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Uso da narrativa como estratégia de sensibilização para o modelo do cuidado centrado na família

Resumos

O objetivo foi compreender o significado do uso da narrativa de doença para a sensibilização de estudantes e profissionais de saúde para o modelo do cuidado centrado na família. Estudo de abordagem qualitativa fundamentado na filosofia do Cuidado Centrado na Família e conduzido pela Análise Qualitativa de Conteúdo como referencial metodológico. Para a coleta de dados, foram utilizadas as avaliações realizadas por 29 participantes de um evento realizado em 2013, em São Paulo. A categoria analítica "sendo transformado pela narrativa da família" compôs-se das subcategorias: "favorece a aproximação com a experiência da família"; "facilita o aprendizado sobre família"; e "gera reflexão sobre a prática com a família". O estudo evidenciou que ouvir a narrativa das vivências da família com doença e hospitalização da criança promove a sensibilização do profissional de saúde e do estudante para o modelo do cuidado centrado na família, sendo facilitadora para sua aprendizagem.

Família; Hospitalização; Educação; Narração; Enfermagem


The aim of this study was to comprehend the meaning of using illness narratives to raise awareness among nursing students and healthcare professionals toward the family-centred care model. The adopted methodological framework was Qualitative Content Analysis based on the philosophy of Family-Centered Care. Data were collected by means of assessments provided by 29 participants at an event in 2013, in São Paulo. The resulting analytical category was "transformed by the family narrative", which consisted of three sub-categories: Favours a better understanding of the family's experience; facilitates learning of family issues; and triggers thought on family-centered care. Results showed that hearing the family narrative on experiences with illness and hospitalization raises awareness among nursing students and healthcare professionals toward the family-centered care model, and facilitates learning of this model of care.

Family; Hospitalization; Education; Narration; Nursing


El estudio se realizó con el objetivo de comprender el significado del uso de la narrativa de enfermedad para sensibilizar estudiantes y profesionales de salud en el modelo del cuidado centrado en la familia. Estudio cualitativo fundado en la filosofía del modelo del cuidado centrado en la familia y en el Análisis Cualitativo de Contenido. Las evaluaciones realizadas por 29 participantes en un hecho realizado en 2013, en São Paulo fueron utilizados para la recolección de datos. La categoría analítica que emergió fue "siendo transformada por la narrativa de la familia", compuesta de las subcategorías: favorece la aproximación con la experiencia de la familia; facilita el aprendizaje sobre la familia; y genera reflexión sobre la práctica con la familia. El estudio evidenció que enterarse de la narrativa de la familia, con base en las vivencias reales, promueve la sensibilización de los estudiantes y de los profesionales para el cuidado centrado en la familia y promueve el aprendizaje de este modelo del cuidado.

Familia; Hospitalización; Educación; Narración; Enfermería


INTRODUÇÃO

Um dos desafios para promover o ensino da temática família na área da saúde e sua utilização na prática clínica nos mais diversos contextos de atendimento é o desenvolvimento de estratégias para sensibilização dos profissionais. Entende-se por sensibilização a disposição interna do indivíduo para agir com a família, proveniente da reflexão sobre a realidade que o cerca no cotidiano vivido com a mesma. Estar sensibilizado não significa saber trabalhar com a família, mas estar predisposto a buscar o conhecimento necessário para intervir com a família, utilizando-se de recursos e de novas formas de ser e agir com a família( 1Angelo M. Abrir-se para a família: superando desafios. Fam Saúde Desenv. 1999;1(1/2):7-14. ).

Embora a família esteja presente no cotidiano das unidades pediátricas nem sempre é considerada como unidade de cuidado. As ações dos profissionais não a incluem na assistência à criança nem consideram suas próprias necessidades. Estudos( 2Barbosa MAM, Balieiro MMFG, Pettengill MAM. Cuidado centrado na família no contexto da criança com deficiência e sua família: uma análise reflexiva. Texto Contexto Enferm. 2012;21(1):194-9.

Gomes GC, Oliveira PK. Vivências da família no hospital durante a internação da criança. Rev Gaúcha Enferm. 2012;33(4):165-71.
- 4Rodrigues PF, Amador DD, Silva KL, Reichert APS, Collet N. Interação entre equipe de enfermagem e família na percepção dos familiares de crianças com doenças crônicas. Esc Anna Nery. 2013;17(4):781-7. ) apontam que a família sente-se desassistida por parte dos profissionais de saúde que se limitam aos aspectos biológicos do adoecer, sem considerá-la como unidade de cuidado, que sofre e precisa ser incluída na assistência integral.

Desta forma, envolver a família significa torná-la ativa e participante na assistência prestada a seu ente querido. Para tanto, é preciso que as instituições adotem o Modelo do Cuidado Centrado na Família (CCF), cujos pressupostos centrais estão fundamentados em quatro conceitos: dignidade e respeito, informações compartilhadas, participação e colaboração, mediados pela negociação contínua entre os profissionais da equipe e a família(5).

O convite para a família narrar suas experiências é um modo de ajudá-la a dar sentido a sua própria vivência. Desta forma, ouvir a narrativa do outro pode ser considerado um meio fidedigno de acesso ao seu mundo pessoal, revelando-se como um poderoso recurso na produção de conhecimento sobre a vivência humana. O narrar constitui-se no processo de elaboração do viver, sendo uma atividade humana espontânea, desde que se instaure um ambiente propício à sua consecução( 6Granato TMM, Corbett E, Aiello-Vaisberg TMJ. Narrativa interativa e psicanálise. Psicol Estud.2011;16(1):157-63. ).

A abordagem da narrativa é trazida para a prática clínica, como uma ferramenta que pode facilitar a percepção e a interpretação do significado do processo de adoecimento, como um modo do profissional de saúde incorporar novos enunciados a seu repertório interpretativo e, assim, ampliar a dimensão dialógica, hermenêutica e integral do saber e da prática clínica( 7Favoreto CAO, Camargo Jr KRC. Narrative as a tool for the development of clinical practice. Interface Comun Saúde Educ.2011;15(37):473-83. ).

Nesse sentido, a narrativa pode constituir-se como uma prática pedagógica reflexiva e transformadora, sendo considerada uma metodologia ativa de ensino sobre a família. As metodologias ativas de ensino-aprendizagem são aplicadas com o objetivo de permitir ao educando construir um conhecimento relacionado às vivências e situações reais, possibilitando o desenvolvimento de uma visão crítico-reflexiva dos conteúdos apresentados, bem como conquistar a autonomia e responsabilidade por seu aprendizado(8).

No contexto da doença e hospitalização, a narração é tecida por um ser que nos convida a viver sua experiência, dando sentido a uma vivência que, muitas vezes, é imperceptível aos olhos de quem cuida.

Nessa perspectiva, um workshop foi realizado com o tema central Cuidado Centrado na Família. A programação constou de mesas redondas e conferências sobre estratégias para promover o ensino do CCF com duração de dois dias. No primeiro foi realizada a atividade de sensibilização que consistiu da narrativa de uma família sobre sua experiência de doença e hospitalização da criança, com duração de duas horas. A mãe de uma criança de dois anos, com diagnóstico de tumor cerebral apresentou um vídeo sobre a trajetória vivenciada pela família. Na sequência uma especialista em enfermagem da família conduziu uma interlocução com a mãe, trazendo à tona a vivência da família durante o tratamento da criança, seus anseios e dificuldades e as interações com os profissionais da equipe de saúde. Ao término da atividade, foi realizado um diálogo com a plateia, para o esclarecimento de dúvidas, sendo mais uma oportunidade para ampliar as reflexões de cada um.

Questionamo-nos como os participantes atribuíram significado ao uso da narrativa para a promoção do seu aprendizado sobre a experiência de doença da família. Desta forma, o objetivo do estudo foi compreender o significado do uso da narrativa de doença para a sensibilização de estudantes e profissionais de saúde para o modelo do cuidado centrado na família.

MÉTODO

Estudo de abordagem qualitativa fundamentado na filosofia do Cuidado Centrado na Família e conduzido pela Análise Qualitativa de Conteúdo como referencial metodológico.

O CCF baseia-se em parcerias mutuamente benéficas entre profissionais da saúde, pacientes e famílias, cujos pilares são dignidade e respeito, colaboração, participação e informação compartilhada( 5Institute for Family-Centered Care. Partnering with patients and families to design a patient-and family-centered health care system: recommendations and promising practices [Internet]. Bethesda, MD: Institute for Patient and Family-Centered Care; 2012 [citado 2014 nov 11]. Available in: http://www.familycenteredcare.org/pdf/PartneringwithPatientsandFamilies.pdf
http://www.familycenteredcare.org/pdf/Pa...
).

A Análise Qualitativa de Conteúdo é um método de pesquisa sistemático cujo objetivo é realizar uma descrição condensada e ampla do fenômeno, resultando em conceitos ou categorias que o descrevem( 9Elo S, Kynga H. The qualitative content analysis process. J Adv Nurs. 2008;62(1):107-15. ).

O II Workshop Cuidado Centrado na Família: Estratégias para o ensino do Cuidado Centrado na Família foi promovido em agosto de 2013, por um núcleo de estudo e pesquisa, ligado a uma instituição de ensino superior (IES), localizada no Município de São Paulo. A IES oferece cursos de graduação na área da saúde e dispõe de hospitais vinculados ao ensino, referência para o atendimento da saúde da população. O workshop foi amplamente divulgado via eletrônica na IES.

A coleta de dados ocorreu ao final do evento e os critérios de inclusão dos sujeitos no estudo foram ser estudante de curso de graduação ou profissional, ambos da área da saúde, atuando na assistência e/ou na docência. Foram excluídos aqueles que no momento da pesquisa estivessem exercendo atividades exclusivamente gerenciais.

Participaram do workshop 32 inscritos. Destes, 29 compuseram a amostra do estudo, sendo 17 estudantes de cursos de graduação em enfermagem e psicologia e 12 profissionais de diversas disciplinas da área da saúde atuando na assistência hospitalar, na docência e/ou na pós-graduação stricto sensu.

Os dados foram coletados por meio de um questionário contendo perguntas abertas sobre os pensamentos e sentimentos despertados pela narrativa da família; a percepção do participante em relação ao uso da narrativa para sua sensibilização sobre o cuidado centrado na família e os aspectos significativos da narrativa para seu crescimento pessoal e profissional.

A análise do material empírico produzido seguiu os fundamentos da Análise Qualitativa de Conteúdo. Primeiramente, os dados foram transcritos na integra e, na sequência, foram realizadas leituras exaustivas com atenção às particularidades de cada resposta, bem como a totalidade delas, seguindo-se os passos preconizados para identificação, codificação e categorização dos dados( 9Elo S, Kynga H. The qualitative content analysis process. J Adv Nurs. 2008;62(1):107-15. ).

O desenvolvimento do estudo atendeu às normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos, conforme a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) no momento da coleta dos dados e, para manter o sigilo, as avaliações preenchidas pelos estudantes foram representadas na pesquisa pela letra "E" e as fichas dos profissionais pela letra "P". O projeto foi aprovado no Comitê de Ética e Pesquisa da IES, sob Protocolo nº 569.848/2014.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A categoria analítica que emergiu da análise dos dados, "sendo transformado pela narrativa da família", representa o modo como os participantes atribuem sentido ao uso da narrativa para promover o cuidado centrado na família, composta de três subcategorias: a narrativa favorece a aproximação com a experiência da família; a narrativa facilita o aprendizado sobre a família; e a narrativa gera reflexão sobre a prática com a família, que aprofundam a compreensão desse movimento de transformação provocado nos participantes do workshop e revelam elementos importantes para serem aplicados no ensino, a fim de promover a sensibilização para o cuidado centrado na família.

A narrativa favorece a aproximação com a experiência da família

Os participantes atentos à narrativa da família tornam-se sensibilizados por ela, o que favorece sua aproximação com a experiência da família. Eles revelam o despertar de sentimentos que provocam emoções intensas e modificam, de maneira única, suas próprias vidas. A narrativa da família os remete às suas experiências de cuidado vivenciadas no passado, tornando-os mais sensíveis, empáticos e abertos para compreender as vivências e estratégias de enfrentamento da família.

Cada participante percebe a seu tempo que a família, ao narrar sua vivência, traz para a cena relatos que considera relevantes para que ele possa compreender a história vivida. A narrativa da família revela suas dores e alegrias de modo contundente, pois se trata de um contexto de intenso sofrimento pelo constante temor da perda de seu ente querido. Isto desperta o participante para o sofrimento da família.

Sensibilizou. Pude perceber a franqueza e sensibilidade dos relatos (P3)

Importante, pude perceber o quão sensível essa família fica após passar por uma situação de internação e doença crônica. É válido olhar o lado da família e se sentir mais próximo da dificuldade de enfrentamento (E2).

Foi instigante, pois eu queria compreender como aquela família faz para enfrentar a doença. Consegui ouvir suas forças, identificando-as de maneira objetiva e subjetiva (E6).

Tanto o profissional como o estudante sensibilizam-se pelo fato de serem transportados por meio da narrativa, para a vivência da família com o adoecimento e hospitalização da criança.

Nesse sentido, a narrativa exerce papel importante, uma vez que o discurso oral ou escrito é essencial na aproximação entre os sujeitos. Traduz-se como um testemunho compartilhado, uma forma de aproximação e desvendamento de uma vivência que precisa ser ouvida e observada pelo profissional de saúde para que ganhe materialidade. O ouvinte precisa considerar os aspectos da fala, os enredos e as atitudes das pessoas que podem melhor dizer sobre as experiências que estão vivendo. Elementos que compõem a forma e o sentido da narrativa passam a ser valorizados e analisados. Referir-se à narrativa como uma construção e constituição da realidade baseada na experiência no mundo implica observar e valorizar de modo diferente a dimensão temporal das histórias, ou seja, considerá-la como uma dimensão transcendente ao mero ordenamento ou sequenciamento cronológico de fatos, como os sinais e sintomas( 7Favoreto CAO, Camargo Jr KRC. Narrative as a tool for the development of clinical practice. Interface Comun Saúde Educ.2011;15(37):473-83. ).

Além disso, a narrativa provoca o sentimento de empatia pela dor do outro, por aproximar os participantes da realidade da família. Isto desencadeia uma reflexão sobre o modo de ser e agir de cada um dos participantes.

Fica mais fácil de nos colocarmos no lugar dela, ver todo aquele sofrimento, a luta dela ao lado da família pela recuperação da filha. O profissional consegue enxergar melhor como a família se sente nesta situação e pode fazê-lo ter vontade de melhorar o cuidado a essa criança e sua família (E1).

Por mais que imaginemos o quanto a experiência é triste e de sofrimento, foi mais impactante ouvir o relato da mãe, pude me imaginar no lugar dela (E13).

Possibilita compartilhar a experiência vivida pela família, de modo direto. O profissional revive junto com a família [...] consegue sentir/ver o não verbal o que fortalece que sentimentos emergem, desencadeia empatia e desperta para as necessidades da família (P6).

Ao conhecer a vivência da família e aproximar-se do problema enfrentado por ela, os participantes percebem o impacto da doença na vida da família e são levados a conhecer as dificuldades enfrentadas por ela em seu cotidiano, bem como as interações com a doença e a equipe. Também faz com que percebam que a família não é uma entidade fraca e sem poder para tomar decisões, mas, sim, observam sua força e capacidade para superar as adversidades.

O vínculo entre o profissional e a família pode ser uma ferramenta importante para fortalecer os relacionamentos. Ouvir a família, de maneira atenta e com empatia é fundamental para promover seu empoderamento( 4Rodrigues PF, Amador DD, Silva KL, Reichert APS, Collet N. Interação entre equipe de enfermagem e família na percepção dos familiares de crianças com doenças crônicas. Esc Anna Nery. 2013;17(4):781-7. ).

A narrativa facilita o aprendizado sobre a família

A narrativa é um modo de facilitar a consolidação do aprendizado teórico, pois, ao ouvi-la, os participantes tornam-se motivados a buscar mais elementos para seu aprendizado, uma vez que se sentem inoculados pela ideia de cuidar da família. Percebem que ainda lhes faltam instrumentos que os ajudem a cuidar envolvendo a família como um todo. A oportunidade de ouvir um depoimento de família vivendo uma experiência de doença é rica, pois os encoraja a agir em prol da família em sua prática.

[A narrativa] apresentou conceitos que desconhecia, pois apesar de eu tentar trabalhar com famílias em minha prática profissional, ainda faltavam instrumentos. Essa experiência me motivou a buscar conhecer mais a literatura sobre este tema (P4).

Acredito que o depoimento é a maior estratégia de ensino que podemos ter. É possível identificar as necessidades, dificuldades e potencialidades da família (P5).

Existem inúmeros trabalhos e teorias sobre o cuidado centrado na família que nós podemos estudar, porém, a vivência na prática proporciona uma experiência única, podemos formar individualmente nossas próprias concepções sobre como enfrentar essas situações, assim entendemos o que é realmente importante para os pacientes (E7).

O ensino exerce grande responsabilidade pelo modo como os estudantes e, consequentemente, os profissionais são sensibilizados para o cuidado centrado na família. A sensibilização por meio de uma formação que considere a família como centro do cuidado é o elemento essencial para conduzir a prática profissional( 1010 Cruz AC, Angelo M. Cuidado centrado na família em pediatria: redefinindo os relacionamentos. Cienc Cuid Saúde. 2011;10(4):861-5. ).

O uso da narrativa facilita o aprendizado sobre como a família vivencia o tratamento, as dificuldades para enfrentá-lo, levando o profissional a refletir sobre as possibilidades para ajudá-la. Aprender sobre família, com base na narrativa de sua experiência, ajuda o estudante a fixar melhor e trazer a teoria para a prática, traduzindo aquilo que ele lê em livros e artigos para um cenário real.

Conseguimos entender de uma maneira mais clara as dificuldades e momentos de fraqueza pelo qual a família está passando e que, muitas vezes, nós não prestamos atenção e não damos a assistência necessária (E15).

Foi muito positivo para que eu tivesse um contato com o cuidado centrado na família, que não a descrição teórica de livros ou exposição em aulas que são muito válidas, sem dúvidas, mas insubstituíveis pela prática (E11).

Vendo um exemplo feito por quem já conhece bem o Cuidado Centrado na Família ajuda a direcionar melhor nossa abordagem como profissional de saúde e ter a certeza da importância de cuidar da família (E4).

A formação dos profissionais de saúde está sendo desafiada por uma nova perspectiva, que exige a procura de novos referenciais ancorados em paradigmas que interligam educação, saúde e desenvolvimento humano e sustentam a importância da formação em uma perspectiva reflexiva( 1111 Prearo AY, Monti FMF, Barragan E. É possível desenvolver a autorreflexão no estudante de primeiro ano que atua na comunidade? um estudo preliminar. Rev Bras Educ Méd. 2012;36(1):24-31. ). No processo de formação, a estimulação da capacidade crítica e reflexiva facilita o processo de ensino-aprendizagem e a construção da autonomia dos envolvidos( 1212 Moura ECC, Mesquita LFC. Estratégias de ensino-aprendizagem na percepção de graduandos de enfermagem. Rev Bras Enferm. 2010;63(5):793-8. ).

A experiência dos participantes é transformada pela narrativa da família e torna-se inesquecível por ser diferente de tudo que estava acostumado. A partir desse encontro, tanto o estudante como os profissionais consideram que o aprendizado torna-se marcante, traduzindo-se em aprendizagem rica de significados.

Marcante! Jamais esquecerei, foi uma experiência muito relevante para meu aprendizado, fiquei muito emocionada (E17).

É de importância imensa, pois nos toca não só como profissional, mas também pessoalmente, nos tornando mais humanizados no cuidado prestado. (E8)

Muito importante, pois aproxima da realidade (P9).

É uma experiência inesquecível (P8).

O processo educativo comprometido com o outro, com seus valores e suas relações, sobretudo familiares, pautado na reciprocidade e solidariedade, possibilita a construção de uma conduta ética e humana( 1313 Sebold LF, Kempfer SS, Carraro TE, Radünz V. Contribuições de encontros de sensibilização e cuidado para acadêmicos de enfermagem. Rev Enferm UFSM. 2012;2(2):386-93. ).

A narrativa gera reflexão sobre a prática com a família

A experiência vivida faz os participantes repensarem como estão agindo com a família em sua prática. Eles ampliam para a possibilidade de cuidar não apenas da criança doente, mas, da família como um todo. Entendem e expandem seu foco, antes centrado no cuidado ao corpo, tratando os sinais e sintomas da doença, para uma prática que envolve o cuidado biossocioespiritual e cultural. Desta forma, a sensibilização promovida pela narrativa provoca uma disposição interna para pensar família.

[...] faz refletir sobre a nossa prática (P10).

Faz com que não vejamos só a doença, e sim as pessoas que têm que conviver com essa doença [...] não só a criança, toda a família (E3).

Pude perceber como é importante que os profissionais de saúde sejam claros com a família. O apoio emocional que, muitas vezes, não existe, já que existe uma preocupação maior de cuidar da pessoa hospitalizada, mas tem uma família que está sofrendo com essa situação, que está cansada, por isso, o suporte é fundamental (E14).

A narrativa da família faz com que repensem a conduta que cada um tem diante da família e o que poderiam fazer para modificar sua prática, no sentido de incluí-la no cuidado. Perguntas sobre como ajudar a família a ter seu sofrimento amenizado e como auxiliá-la a enfrentar a experiência da doença passam a fazer parte do pensamento de cada um.

A narrativa provoca nos profissionais uma reflexão sobre a ação e uma predisposição a uma atitude mais acolhedora e empática com a família. Na especificidade da assistência na área da saúde, é fundamental refletir sobre a prática realizada e questionar-se em relação ao posicionamento institucional e profissional que compreende o sofrimento da família como secundário ou inexistente( 1010 Cruz AC, Angelo M. Cuidado centrado na família em pediatria: redefinindo os relacionamentos. Cienc Cuid Saúde. 2011;10(4):861-5. ).

A prática de cuidado integral abrange o desenvolvimento de saberes técnicos e saberes subjetivos - entre outros, a capacidade de reflexão crítica -, expressos por meio de atitudes de dedicação para consigo mesmo e para com o outro. Dessa forma, torna-se importante investir na formação profissional que fortaleça a visão ética e humanista, bem como o pensamento crítico e reflexivo voltado ao desenvolvimento de competências e habilidades que contemplem a família como objeto do cuidado( 1414 Buogo M, Castro G. Memorial de formação: um dispositivo de aprendizagem reflexiva para o cuidado em saúde. Trab Educ Saúde. 2013;11(2):431-49. ).

Esta reflexão faz com que os participantes despertem para uma prática que contemple a família como unidade, pois com base na revelação de seu sofrimento e das interações construídas são tocados pelo humanismo, que havia sido deixado de lado em função das atividades cotidianas da prática. A narrativa resgata o humanismo dos profissionais e coloca-os frente ao sofrimento e à dor do outro. Desta forma, têm oportunidade de abrir-se às necessidades da família e repensar em uma prática que as atenda.

Fui muito sensibilizada com a história. A partilha dessa experiência me chamou a atenção para uma reflexão pessoal e profissional: O que eu posso fazer para amenizar esse sofrimento? O que eu posso fazer para ajudar essa família para um melhor enfrentamento da doença? (E10)

Ouvindo e vendo exemplos como esse, podemos refletir na maneira como realizamos nosso trabalho. É um momento em que paramos para avaliar em que podemos melhorar para atuar da melhor forma possível levando auxílio à família em um momento delicado (E12).

Deparamo-nos com histórias parecidas e acabamos nos acostumando, deixando de lado o humanismo. É necessário haver momentos que nos chamem de volta à realidade (P1).

Preciso me aprimorar no assunto e me atentar mais para as relações humanas (P12).

Embora o Modelo do Cuidado Centrado na Família tenha sido proposto há cerca de quatro décadas, a teoria ainda se revela um ideal, pois não é amplamente aplicada pelos profissionais em seu cotidiano. Faz-se necessário avançar em termos de utilização do conhecimento produzido na prática clínica com a família para transformar a atual realidade, de modo a incluir a família como agente partícipe do cuidado, de modo colaborativo, respeitando sua expertise e suas potencialidades( 2Barbosa MAM, Balieiro MMFG, Pettengill MAM. Cuidado centrado na família no contexto da criança com deficiência e sua família: uma análise reflexiva. Texto Contexto Enferm. 2012;21(1):194-9. ). Neste sentido, a equipe de saúde necessita estar sensibilizada e instrumentalizada para cuidar da família e propor intervenções que minimizem seu sofrimento e promovam seu empoderamento, tais como compartilhar informações e incentivar a participação da família nos cuidados, respeitando-a em seu próprio tempo( 1515 Coyne I, Amory A, Gibson F, Kiernan G. Children, parents, and healthcare professionals perspectives on children's participation in shared decision making. Pediatr Blood Cancer. 2010;55(5):809-10. ).

CONCLUSÃO

Em sua avaliação, os participantes revelaram que a narrativa de doença e hospitalização sensibilizou-os para o modelo do cuidado centrado na família provocando: a) aproximação com a experiência da família, fazendo-os perceber o impacto da doença, as dificuldades enfrentadas e a força da família para superar as adversidades; b) facilitação do aprendizado sobre a família, visto que a narrativa promove a assimilação teoria/prática e a motivação dos participantes em buscar mais elementos para seu aprendizado; c) reflexão sobre a prática com a família, fazendo com os participantes repensem o agir, provocando uma disposição interna para pensar na família como foco do cuidado.

Uma limitação do estudo foi sua realização durante um workshop sobre o CCF em que os inscritos poderiam já estar predispostos ao tema. Além disso, a coleta de dados por meio de um questionário pode ter limitado a exposição por parte dos participantes acerca da sua experiência com o uso da narrativa. Novas pesquisas sobre o uso da narrativa em diversos momentos da formação e da prática do profissional de saúde podem ser úteis para ampliar a compreensão dos benefícios de sua utilização na aproximação com a realidade vivenciada pela família no processo de doença e hospitalização da criança.

Recomenda-se o uso desta estratégia nos cenários de ensino em todos os níveis de formação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2014
  • Aceito
    16 Jan 2015
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