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Sobre morrer com câncer: as lições de Hollywood

Morir con cáncer: las lecciones de Hollywood

Resumos

O estudo busca conhecer o modo pelo qual a morte de pessoas com câncer é apresentada por cinco filmes produzidos em Hollywood entre 1993 e 2006. Com base nos estudos culturais, na vertente pós-estruturalista e com o apoio das noções de discurso e subjetividade propostas pelo filósofo Michel Foucault, articulamos uma das possíveis leituras do corpus fílmico. Avaliamos como o discurso cinematográfico atua como uma pedagogia cultural que produz modos de ver o morrer com câncer: imortalizando a imagem do corpo saudável, silenciando a morte, cuidando do corpo morto e, por fim, aceitando a morte. Nossa proposta é suscitar reflexões que possam contribuir para a assistência e para a docência em enfermagem.

Enfermagem; Educação; Cultura; Morte; Doente terminal; Cinema como assunto


El estudio busca conocer el modo cómo la muerte de personas con cáncer es presentada por cinco películas producidas en Hollywood, entre 1993 y 2006. Con base en los estudios culturales y su versión posestructuralista y sostenidas por las nociones de discurso y subjetividad, propuestas por el filósofo Michel Foucault, articulamos una de las posibles lecturas del corpus cinematográfico. Evaluamos que el discurso cinematográfico actúa como una pedagogía cultural que produce maneras de ver el morir con cáncer: inmortalizando la imagen del cuerpo saludable, silenciando la muerte, cuidando del cuerpo muerto y, por fin, aceptando la muerte. Nuestra propuesta es suscitar reflexiones que puedan contribuir para la asistencia y la enseñanza en enfermería.

Enfermería; Educación; Cultura; Muerte; Enfermo terminal; Cine como asunto


The study attempts to understand how dying from cancer is portrayed by five movies produced in Hollywood between 1993 and 2006. Based on the cultural studies and their post-structuralism version and supported by the notions of discourse and subjectivity, as proposed by philosopher Michel Foucault, we suggest one of the possible readings of the movie picture corpus. We assess how the movie picture discourse acts as a cultural pedagogy that produces ways of seeing dying with cancer: immortalizing the healthy body image, silencing death, taking care of the dead body and, finally, accepting death. Our proposal is intended to stimulate reflections that may contribute to care and education in nursing.

Nursing; Education; Culture; Death


ARTIGO ORIGINAL

Sobre morrer com câncer: as lições de Hollywood

Morir con cáncer: las lecciones de Hollywood

Fernanda NiemeyerI; Maria Henriqueta Luce KruseII

IMestre em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Enfermeira do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

IIDoutora em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Assessora do Serviço de Enfermagem Cirúrgica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Professora Associada da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Fernanda Niemeyer Rua Artigas, 106, ap. 312, Petrópolis 90670-120, Porto Alegre, RS E-mail: fernandaniemeyer@yahoo.com.br

RESUMO

O estudo busca conhecer o modo pelo qual a morte de pessoas com câncer é apresentada por cinco filmes produzidos em Hollywood entre 1993 e 2006. Com base nos estudos culturais, na vertente pós-estruturalista e com o apoio das noções de discurso e subjetividade propostas pelo filósofo Michel Foucault, articulamos uma das possíveis leituras do corpus fílmico. Avaliamos como o discurso cinematográfico atua como uma pedagogia cultural que produz modos de ver o morrer com câncer: imortalizando a imagem do corpo saudável, silenciando a morte, cuidando do corpo morto e, por fim, aceitando a morte. Nossa proposta é suscitar reflexões que possam contribuir para a assistência e para a docência em enfermagem.

Descritores: Enfermagem. Educação. Cultura. Morte. Doente terminal. Cinema como assunto.

RESUMEN

El estudio busca conocer el modo cómo la muerte de personas con cáncer es presentada por cinco películas producidas en Hollywood, entre 1993 y 2006. Con base en los estudios culturales y su versión posestructuralista y sostenidas por las nociones de discurso y subjetividad, propuestas por el filósofo Michel Foucault, articulamos una de las posibles lecturas del corpus cinematográfico. Evaluamos que el discurso cinematográfico actúa como una pedagogía cultural que produce maneras de ver el morir con cáncer: inmortalizando la imagen del cuerpo saludable, silenciando la muerte, cuidando del cuerpo muerto y, por fin, aceptando la muerte. Nuestra propuesta es suscitar reflexiones que puedan contribuir para la asistencia y la enseñanza en enfermería.

Descriptores: Enfermería. Educación. Cultura. Muerte. Enfermo terminal. Cine como asunto.

INTRODUÇÃO

No discurso científico, câncer é o nome dado a um grupo de doenças que se caracterizam por um crescimento desordenado de células que invadem órgãos e tecidos do corpo. Pesquisas afirmam que, atualmente, o câncer representa a segunda causa de morte por doença no Brasil, e é responsável por cerca de 13% das causas de óbito no mundo(1). Isso confere ao câncer um status de doença intimamente ligada à morte.

A conexão câncer-morte também pode ser percebida no discurso dito popular, em que a doença é considerada intratável, cruel, que age devagar, de forma traiçoeira, isso "numa época em que a premissa central da medicina é que todas as doenças podem ser curadas"(2). Mesmo com os avanços tecnológicos, a ligação com a morte persiste: "Entre todas as teorias apresentadas a respeito do câncer [...], só uma sobreviveu à passagem do tempo, a saber, que o câncer percorre determinados estágios no rumo da morte. Com isso, [...] aquilo que não for fatal não será câncer"(2). Essa ligação existente entre a doença e a morte torna o câncer uma doença temida. Por outro lado, a literatura científica classifica o câncer como problema de saúde pública(1), conferindo um efeito de verdade a esse discurso através de dados epidemiológicos.

Ao longo da história muitos investimentos têm sido feitos com o objetivo de preservar a vida e combater a morte. Deste modo, grande parte do empenho da sociedade e da ciência tem sido investido na direção de inventar possibilidades para prolongar a vida e driblar a morte. Com os avanços no tratamento do câncer e dos conhecimentos acerca da doença, houve um aumento na produção e difusão de técnicas capazes de prolongar a (sobre)vida dos doentes. Esse desenvolvimento tecnológico, que passou a ocorrer mais intensamente a partir da metade do século XX, produziu determinados jeitos de cuidar, com o objetivo de curar e controlar o câncer, adiando a tão temida morte.

O fenômeno da morte está associado à modificação nas tecnologias de poder que a envolvem(3). Antigamente, existia um poder de soberania que regulamentava a população, pois havia um soberano que exercia o domínio sobre determinado território, nos limites do qual ele poderia "fazer morrer" e "deixar viver". O foco desse poder não estava no fato de que as pessoas poderiam viver naquele lugar, mas sim, de que, a qualquer momento, elas poderiam morrer, uma vez que o soberano detinha o poder de mandar matá-las, se assim desejasse. Quando a organização social começou a admitir o funcionamento de outras tecnologias de poder, instauraram-se outras práticas de governo na sociedade. Dessa maneira, houve uma inversão na lógica, objetivando "fazer viver" e "deixar morrer", ou seja, o centro do poder foi deslocado para a vida, em fazer as pessoas viverem, e não mais no fato de poder matá-las. Assim, o morrer passou a ser considerado uma derrota, já que os objetivos da preservação da vida não teriam sido alcançados, o que transformou a morte em objeto de interdição, acontecimento evitado, indesejável e angustiante(4).

Apesar da morte se configurar em objeto de trabalho da profissão, o diálogo em torno do processo de morrer tem tido pouco destaque no ensino de Enfermagem. O cuidado ao paciente que está morrendo é pouco discutido durante a graduação, mesmo sendo esse um cuidado inerente ao fazer dessa profissão, já que aliviamos desconfortos, controlamos sintomas e minimizamos o sofrimento cotidianamente na prática assistencial. Por vivermos em uma sociedade regida pela vida e seu controle, pouco se fala sobre a morte. Esse fato nos faz perceber como, em nossa cultura, lidamos com esse evento: prolongando vidas e negando seu fim(5).

Se compreendermos a morte não apenas como um processo biológico, mas como um processo histórico e cultural, perceberemos que a maneira como vivenciamos esse momento está relacionada com as formas como determinadas discursividades surgem e nos subjetivam. Deste modo, a morte é produzida por nossas experiências de vida e, portanto, em determinados momentos históricos e culturais. Ou seja, olhamos para a morte decorrente do câncer como uma produção cultural e não somente como acontecimento inerente à vida. Assim, pensamos que o modo de enfrentar a morte vem sofrendo alterações com o passar do tempo, de acordo com os diferentes discursos que circulam na cultura.

Na Alta Idade Média, havia rituais em torno da morte, a qual se caracterizava por ser comunitária, familiar, além de ser enfrentada com dignidade e resignação, já que os perigos eram menos controláveis e, portanto a vida era mais curta(6-7). À morte não se conferia um caráter dramático. Entretanto, no final da Idade Média, parece haver uma individualização da morte. O moribundo passa a ter uma maior percepção da própria morte, sustentando um sentimento de apego às coisas da vida. O que era tido como natural passou a assumir um caráter dramático, pois os sobreviventes passaram a chorar e a expressar a dor do pesar, devido à intolerância à separação, transformando a morte num interdito social(6). Assim, entre os séculos XIX e XX, a morte se torna evento insuportável, acarretando o afastamento social do moribundo. Por outro lado, a partir do século XX, a morte vai sendo ocultada, para que a vida possa ser protegida(6), possivelmente devido à lógica biopolítica do "fazer viver". Assim, a morte, que antes era um fato presente, corriqueiro e encarado com certa naturalidade, passa a ser relacionado à repulsa e à inconformidade com sua chegada.

Encarando a morte como produção histórica e cultural, olhamos para o cinema como um poderoso artefato que, por meio dos seus diálogos e imagens, interpela a civilização contemporânea. Pensando nas visibilidades e nas coisas ditas sobre a morte decorrente do câncer, que circulam na mídia, e na função pedagógica que exercem sobre nós, analisamos filmes hollywoodianos que tratam de pessoas que morrem de câncer. Optamos por pesquisar tais filmes porque Hollywood produz grande contingente fílmico que, projetados em telas, atingem uma grande parcela da população mundial. Esses filmes podem ser tomados como universais, pois suas histórias criam "realidades" e instituem "verdades". Indagando-nos sobre o modo pelo qual a sociedade contemporânea olha para o morrer com câncer, nosso objetivo é conhecer o modo pelo qual a morte de pessoas com câncer é apresentada por cinco filmes produzidos em Hollywood, entre 1993 e 2006.

MÉTODOS

A pesquisa se inscreve no campo dos Estudos Culturais, de vertente pós-estruturalista. Esse paradigma caracteriza-se por colocar em xeque as "verdades" da era moderna(8). Desse modo, o referencial pós-estruturalista assume o compromisso de questionar as formas de conhecer, os saberes científicos e seus estatutos de verdade, à medida que toma todo conhecimento como "construção humana interessada e politicamente objetivada"(9). Esse referencial vê a linguagem sob outro prisma: ao invés de concebê-la como representante da "realidade", a linguagem torna-se um modo de constituir sujeitos, de constituir a realidade. Com isso, atrelado aos Estudos Culturais, o paradigma pós-estruturalista vê os artefatos culturais como práticas discursivas que fabricam os sujeitos de que falam, e não simplesmente como manifestações da sociedade atual. Deste modo, a análise cultural pós-estruturalista se ocupa em observar sentidos presentes, ou não, procurando compreender de que modo o sujeito é constituído em uma dada cultura(10). Estudos desse tipo se tornam interessantes já que possibilitam melhor compreender a sociedade em que vivemos(11).

O projeto intelectual da análise cultural é sempre marcado por um discurso de implicação social. A partir disso, é permitido tomar como cultura certos elementos de um modo de vida, tais como textos, imagens e estruturas narrativas que, segundo outras demarcações, jamais seriam apreciados como cultura, e que funcionam como algo que molda a vida social(11-12). Esse jeito de ver as coisas não tem a intenção de destruir aquilo que é apresentado pelas tecnologias, mas sim, dar outro sentido para as questões que elas mostram.

Tomamos como material de análise cinco filmes produzidos pela indústria cinematográfica norte-americana entre 1993 e 2006, cujo ponto central de sua narrativa compreende o personagem acometido pelo câncer em estágio final. Procuramos escolher filmes de maior circulação no Brasil. São eles: Minha Vida (My Life, de 1993, dirigido por Bruce Joel Rubin), Um Amor Verdadeiro (One True Thing, de 1998, dirigido por Carl Franklin), Uma Lição de Vida (Wit, de 2001, dirigido por Mike Nichols), Doce Novembro (Sweet November, de 2001, dirigido por Pat O'Connor) e O Amor pode dar Certo (Griffin & Phoenix, de 2006, dirigido por Ed Stone).

Realizamos uma leitura interessada, a qual busca "saber aquilo que podemos aproveitar e aquilo que podemos descartar, deixar passar ou deixar de lado"(13). Assim, selecionamos cenas que tratavam da morte do personagem com câncer, as quais foram decupadas. Na pesquisa cinematográfica, o processo de decupagem é utilizado como parte do procedimento de análise dos discursos fílmicos, pois possibilita a separação dos elementos cinematográficos, a fim de melhor visualizar a cena, embora a análise se dê no conjunto dessas formas. Sua finalidade é gerar um conjunto de informações do material visual, uma espécie de "tradução" das cenas. Assim, visibilidades (cenários, planos, ângulos, iluminação, vestuários, ações e expressões dos personagens) e dizibilidades (falas, trilha sonora) das cenas foram transcritas. Para dar conta das análises, nos apoiamos em estudos de alguns autores que se situam no campo dos Estudos Culturais e nos estudos de mídia, como Fabris(14), Fischer(15) e Rose(16). Tratou-se de perguntar de que maneira os discursos foram construídos, de mapear as dizibilidades e as visibilidades sobre a morte de pessoas com câncer, nas diferentes cenas enunciativas, multiplicando as relações aí sugeridas, situando as coisas "ditas" e "vistas" em campos discursivos. Esse modo de analisar a cultura pretende mostrar os diferentes significados que estão atrelados na produção de sujeitos, através desse universo midiático que são os filmes hollywoodianos.

Utilizamos os conceitos de discurso e subjetividade, ambos propostos pelo filósofo Michel Foucault. Entendemos o sentido de discurso não como um conjunto de palavras que representam, nomeiam o mundo, mas como prática que produz os objetos de que fala(17). Deste modo, ao invés de emanarem práticas sociais, econômicas, culturais e políticas a partir do sujeito, esse passa a ser derivado de práticas discursivas. Diante desse contexto, podemos pensar que a mídia atua através de processos de subjetivação, constituindo identidades e produzindo conceitos e comportamentos. A subjetividade envolve, pois, modos pelos quais nos tornamos sujeitos. Deste modo, os filmes possuem uma materialidade discursiva, que constitui subjetividades e posições de sujeito, a partir da estruturação de diálogos, sons e imagens presentes no discurso cinematográfico.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O câncer está, na nossa cultura, intrinsecamente ligado à morte. Com frequência, a doença aparece, nos filmes, relacionada à malignidade, à fatalidade, à sentença de morte. O câncer é considerado muito mais do que enfermidade que, em geral, é fatal. O câncer é identificado como a morte em si(2). Os personagens morrem em quase todos os filmes e, naqueles em que os personagens sobrevivem, projeta-se o enunciado de que logo morrerão, o que é visto principalmente pelas cenas de despedidas entre o personagem doente e seus amigos e familiares, como na despedida do casal Sara e Nelson, em "Doce Novembro":

Tudo que temos são nossas lembranças. Quero que essas lembranças sejam fortes e belas. Se eu souber que serei lembrada dessa forma, encaro qualquer coisa. Nelson, você é minha imortalidade (Sara, de "Doce Novembro").

A partir dessa percepção da conexão câncer-morte existente no discurso fílmico, analisamos algumas dizibilidades e visibilidades que apresentam a morte de pessoas com câncer no cinema.

A imagem imortal do corpo saudável

É recorrente o discurso da lembrança daquela pessoa que está morrendo, ou que já morreu, como resultado de um esforço para "imortalizá-la". É interessante observar que nos filmes em que os personagens morrem, de modo geral, a imagem final é a de um corpo saudável, permanecendo "cheios de vida" na memória dos que estão vivos. O modo de lembrar aquele que morreu fica nítido nas cenas finais de "Uma Lição de Vida". Após a morte de Vivian, a câmera filma seu rosto em ângulo alto, realizando zoom-in, que é um efeito óptico de aproximação repentina do personagem, com a função de dramatizar lances da narrativa. Enquanto esse movimento é feito ocorre uma sobreposição de imagens, mesclando a foto do rosto de Vivian morta, com a foto do rosto da personagem viva, antes da doença, como podemos observar na figura 1. Finalmente a primeira imagem desaparece, e o filme termina com a foto da personagem viva, com um discreto sorriso, em preto e branco, efeito que consolida a ideia de que se trata de uma lembrança do passado:


Uma narrativa que remete à vontade que o doente tem de permanecer "imortal" é a de "Minha Vida". Ao longo do filme, Bob grava vídeos para que seu filho, que está prestes a nascer, o veja após sua morte, que é anunciada ao longo da narrativa. Nos vídeos, Bob deixa recados, dá conselhos, conta histórias, na tentativa de exercer sua função de pai (apoiado pelos discursos modernos de paternidade) mesmo com a ausência de seu corpo. Na cena final do filme, após a morte de Bob, a câmera capta o televisor cuja tela reproduz um dos vídeos gravados por Bob, enquanto seu filho olha a imagem atentamente, reconhecendo que aquele é seu pai, como mostra a figura 2. Na imagem, é possível observar sobre o aparelho de televisão as diversas gravações deixadas por Bob em meio aos brinquedos da criança, mostrando que aquele pai ausente de corpo é tornado presente no cotidiano daquela família, através dos vídeos que parecem cumprir a função de torná-lo "imortal":


A forma como o morto é "eternizado" na memória dos vivos remete à ideia de que o fim do corpo não é o fim do sentimento. Com isso, pensamos que esse discurso da lembrança do corpo morto aponta para uma pedagogia que ensina que pessoas que morrem devem ser "imortalizadas" através da memória dos vivos, e que essa memória deve fazer permanecer a lembrança do corpo saudável. Isso acontece, talvez, porque a morte do outro nos remete à nossa própria morte, ou seja, a visão dos personagens moribundos abala as ideias defensivas que construímos contra a ideia de nossa morte. Deste modo, a imagem da pessoa morta em nossa memória está muito próxima da imagem que temos de nós mesmos(7).

Silenciamento da morte

O momento da morte do personagem com câncer, quando mostrado, é caracterizado por uma morte serena, apesar da morte decorrente dessa doença ser considerada como "morte espetacularmente deplorável"(2). Sabemos, por exemplo, que Freud, acometido por um câncer de laringe, teve uma morte demorada, permeada por um mau cheiro que mesmo o seu cão mantinha-se longe do doente(7). Entretanto, o morrer com câncer é mostrado, pelo cinema, de forma bem diferente dessas narrativas. Em "Um Amor Verdadeiro", Kate passa seus momentos finais de vida em sua casa, acompanhada de sua filha, como mostra a figura 3:


A imagem mostra uma morte serena, sem dores nem grandes alterações corporais e, talvez, sem cheiros: não há espaço para agonia nem sofrimento. O curioso é que a morte, nesses filmes que têm a doença como tema, é mostrada de forma sutil, ao passo que os filmes de guerra, de terror ou mesmo os filmes policiais apresentam o corpo morto em plano-detalhe, dando ênfase à morte violenta, apresentando corpos desmembrados, desfigurados, manchados de sangue. Será que a morte em decorrência do câncer deve ser amenizada, de acordo com a lógica discursiva de Hollywood? Acreditamos que esse silenciamento da morte se deve, principalmente, à finitude do corpo e às marcas da sua transformação no transcorrer da vida, que se tornam impensáveis na sociedade ocidental, onde a morte é vista como a decadência e a derrota que estão por vir e que, por isso, deve ser evitada a todo o custo(5). Assim, tais filmes tendem a silenciar o morrer com câncer, do mesmo modo que observamos no cotidiano, quando "não pensamos ou queremos esquecer que [a morte] caminha junto com a vida"(5). A morte assume, em nossa sociedade regida pela vida, uma posição na qual as técnicas reguladoras, tais como as produções hollywoodianas, devem fazê-la desaparecer para "fazer viver". Deste modo, essas produções exercem uma pedagogia que ensina modos de morrer com câncer. A experiência da morte "é variável e específica segundo os grupos; não importa quão natural e imutável possa parecer aos membros de cada sociedade particular: foi aprendida"(7).

O cuidado com o corpo pós-morte

Observamos, sobretudo nos filmes produzidos no século XXI, que o corpo morto passa a ser manipulado. Em "Uma Lição de Vida", quando o Dr. Jason percebe que não há batimento cardíaco em Vivian, chama a equipe médica e tenta reanimá-la, mesmo sabendo que ela havia assinado um documento concordando que não deveria haver investimento para recuperar sua vida caso houvesse parada cardiorrespiratória. A lição é dada pela enfermeira, que impede que a equipe continue o procedimento. Em seguida, o corpo morto é mostrado recebendo cuidados pela enfermeira, como mostra a figura 4:


Nessa cena, a iluminação é projetada sobre Vivian e a enfermeira, de modo que esta última parece ser destacada, principalmente, por ter respeitado a "vontade" da personagem Vivian. Enquanto isso, o médico, saindo de cena, é "apagado" por esse recurso. É possível pensar nas proposições econômicas a que o cinema se filia, ao contar uma história que propõe evitar dispêndios médicos com um paciente que está morrendo, entrando na lógica do "deixar morrer", e não mais do "fazer viver". Dessa forma, espectadores são subjetivados pelos modos de investimento econômico conforme a lógica do "deixar morrer", já que os doentes não têm perspectivas de cura. Entretanto, podemos pensar que o cinema, ao produzir cenas que destacam o respeito à vontade do paciente em não receber assistência tecnológica que prolongue sua vida, nos ensina a aceitar a morte do doente de câncer em estágio avançado.

Aceitação da morte

A produção do discurso é sempre controlada e selecionada, para que seu acontecimento possa ser dominado(18). Com isso, procedimentos de interdição se fazem necessários: "Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa"(18). A morte decorrente do câncer pode ser considerada, na cultura ocidental, tabu que é objeto de procedimentos discursivos de interdição. Entretanto, com a crescente produção de filmes que mostram o morrer com câncer, nos questionamos: será que essa morte está deixando de ser um interdito social? Uma fala proferida no filme "O Amor pode dar Certo" resume, em nossa opinião, o modo como Hollywood pretende tratar a morte decorrente do câncer. Griffin e Phoenix, já informados da impossibilidade de cura de suas doenças, assistem a uma palestra no auditório de uma universidade. O professor diz:

A frustração e o medo são baseados na tradição da sociedade de tentar entender tudo... controlar tudo, conquistar tudo. Aprendemos a voar, viajar no espaço, curvar os átomos à nossa vontade... mas não conquistamos a morte. [...] estamos todos morrendo um pouquinho por dia... [...] Pois quando percebemos que nossa vida é finita... Bem, classe, ela é finita, desde o dia em que nascemos. [...] E, no entanto, lembrem-se: a morte faz parte da vida (Professor, de "O Amor pode dar Certo").

Ainda que o processo de morrer venha sendo alvo de múltiplos estudos no sentido de melhor compreendê-lo, essa etapa da vida é vista como fracasso(19). Entretanto, parece que, aos poucos, o cinema hollywoodiano tenta produzir a "aceitação" da morte. Talvez, "cada vez mais, nossa sociedade considera uma virtude falar justamente daquilo que se considera que não deve ser mencionado"(2), nesse caso, o morrer com câncer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse artigo não tem um ponto final, pois pensamos que os estudos que fazemos trazem mais perguntas do que respostas, como a dissertação de mestrado intitulada "Câncer, Corpo e Cinema: lições de Hollywood sobre adoecer e morrer"(20), do qual este artigo originou-se. Acreditamos que não existem respostas derradeiras às perguntas que fazemos, mas muitas possibilidades de pensar. Esse estudo não tem a pretensão de determinar o que é certo e o que é errado, criticar ou julgar, quando se trata de questões relativas ao morrer com câncer. Nossa intenção foi, unicamente, problematizar os discursos veiculados por Hollywood, considerando que esse artefato cultural, ao instituir saberes que produzem regimes de verdade, constitui sujeitos e práticas.

Pensamos que o modo de ver a morte decorrente do câncer é construído discursivamente. Há um modo "correto" de morrer, e um modo que não entra nessa ordem do discurso. Tais discursos são tão poderosos que se tornam naturalizados, banalizados e inquestionáveis. Essas produções acerca do morrer com câncer nos dão pistas sobre como aprendemos a nos relacionar com a morte. São textos que nos capturam através de seus enredos, movimentos, cores e músicas, e nos interpelam para que saibamos o que é morrer com câncer.

Com isso, pretendemos provocar reflexões que possam contribuir para a assistência e para a docência em Enfermagem. Gostaríamos que este estudo pudesse proporcionar outro modo de olhar para esses pacientes: não apenas como corpos que estão morrendo, mas também como corpos cujos sentidos são construídos discursivamente. A Enfermagem, tradicionalmente permeada por discursos dogmáticos, com saberes enraizados, precisa estar atenta às mudanças discursivas ao seu redor. Não para simplesmente acatar tais discursos, mas para questioná-los e permitir que exista um espaço de reflexão sobre suas práticas. E, a partir disso, entender que aprendemos a ver a morte decorrente do câncer de diferentes formas, nas mais diversas instâncias educativas, sendo o cinema uma delas.

Recebido em: 29.04.2013

Aprovado em: 04.10.2013

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  • Endereço para correspondência:
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Mar 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      29 Abr 2013
    • Aceito
      04 Out 2013
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