no serviço de emergência pediátrica de uma instituição hospitalar da rede pública municipal de Fortaleza, no período de março a junho de 2010, após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará (nº 09554117-9). Todos os princípios éticos da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde foram respeitados.

Participaram do estudo 14 profissionais, que assinaram voluntariamente o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, selecionados de acordo com os seguintes critérios de inclusão: profissionais de saúde, com experiência de pelo menos um ano no atendimento a crianças vitimadas por maus-tratos, que atuassem na emergência do hospital. Excluíram-se da amostra os profissionais que estavam de licença, férias ou os afastados da instituição. Preconizando o anonimato, todos os entrevistados foram identificados pela letra E, seguidos de um numeral, organizados de forma sequencial para facilitar a identificação.

Para a coleta das informações, empregou-se a observação sistemática e a entrevista gravada com roteiro semiestruturado. A observação sistemática foi realizada por meio do ingresso na vida cotidiana dos profissionais de saúde e usuários, nos três turnos de trabalho na unidade hospitalar; todo o percurso foi registrado em diário de campo. Para realizar a entrevista, obedeceu-se a um roteiro de perguntas semi-estruturadas, com um item de identificação dos sujeitos e outro com uma questão norteadora (O que significa para você cuidar de uma criança que sofreu maus-tratos?).

Na tentativa de melhor compreensão dos significados e das experiências, as informações foram analisadas de acordo com a técnica de análise temática de conteúdo de Minayo, por meio da leitura exaustiva dos discursos, recortes dos trechos e confrontos dos depoimentos com as observações realizadas(10).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Caracterização dos participantes e do cenário da pesquisa

Dos 14 profissionais de saúde entrevistados, predominou o sexo feminino, cinco eram enfermeiros, cinco auxiliares de enfermagem, dois assistentes sociais e dois médicos, todos com escolaridade de nível superior, pois os auxiliares de enfermagem concluíram curso de graduação em Gestão em Unidade de Saúde Pública. 64,3% possuía idade superior a 40 anos. Doze eram servidores públicos e o restante integrava o quadro de serviço prestado à Instituição. Com relação ao tempo de formação, 85,6% concluíram o curso há pelo menos 13 anos e 14,4%, era recém-formada. Nesta fase da vida pessoal e profissional, é esperada a conquista de alguma maturidade emocional, o que poderia contribuir para maior equilíbrio perante o atendimento de situações de violência com crianças nos serviços de emergência.

A unidade de emergência pediátrica da instituição em estudo dispunha de dois consultórios médicos, uma sala com cinco berços e dez cadeiras, destinados às crianças que precisam permanecer algum tempo em observação, e outra somente para administração de medicamentos e aerossóis. Possuía dois leitos de Unidade de Terapia de Urgência (UTU), em que eram atendidos e estabilizados os casos de maior gravidade, sendo posteriormente transferidos para um hospital de atendimento terciário. Esse quantitativo de leitos não supria a demanda da população da área.

Sentimentos e sofrimento do profissional de saúde

O cuidado à criança vítima de maus-tratos mobilizou diversos sentimentos e emoções nos profissionais. No atendimento da emergência, a relação com essas crianças indefesas e vulneráveis despertou sentimento de compaixão:

[...] Primeiro a gente fica com pena porque essa criança está maltratada. Às vezes até a gente comenta: "como é que uma pessoa tem coragem de maltratar uma coisinha assim desse tamanho, que é totalmente indefesa [...]. (E1)

[...] mas eu tenho às vezes compaixão pela própria situação em que aquela criança se encontra. (E12)

Esses sentimentos de piedade e compaixão com os assistidos são amplamente discutidos e apontados como motivadores das ações em saúde institucionalizadas. A "compaixão piedosa" conduz à glorificação do sofrimento alheio, pois legitima as desigualdades, isola, exclui o diálogo. Com efeito, os profissionais, ao mobilizarem esses sentimentos, precisam estar alerta para perceberem que a criança que sofre é um sujeito singular, próximo e autônomo, portanto, não rotulável à condição generalizada de "coisinha indefesa", pois um socorro imediato e irrefletido quase inevitavelmente pode se transformar em uma desculpa para legitimar a violência ou a exclusão, contribuindo para agravar a condição de violência imposta as crianças(11).

O que permite uma ação eficaz do profissional, por outro lado, que seja benéfica à criança e família enquanto sujeitos autônomos é a solidariedade. Esta pressupõe a pluralidade humana e a mediação do diálogo como necessárias para assumir o lugar daquele que sofre e reclama o direito a ser cuidado; desse outro que precisa ser reconhecido como alguém semelhante em dignidade, sendo possível, assim, o vínculo terapêutico(11).

Com efeito, a atenção à criança vítima de violência requer muito mais do que a execução de procedimentos técnicos e curativos, sendo imprescindível o cuidado subjetivo, que envolve a singularidade de cada criança, ou seja, um cuidado e apoio emocional, que muitas vezes pode ser o que a criança mais anseia(7).

Os profissionais também revelaram tristeza e angústia no cuidar dessas crianças, conforme os depoimentos:

[...] Um sentimento de tristeza. Eu acho muito triste uma criança, ainda nos dias de hoje, estar sendo maltratada. (E4)

[...] sinto uma angústia de estar vendo o sofrimento daquela pessoa indefesa, que não sabe reagir. (E12)

[...] Eu me sinto muito triste [...] O que mais sinto é angústia, por não poder acompanhar e por não poder fazer nada. (E6)

Esses sentimentos e o sofrimento gerado no atendimento as crianças exigem desses profissionais uma atitude de muita tolerância e sensibilidade, visando fornecer um cuidado humanizado e efetivo para a vítima e sua família. Entre os entrevistados, também emergiram sentimentos de indignação e ira contra a situação da criança e a atitude de violência do agressor. Com resultados semelhantes, uma pesquisa apontou as sensações de revolta como as mais comuns entre os profissionais de saúde(12).

[...] A gente profissional da área de saúde quando atende uma criança que tenha sido vítima de maus tratos, de violência, a gente fica com um sentimento de revolta. (E3)

[...] Eu fico pensando que é um ser indefeso, e as pessoas ainda estão abusando dessa falta de ter como reagir, dessa fragilidade [...] meu maior sentimento é de raiva com o agressor. (E4)

[...] Perplexidade e revolta em saber que uma criança que não tem condições de se defender está sendo vítima de maus tratos por aqueles que deveriam protegê-la. (E7)

Compreender a família causadora da violência contra a criança não é tarefa simples e exige que os profissionais evitem prejulgamentos e conheçam melhor o seu cotidiano. Distúrbios relacionados aos agressores, como também os associados ao meio social em que eles vivem podem predispor a ocorrência de maus-tratos. Portanto, na abordagem com as famílias, considerar a natureza multifacetada da violência é um dos passos importantes para um cuidado integral e preventivo(13).

Baseando-se na perspectiva de que as situações que envolvem maus-tratos perpassam por aspectos sociais, econômicos e culturais, a formação baseada no biológico não é suficiente para fornecer respostas para a resolução desses problemas(14).

Os entrevistados se mostraram perplexos com o comportamento dos adultos agressores, principalmente quando a violência havia sido cometida por familiares ou conhecidos, por acreditarem, com base em suas concepções éticas, que o ambiente familiar deveria ser o mais seguro e acolhedor possível para essas crianças.

[...] é chocante, principalmente quando se trata de pessoas da família [...] não estão cuidando, estão maltratando. Eu vi vários casos horríveis aqui [...] óbito por asfixia, por outro tipo de maus tratos. Já vi o corpo todo queimado, queimadura de cigarro, agressão física. (E11)

[...] O primeiro momento é impactante porque a criança é extremamente frágil, não tem defesa, precisa de apoio das outras pessoas, principalmente da família, que muitas vezes é a agressora [...] você fica sem entender porque aquilo foi feito. (E3)

Estudo realizado com profissionais de uma Unidade de Saúde da Família identificou que, para alguns deles, os atos violentos contra a criança no domicílio fazem parte de um ciclo intergeracional, decorrentes de experiências violentas que os próprios pais vivenciaram, no contexto familiar, e que se repetem inconscientemente no comportamento agressivo com seus filhos. Destacou-se também que por trás de cada caso de violência contra a criança existe um contexto que precisa ser visto e avaliado, de forma que o atendimento não seja focalizado apenas na vítima, mas em toda a situação e nos agentes envolvidos no ato violento(15).

Com efeito, observa-se que os maus-tratos contra a criança proveniente de familiares possui influências socioeconômicas, muitas vezes permeada por uma cultura de poder entre pais e filhos, na qual o adulto abusa deste poder por meio da violência. Logo, em decorrência da complexidade desse fenômeno, fazem-se necessários maior articulação e um trabalho conjunto entre os diversos setores da sociedade em busca de soluções mais eficazes nas situações de violência contra crianças(5).

Dessa maneira, a equipe de saúde precisa estar ciente de todos os aspectos que envolvem a ocorrência dos maus-tratos infantis, de forma a buscar compreender a realidade onde cada família está inserida para, assim, lidar melhor com os sentimentos que emergiram, o que possibilita um cuidado digno e respeitoso à criança e sua família.

Pôde-se perceber ainda que a intensa carga emocional a que os profissionais estão submetidos na emergência hospitalar, com as situações de violência infantil, e a dificuldade em lidarem com os sentimentos produzidos neste encontro, produzem sofrimentos, o que influencia a relação terapêutica.

Além disso, a unidade de emergência pode ser considerada um dos ambientes onde os profissionais estão sujeitos a um maior sofrimento psíquico, principalmente em decorrência da própria dinâmica do serviço, que funciona ininterruptamente, e por ser um espaço onde a demanda dos usuários é espontânea, com diferentes problemas de saúde, muitas vezes incontroláveis, que fogem dos limites terapêuticos(16).

Logo, os trabalhadores desses setores precisam estar preparados profissional e emocionalmente para lidar com as diferentes demandas e sentimentos provenientes durante o ato de cuidar, pois neste espaço do sistema de saúde afluem os casos mais graves de crianças vitimas de violência. Predomina no âmbito hospitalar, no entanto, uma construção social e histórica que conforma um imaginário social arrolado na valorização de uma racionalidade tecnológica com ênfase nos equipamentos e conhecimentos especializados. Em consequência, na produção do cuidado em saúde, a fala técnica, o trabalho centrado na norma e no protocolo é privilegiado em detrimento do espaço para a fala das angústias, dos medos, dos conflitos e das questões vivenciadas no trabalho cotidiano, os quais impactam no modo de estar no mundo e lidar com as emoções(17).

Defende-se o argumento de que poderia ser menos ameaçador para os profissionais lidarem com as crianças violentadas, se houvesse um ambiente de trabalho propício ao compartilhamento de ideias e de sentimentos, onde a equipe interdisciplinar poderia expor suas emoções, ensejando uma oportunidade de aprendizado, amadurecimento e tomada de decisões coletivas. Além disso, as relações com outros profissionais e grupos, podem disparar transformações no modo de ser e agir singulares a cada trabalhador, pois ao produzir coisas e serviços, como a assistência a saúde, o sujeito produz a si mesmo, e, assim, ganha maior capacidade de intervir sobre a realidade, ser protagonista de mudanças sociais, coletivas e individuais.

A importância do reconhecimento dos sentimentos pela equipe é necessária para evitar a robotização da assistência à criança, pois, ao desconsiderá-los na prática, leva a desumanização do cuidado. Além disso, ao exporem e administrarem suas emoções, eles podem ensejar uma resposta criadora e não imobilizadora perante aquele atendimento tão assustador, reagindo com um cuidado mais humanizado.

Limitações à prática profissional no cuidar de crianças violentadas

A principal limitação à relação de cuidado com as crianças maltratadas é lidar com as barreiras impostas pela realidade sociofamiliar e jurídica do País, o que se reflete no estado de ânimo do profissional, que se rende como impotente ante as questões macroestruturais. Preocupações e tensões são expressas pelos profissionais de saúde que, após atenderem clinicamente uma criança, muitas vezes a devolvem ao ambiente familiar, local onde podem estar seus próprios agressores e, assim, repetir-se o ciclo de violência contra a criança.

[...] Quem vai entrar na família para descobrir a dinâmica familiar pra que aquilo ocorresse? É complicado [...] mas fazer com que a coisa não aconteça novamente realmente a gente não pode fazer. (E9)

[...] não sabemos se voltou para o mesmo local para sofrer as mesmas agressões [...]. (E6)

Com efeito, há uma responsabilização pública e política que precisa ser assumida pelo Estado e pela sociedade, com vistas à promoção da equidade social e efetividade dos direitos das crianças e de todos os cidadãos.

A impunidade, tão presente no sistema brasileiro, é outro limite a uma atuação profissional que assegure os direitos das crianças e interrompa esse mecanismo repetitivo de violência, que mantém a criança em um cárcere de agressões, sem defesa e proteção. Logo, da mesma relevância que o diagnóstico e o cuidado adequado a criança, o desdobramento dos processos nas varas da infância e juventude e nas varas criminais também favorece a redução da violência, por determinar medidas de proteção à criança e punir os agressores, evitando novos atos violentos(18).

[...] A princípio você só pensa em atender e amenizar, mas depois você fica com aquilo na cabeça e acha que a partir daquele momento já era para ter uma punição. (E8)

A frequência dos casos de maus-tratos e demora nas punições pôde ser vista em um estudo realizado no Rio de Janeiro, onde os autores observaram que um número significativo de processos continuava em andamento, apesar de decorridos cinco anos da data da sua abertura. O atraso na resolução dos casos foi atribuído à deficiência de recursos humanos, ao volume acentuado de processos acumulados e ao arrastado andamento no decorrer do processo(18).

Foi unânime entre os profissionais a impotência causada por todo esse contexto, especialmente por se perceberem como responsáveis pela proteção da criança e considerarem a violência contra ela um problema social de solução difícil, o qual vai além das suas possibilidades na qualidade de profissionais de saúde.

[...] De repente ela chegou ruim, amanhã ela poderá até chegar morta e a Enfermeira que estava no atendimento anterior pode se sentir até responsável [...]. (E3)

[...] é uma esfera social. A gente vai tentar debelar os danos físicos, e pelo menos os afetivos do momento, mas não o social. Dá um sentimento de impotência. (E9)

Essas expressões corroboram os achados de um estudo que avaliou as emoções dos profissionais psicossociais ante o abuso sexual infantil, durante a análise psicossocial que subsidia os juízes em suas decisões. As crianças também foram vistas como seres desprotegidos e indefesos, que necessitam de proteção, e os profissionais atribuíram a si essa tarefa, produzindo sofrimento e sensação de impotência no caso de não conseguirem suprir essa expectativa e evitar novas situações abusivas(19).

Além disto, na formação dos profissionais da saúde ainda impera a ideia de que estes têm o dever de salvar vidas e solucionar a situação do paciente, em uma clara afirmação da onipotência. Isto pode contribuir para agravar a sensação de impotência, produzindo intenso sofrimento no cuidar de crianças vitimas de violência caso não alcancem esse objetivo(20). Por outro lado, o processo de trabalho na produção do cuidado em saúde está na maioria das vezes aberto à presença do trabalho vivo em ato, de modo que a criatividade permanente do trabalhador pode inventar novos processos de trabalho e mesmo criar novas direções antes não pensadas para situações desafiadoras(17).

Assim, os serviços de saúde, malgrado mostrarem importante papel no trabalho com a violência infantil, expressam limites de ações. O papel dos profissionais de saúde é de corresponsabilização com outros setores de atenção a violência, por meio da prática de um cuidado de qualidade e humanizado à criança e sua família e de notificação do agravo(9). Com base nesta prerrogativa, diversos serviços e setores devem assumir a continuidade do cuidado e proteção, revelando-se uma ação profissional interdisciplinar e intersetorial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os sentimentos dos profissionais expressam uma compreensão contemporânea da criança vítima de violência, os quais se coadunam com as atuais políticas de proteção integral às crianças e aos adolescentes, pois é cada vez mais predominante a concepção de sujeito integral de direito na atenção à saúde. Percebe-se impotente, pois não consegue interromper a violência contra a criança, embora reconheça que isto depende de fatores transpostos as suas capacidades.

Assim, o cuidar de crianças vítimas de violência é um desafio para os profissionais de saúde dos serviços de emergência, por envolver aspectos biopsicossociais que ultrapassam a lesão corporal propriamente dita e o universo hospitalar. Além disso, ao lidarem com a criança e a família, os profissionais também lidam com os próprios sentimentos e emoções, que vão surgindo diante do cuidado, de acordo com suas pré-concepções, saberes e formação como pessoas.

O estudo apresenta algumas limitações, por não incluir a participação das crianças vítimas de maus tratos e de seus familiares. Logo, visando uma maior amplitude de discussões, faz-se necessária a realização de novas pesquisas, para que, assim, sejam evidenciados os diferentes olhares acerca da violência contra a criança, de forma a melhor contribuir para a criação de estratégias para a sua prevenção, o seu combate e melhor assistência aos vitimados.

Recebido em: 27.05.2013

Aprovado em: 13.11.2013

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  • Endereço para correspondência:
    Ilvana Lima Verde Gomes
    Rua J. da Penha, 631, ap. 1003, Centro
    60110-120, Fortaleza, CE
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Mar 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      27 Maio 2013
    • Aceito
      13 Nov 2013
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