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A rede de atenção à saúde mental a partir da Estratégia Saúde da Família

Resumos

A Estratégia de Saúde da Família (ESF) é um importante aliado na rede de atenção à saúde mental, contribuindo para a integralidade e efetividade do cuidado. Este estudo teve como objetivo discutir a rede de atenção em saúde mental a partir do cotidiano de uma ESF. É um estudo avaliativo, com abordagem metodológica qualitativa. Foi desenvolvido em uma ESF de Porto Alegre, RS, Brasil. Os dados foram coletados entre julho e dezembro de 2010, por meio de entrevistas com 16 trabalhadores e dez familiares. Identificamos importantes recursos de cuidado na atenção básica, como a parceria com a academia. No entanto, a constituição desse cuidado ainda está embasada no especialismo, com a lógica do encaminhamento. Pretendemos com esse estudo contribuir para a operacionalização da rede de cuidados em saúde mental, consolidando a parceria com a ESF e desenvolvendo ações no espaço territorial, sensibilizando e desmistificando a atenção na área como unicamente especializada.

Saúde mental; Serviços de saúde; Atenção primária à saúde


The Family Health Strategy Service (FHSS) is an important ally in the mental health system, contributing to the completeness and effectiveness of care. This study aimed to discuss the mental health care network as compared to the daily routine of an FHSS. It is an evaluative study with a qualitative methodological approach. It was developed in an FHSS in Porto Alegre-RS, Brazil. Data was collected between July and December of 2010 through interviews with 16 workers and ten relatives. We identified important resources in primary health care, such as partnerships with academia. However, the constitution of this care is still based on specialty, following the logic of patient referral. Our intention for this study was to contribute to the operationalization of the mental health care network, consolidating the partnership with the FHSS and developing activities in the territorial space, raising awareness, demystifying health care service in the area, and countering the perception that it is uniquely specialized.

Mental health; Health services; Primary health care


La Estrategia Salud de la Familia es un importante componente de la red de salud mental, contribuyendo para la integralidad y efectividad del cuidado. Este estudio tuvo como objetivo discutir la red de atención en salud mental desde la Estrategia Salud de la Familia. Es un estudio evaluativo, con abordaje cualitativo. Fue desarrollado en una ESF de Porto Alegre-RS, Brasil. Los datos fueron recolectados entre julio y diciembre de 2010, con entrevistas aplicadas a 16 trabajadores y 10 familiares. Se identificó que hay recursos importantes de cuidado en salud mental en la atención primaria, como la relación con la academia. También, la concepción de cuidado está basada en la especialidad. Se pretende que se pueda contribuir en la operacionalización de la red de cuidados en salud mental, consolidando la articulación con la ESF y desarrollando acciones en el territorio, sensibilizando y desmitificando la salud mental, considerada únicamente especializada.

Salud mental; Servicios de salud; Atención primaria de salud


INTRODUÇÃO

A reforma psiquiátrica no Brasil se configura em um movimento complexo que tem como objetivo transformar as práticas em saúde mental. Neste cenário, surge uma rede articulada e dinâmica de serviços substitutivos, contemplando o cuidado no território. A Estratégia de Saúde da Família (ESF) torna-se, então, um importante aliado nessa rede, contribuindo para a integralidade e efetividade da assistência.

A ESF constitui-se numa nova modelagem assistencial, responsável por gerar novos processos de trabalho ressaltando a importância do sujeito e dos coletivos nessa construção. Funcionando numa lógica usuário-centrada, a ESF pode transformar o olhar do trabalhador sobre o processo saúde/doença, além de garantir cuidados voltados à promoção da saúde( 11. Fortuna CM, Matumoto S, Pereira MJB, Mishima SM, Kawata LS, Camargo-Borges C. Nurses and the collective care practices within the family health strategy. Revista Latino-Am Enfermagem. 2011;19(3):581-8. )

Um dos maiores desafios no contexto da ESF é a integração entre a saúde mental e a saúde da família. Nesse contexto, ela se traduz em um ponto de partida, saída ou chegada para o usuário na sua caminhada para a resolução de problemas sociais e subjetivos. Entretanto, as condições econômicas, sociais e culturais e a conexão a práticas medicalizantes reduzem a comunicação comunitária e intersetorial essencial para o campo psicossocial. Por isso a necessidade dessa articulação( 22. Buchele F, Laurindo DLP, Borges VF, Coelho EBS. A interface da saúde mental na Atenção Básica. Cogitare Enferm. 2006;11(3):226-33.

3. Pinto AGA, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, Sampaio JJC, Lima GP, Bastos VC, et al. Apoio matricial como dispositivo do cuidado em saúde mental na atenção primária: olhares múltiplos e dispositivos para resolubilidade. 2012;17(3):653-60.
- 44. Bosi MLM, Carvalho LB, Ximenes VM, Melo AKS, Godoy MGC. Inovação em saúde mental sob a ótica de usuários de um movimento comunitário no nordeste do Brasil. Cienc Saúde Colet. 2012;17(3):643-51. ).

Portanto, torna-se importante conhecer a rede de atenção à saúde mental com foco no território, fortalecendo os diversos dispositivos intersetoriais e serviços de saúde que compõe a trama de conexões territoriais, contemplando o espaço de vida dos usuários e seus familiares. Caminhar nessa direção é potencializar a visão de que o cuidado em saúde mental deve ser realizado fora dos muros dos serviços, uma vez que uma das premissas da atenção psicossocial é justamente o cuidado em liberdade, a autonomia e o autogoverno.

Assim, entendemos que conhecer essa organização também revitaliza as nossas relações com a loucura, diminuindo estigmas e preconceitos. Se por muito tempo, a loucura ficou presa dentro de instituições segregantes, hoje a loucura e o louco devem ser vistos para além de seus muros, na sua comunidade, no seu território, enfim, como protagonistas de suas histórias e projetos de vida.

Por isso, consideramos neste estudo a seguinte questão norteadora: qual é a organização da rede de atenção em saúde mental a partir da Estratégia Saúde da Família? Para respondê-la, tivemos como objetivo discutir a rede de atenção em saúde mental a partir do cotidiano de serviço de uma Estratégia Saúde da Família (ESF).

METODOLOGIA

Este estudo é um recorte dos resultados da pesquisa MENTAL-ESF( 55. Olschowsky A, coordenadora. Avaliação da saúde mental na Estratégia Saúde da Família (MENTALESF): relatório final. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2011. ), de natureza avaliativa, qualitativa. O foco central foi avaliar o cotidiano do serviço, sua dinâmica, a forma com que os sujeitos interagem e os sentidos que constroem em relação à própria prática. Foi realizada por meio da Avaliação de Quarta Geração( 66. Guba EG, Lincoln YS. Fourth generation evaluation. Newbury Park: Sage Publications; 1989. ).

Na condução das entrevistas foi utilizado o Círculo Hermenêutico Dialético( 66. Guba EG, Lincoln YS. Fourth generation evaluation. Newbury Park: Sage Publications; 1989. ). Inicialmente, foi realizada uma questão aberta, solicitando ao primeiro entrevistado que falasse sobre o atendimento em saúde mental na ESF. A partir dessa manifestação livre, foram surgindo desdobramentos, que, ao serem analisados, geraram uma construção analítica prévia. Essa construção era inserida nas outras entrevistas, para o entrevistado pudesse se manifestar.

O método utilizado neste estudo exigiu que a análise e a coleta de dados fossem processos paralelos, um direcionando o outro, baseado no Método Comparativo Constante( 77. Guba EG, Lincoln YS. Naturalistic inquiry. Newbury Park: Sage Publications; 1985. - 88. Kantorski LP, Wetzel C, Schwartz E, Jardim VMR, Heck RM, Bielemann VLM, et al. Uma proposta metodológica quantitativa e qualitativa de serviços de saúde mental: contribuições metodológicas. Saúde em Debate. 2009;33(82):273-82. ). Segundo ele, toda a entrevista já é previamente analisada, constituindo um desdobramento analítico, que, posteriormente, seria levado aos grupos de interesse para validação.

Na análise dos dados, as questões surgidas foram reagrupadas, permitindo a construção de marcadores de avaliação, internos e externos. Foram delimitados os seguintes marcadores internos: Ambiência e Características do Processo de Trabalho. Os marcadores externos foram: Gestão e Articulação em Rede e Intersetorialidade. Neste artigo discutiremos um dos temas do marcador Gestão e Articulação em Rede: a rede de atenção em saúde mental a partir da ESF enquanto dispositivo para o cuidado em saúde mental na ESF.

Com relação aos procedimentos metodológicos, o estudo foi desenvolvido em uma ESF no município de Porto Alegre-RS, Brasil. Os dados foram coletados entre julho e dezembro de 2010, por meio de entrevistas com grupos de interesse - 16 trabalhadores, dez usuários e dez familiares. Neste estudo, utilizamos os dados provenientes das entrevistas com 16 profissionais da ESF, além de dez familiares.

Para os profissionais foi considerado, como critério de inclusão, trabalhar há, pelo menos, seis meses. Foram excluídos profissionais que estavam em período de licença ou férias e aqueles que não se dispuseram a participar voluntariamente da pesquisa. Em relação aos familiares, foram incluídos aqueles com boa inserção na ESF, considerados pela equipe como aqueles que participam ativamente no cuidado em saúde mental de seu familiar. Aqueles que não se dispuseram a participar da pesquisa ou permitir a divulgação dos resultados, resguardadas as questões éticas, foram excluídos da coleta.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, sob o parecer 001.056577.08.7/2008. Todos os sujeitos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A fim de garantir o anonimato, os sujeitos foram identificados pelas letras E (equipe) e F (familiar), seguido do número que representa a ordem da entrevista.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Com o movimento de reforma psiquiátrica, a saúde mental vem se conduzindo em um processo complexo de autoafirmação por um fazer/saber que ultrapasse o modelo hospitalocêntrico, biomédico e medicalizante (9). Nesse sentido, a rede de saúde mental deve ser constituída por várias esferas que compõem o processo de cuidado em liberdade e as equipes tem a possibilidade de contar com suporte e apoio de recursos territoriais, os quais estão convocados a potencializar os esforços de cuidado e reabilitação psicossocial( 1010. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde. Saúde mental e atenção básica: o vínculo e o diálogo necessários - inclusão das ações de saúde mental na atenção básica. Brasília (DF); 2003. ).

Como já foi abordado, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) constitui-se como dispositivo com potencial de inovação, sendo a saúde mental um dos seus pilares. No entanto, em nosso caso, a equipe da ESF Pitoresca identifica que a rede disposta atualmente ainda encontra-se centrada no modelo psiquiátrico tradicional, curativista e biomédico:

A rede é equipada para um perfil de paciente, de usuário, de cliente da antiga saúde mental, que era uma saúde mental voltada para a internação e para o transtorno grave [...] internação, contenção e muita medicação e quase nenhum recurso de base territorial. (E13)

Os trabalhadores identificam que a rede não existe por si só, mas sim se estabelece e cria vida a partir de um movimento desencadeado por eles próprios, pautados no diálogo e conhecimento dos diversos serviços que a compõem. A articulação e ativação da rede ocorrem de acordo com o olhar para o problema de saúde, que pode ser a partir de elementos da psiquiatria tradicional, a qual está centrada na queixa-sintoma, como pode ser ativada a partir do olhar para a pessoa e seu sofrimento:

A articulação e ativação da rede de saúde mental dependem do olhar do profissional que atende - olhar para além da queixa-sintoma explicitado pelo usuário. (E13)

Outra questão elencada pelos profissionais é a falta de suporte, por meio dos CAPS, no território de abrangência do serviço, para que os casos mais graves e urgentes possam ser atendidos. Refere-se à importância de não ter a internação como único recurso em saúde mental, tendo como solução e alternativa a implantação de um CAPS na Gerência Distrital Lomba do Pinheiro/Partenon, o que qualificaria o aparato de atenção em saúde mental e a articulação entre os diversos serviços.

O CAPS aqui pra nós do Partenon não tem [...] Um CAPS seria muito bom para o pessoal... não temos. (E19)

E além disso tem a idéia da falta de recursos de uma forma geral, de ter um CAPS, um atendimento especializado para esse problema, existem poucos recursos para isso. (E9)

O CAPS de referência para a demanda de saúde mental da ESF Pitoresca é o CAPS do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Entretanto, essa integração é frágil entre os dois serviços, pois o acesso é restrito e a demanda é grande:

O CAPS do Clínicas, que a gente dificilmente tem acesso, esse que é a nossa referência. (E17)

O referido CAPS não tem como estratégia de acesso o acolhimento, abrindo para triagens de acordo com a disponibilidade de vagas. Acolhimento aqui entendido enquanto estratégia para a mudança do modelo curativo para um baseado na qualidade de vida, promoção da saúde, autonomia e integralidade da assistência da população. Trata-se de uma estratégia, pois propõe a integração da organização da demanda e das atividades com vistas a saúde do indivíduo/família, e interfere na dinâmica do processo de trabalho e no estabelecimento de uma relação mais próxima usuário, profissional e serviço( 1111. Coimbra VCC. O acolhimento em centro de atenção psicossocial. Rev Enferm UERJ. 2005;13(1):57-62. ).

Cabe ressaltar que nenhum dos CAPS do município de Porto Alegre atua de portas abertas, oferecendo possibilidade de acesso à população adstrita sem mecanismos intermediários, como triagem, agendamento, marcação de consultas, entre outros. O baixo número de CAPS no município não favorece a efetiva territorialização dos existentes, que acabam se constituindo como referência para um quantitativo populacional superior ao preconizado, o que dificulta o dialogo com as especificidades do território geográfico-cultural dos seus usuários.

Em grandes capitais, como o município estudado, as barreiras de acesso aumentam devido às distâncias entre os lugares em que as pessoas vivem e os lugares em que as pessoas se tratam, fragilizando o vínculo e integração entre os trabalhadores dos diferentes pontos de atenção e desses com o território.

A dinâmica de uso e ocupação do território, a qual sofre influência de fatores econômicos, ambientais, sociais e culturais, apresenta significativas implicações para as condições de saúde dos indivíduos e para disposição do sistema de saúde. Nesse caso, as peculiaridades de regiões metropolitanas, como a elevada mobilidade populacional e a disponibilidade, na área mais central da metrópole, de diversos e variados serviços de saúde, de diferentes níveis de complexidade, repercutem de maneira significativa no acesso e utilização dos serviços de saúde. Essa situação, algumas vezes vai de encontro com as diretrizes e princípios de organização do SUS( 1212. Machado CV, Lima LD. Os desafios da atenção a saúde em regiões metropolitanas. In: Giovanella. L. et al., organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p.945-77. ).

A inexistência de um CAPS no território estudado é a realidade que se reproduz em tantos outros desse município, retratando a ausência de uma política de saúde mental comprometida com as diretrizes e pressupostos da reforma psiquiátrica brasileira. Isso reforça a continuidade/permanência do hospital psiquiátrico com grande centralidade no cenário das ações de saúde mental. Os trabalhadores da ESF, frente às dificuldades relatadas no acesso aos serviços substitutivos, continuam encaminhando ao hospital psiquiátrico os casos de saúde mental do território:

É só no Espírita (hospital). (E16)

Os familiares identificam esta limitação: percebem que são acolhidos pela equipe e que, dentro dos seus limites, tem a possibilidade de ter um acompanhamento para suas demandas no campo da saúde mental. Esses limites estão relacionados principalmente ao fato de que "tem muita gente para atender", ou seja, o atendimento é pontual para resolução de determinado problema, não dispondo de tempo para o diálogo terapêutico. Apesar de ser apontada a possibilidade de que o acompanhamento ocorra na ESF, reforçam que, quando é necessário um acompanhamento para um serviço especializado, a opção principal da equipe é encaminhar para o hospital psiquiátrico:

Ali não tem psicólogo assim direto pra conversar. A doutora às vezes conversava comigo. É muita gente pra ela atender [...] era só depressão, ela conversava comigo. Quando se transformou que não conseguia sair de casa, daí ela me encaminhou para o São Pedro. (F4)

A carência de uma rede de saúde mental foi um dos aspectos que teve relevância durante o processo de avaliação neste estudo, no entanto, essa carência era percebida em situações que demandavam um cuidado especializado para usuários com os chamados transtornos graves. Porém, os trabalhadores percebem que existem necessidades outras no que se refere ao cuidado em saúde mental, as quais geram intenso sofrimento e incapacidade de viver a vida, mas que não tem a sua origem em um transtorno psiquiátrico, como pode ser exemplificado nos depoimentos a seguir:

Tem a questão do sofrimento psíquico que virou meio que um denominador no que seja de saúde mental e, no final das contas, o que a gente tem muito é transtorno de ansiedade, uso depressivos, coisas que não são tão graves, assim, a ponto do indivíduo precisar ser hospitalizado, internado. É um paciente que, na maioria das vezes, é ambulatorial e é uma coisa que acho que a própria sociedade hoje em dia causa bastante esse tipo de ansiedades e depressões. Estruturalmente, leva isso a uma situação que nós temos bastante demanda. (E13)

Tinha uma situação aí, que uma mãe chegou, ela veio chorando aqui, conversou comigo e ficou algum tempo conversando. E aí, porque ela tem duas filhas e as duas começaram a usar droga [...] e ainda por cima ela descobriu que a menina gosta de meninas [...]. E ai, tá, ela veio aqui, conversou, desabafou, chorou, conversou bastante. Eu falei o que podia falar, falei até o que eu não podia. Mas assim, o que eu precisaria naquele momento? Precisaria ter algum lugar para encaminhar, principalmente, a mãe para uma terapia. (E15)

Evidenciamos a necessidade de criação de novas estratégias de atuação no interior da ESF, a partir das demandas reais de saúde mental, a fim de que os profissionais possam acolher e responsabilizarem-se por esses usuários, os quais podem ser acompanhados em seu território, sem terem que optar por atendimento em serviços específicos de saúde mental.

O atendimento as demandas de saúde mental é qualificado e potencializado por meio do suporte da equipe de apoio matricial e da parceria com a Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que desenvolve atividades práticas nesta ESF. Além disso, na medida em que a equipe se sente apoiada, assume a responsabilidade por esse cuidado na própria Unidade, quebrando com esse ciclo automático e naturalizado de encaminhamento para os serviços especializados. Entretanto, precisam ser ampliadas estratégias que proporcionem inserção social aos usuários, espaços terapêuticos e de continuação do cuidado:

A gente tem um respaldo da equipe bem bom e o que vem de fora que agrega a nós que é o matriciamento [...] a professora da UFRGS, que nos dá um apoio bom [...] Poderia se ter uma coisa melhor, mais programas pra eles poderem se inserir, os doentes pra não tomar tanto remédio que eu acho que a questão é mais medicamentosa assim, controle da própria patologia com medicação, eu acho que se tivesse uma coisa maior para se poder fazer, terapias, grupos, programas do governo seria mais interessante, tem poucos. O acesso não é muito, além de ter poucos, o acesso não é muito divulgado. (E3)

A presença de instituições psiquiátricas tradicionais no distrito, principalmente do Hospital Psiquiátrico São Pedro, criou uma cultura muito forte no território na direção do modelo manicomial, na medida em que a internação dos usuários foi o caminho utilizado por essa comunidade por diversas décadas, o que pode dificultar e criar barreiras em uma proposta de mudança de modelo. Contraditoriamente, essa presença possibilita o acesso a estruturas organizadas e o estabelecimento de parcerias com os trabalhadores das mesmas, o que tem possibilitado a ESF Pitoresca o encaminhamento de diversas situações:

Aqui no nosso distrito, por nós termos condições legais, pessoais, de rede, da gerência e desse apoio logístico de ter o ambulatório, ter o São Pedro, ter equipe de saúde mental, ter a Tobias Barreto, enfim, com esses recursos a gente tá conseguindo ter um resultado legal. (E13)

Os reflexos desta cultura manicomial também são percebidos no grupo dos familiares. Entretanto, alguns familiares o desconhecem e outros apresentam relutância para essa nova modalidade de cuidados, pois até então só estavam acostumados com o atendimento no interior do hospital psiquiátrico, pelo modelo manicomial:

Olha, eu estava achando ruim, porque eu estava acostumada a tratar ele no São Pedro, mas aí eu vi que era preciso, estava de alta mesmo e tem gente com mais necessidade do que ele. Por isso encaminharam ele de volta para o posto. Tem gente com mais problema, que precisa mais ser tratado. Ficou assim em aberto. Se ele piorar, ou alguma coisa assim, aí tem que procurar o São Pedro. (F2)

Essa resistência é reforçada pelo fato de que muitos serviços especializados do município de Porto Alegre não obedecem à proposta de regulação, desenvolvendo mecanismos de acesso pouco transparentes, não possibilitando que a ESF possa se configurar como porta de entrada aos mesmos. Os familiares, quando conseguem atendimento nesses serviços, sabem que a desvinculação dos mesmos pode significar que, quando necessitarem, essa porta não estará tão aberta assim.

Em relação ao panorama geral de encaminhamentos, percebe-se que esses, na maioria das vezes, são mais rápidos e efetivos quando se trata da articulação com o Hospital Psiquiátrico São Pedro:

Eu acho que sim, porque eles agilizaram rápido a consulta para ele. (F2)

Eu acho rápido. Eles foram rápidos. Não ficou naquele enrola, enrola tipo ah... eu vou mandar, eu vou mandar e não mandam. Eu achei também essa parte do encaminhamento bem rápido. (F10)

Todavia, quando há necessidade de encaminhamento da ESF para serviços que compõem a rede de saúde de Porto Alegre, muitas vezes torna-se uma "via sacra" para os usuários e familiares. Isto se dá pelo fato de que há grande distância entre os diversos dispositivos, e também porque muitas vezes estes não se responsabilizam pela demanda, deixando os usuários e seus familiares a mercê da disposição dos serviços em prestarem atendimento ou não:

Muito, muito longe... e no Pinheiro não queria atender, na Bom Jesus também não. Aí tinha que ir lá na Cruzeiro. E às vezes tem outros postos que não querem. Uma vez disseram que a gente não pertence ao território. Eu disse: Ah... mas eu vim aqui porque do meu posto mandaram eu vir aqui. (F4)

Tu procuras, eu procurei na UFRGS, não deu. Eu já procurei em tudo que é lugar. Como eu ajudo a LBV (Legião da Boa Vontade) também, liguei para a LBV e também não tem. (F6)

Familiares também questionam a legitimidade do encaminhamento que é dado pela equipe da ESF para outros serviços, pois muitas vezes há o atestado do médico para orientar o atendimento, e quando o usuário apresenta o documento, este não é levado em consideração, o que impede que o sistema de referência e contra-referência se efetive de fato:

Deveria de ser, não precisar essa via sacra toda, é muito grande. Porque assim como o médico é competente, está tratando daquela pessoa e, também, eu acho que o atestado dele tem que ter validade para chegar lá na triagem e hospitalizar o paciente. O médico ter direito de autorizar... é uma coisa desclassificando o próprio médico. (F9)

A dificuldade de comunicação não se dá de forma unilateral. Quando o usuário sai de alta do serviço especializado deveria ser operacionalizada a contra-referência, fundamental para a continuidade do tratamento. A equipe da ESF identifica essa dificuldade, pois, quando o usuário retorna, não há nenhum documento que descreva de onde ele provém e em qual serviço recebeu cuidados:

Às vezes a gente recebe as notas de alta do Espírita aí a gente passa pras unidades, bom vamos atrás, vamos ver quem é, mas não é sempre, não é sempre as vezes chega três meses depois. (E17)

No entanto, alguns trabalhadores apontam que os encaminhamentos da ESF para os serviços especializados vêm evoluindo e a comunicação entre os serviços de saúde vem melhorando, principalmente por meio de reuniões periódicas para a discussão de casos:

A questão dos encaminhamentos está evoluindo. Eu acho que de um modo geral as parcerias tanto com o ambulatório Santa Marta, com o SIABS, com o São Pedro a gente sempre faz reuniões com eles, duas vezes por mês a gente tem reunião com ambulatório pra discutir os casos que estão na atenção básica de cada unidade. (E17)

Acho que a gente está conseguindo fazer os encaminhamentos. (E16)

Não é só o redirecionamento dos recursos assistenciais do hospício para a comunidade que é decisivo para alcançar a desinstitucionalização da loucura. O isolamento e a exclusão do louco da vida em sociedade são amparados por um modo de lidar com a diferença, com fenômenos que, no interior de uma determinada ordem pública, são considerados insensatos. Assim, faz-se necessário um processo de desmontagem dos saberes que comprimem essa experiência da loucura no interior da sintomatologia da doença mental, com concomitante criação de novos modos de sociabilidade e produção de valor social( 1313. Silva MBB. Atenção psicossocial e gestão de populações: sobre os discursos e as práticas em torno da responsabilidade no campo da saúde mental. Physis 2005;15(1):127-50. ).

Podemos dizer que a reforma psiquiátrica diz respeito a uma mudança nas políticas públicas de saúde mental, no sentido de priorizar o atendimento comunitário do paciente psiquiátrico em detrimento da internação asilar: do tratamento da doença mental no hospício para a reinserção social do usuário na comunidade( 1313. Silva MBB. Atenção psicossocial e gestão de populações: sobre os discursos e as práticas em torno da responsabilidade no campo da saúde mental. Physis 2005;15(1):127-50. ). Desafio este entendido como candente no contexto da saúde mental, de forma a reposicionar o sujeito por muito tempo esquecido dentro de espaços convencionais de atendimento e a valorizar a necessidade de composição de redes, atentas às qualidades, necessidades, realidades e contextos singulares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A articulação da assistência em saúde mental, por meio de uma rede dinâmica e conectada, é um desafio no novo cenário das políticas públicas de saúde no Brasil. A garantia do acesso, atendimento, prevenção, resolução e reabilitação aos usuários dos serviços de saúde tornam-se instigante aos profissionais.

Pretendemos, com esse estudo, contribuir na operacionalização da rede de cuidados em saúde mental, consolidando a parceria com a ESF e desenvolvendo ações no espaço territorial, sensibilizando e desmistificando a atenção na área como unicamente especializada.

Com relação ao impacto dos resultados do estudo de avaliação das ações de saúde mental desenvolvidas na ESF, a carência da rede e a concepção distorcida do especialismo como desfecho de resolubilidade em saúde mental constitui um dos maiores desafios da reforma psiquiátrica. A avaliação dos grupos de interesse sobre isso mostra a necessidade de se investir em estratégias que superem essa lógica.

Nesse sentido, visualizamos o cenário estudado como um espaço prioritário, necessário e atual para investigações que preconizem mudanças e criatividade na atenção em saúde mental no espaço do território.

REFERENCES

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    Pinto AGA, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, Sampaio JJC, Lima GP, Bastos VC, et al. Apoio matricial como dispositivo do cuidado em saúde mental na atenção primária: olhares múltiplos e dispositivos para resolubilidade. 2012;17(3):653-60.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2013
  • Aceito
    21 Mar 2014
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