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Familiares de pessoas portadoras de transtorno mental: conhecimento dos direitos à saúde

Resumos

O objetivo desta investigação foi compreender o que os familiares conhecem a respeito dos direitos das pessoas portadoras de transtorno mental. Foi realizada uma investigação exploratória de cunho qualitativo. Como instrumento de coleta de dados, foi realizada uma entrevista semiestruturada. Foram entrevistados 18 familiares de um centro de atenção psicossocial e de uma associação civil localizados em município do interior do estado de São Paulo, Brasil, no período de março a setembro de 2013. Para análise de dados, utilizou-se a análise de conteúdo, vertente temática, e foram construídas as seguintes categorias: os serviços de saúde mental e os direitos da pessoa portadora de transtorno mental. Pode-se inferir que, além do tratamento medicamentoso, os serviços de saúde mental deveriam ofertar atividades terapêuticas. Os familiares das pessoas portadoras de transtorno mental desconheciam a lei da Reforma Psiquiátrica e mencionaram como direitos: benefício, gratuidade no transporte coletivo, cesta básica e medicação gratuita.

Legislação sanitária; Serviços de saúde mental; Direitos do paciente


The objective of this investigation was to understand what family members know about the rights of individuals affected by mental illness. To this end, a qualitative exploratory study was conducted. A semi-structured interview was used for data collection. Eighteen family members were interviewed at a psychosocial care center (CAPS) and a civil society organization (CSO) located in a municipality in the state of São Paulo, Brazil, between March and September 2013. Data were analyzed using thematic content analysis and the following categories were constructed: mental health services and the rights of individuals affected by mental illness. We were able to infer that in addition to drug-based therapy, mental health services must provide therapeutic activities. Family members of those affected by mental illness were unaware of the Brazilian Psychiatric Reform Law and mentioned the following rights: welfare benefits, free public transport, basic food basket and medications.

Health legislation; Mental health services; Patient rights


El objetivo de esta investigación fue entender lo que los familiares saben sobre los derechos de las personas con trastornos mentales. Se realizó una investigación exploratoria de naturaleza cualitativa. Como instrumento de recolección de datos, se utilizó una entrevista semiestructurada. Entrevistamos a 18 familiares de un centro de atención psicosocial y una asociación civil que asisten a los enfermos mentales, ciudad del estado de São Paulo, Brasil, de marzo a septiembre de 2013. Para el análisis de los datos, se utilizó el análisis de contenido, parte temática, y se construyeron las siguientes categorías: servicios de salud mental y los derechos de las personas con trastorno mental. Se puede inferir que, además del tratamiento con drogas, los servicios de salud mental deben ofrecer actividades terapéuticas. Los familiares de las personas con trastornos mentales no son conscientes de la ley de la Reforma Psiquiátrica, y mencionaran los siguientes derechos: beneficio, la gratuidad en el transporte público, los alimentos básicos y medicamentos gratuitos.

Legislación sanitaria; Servicios de salud mental; Derechos del paciente


INTRODUÇÃO

A luta pelos direitos dos portadores de transtorno mental esteve sempre em pauta desde o surgimento do projeto da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Para visualizar o processo de construção destes direitos, utilizou-se dos relatórios finais das conferências nacionais de saúde mental e da legislação vigente.

As Conferências são espaços públicos para a deliberação coletiva sobre as diretrizes que devem conduzir o Sistema Único de Saúde (SUS). Os relatórios finais são documentos com o objetivo de difundir para sociedade as deliberações das Conferências( 1Guizardi FL, Pinheiro R, Mattos RA, Santana AD, Matta G, Gomes MCPA. Participação da comunidade em espaços públicos de saúde: uma análise das Conferências Nacionais de Saúde. Physis. 2004;14(1):15-39. ). Devem fomentar a formulação de diretrizes no cotidiano dos serviços de saúde mental, provocando debates entre usuários, familiares e profissionais da saúde.

A I Conferência Nacional de Saúde Mental, em 1987, foi realizada em desdobramento à VIII Conferência de Saúde e organizada a partir de três temas básicos: o primeiro refere-se a economia, sociedade e Estado: impactos sobre a saúde e a doença mental; o segundo trata da reforma sanitária e da reorganização da assistência à saúde mental, e o terceiro aborda a cidadania e a doença mental: direitos, deveres e legislação do doente mental( 2Ministério da Saúde (BR). Relatório final da I Conferência Nacional de Saúde Mental; 1987 jun 25-28; Brasília. Brasília: Ministério da Saúde; 1988. 43 p. ).

O primeiro movimento legislativo em relação à garantia dos direitos dos portadores de transtorno mental foi em 1989 com o Deputado Paulo Delgado. O Projeto de Lei nº 3.657, apresentado por ele na Câmara dos Deputados, dispôs sobre a reorientação do modelo assistencial com a proibição de construção de novos hospitais psiquiátricos e a substituição progressiva dos leitos existentes, e ainda a regulamentação da internação compulsória, introduzindo a instância jurídica como foro de revisão da internação e instrumento de garantia de direitos civis( 3Amarante P. Saúde mental, desinstitucionalização e novas estratégias de cuidado. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. p.735-60. ).

Em 1992, foi realizada em Brasília a II Conferência Nacional de Saúde Mental, com o tema: "A reestruturação da atenção em saúde mental no Brasil: modelo assistencial e direito à cidadania". O Relatório Final apontou dois marcos conceituais: atenção integral e cidadania. A vinculação entre cidadania e saúde foi explícita, tornando-se eixo norteador para o modelo de atenção a ser construído( 4Pereira RC. Políticas de saúde mental no Brasil: o processo de formulação da lei de reforma psiquiátrica (10.216/01) [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2004. ). No Relatório Final foi deliberado que a família passa a ter acesso às informações contidas no prontuário e informações sobre o quadro clínico, prognóstico e tratamento realizado. Outra conquista para os familiares foi a possibilidade de visitas diária ao paciente internado( 5Ministério da Saúde (BR). Relatório final da II Conferência Nacional de Saúde Mental; 1992 dez 1-4; Brasília. Brasília: Ministério da Saúde; 1994. 63p. ).

O período de 1992 a 2001 foi marcado pela expansão da rede de atenção psicossocial com a implantação do Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS), Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e outros dispositivos de atenção psicossocial em todo o território nacional.

Em abril de 2001, depois de tramitar por 12 anos pelo Congresso Nacional e não ter sido aprovada de forma unânime pelos idealizadores da Reforma Psiquiátrica( 4Pereira RC. Políticas de saúde mental no Brasil: o processo de formulação da lei de reforma psiquiátrica (10.216/01) [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2004. ), foi sancionada a Lei 10.216, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtorno mental e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Seu artigo 1º trata dos direitos humanos, e o artigo 2º garante que nos atendimentos em saúde mental de qualquer natureza, a pessoa, seus familiares ou responsáveis são formalmente cientificados dos direitos da pessoa portadora de transtorno mental. São direitos garantidos: acesso ao melhor tratamento no sistema de saúde de acordo com suas necessidades, tratamento com humanidade e respeito, proteção contra abuso e exploração, garantia de sigilo das informações prestadas, direito à presença médica, livre acesso aos meios de comunicação disponíveis, informação a respeito de sua doença e tratamento, e tratamento em ambiente terapêutico, preferencialmente em serviços comunitários( 3Amarante P. Saúde mental, desinstitucionalização e novas estratégias de cuidado. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. p.735-60. ).

A Lei 10.216/01 permitiu a regulamentação das internações em hospital psiquiátrico e colocou em ação um dispositivo de segurança e a proteção dos direitos do portador de transtorno mental( 6Britto RC. A internação psiquiátrica involuntária e a Lei 10.216/01: reflexões acerca da garantia de proteção aos direitos da pessoa com transtorno mental [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2004. ).

Desde a promulgação da Lei da Reforma Psiquiátrica, o Ministério da Saúde vem elaborando portarias que dão as instruções necessárias para cumprimento da Lei, estabelecendo diretrizes e normas para os serviços de saúde mental, e dando atenção especial à família que durante a internação hospitalar deve compor o projeto terapêutico, através da compatibilidade de suas necessidades e do usuário. Essas portarias também garantem o recebimento de informação a respeito da doença e seu tratamento, em ambiente terapêutico, preferencialmente em serviços comunitários( 7Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Legislação em saúde mental: 1990-2004. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. ). Na Portaria 336/2002, entre as ações a serem desenvolvidas pelo Centro de Atenção Psicossocial, é previsto o atendimento à família( 8Ministério da Saúde (BR). Sistema Único de Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde Mental. Brasília: Conselho Nacional de Saúde, Ministério da Saúde; 2002. 213 p. ).

Em dezembro de 2001, foi realizada a III Conferência de Saúde Mental, tendo como tema "Cuidar sim, excluir não". Efetivando a Reforma Psiquiátrica com acesso, qualidade, humanização e controle social. Nessa Conferência, dois pontos merecem destaque em relação aos familiares: no primeiro é proposto o empoderamento dos familiares a respeito das leis, decretos e portaria que regulamentam a assistência à saúde mental, e a segunda diz respeito aos serviços de saúde que devem garantir a preservação dos vínculos familiares, através de grupos de apoio a familiares, informações que possibilitem o entendimento do processo de adoecimento, as forma de lidar com o portador e o preparo para o convívio social( 8Ministério da Saúde (BR). Sistema Único de Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde Mental. Brasília: Conselho Nacional de Saúde, Ministério da Saúde; 2002. 213 p. ).

Em 2010 foi realizada a IV Conferência de Saúde Mental - Intersetorial. A recomendação sobre o papel dos familiares indica a necessidade da criação de dispositivos de conscientização da população e a importância da sua participação no processo de tratamento. Cabe às equipes dos CAPS e outras unidades de saúde mental sustentar um diálogo ativo e permanente com a família de forma a contribuir com os serviços de saúde mental e também estimular a informação, mobilizando-os em busca dos direitos e deveres de cidadania das pessoas com transtorno mental( 9Ministério da Saúde (BR). Relatório final da IV Conferência Nacional de Saúde Mental - Intersetorial; 2010 jun 27-jul 01, Brasília. Brasília: Conselho Nacional de Saúde; 2010. 210p. ).

A família pode ser considerada um sistema cultural de cuidado à saúde, pois os seus membros possuem um conjunto de elementos explicativos para o processo saúde-doença e suas ações visam a promoção da saúde, a prevenção e o tratamento, utilizando um conjunto de valores, crenças, conhecimento e práticas que são compartilhadas e ressignificadas nas interações sociais e no ambiente sociocultural( 1010 Elsen I. Cuidado familial: uma proposta inicial de sistematização conceitual. In: Elsen I, Marcon, SS, Silva MRS, organizadoras. O viver em família e sua interface com a saúde e a doença. Maringá: Eduem; 2004. p.19-28. ). Ao ser convidada a compor o cenário de cuidado, ela permite que as necessidades de saúde se transformem em demandas para os serviços de saúde mental e também em políticas públicas( 1111 Mioto RCT. A família como referência nas políticas públicas: dilemas e tendências. In: Trad LAB, organizadora. Família contemporânea e saúde: significados, práticas e políticas públicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2010. p.51-66. ).

Destaca-se que a família pode ser visualizada pelo Estado, como aquela que deve assumir a principal responsabilidade pelo bem-estar de seus membros, ou seja, a visão familista, onde ela ocupa o centro do cuidado e da proteção e o Estado intervém de forma temporária quando falham os mecanismos de proteção( 1111 Mioto RCT. A família como referência nas políticas públicas: dilemas e tendências. In: Trad LAB, organizadora. Família contemporânea e saúde: significados, práticas e políticas públicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2010. p.51-66. ).

Na tendência protetiva afirma-se a capacidade do cuidado e proteção da família através de garantias de políticas públicas, pois as mesmas tornam-se vulneráveis devido às mudanças nela própria e às transformações sociais( 1111 Mioto RCT. A família como referência nas políticas públicas: dilemas e tendências. In: Trad LAB, organizadora. Família contemporânea e saúde: significados, práticas e políticas públicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2010. p.51-66. ).

A família passa a compor o movimento social da Reforma Psiquiátrica, porém qual o seu conhecimento sobre a legislação que busca garantir os direitos as pessoas portadoras de transtorno mental? Visando atender este questionamento, o objetivo desta investigação foi conhecer o que os familiares sabem a respeito dos direitos das pessoas com transtorno mental, quer na internação hospitalar, quer em sua inserção nos serviços ambulatoriais territoriais e na comunidade.

MÉTODO

Este foi um estudo exploratório e descritivo de natureza qualitativa cuja investigação foi realizada com familiares de usuários que fazem o tratamento no Centro de Atenção Psicossocial, um serviço que atende portadores de transtorno mental grave que necessitam de cuidados intensivos, e em uma associação civil sem fins lucrativos cujo objetivo é desenvolver ações de apoio ao portador de transtorno mental e possibilitar sua reinserção na família e na comunidade, defendendo seus direitos. Os dispositivos estão localizados no interior do estado de São Paulo.

A equipe do CAPS e da associação civil indicaram os familiares que participariam da investigação e o critério de inclusão foi que portadores de transtorno mental estivessem participando de atividades desses dispositivos há pelo menos seis meses; foram excluídos do estudo, os familiares de portadores de transtorno mental cujo período de participação nas atividades fosse menor do que seis meses.

As entrevistas individuais, previamente agendadas no centro de atenção psicossocial e na associação civil, de março a setembro de 2013 e gravadas em aparelho de áudio. Foi utilizado um questionário para conhecer as condições sócio-demográficas como: sexo, idade, escolaridade, estado civil e local de trabalho. E valeu-se de uma entrevista semiestruturada com as seguintes questões norteadoras: O que você conhece sobre a reforma psiquiátrica? Você conhece os direitos dos portadores de transtorno mental? Quais? Onde obteve estas informações? Saberia citar a legislação vigente?

Para a análise dos dados utilizou-se a análise de conteúdo, que se constitui numa técnica de análise que visa obter, através de procedimentos sistemáticos, a descrição do conteúdo das mensagens( 1212 Bardin L. Analise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2006. 223p. ).

Após a coleta e transcrição das entrevistas, as mesmas foram analisadas individualmente para se identificar os padrões relevantes. Em um segundo momento, foram organizadas para comparar as diferentes respostas e elaborar os núcleos de sentido que compõem a comunicação e o seu significado através de palavras, frases ou temas que sejam relevantes ao objetivo do estudo, ou seja, a análise temática( 1212 Bardin L. Analise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2006. 223p. ) foi utilizada como vertente. Por fim, foram construídas as seguintes categorias empíricas: os serviços de saúde mental e os direitos da pessoa portadora de transtorno mental.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina de Botucatu sob o protocolo CEP - 3079-2009.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nessa investigação foram entrevistados 18 familiares. As idades variaram entre 48 a 74 anos, dentre os familiares 16 eram do sexo feminino e dois do sexo masculino, e o grau de parentesco foi predominantemente mães, seguidas por irmãs, pai e esposo. Quanto ao nível de escolaridade, este variou desde analfabetos ao ensino superior completo. Dois entrevistados exerciam atividade profissional, os demais eram aposentados, estavam desempregados ou não tinham vínculo empregatício.

Os serviços de saúde mental

Os serviços de saúde mental ainda foram visualizados pelos familiares como o local de assistência onde os portadores de transtorno mental recebem a medicação para o transtorno mental:

É, a gente vem aqui buscar o remédio, mas não faz nada aqui. Começou bem, mas agora não faz nada, vem e fica à toa, vem buscar os remédios (E3).

Eu acho que os remédios até que é bom, pois são caros, nesse sentido até que é bom, mas a parte médica eu não sei se é muito boa (E4).

Ele não aceitava o remédio. Era uma luta. Depois que ele ficou no CAPS III, conseguimos uma vaga no Hospital Dia. Aí foi bom. Hoje ele toma o remédio sozinho, sabe o que tem, está bem, mas não é uma pessoa normal (E13).

Acenavam, no entanto, que o CAPS deveria ser um espaço em que, além de receberem medicação, pudessem realizar outras atividades. Investigações realizadas mostraram que o tratamento nos serviços substitutivos e extra-hospitalares devam oferecer atividades terapêuticas como um campo de possibilidades, visando a autonomia para a pessoa com transtorno mental e sua família, mas reconhecem que a assistência prestada converge apenas no saber médico e na medicalização dos sintomas( 1313 Fiorati RC, Saeki, T. As dificuldades na construção do modo de atenção psicossocial em serviços extra-hospitalares em saúde mental. Saúde em debate 2013; 37(97):305-12. - 1414 Bessa JB, Waidman MAP. Família da pessoa com transtorno mental e suas necessidades na assistência psiquiátrica. Texto Contexto Enferm. 2013; 22(1):61-70. ).

O tratamento medicamentoso não deveria ser o principal recurso a ser utilizado, mas diferentes saberes em superposição e que deveria permitir principalmente a construção de redes sociais onde a pessoa com transtorno mental e seu familiar pudessem se inserir( 1515 Dimenstein M, Sales AL, Galvão E, Severo AK. Estratégia da atenção psicossocial e a participação da família no cuidado em saúde mental. Physis. 2010;20(4):1209-26. ). Familiares, no entanto, assumem uma posição ativa frente aos serviços de saúde mental:

Procuro quem tiver que procurar. Nem sei mais se vou ter alguma dificuldade. Os serviços estão espertos comigo. Me tratam bem e tudo mais. Eles têm medo de denúncia. Fiz uma denúncia contra o CAPS III. Vem querer falar do serviço e nem equipe mínima tem (E13).

Estudo indicou que a família da pessoa portadora de transtorno mental é aliada no processo de reabilitação psicossocial como forma de promover a reinserção social, levando em consideração as dimensões pessoais, sociais e políticas que envolvem a vida cotidiana( 1616 Mielke FB, Kohlrausch E, Olschowsky A, Scheneider JF. A inclusão da família na atenção psicossocial: uma reflexão. Rev Eletr Enferm. 2010;12(4):761-5. ).

Direitos da pessoa portadora de transtorno mental

As famílias buscaram os direitos dos portadores de transtorno mental através do profissional que mediou seus interesses e também as orientou sobre as condutas a serem tomadas:

Eu tive que procurar o advogado para conseguir o auxílio e os medicamentos que ele toma (E10).

(...) tive que contratar advogados e a partir dali, fui conhecendo os direitos, sabendo dentro da lei como poderia resolver nossa situação (E14).

As famílias, quando delegaram ao advogado a busca por direitos dos portadores de transtorno mental, desconheciam a Lei da Reforma Psiquiátrica que garante em seu parágrafo único, inciso segundo, o tratamento humano e respeitoso da pessoa portadora de transtorno mental, no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde para alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade( 7Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Legislação em saúde mental: 1990-2004. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. ). São direitos relatados pelos familiares:

Ele ganha dinheiro e remédio. Quando ele veio morar comigo, comecei a levar ele no psiquiatra e aí o psiquiatra me falou daqui. Aí, aqui vocês me falaram do benefício e do SUS. Consegui passar ele para fazer o tratamento no SUS e conseguimos o benefício (E18).

Eu fiquei sabendo de um direito que eu tenho de pegar uma cesta básica todo mês porque ela faz tratamento aqui, por uma mãe de paciente daqui, ela é representante dos familiares. Mas foi por ela, jamais imaginaria isso (E3).

Olha, o que eu sei, é que eles têm direito ao passe livre, à medicação e hoje em dia não podem mais serem internados como eram antigamente. Isso eu sei. O que minha filha passou, os mais novos não podem passar. Os serviços têm que cuidar bem deles, sem judiar, tem que explicar o que está acontecendo (E15).

Como direitos, as famílias apontaram o benefício que recebem para auxiliar nas despesas domésticas tais como a medicação de forma gratuita, o passe livre e cesta básica; a visão familista, presente em suas falas, é uma forma de garantir temporariamente a proteção de seus membros já que as políticas públicas acontecem como forma de compensação indicando que as famílias não tem capacidade de desenvolver estratégias adequadas de sobrevivência e convivência através da articulação com as redes de solidariedade( 1111 Mioto RCT. A família como referência nas políticas públicas: dilemas e tendências. In: Trad LAB, organizadora. Família contemporânea e saúde: significados, práticas e políticas públicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2010. p.51-66. ).

Os serviços de saúde em questão também não têm sua prática pautada na bioética da intervenção que compreende que a inclusão social é uma atividade que acontece no cotidiano dos serviços, por pessoas concretas em busca da dimensão política, visando o empoderamento, a liberdade e a emancipação dos sujeitos sociais( 1717 Garrafa V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética. 2005;13(1):125-34. ) que são diretrizes das Conferências de Saúde Mental.

No espaço da associação civil, a fala dos familiares indicou que existe a apropriação dos direitos ligados ao cuidado ao portador de transtorno mental e a possibilidade de disseminar informações:

No serviço de saúde ninguém sabe de nada e, se sabem, nunca eles podem conversar. Tudo o que eu sei, foi indo atrás da justiça. Participo de eventos ligados à saúde mental também. E do Conselho de Saúde, represento os usuários. Gosto de saber isso, mas nunca consegui uma informação nos serviços. Meus filhos têm convênio e não usamos CAPS. Acho que as pessoas que trabalham lá não sabem tudo o que eu sei. (E12).

Aqui tive contato com outras mães que sofriam como eu. Mas também participo de todas as palestras, rodas de conversa e o que mais tiver sobre saúde mental. Nesses espaços, ficamos sabendo muito e podemos ir atrás daquilo que nos interessa. Ou pelo menos, se temos a informação, temos que disseminá-la (E13).

Serviço comunitário então... Só aqui que acho que temos um espaço saudável para discussão e ativação dos Movimentos Sociais. O espaço é bom, os funcionários são novos mas se identificam com a nossa causa. Lutam conosco. Nos serviços não temos essa disposição (E14).

Os familiares relataram que os profissionais dos serviços de saúde mental não promoviam espaço para o conhecimento dos direitos dos portadores de transtorno mental, sendo sua prática assistencial marcada pelos aspectos técnicos-científicos. Portanto, as famílias buscaram a associação como forma de compartilhar com outros familiares com experiência semelhante, o sofrimento advindo do transtorno mental em um dos seus membros, já que necessitavam de suporte emocional e assistencial para a realização do cuidado( 1818 Almeida KS, Dimenstein M, Severo AK. Empoderamento e atenção psicossocial: notas sobre uma associação de saúde mental. Interface (Botucatu). 2010;14(14):577-89. - 1919 Brischiliari A, Bessa JB, Waidman MAP, Marcon SS. Concepção de familiares de pessoas com transtorno mental sobre os grupos de autoajuda. Rev Gaucha Enferm. 2014;35(3):29-35. ).

Ao participarem da Associação mostraram uma tendência que indica a capacidade de cuidado e de proteção da família garantidos por políticas públicas. Devido à sua vulnerabilidade social, a família do portador de transtorno mental deveria ser reconhecida como uma instância que merece proteção constante do Estado, não apenas de forma pontual e esporádica( 1111 Mioto RCT. A família como referência nas políticas públicas: dilemas e tendências. In: Trad LAB, organizadora. Família contemporânea e saúde: significados, práticas e políticas públicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2010. p.51-66. ).

Os familiares dos serviços de saúde mental e da associação civil não mencionaram a Lei da Reforma Psiquiátrica o que pode ser entendido que na luta pelos direitos permeia as necessidades advindas do cotidiano, transporte, alimentação e medicação acima das questões asseguradas pela Lei.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os familiares entrevistados conheciam os direitos em relação à medicação, ao transporte e à cesta básica e desconheciam aqueles vinculados ao tratamento hospitalar e a internação e sua efetiva participação. Isto também ocorreu em relação aos serviços substitutivos.

A pesquisa realizada investigou dois dispositivos de saúde mental, mostrando que é escasso o conhecimento dos direitos pelos familiares de saúde mental, sendo uma limitação do estudo. Portanto, os profissionais dos serviços de saúde mental deveriam ter um olhar sobre este fato e atuar no sentido de consolidar um espaço que não seja apenas assistencial, mas também político, à medida que se constroem os direitos dos usuários de saúde mental e ampliar essa discussão está implícito na atenção psicossocial.

A família é uma aliada, então necessita de informação para lutar por uma melhor qualidade de vida junto com o portador de transtorno mental. Estas informações se encontram disponibilizadas nas Conferências de Saúde Mental e através da Lei da Reforma Psiquiátrica e, o esforço conjunto entre profissionais de saúde mental e familiares pode ser promissor para a construção de "novos sujeitos de direito".

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2014
  • Aceito
    12 Fev 2015
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