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Preceptoria na perspectiva da integralidade: conversando com enfermeiros

Resumos

Objetivou-se compreender a preceptoria em Enfermagem nos campos de práticas e sua articulação com a integralidade do cuidado. Pesquisa de campo qualitativa, realizada em Fortaleza, Ceará, Brasil, de abril a junho de 2012. Foram entrevistados 20 preceptores nos campos de prática de três Instituições de Ensino Superior em três hospitais da rede pública estadual e uma unidade básica de saúde. A análise temática permitiu a apreensão do tema Preceptoria, na perspectiva da integralidade, e as categorias empíricas: (des)integração do ensino serviço: o distanciamento da academia; o acolhimento do estudante no campo de práticas; no campo, a rotina ensina; a integração ensino-serviço sob a ótica do preceptor. Os resultados apresentaram a integração ensino-serviço em situações de risco mediante o biologicismo e a lacuna entre instituições de ensino e os serviços de saúde, porém como, caminho de construção para as transformações necessárias, a consolidação do Sistema Único de Saúde.

Enfermagem; Preceptoria; Sistema Único de Saúde


The aim of this study was to understand preceptorship in nursing practice fields and its association with comprehensive care. This study was based on qualitative field research conducted in Fortaleza, Ceará, Brazil, from April to June 2012. A total of 20 preceptors were interviewed in the practice fields of three higher education institutions at three public state hospitals and one basic health unit. Thematic analysis enabled apprehension of the theme 'preceptorship in the perspective of comprehensive care', and the empirical categories: (dis)articulation in teaching-service: distancing from academic institutions; welcoming students in the practice field. On the field, routine teaches: articulation in teaching-service from the preceptor's perspective. Results showed that teaching-service integration is at risk in light of biologicism and the gap between teaching institutions and health services, but that it is a way of constructing the necessary changes to consolidate the National Health Service.

Nursing; Preceptorship; Unified Health System


El objetivo fue comprender la preceptoría en Enfermería y en campos de prácticas y su articulación con la integralidad de la atención. Investigación de campo cualitativa llevada a cabo en Fortaleza-Ceará, Brasil, de abril a junio de 2012. Fueron entrevistados 20 preceptores en campos de práctica de tres Instituciones de Enseñanza Superior en tres hospitales públicos y una unidad básica de Salud. El análisis temático aprendió el tema Preceptoría en la perspectiva de la integralidad, y las categorías empíricas: (des)integración de la enseñanza-servicio: el distanciamiento de la academia; acogimiento del estudiante en campo de prácticas; en el campo, la rutina enseña; integración enseñanza-servicio bajo la perspectiva del preceptor. Los resultados señalaron la integración enseñanza-servicio en situación de riesgo delante del biologicismo y brecha entre las instituciones de enseñanza y los servicios de salud, pero una manera de construir cambios necesarios para consolidación del Sistema Único de Salud.

Enfermería; Preceptoría; Sistema Único de Salud


INTRODUÇÃO

A formação profissional em Enfermagem na perspectiva do cuidado integral perpassa pela integração ensino-serviço na parceria entre as Instituições de Ensino Superior (IES) e os serviços de saúde. O estágio supervisionado contribui para aprendizagem da prática, preparação do aluno através do contato com a dinâmica dos serviços de saúde, bem como a definição de sua posição junto à equipe multiprofissional. São desenvolvidos em Unidades Hospitalares e Unidades Básicas de Saúde e devem corresponder a 20% da carga horária total do curso, em conformidade com as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem (DCN/ENF)( 11. Costa RKS, Miranda FAN. Opinião dos graduandos de Enfermagem sobre a formação do enfermeiro para o SUS: uma análise da FAEN/UFRN. Esc Anna Nery. 2010;14(1):39-47. ).

O estágio supervisionado ocorre nos dois últimos semestres do curso e objetiva oportunizar aos estudantes a solidificação de conhecimentos adquiridos na academia por meio do planejamento e implementação de uma prática assistencial. Possibilita a inserção e atuação do estudante no contexto social enquanto sujeitos provocadores de mudanças nos espaços da produção social da saúde, com reflexos na consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS)( 22. Colliselli L, Tombini LHT, Leba ME, Relbnitz K. Estágio curricular supervisionado: diversificando cenários e fortalecendo a interação ensino-serviço. Rev Bras Enferm. 2009;62(6):932-7. ).

O preceptor deve apresentar conhecimento teórico, didático e político para que seja possível oferecer ao estudante a compreensão dos propósitos da Enfermagem. Sua experiência e discernimento são fundamentais para interligar a graduação e o mercado de trabalho. Os serviços de saúde constituem terreno fértil e desejado pelas IES para, tanto quanto à questão da prática e das habilidades específicas, como no que concerne à humanização e ética.

Desde meados da década de 1970, e por meio dos marcos históricos e conceituais trazidos pela Reforma Sanitária e pelo Sistema Único de Saúde (SUS), evidenciam-se mudanças nos cursos de saúde, apontando para um novo perfil profissional, cuja prática deve adequar ao ensino e à assistência a um novo sistema de saúde, para abranger as inovações e implicações da política social( 33. Silva RPG, Rodrigues RM. Sistema Único de Saúde e a graduação em enfermagem no Paraná. Rev Bras Enferm. 2010;63(1):66-72. ). O trabalho nesta área é essencialmente relacional, embora o cuidado ainda seja, em muitas circunstâncias, limitado à realização de procedimentos( 44. Waldow VR. Bases e princípios do conhecimento e da arte de enfermagem. Petrópolis: Vozes; 2008. ), sendo, este modelo, severamente debatido junto aos caminhos que conduzem à construção da humanização em saúde.

A aplicabilidade do SUS dependeria de fatores como financiamento e gestão, além de recursos humanos. A descentralização, um dos grandes sucessos do SUS, por exemplo, foi um dos seus descaminhos devido à carência de profissionalização dos dirigentes, o persistente clientelismo político, a alta rotatividade de equipes e o "engessamento" burocrático( 55. Paim JS. Reforma sanitária brasileira: avanços, limites e perspectivas. In: Matta, GC, Lima JC, organizadores. Estado, sociedade e formação profissional em saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/EPSJV; 2009. p.91-122. ).

O despreparo de profissionais na perspectiva do modelo de promoção à saúde despertou a necessidade de transformações na formação em saúde, no momento desarticulada da realidade do serviço, estruturada por uma prática individualista e distante das discussões dos problemas sociais. O foco do curso de Enfermagem consiste no cuidar, inclusive na aprendizagem de processos assistenciais( 66. Gubert E, Prado ML. Desafios na prática pedagógica na educação profissional em Enfermagem. Rev Eletr Enf [Internet]. 2011 [citado 2013 jul 20];13(2):285-95. Available in: http://www.fen.ufg.br/revista/v13/n2/v13n2a15.htm.
http://www.fen.ufg.br/revista/v13/n2/v13...
).

A integração ensino-serviço surge com o propósito de envolver a escola e o trabalho em saúde, no que se reporta aos determinantes sociais do processo saúde-doença e da organização do setor, alia a formação à dimensão técnica e política e à construção de um novo compromisso ético-político dos trabalhadores de saúde pautados na questão democrática, na relação solidária com a população na defesa do serviço público e da dignidade humana( 77. Matta GC, Lima JCF. Estado Sociedade e Formação profissional em Saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/EPSJV; 2009. p.27-32. ).

O preceptor em Enfermagem deve sinalizar o perfil de novos egressos e, para isto, deve, também, ser e estar preparado. As mudanças levantadas pela reforma sanitária têm sido cobradas aos profissionais de saúde, cuja Enfermagem tenta corresponder de maneira adequada nos serviços e no ensino. Todavia, este é um caminho árduo e que, ao longo de seu desenvolvimento, necessita de acompanhamento e avaliação.

A preceptoria tem sido pouco abordada na literatura( 88. Carvalho ESS; Fagundes NC. A inserção da preceptoria no curso de graduação em Enfermagem. Rev Rene. 2008;9(2):98-105. ), o que gera preocupação perante o momento vivido, que se traduz em um contínuo movimento por melhorias no atendimento à saúde pública. Nesta perspectiva formulou-se a seguinte questão norteadora do estudo: Como vem ocorrendo a preceptoria em enfermagem nos campos de práticas e sua articulação com o cuidado integral?

Pois, a problematização do processo de ensino-aprendizagem nos cenários de práticas de saúde remete a um pensar coletivo sobre o ensino de Enfermagem e sua correlação com o SUS. Logo, este estudo objetivou compreender a preceptoria em Enfermagem nos campos de práticas e sua articulação com a formação do enfermeiro para o cuidado integral.

MÉTODO

Pesquisa de campo, de natureza qualitativa, realizada no município de Fortaleza, capital do Estado do Ceará, Brasil, de abril a junho de 2012. Participaram do estudo 20 enfermeiros assistenciais que também atuavam como preceptores de três Instituições de Ensino Superior, sendo duas públicas e uma privada. O lócus da pesquisa consistiu em três hospitais da rede pública estadual e uma unidade básica de Saúde, campos de prática dos referidos cursos de Enfermagem.

Como critério de inclusão, foi considerada experiência mínima de um ano como preceptor. Foram excluídos os enfermeiros cujas unidades não são campos de práticas do estágio supervisionado das referidas IES, assim como àqueles que se encontravam ausentes do serviço no período de coleta dos dados, sejam por licença ou férias.

O processo de amostragem foi intencional e teve como ponto de partida dois enfermeiros por campo. Participaram do estudo duas enfermeiras da atenção básica, duas da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) neonatal, uma do alojamento conjunto, uma de posto de enfermagem pediátrica, oito de posto de enfermagem adulto, seis de UTI adulto. O aprofundamento teórico-empírico dos dados e sua relevância para os objetivos do estudo foi o critério adotado para fechamento deste momento de coleta de dados.

A entrevista semiestruturada foi técnica fundamental para obtenção dos dados. Trata-se de conversa a dois ou entre vários locutores realizados por um entrevistador, com a finalidade de construir informações pertinentes para um objeto de pesquisa de temas igualmente pertinentes, tendo em vista este objetivo( 99. Minayo, MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11. ed. São Paulo: Hucitec; 2008. ).

As seguintes questões norteadoras foram elaboradas para que os preceptores fossem imersos na temática: discorra sobre o processo de preceptoria; como você efetiva a articulação entre a teoria e a prática nos campos de estágio dos cursos de Enfermagem? Quais as estratégias de ensino-aprendizagem que você utiliza no processo de formação dos estudantes de Enfermagem no serviço?

O tratamento dos dados foi possível por meio da análise temática. Uma análise temática consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação, cuja presença ou frequência significam algo para o objeto analítico escolhido( 1010. Bardin L. Análise de conteúdo. 5. ed. Lisboa: Edições 70, Persona; 2010. ).

Quatro etapas foram seguidas: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados obtidos e interpretação( 1010. Bardin L. Análise de conteúdo. 5. ed. Lisboa: Edições 70, Persona; 2010. ). Procedeu-se à leitura flutuante e vertical do material empírico para o conhecimento dos mesmos. As unidades de registro e de contexto foram identificadas formando os recortes que, por agregação na composição de categorias, perfilaram o delineamento da preceptoria no campo de prática sob o olhar dos enfermeiros investigados. A leitura horizontal do material composto permitiu o desvelar das falas e a análise aprofundada.

O alcance da compreensão do núcleo de sentido possibilitou a definição de quatro categorias, após um processo de codificação, interpretação e de inferências sobre o conteúdo manifesto latente. As falas expressas e apreendidas pelos preceptores foram analisadas à luz da literatura pertinente ao tema. O estudo é um recorte da pesquisa "Processo de formação em saúde como estratégia de melhoria do cuidado interdisciplinar e integral do SUS", tendo parecer favorável junto ao Comitê de Ética em pesquisa da Universidade Estadual do Ceará, conforme processo nº 14061052-2, e sob financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico(CNPq). Os termos da Resolução 466/2012 que rege as normas que regulamentam a pesquisa com seres humanos foram preservados( 1111. Ministério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde. Resolução 466, de 12 de dezembro de 2012. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília (DF); 2012. ). Para resguardar o anonimato dos enfermeiros, estes foram denominados por meio da letra "E", seguida de ponto, numeração arábica, ponto, nível de atenção (H-hospitalar e AB-atenção básica).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise temática possibilitou apreender o tema Preceptoria na perspectiva da integralidade, constituída pelas categorias empíricas emergidas: (des)integração do ensino serviço: o distanciamento da academia; o acolhimento do estudante no campo de práticas; no campo, a rotina ensina; a integração ensino serviço sob a ótica do preceptor.

As relações docente-discente-usuário na integração ensino-serviço desvelaram faces do modo como ocorre a formação em saúde e a compreensão do contexto articulado com as propostas apresentadas pelo SUS.

(Des)integração do ensino serviço: o distanciamento da academia

As relações estabelecidas entre os atores dos campos de prática, docentes, estudantes, profissionais e comunidade contribuem para integração( 1212. Silva RR. O projeto UNI e os movimentos populares de saúde na região sul de Londrina [dissertação]. São Paulo (SP): Faculdade de Saúde Pública de São Paulo, São Paulo, 1999. ), sendo estas positivas, intensifica-se o crescimento crítico e reflexivo do estudante, focalizando a integralidade das ações e dos serviços de saúde( 1313. Penha JC, Souza SS, Costa LSP, Freitas CHA. A preceptoria no cotidiano assistencial: o controle e a supervisão no processo de formação em saúde. In: Jorge MSB, Lima LL, Pinto AGA, organizadores. Caminhos da formação em saúde: políticas, desafios e contradições - ensino, pesquisa, cuidado e gestão. Fortaleza: EdUECE; 2012. p.71-92. ). No entanto, os preceptores não se revelaram esclarecidos quanto aos processos que legitimam os estágios, como objetivos e conteúdos didáticos:

[...] eu não sei como é feito [...] Eu acho que já vem determinado (E.19.H).

[...] o hospital, ele tem um convênio com as universidades. (E.5.H)

Para compreender os objetivos dos SUS, o preceptor deve apropriar-se dos processos que antecedem a integração ensino-serviço, o que ultrapassa uma posição mais passiva frente às IES. O estágio supervisionado para ser efetivamente uma prática profissional no contexto da formação, necessita de interação capaz de fornecer transformações para os mundos da formação e do trabalho, aproximando instituições de ensino e os serviços de saúde( 88. Carvalho ESS; Fagundes NC. A inserção da preceptoria no curso de graduação em Enfermagem. Rev Rene. 2008;9(2):98-105. ).

A compreensão do SUS é um emaranhado histórico de diversas vertentes advindas das camadas sociais, pois a reforma sanitária é um movimento ativo de reivindicações por um cuidado a saúde( 1414. Fleury S. Reforma sanitária brasileira: dilemas entre o instituinte e o instituído. Cienc Saúde Colet. 2009;14(3):743-52. ). Na perspectiva da clínica ampliada, a integração ensino-serviço leva avante as propostas do SUS, reforçando e oportunizando uma consciência crítica acerca do direito à saúde. No entanto, o preceptor tem experimentado a incompreensão do que se propõe a formação em Enfermagem neste contexto:

[...] a gente não sabe nem o que é que a professora quer que a gente aborde com o aluno [...] porque ela não fala para gente. (E.5. H)

[...] Não sei como é que o aluno deve ser formado e qual é o perfil que o Sistema Único de Saúde preconiza para que esse profissional que vai ser lançado no mercado e nem eu sei, qual o objetivo maior da universidade em relação àquele aluno. (E.4.H)

O enfermeiro deve tomar posse do conteúdo que se detém a legislação do SUS com uma visão crítica e transformadora, posto que a democratização da saúde é interesse coletivo. Engessados no saber-fazer e na demanda dos serviços, os profissionais detêm ao cuidado, permanecendo à margem das discussões sobre a integralidade. Como forma de envolvê-los nos aspectos da integração ensino-serviço, os objetivos da formação precisam ser transparentes. As escolas devem buscar mais amplamente a participação de atores de diversos segmentos da saúde e educação na sua formulação( 88. Carvalho ESS; Fagundes NC. A inserção da preceptoria no curso de graduação em Enfermagem. Rev Rene. 2008;9(2):98-105. ).

A articulação entre a educação e a saúde é um desafio, consistindo em criar e proporcionar interfaces entre distintos saberes e poderes, gerando oportunidades de aprofundamento dos diálogos disciplinares, assim como de alternativas metodológicas que alcançam a renovação de saberes e práticas na saúde( 66. Gubert E, Prado ML. Desafios na prática pedagógica na educação profissional em Enfermagem. Rev Eletr Enf [Internet]. 2011 [citado 2013 jul 20];13(2):285-95. Available in: http://www.fen.ufg.br/revista/v13/n2/v13n2a15.htm.
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).

O Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) disponibiliza bolsas para tutores, preceptores (profissionais dos serviços) e estudantes de graduação da área da saúde, como uma das ações intersetoriais, tendo como pressuposto a educação pelo trabalho( 1515. Ministério da Saúde. Portaria interministerial nº 421, de 3 de março de 2010. Institui o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET Saúde) e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília (DF) 2010 mar 5;147(43 Seção 1):52-3. ). Embora neste estudo tenha sido encontrada, apenas, na atenção básica, são medidas que sugerem transposição das formalidades que limitam relações entre serviço e academia.

O acolhimento do estudante no campo de práticas

A experiência da preceptoria revelou sentimentos opostos. De forma geral, o preceptor não se sentia responsável pelos estudantes, desconhecendo que sua participação no processo formativo era assegurada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem:

[...] eu acompanho mesmo [...] como se fosse uma cortesia. (E.3.H)

[...] é a assim, é como se a gente já tivesse obrigação, por ser enfermeira, de ensinar! Porque o hospital é hospital escola! (E.10.H)

O ensino de enfermagem no campo acumula para o preceptor o compromisso e a responsabilidade da construção do conhecimento ao delegar, sob sua supervisão, cuidados especializados pareados à humanização. Os serviços de saúde exigem do preceptor atenção, presteza, atenção e resolubilidade. No contexto destas adversidades, o preceptor expôs seu sentimento, corroborando outro estudo( 1616. Tavares PEN, Santos SAM, Camasetto I, Santos RM, Santana VVRS.A vivência do ser enfermeiro e preceptor em um hospital escola: olhar fenomenológico. Rev Rene. 2011;4(12):798-807. ).

A integração ensino-serviço se baseia na relação de parceria entre a universidade, os serviços locais de saúde e a comunidade como base, estando fundada nos processos de transformação da educação dos profissionais e dos sistemas de saúde, posto que os atores pertencentes a este cenário estabelecem entre si relações bilaterais, expressas pela Integração Docente-Assistencial (universidade-serviço), pela Extensão Universitária (universidade-comunidade) e pela Atenção Primária à Saúde (serviços-comunidade)( 1717. Albuquerque AS, Gomes AP, Rezende CHA, Sampaio MX,Dias OV, Lugarinho RM. Integração ensino-serviço no contexto dos processos de mudança na formação superior dos profissionais da saúde. Rev Bras Educ Med. 2008;32(3):356-62. ).

Por outro lado, nenhum estudante deixava de ser recebido no campo. Ancorados em experiências próprias, boas ou ruins, o preceptor buscava acolher estudante. O sentimento negativo anteriormente protagonizado fomenta reflexões sobre suas atitudes, no sentido de não reproduzir um momento que reportava sofrimento:

[...] todo mundo passa por esse período [...] ninguém se nega a ajudar o aluno, a gente sempre tem a maior boa vontade de ensinar. (E.7.H)

[...] Eu tento tirar da minha experiência, eu tenho que tirar do que eu não tive quando eu também fui aluna daqui [...] da atenção que eu queria ter tido, da abertura que eu queria ter tido e eu não tive, eu tento recebe-los de uma maneira que eu não fui recebida, que na época eu achava muito importante, eu fui inibida, eu tinha muitos medos e eu hoje em dia, quando eu vejo um aluno assim, parece que eu me vejo [...] (E.19.H)

O acolhimento é definido como ato ou efeito de acolher, uma ação de aproximação, um "estar com" e um "estar perto de", ou seja, uma atitude de inclusão que implica estar em relação com algo ou alguém( 1818. Ministério da Saúde (BR). Acolhimento nas práticas de produção de saúde. 2. ed. Brasília; 2010. ). Ao acolher o estudante com presteza e atenção, o enfermeiro contribui para que o estudante se sinta parte do processo de cuidado.

A rotina ensina

O fazer assistência sustenta a competência intelectual e cognitiva com vistas ao mercado de trabalho. A dinâmica do serviço convida os estudantes a participar do contexto e os ensina como proceder em situações vivenciadas pelo enfermeiro:

[...] como não sou eu que sou a professora oficial, eles têm de adaptar ao serviço do dia, da agenda do dia. (E.1.AB)

[...] eu procuro mostrar para ele a rotina do serviço (E.4.H)

Embora o papel de facilitador pareça claro ao enfermeiro, o preceptor se depara com atribuições que antes não faziam parte de seu cotidiano e para as quais não se sente preparado( 88. Carvalho ESS; Fagundes NC. A inserção da preceptoria no curso de graduação em Enfermagem. Rev Rene. 2008;9(2):98-105. ). Os preceptores relataram a ausência de capacitação para a docência e o fosso existente entre os objetivos dos serviços, que focava no cuidado do saber-fazer, e os objetivos da academia, o cuidado. Mediante a dificuldade encontrada, o profissional atua do modo como vivenciou o seu processo de ensino-aprendizagem( 66. Gubert E, Prado ML. Desafios na prática pedagógica na educação profissional em Enfermagem. Rev Eletr Enf [Internet]. 2011 [citado 2013 jul 20];13(2):285-95. Available in: http://www.fen.ufg.br/revista/v13/n2/v13n2a15.htm.
http://www.fen.ufg.br/revista/v13/n2/v13...
).

As atividades desempenhadas pelos enfermeiros descreve a realidade de um processo de formação, o qual tem se desejado aproximação com a promoção a saúde. O saber-fazer compreendido pelo manejo e a destreza de situações e de técnicas são qualidades fundamentais ao profissional da saúde. Porém, a sua articulação com a subjetividade humana colabora para a superação do biologicismo e o curativismo. Alguns preceptores sinalizaram a integralidade e a humanização nas suas tomadas de decisão e no seu trabalho assistencial:

[...] Nós temos aquele primeiro contato com o paciente [...] aquela primeira noção de conversar com ele, como é que ele passou à noite, o que é que ele sentiu, se está bem, a gente já percebe que o paciente está ansioso, que está isso, que está aquilo, entendeu? Ele já passa para gente tudo isso. [...] nós já vemos aquele paciente como um todo. (E.7.H)

[...] Como a gente lida com pediatria, é impossível não lidar com o paciente como um todo. [...] A gente tem que está lidando com psicológico da mãe, que está abalada [...] então a gente acaba lidando com tudo. [...] (E.9.H)

Os relatos apontaram o cuidado como objeto de trabalho do enfermeiro, representado por atitudes, como a escuta e a observação, instrumentos fundamentais no direcionamento das ações sistematizadas de enfermagem. Portanto, as ações de enfermagem se aproximam da integralidade, o que denota ao profissional papel importante no contexto da reforma sanitária que ainda tenta se fazer, pois estando próximo do usuário pode modificar o modo de fazer saúde.

A integração ensino serviço sob a ótica do preceptor

Os preceptores consideraram o campo uma extensão das salas de aula para a formação do sujeito crítico e reflexivo. A disponibilidade de os alunos em absorverem as manifestações das subjetividades do cotidiano apontou a riqueza da integração ensino-serviço:

[...] Muda de visão, só em ele sair do campus, sair de uma sala de aula, vir para uma unidade hospitalar, ver a realidade. (E.6.H)

[...] A dissociação da teoria e da prática. [...] eles têm a oportunidade de ver a diferença. (E.2.AB)

De modo geral, os campos de prática sofrem com a precariedade e revelam ao estudante a situação de trabalho que encontrarão depois de formados. O desenvolvimento de técnicas diferenciadas em decorrência da escassez de material ou da observação de condutas inadequadas de outros profissionais diante de situações decorrentes da desqualificação profissional pode influenciar o estudante( 1919. Colenci R, Berti HW. Formação profissional e inserção no mercado de trabalho: percepções de egressos de graduação em enfermagem. Rev Esc Enferm USP. 2012; 46(1):158-66. ).

O exercício da criatividade e a capacidade de contornar não conformidades, forjando soluções distantes do método teórico, podem ser experimentados pelos atores do campo. Esses novos modos de agir podem comprometer o processo formativo, trazer prejuízos ao usuário e romper a rigidez requerida no cuidado à saúde.

A descontinuidade dos conteúdos entre a academia e o cenário de práticas foi também mencionada pelos preceptores com preocupação, complementando a discussão anterior, pois permitiria desacordo entre as propostas das disciplinas e as possibilidades do campo:

[...] quando eu era acadêmica [...] a gente via uma coisa na teoria e quando ia para prática às vezes não tinha! [...] Era outra coisa diferente, não estava associado à teoria com a prática. (E.3.H)

Na perspectiva dos enfermeiros, trabalhar sob a filosofia do SUS é um momento que se encontra distante de se tornar realidade. As demandas na prática laboral estimulam o exercício procendimentalista para sanar necessidades e fogem da produção do cuidado integral. Relatos apontaram que o princípio da integralidade tem sido negligenciado e que a formação com vistas ao novo sistema não seria possível, de forma que a educação e a integração ensino-serviço se tornaram desacreditadas, fazendo perpetuar as formas hegemônicas de cuidar da saúde.

[...]A gente não ver a integralidade, muitas vezes o próprio enfermeiro não se preocupa, não sabe nem o que é a integralidade, dentro do sistema de saúde. (E.4.H)

[...] Eu já não acho que os profissionais sejam formados para trabalhar no SUS, [...] eu acho que a faculdade, ela não lhe prepara, ela lhe oferece um caminho para você traçar, você escolhe o que é que você vai traçar depois. (E.14.H)

Os preceptores consideraram a humanização inerente à personalidade, fosse do discente, docente ou preceptor, e o cuidado de Enfermagem foi associado à responsabilidade do profissional. As falas ilustram a percepção acerca da humanização:

[...]a questão da humanização sim, e isso depende, também, do profissional que vai acompanhar esse aluno. (E.14.H)

[...] eu acredito que uma faculdade [...] É muito responsável pela formação do profissional, mas acredito muito que a parte de humanização, essa parte... É muito assim... Pessoal, do caráter da pessoa, entendeu? (E.19)

O significado de ser um profissional comprometido implica na tomada de posição que envolve uma decisão por parte de um sujeito/ator social e ocorre no plano das ações( 2020. Muniz MP, Tavares CMM. O Compromisso social da enfermagem retratado na Revista Brasileira de Enfermagem - como vê e como expressa. Hist Enferm Rev Eletron [Internet]. 2012; 2(2):160-75. Available in: http://www.abennacional.org.br/centrodememoria/here/vol2num2revisao.pdf.
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). De fato, a formação em Enfermagem se encontra pautada em princípios morais e éticos, por meio das quais suas ações devem ser fundamentadas. Assim, na academia e nos serviços, durante a graduação, os primeiros conceitos de cuidado necessitam de discussões para que os valores possam permanecer no perfil do profissional.

O ambiente do estágio propicia ao acadêmico fazer parte do projeto de SUS e contribui para que o aluno vivencie situações reais, interagindo sobre o meio. A moderna proposta do cuidado pautada na promoção da saúde e na integralidade devem ser semeadas na graduação para que o saber em saúde possa emergir das necessidades do usuário como forma de transformar o cuidado. Considerando a participação de enfermeiros e docentes como educadores, faz-se necessária aproximação dos seus mundos no contexto da integração ensino-serviço para o ensino e a aplicação do SUS entre os profissionais de saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As discussões acerca da formação profissional são intensas e sempre atuais. Esta pesquisa trouxe à luz uma parcela do modo como tem se dado a formação na perspectiva da integralidade. O estudo evidenciou a fragilidade da relação que tem sido estabelecida entre o que se preconiza nas IES e o que se efetiva na prática.

Na carência de integração entre os preceptores, o perfil profissional almejado pelas IES deixou de prevalecer mediante o empirismo ou até mesmo os vícios da prática. A presença de estudantes no campo tem representado o elo vivo entre serviço e academia, uma garantia de ressignificação de saberes e (re)construção de condutas em sintonia com as demandas dos usuários.

Como limitação do estudo, colocou-se a não abrangência aos demais estados do país, realidades que repercutem no contexto dos serviços de saúde. Tal fato sugere o desenvolvimento de novas pesquisas sobre o tema, reflexões coletivas, envolvendo docentes, discentes e preceptores na busca da formação em Enfermagem para a perspectiva do cuidado integral.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2013
  • Aceito
    02 Abr 2014
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