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Enfrentamento da violência doméstica contra crianças e adolescentes na perspectiva de enfermeiros da atenção básica

El enfrentamiento de la violencia domestica contra niños y adolescentes bajo la perspectiva de enfermeros de la atención básica

RESUMO

Objetivo

Analisar as ações relatadas por enfermeiros da atenção básica no enfrentamento da violência doméstica contra crianças e adolescentes.

Métodos

Pesquisa qualitativa, realizada em cinco Unidades de Estratégia de Saúde da Família do Estado de São Paulo, Brasil. Dados coletados no segundo semestre de 2013 através de entrevistas semiestruturadas com cinco enfermeiras e analisados através de análise de conteúdo, modalidade temática.

Resultados

Emergiram dois núcleos temáticos: “Políticas públicas identificadas pelas enfermeiras” e “Ações das enfermeiras diante da violência permeadas por medos e conflitos”. As enfermeiras conheciam as políticas públicas, mas não conseguiam colocá-las em prática; estavam despreparadas para identificar e enfrentar a violência; não participavam de cursos de capacitação; temiam notificar os casos detectados de violência.

Conclusão

As principais limitações ao trabalho prático dos enfermeiros são a sobrecarga de trabalho, a falta de segurança e a dinâmica de trabalho desarticulada com a rede de proteção as quais levam à subnotificação dos casos de violência.

Violência doméstica; Atenção primária à saúde; Enfermagem em saúde comunitária; Criança; Adolescente

RESUMEN

Objetivo

Analizar las acciones relatadas por enfermeros de la atención básica en el enfrentamiento de la violencia doméstica contra niños y adolescentes.

Método

Investigación cualitativa, desarrollada en cinco Centros de Salud de Familia del estado de São Paulo, Brasil. Datos recolectados en la segunda mitad de 2013, mediante entrevistas semiestructuradas con cinco enfermeras y analizados a través de análisis de contenido, modalidad temática.

Resultados

Emergieron dos núcleos temáticos: “Políticas públicas identificadas por las enfermeras” y “Acciones de las enfermeras ante la violencia permeadas por miedos y conflictos”. Las enfermeras conocían las políticas públicas, pero no lograban colocarlas en práctica; no estaban preparadas para identificar y enfrentar la violencia; no participaban de cursos de capacitación; temían notificar los casos detectados de violencia.

Conclusión

Las principales limitaciones para el trabajo práctico de las enfermeras son la sobrecarga de trabajo, la falta de seguridad y la dinámica del trabajo desarticulada con la red de apoyo, que conducen a subregistro de casos de violencia.

Violencia doméstica; Atención primaria de salud; Enfermería en salud comunitaria; Niño; Adolescente

ABSTRACT

Objective

To analyse the actions reported by primary care nurses in the fight against domestic violence against children and adolescents.

Methods

Qualitative research conducted at five family health centres in the state of São Paulo, Brazil. Data were collected in the second half of 2013 through semi-structured

Results

Two thematic cores emerged: “Public policies identified by the nurses” and “Nurses’ actions regarding violence permeated by fear and conflicts”. The nurses were familiar with public policies, but they were unable to put them into practice; they were unprepared to identify and cope with the violence; they did not participate in training courses; they were afraid to report the detected cases of violence.

Conclusion

The main limitations to the practical work of nurses are work burden, lack of security, and the dynamics of work that is not articulated with the protection network, which causes the underreporting of cases of domestic violence.

Domestic violence; Primary healthcare; Community health nursing; Child; Adolescent

INTRODUÇÃO

A violência doméstica constitui uma das formas de violação dos direitos humanos. Entre 1980 e 2010, o número de homicídios contra jovens cresceu 346%, segundo dados do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde do Brasil. Nesse período, 608.492 crianças morreram em decorrência da violência e de acidentes, que são causas externas consideradas evitáveis pela Organização Mundial da Saúde. Em 2012, a taxa de homicídio era de 13 para cada 100 mil crianças e adolescentes, colocando o Brasil no 4º lugar entre 92 países do mundo11. Waiselfisz JJ. Mapa da violência 2012: crianças e adolescentes do Brasil. Rio de Janeiro: CEBELA/FLACSO Brasil; 2012..

Os atos de violência, praticados principalmente contra crianças e adolescentes, têm-se tornado obstáculos ao desenvolvimento desses indivíduos, bem como um grande problema de saúde pública mundial. A violência é um problema secular que atinge todas as classes sociais, etnias, religiões, raças e culturas, e afeta o ser humano em sua totalidade. Sendo assim, a violência não pode ser vista apenas como um fenômeno da epidemiologia ou das Ciências Sociais, mas deve ser analisada sob o paradigma da complexidade e combatida por meio de práticas interdisciplinares22. Budo MLD, Mattioni FC, Machado TS, Ressel LB, Borges ZN. Concepções de violência e práticas dos usuários da estratégia de saúde da família: uma perspectiva cultural. Texto Contexto Enferm. 2007;16(3):511-9.. Como a violência doméstica foi considerada um problema das áreas social e jurídica durante muitos anos, os profissionais da área da saúde não atuavam na sua prevenção e detecção, tampouco intervinham na sua ocorrência33. São Paulo (BR), Secretaria Municipal da Saúde, Coordenação de Desenvolvimento de Programas e Políticas de Saúde – CODEPPS. Caderno de violência doméstica e sexual contra crianças e adolescentes. São Paulo; 2007.. A avaliação multidisciplinar, sob o prisma de diversos profissionais da área da saúde, possibilita a análise global desta problemática, bem como enriquece a gama de informações obtidas e aumenta a profundidade da análise dos resultados. Consequentemente, emergem maior número e variedade de sugestões para a aplicação de políticas públicas visando o enfrentamento da violência doméstica44. Lobato GR, Moraes CL, Nascimento MC. Desafios da atenção à violência doméstica contra crianças e adolescentes no Programa Saúde da Família em cidade de médio porte do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública. 2012;28(9):1749-58..

A violência doméstica pode ser definida como “toda ação ou omissão praticada dentro ou fora de casa por algum membro da família ou pessoa que assume função parental, com relação de poder sobre a pessoa em situação de violência”33. São Paulo (BR), Secretaria Municipal da Saúde, Coordenação de Desenvolvimento de Programas e Políticas de Saúde – CODEPPS. Caderno de violência doméstica e sexual contra crianças e adolescentes. São Paulo; 2007.. Visando assegurar a proteção integral de crianças e adolescentes, o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)55. Estatuto da criança e do adolescente: lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 e legislação correlata. 11. ed. Brasília: Edições Câmara; 2014. determina: “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária”.

Embora a família represente o primeiro elo do indivíduo com a sociedade, do qual se espera proteção, carinho, transmissão de culturas e práticas educativas para seus descendentes, o ambiente familiar tem sido, frequentemente, ameaçador e prejudicial ao desenvolvimento do indivíduo. No ano de 2011, cerca de 63% dos atendimentos a crianças e adolescentes de 1 a 19 anos estavam relacionados à violência doméstica, segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação11. Waiselfisz JJ. Mapa da violência 2012: crianças e adolescentes do Brasil. Rio de Janeiro: CEBELA/FLACSO Brasil; 2012..

As consequências da violência doméstica podem acompanhar o indivíduo por todo o percurso de sua vida. As vítimas da violência doméstica possuem maior propensão à vida criminosa, ao envolvimento com substâncias nocivas, ao comportamento suicida e de automutilação, bem como ao desenvolvimento de ansiedade, depressão, distúrbios de personalidade, psicose, e problemas nos relacionamentos interpessoais e vocacionais. Grande parte das vítimas busca solucionar suas frustrações sociais com o uso de substâncias entorpecentes e o envolvimento com a criminalidade, alimentando o ciclo da violência66. Almeida MGB. A violência na sociedade contemporânea. Porto Alegre: EDIPUCRS; 2010..

Estudos recentes passaram a ter olhares específicos para alguns dos atores diretamente envolvidos na violência doméstica contra crianças e adolescentes que até então não eram considerados, mas que têm papel de fundamental importância na medida em que passam a ser o primeiro contato entre o indivíduo violentado e a sociedade, que tem o dever de protegê-lo. No cuidado da enfermagem com enfoque na pessoa, a necessidade e a multidimensionalidade do ser humano devem ser consideradas77. Luna GLM, Parente EO, Moreira DP, Vieira LJES. Notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes: o discurso oficial e a práxis. Rev Enferm UERJ. 2010;18(1):148-52.-88. Batista JMS, Trigueiro TH, Lenardet MH, Mazza VA, Labronici LM. O modelo bioecológico: desvendando contribuições para a práxis da enfermagem diante da violência doméstica. Esc Anna Nery 2013;17(1):173-8..

Nos últimos anos, nota-se uma crescente participação dos enfermeiros em diferentes espaços de promoção, proteção e recuperação da saúde de crianças e adolescentes, tais como nas escolas e nas Unidades de Estratégia de Saúde da Família (USF). Sendo assim, torna-se extremamente importante que estes profissionais estejam preparados para o enfrentamento e a prevenção da violência contra crianças e adolescentes. Na atuação da enfermagem, a prevenção tem sido vista e destacada como a melhor forma de enfrentar a problemática da violência88. Batista JMS, Trigueiro TH, Lenardet MH, Mazza VA, Labronici LM. O modelo bioecológico: desvendando contribuições para a práxis da enfermagem diante da violência doméstica. Esc Anna Nery 2013;17(1):173-8.. Em longo prazo, o estabelecimento de uma visão preventiva diante do fenômeno da violência poderá contribuir para a mudança do cenário atual. A nossa questão do estudo é: “como se desenvolvem as ações para o enfrentamento da violência doméstica contra a criança e o adolescente na atenção básica à saúde?”.

A literatura ainda se mostra incipiente sobre a inserção do enfermeiro no que tange ao cuidados a crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica, especialmente com abordagens mais compreensivas e no campo da atenção básica à saúde22. Budo MLD, Mattioni FC, Machado TS, Ressel LB, Borges ZN. Concepções de violência e práticas dos usuários da estratégia de saúde da família: uma perspectiva cultural. Texto Contexto Enferm. 2007;16(3):511-9.

3. São Paulo (BR), Secretaria Municipal da Saúde, Coordenação de Desenvolvimento de Programas e Políticas de Saúde – CODEPPS. Caderno de violência doméstica e sexual contra crianças e adolescentes. São Paulo; 2007.

4. Lobato GR, Moraes CL, Nascimento MC. Desafios da atenção à violência doméstica contra crianças e adolescentes no Programa Saúde da Família em cidade de médio porte do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública. 2012;28(9):1749-58.

5. Estatuto da criança e do adolescente: lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 e legislação correlata. 11. ed. Brasília: Edições Câmara; 2014.

6. Almeida MGB. A violência na sociedade contemporânea. Porto Alegre: EDIPUCRS; 2010.

7. Luna GLM, Parente EO, Moreira DP, Vieira LJES. Notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes: o discurso oficial e a práxis. Rev Enferm UERJ. 2010;18(1):148-52.
-88. Batista JMS, Trigueiro TH, Lenardet MH, Mazza VA, Labronici LM. O modelo bioecológico: desvendando contribuições para a práxis da enfermagem diante da violência doméstica. Esc Anna Nery 2013;17(1):173-8.. Portanto, o interesse de ter como objeto de estudo a participação do enfermeiro no enfrentamento e no combate à violência doméstica contra crianças e adolescentes tem destacada relevância social, pois promove a reflexão sobre uma questão importante para o avanço do conhecimento da enfermagem e de outros profissionais de saúde, bem como revela questionamentos éticos e legais de interesse profissional. Diante deste cenário, o presente estudo visa analisar as ações relatadas por enfermeiros da atenção básica à saúde no enfrentamento da violência doméstica contra crianças e adolescentes, a partir da perspectiva da atenção integral à saúde.

MÉTODOS

A pesquisa adotou abordagem qualitativa, considerada como aquela desenvolvida no estudo da história, das relações, das crenças, das representações e das opiniões, resultante das interpretações que os indivíduos realizam a respeito (i) do seu modo de viver; (ii) de como constroem seus artefatos; e (iii) de si mesmos, em particular de como sentem e pensam. Esta abordagem também mostra processos sociais pouco conhecidos relativos a grupos particulares, possibilitando a construção de novas abordagens, a revisão das abordagens vigentes, e o estabelecimento de novos conceitos e categorias durante a investigação. O presente estudo se configura como uma pesquisa social estratégica, permitindo compreender a realidade e inseri-la no objetivo proposto99. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. Rio de Janeiro: Hucitec; 2010..

A presente investigação foi realizada em instituições de atenção básica à saúde, em cinco USF do Estado de São Paulo – Brasil. Participaram da pesquisa cinco enfermeiras, sendo uma de cada USF. Os principais critérios adotados para selecionar as USF foram: a presença de pelo menos um enfermeiro em cada USF; tempo mínimo de 6 meses de implantação da USF; a ligação da USF com a Universidade de São Paulo.

O universo do estudo foi definido pelo critério de saturação das falas a partir de reincidência das informações, perfazendo um total de cinco sujeitos. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas realizadas com as cinco enfermeiras, com as seguintes questões norteadoras: (1) Quais as ações dos enfermeiros no enfrentamento da violência doméstica contra crianças e adolescentes e suas famílias no âmbito da atenção básica à saúde nas USF? (2) Qual a rede de proteção conhecida pelos enfermeiros das USF no enfrentamento da violência doméstica contra crianças e adolescentes?

As entrevistas foram realizadas pelas pesquisadoras no segundo semestre de 2013, gravadas, e direcionadas por um roteiro contendo as questões relacionadas ao objeto de estudo. As falas das enfermeiras foram identificadas pela letra E, seguidas do número da entrevista, como forma de garantir seu anonimato. O protocolo deste estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Saúde Escola da Faculdade de Medicina – USP, Processo nº 248. As participantes foram previamente esclarecidas pelas pesquisadoras sobre os objetivos do estudo, e concordaram formalmente em participar deste por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Os dados foram analisados e categorizados por meio de análise de conteúdo, modalidade temática, que consiste em descobrir os núcleos do sentido que compõem uma comunicação que significa alguma coisa para o objetivo analítico visado, considerando a fala no cotidiano do ser humano como um modo mais puro e sensível de relação social. Após a leitura flutuante das falas das enfermeiras, os dados foram organizados e categorizados de acordo com as unidades de significância que emergiram dos depoimentos dos sujeitos99. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. Rio de Janeiro: Hucitec; 2010..A partir das ideias centrais extraídas desses documentos, foram organizados os núcleos temáticos apresentados na seção seguinte.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

As participantes do estudo eram do sexo feminino, na faixa etária de 30 a 55 anos, com formação de nível superior em enfermagem. O tempo de atuação dessas profissionais na área de enfermagem variou de 8 a 27 anos, sendo de 6 a 12 anos na área de Saúde da Família. Todas as enfermeiras relataram que a ocupação atual não era o seu primeiro emprego, tendo trabalhado anteriormente em Unidades Básicas de Saúde, hospitais, e outras USF. Três entrevistadas afirmaram ter recebido treinamento para a USF e, dentre estas, apenas uma enfermeira afirmou ter sido instruída sobre a temática da violência doméstica. As cinco enfermeiras que atuavam na USF foram entrevistadas em seu local de trabalho.

Ao final do processo de análise do material coletado, emergiram os seguintes núcleos temáticos: “Políticas públicas identificadas pelas enfermeiras” e “Ações das enfermeiras diante da violência permeadas por medos e conflitos”.

Políticas públicas identificadas pelas enfermeiras

Nos depoimentos das profissionais, ficou evidente que elas tinham conhecimento das políticas públicas e se sensibilizavam quanto à importância dos eventos promovidos pela Secretaria Municipal da Saúde para ajudá-las no combate da violência; entretanto, elas priorizavam outras atividades como consultas, visitas e outros procedimentos técnicos, em decorrência do modo de organização do trabalho nas USF, como é possível identificar na fala abaixo:

[...] Bem, são eventos do governo, que falam como lidar com esse problema, discutem casos, ajudam as pessoas que trabalham na área da saúde. Quando dá, a nossa equipe comparece, mas é complicado porque devido ao tempo e muitos compromissos na unidade. (E5)

As dificuldades enfrentadas pelas enfermeiras e por outros profissionais dos serviços de saúde pública têm sido notórias, tanto no âmbito teórico como no prático, o que têm desmotivado as equipes de trabalho para atuar efetivamente no combate à violência doméstica contra crianças e adolescentes, conforme evidencia a fala abaixo:

[...] A secretaria faz oficinas, alguns eventos que ajudam muito. Mas aqui no núcleo a gente não tem pernas para ir devido a poucos funcionários. (E3)

Os profissionais de enfermagem frequentemente sentem-se desamparados e desconhecem os procedimentos que devem ser tomados, o que gera desgaste físico e emocional e descontentamento com o seu próprio trabalho1010. Deslandes SF. Frágeis deuses: profissionais de emergência entre os danos da violência e a recriação da vida. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002.. Os enfermeiros enfrentam dificuldades para notificar os casos de violência, e alguns desconhecem o que notificar, informando, geralmente, os casos de violência física ou sexual. Tais profissionais não recebem informações da família, que guarda segredo sobre o fato e, em muitos casos, denunciam a inoperância do Conselho Tutelar frente ao caso notificado, frustrando-se a resolutividade da notificação realizada1111. Oliveira SM, Fatha LCP, Rosa VL, Ferreira CD, Gomes GC, Xavier DM. Notificação de violência contra crianças e adolescentes: atuação de enfermeiros de Unidades Básicas. Rev Enferm UERJ. 2013;21(Suppl.1):594-9..

O presente estudo constatou também que, muitas vezes, as profissionais de enfermagem não conseguiram lidar com a questão da violência doméstica de forma efetiva, devido à alta demanda de atendimentos, ao reduzido tamanho das equipes, e à falta de capacitação, conforme demonstrado pelas seguintes declarações:

[...] Então a secretaria até está tentando fazer, porque talvez seja esse mesmo o caminho né? Começar, instrumentalizar mesmo o profissional de saúde para lidar com esse tipo de coisa, coisa que não sabe, medo, insegurança, se pedir com certeza eles ajudam. Eles são pessoas muito disponíveis. Eles são muito comprometidos mesmo com isso né? (E2)

A realidade vivenciada pelas cinco USF visitadas torna evidente o fato de que a Secretaria de Saúde precisa desenvolver ações concretas para que os enfermeiros possam participar das atividades de capacitação para o enfrentamento da violência doméstica, a fim de que os mesmos estejam aptos a agir quando necessário, e colocar em prática o conteúdo aprendido; entretanto, denota-se na fala abaixo a impossibilidade de comparecerem nas atividades programadas para essa capacitação:

[...]A secretaria às vezes chama pra gente conversar e sempre tem as dicas de como proceder à violência... Pra ensinar como a gente desconfia, de como a gente consegue fazer prevenção. A gente infelizmente não pode ir né? A gente teve outras atividades e não pudemos ir. (E2)

É de suma importância que os gestores do poder público incluam em suas pautas de discussão como melhorar o suporte técnico e legal aos profissionais de saúde para que eles atuem de acordo com as normas e diretrizes preconizadas pelo Sistema Único de Saúde1212. Barbosa IL, Pereira AS, Moreira DP, Luna GLM, Oliveira AKA, Ferreira RC, et al. Conhecimento da equipe básica de Saúde da Família sobre notificação de maus tratos contra crianças e adolescentes no município de Pacajus – CE. Cadernos ESP. 2009;3(1):24-32.. Portanto, é fundamental institucionalizar as condições de segurança e de apoio ao profissional de saúde para que se estabeleça a notificação como rotina na instituição de saúde. Este é um importante objetivo a ser alcançado, mas pode ser extremamente difícil atingi-lo quando a criminalidade local for intensa.

As profissionais de saúde explicitaram o seu despreparo para lidar com as situações de violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes, sobretudo para identificar, por exemplo, se um caso de omissão foi decorrente de negligência ou de falta de condições econômicas da família. Verificou-se uma tentativa de medicalização do fenômeno pela dificuldade em lidar com os aspectos sociais e a promoção da saúde.

Atualmente, muitos profissionais de enfermagem encontram-se despreparados e desinformados sobre as políticas públicas de proteção à criança e ao adolescente e, consequentemente, deixam de notificar os casos suspeitos de violência atendidos nos serviços de saúde1313. Algeri S, Almoarqueg SR, Borges RSS, Quaglia MC, Marques MF. Violência intrafamiliar contra a criança no contexto hospitalar e as possibilidades de atuação do enfermeiro. Rev HCPA. 2007;27(2):57-60.. A capacitação do profissional de enfermagem tem sido apontada como uma das principais estratégias para superar essas barreiras1212. Barbosa IL, Pereira AS, Moreira DP, Luna GLM, Oliveira AKA, Ferreira RC, et al. Conhecimento da equipe básica de Saúde da Família sobre notificação de maus tratos contra crianças e adolescentes no município de Pacajus – CE. Cadernos ESP. 2009;3(1):24-32.-1313. Algeri S, Almoarqueg SR, Borges RSS, Quaglia MC, Marques MF. Violência intrafamiliar contra a criança no contexto hospitalar e as possibilidades de atuação do enfermeiro. Rev HCPA. 2007;27(2):57-60.. Além disso, é importante que os profissionais de saúde desenvolvam a capacidade de perceber a problemática da violência a partir de uma perspectiva abrangente, dialética e baseada na realidade objetiva, e não apenas em sinais de alerta, para que as vulnerabilidades sejam reconhecidas e o fenômeno seja desvelado de uma maneira que se possa intervir nele1414. Apostólico MR, Hino P, Egry EY. Possibilities for addressing child abuse in systematized nursing consultations. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(2):320-7..

A questão da violência intrafamiliar integra a pauta de atuação dos profissionais de enfermagem, mas não há um projeto específico de prevenção e combate a este tipo de violência, nem uma política pública voltada à capacitação dos trabalhadores para lidar com esta problemática1515. Lima MCCS, Costa MCO, Bigras M, Santana MAO, Alves TDB, Nascimento OC, et al. Atuação profissional da atenção básica de saúde face à identificação e notificação da violência infanto-juvenil. Rev Baiana Saúde Pública. 2011;35(Suppl.1):118-37.. Devido à complexidade e à especificidade da temática da violência doméstica, torna-se imprescindível compartilhar a busca de conhecimento e as propostas de programas de atuação, diagnóstico e tratamento do fenômeno, visando capacitar todos os profissionais envolvidos para uma atuação adequada e eficiente na função de proteção às vítimas1010. Deslandes SF. Frágeis deuses: profissionais de emergência entre os danos da violência e a recriação da vida. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002..

Para garantir a integralidade da saúde das crianças e dos adolescentes é necessário colocar em pauta uma estratégia de capacitação e orientação dos profissionais de saúde, visando a continuidade do atendimento e a articulação das ações das redes de apoio. Desse modo, é importante que o profissional, além de detectar a situação da violência doméstica, denuncie e notifique o caso às autoridades competentes, e realize o acompanhamento da vítima e de sua família. Em tese, essas ações possibilitariam a mudança do comportamento violento da família.

Ações das enfermeiras diante da violência permeadas por medos e conflitos

Neste núcleo temático foi explorado como as enfermeiras atuavam frente aos casos de violência e quais sentimentos acompanhavam as suas ações. Os depoimentos das enfermeiras que atuavam nas USF revelaram o seu receio em notificar os casos detectados de violência doméstica de acordo com o fluxo estabelecido pelas políticas públicas, conforme evidenciado pelos seguintes relatos:

[...] A gente identifica e notifica para a secretaria, mas não mexe com o conselho tutelar. Se a pessoa quiser, tiver interesse agente até orienta “você pode falar com o conselho tutelar para te ajudar”, mas até disso a gente tem um pouco de receio porque não estará vindo uma ajuda verdadeira. Sabe? [...], os conselheiros não fazem um trabalho correto, os que trabalham tem esse tipo de atitude, faz a gente virar vilão da situação, aí a gente corre risco de morte, a gente não pode também né, a gente tem que proteger nossa família. (E1)

[...] Tem a ficha de notificação da secretaria da saúde, mas essa ficha são dados estatísticos, para fazer leis para as vítimas. Temos essa ficha aqui no núcleo e quando tem algum caso a gente manda. A gente tem o conselho tutelar, mas não gostamos de trabalhar com ele, é um pessoal sem preparo, então ficamos perdidos. (E4)

Embora os profissionais de enfermagem que atuam nos casos de violência estejam expostos à uma carga emocional intensa e à falta de proteção nos casos de denúncia de abuso1414. Apostólico MR, Hino P, Egry EY. Possibilities for addressing child abuse in systematized nursing consultations. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(2):320-7., eles precisam se engajar no enfrentamento da violência e na melhoria da qualidade dos serviços de saúde, a fim de contribuir para a construção de uma sociedade mais justa, democrática e solidária. Dessa forma, será possível resgatar seu amplo e sério compromisso social, político e moral em relação à sua práxis profissional, pois cada profissional, independente da área em que atue, é responsável de alguma maneira pelas crianças e adolescentes que estão em situação de violência1515. Lima MCCS, Costa MCO, Bigras M, Santana MAO, Alves TDB, Nascimento OC, et al. Atuação profissional da atenção básica de saúde face à identificação e notificação da violência infanto-juvenil. Rev Baiana Saúde Pública. 2011;35(Suppl.1):118-37..

O presente estudo evidenciou que, apesar da preocupação das enfermeiras em atuar na prevenção dos casos de violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes, a sua atuação limitou-se à notificação de casos suspeitos ou confirmados de violência. Após encaminhá-los ao Conselho Tutelar, as profissionais de enfermagem não acompanharam seu desfecho. Uma vez que a notificação da violência envolvendo crianças e adolescentes gera denúncia, as enfermeiras se excluíram desse processo, por motivo de segurança pessoal ou comodidade.

Um ponto de grande destaque no presente estudo é o medo revelado pelas profissionais da saúde no enfrentamento da violência doméstica. Comumente, elas se sentiam intimidadas pelo autor da violência, em função das ações executadas pelos agressores às vítimas, e das ameaças da própria família das vítimas aos profissionais de saúde, principalmente dos que atuam nas USF. Além disso, o vínculo e a proximidade das USF com as famílias acentuaram o medo das enfermeiras de executar ações no combate à violência doméstica. Seguem alguns relatos que evidenciam o que foi exposto acima:

[..] Para o trabalhador da saúde realmente é muito difícil, ainda mais em um lugar assim que as pessoas conhecem a gente pelo nome, os agentes moram na área, é muito próximo, né? (E2)

[...] Às vezes me sinto de mãos atadas sabe, por medo, por não saber como agir, tenho medo que minha insegurança aflore. (E5)

[...] Então, nós aqui do núcleo temos poucos casos de violência contra criança ou adolescente, mas também temos medo sabe. Medo da reação do agressor [...] Mas é difícil viu, porque mesmo conhecendo essas ajuda a gente tem medo, medo do agressor, medo de acontecer alguma coisa com a gente. (E4)

Neste estudo, os depoimentos das enfermeiras indicam que o sentimento de medo contribui para a subnotificação dos casos de violência doméstica contra crianças e adolescentes. O relato seguinte é um exemplo típico dessa ocorrência:

[...] A notificação hoje amedronta a equipe porque muitas vezes a gente fica sabendo, a gente percebe que ocorre a violência, mas a família não concorda com isso, então você fazer uma notificação é a mesma coisa que você fazer uma denúncia porque a notificação leva o nome, leva tudo, muito complicado. (E2)

Na prática, as profissionais de enfermagem demonstraram medo de notificar os casos detectados de violência doméstica, delegando esta função a outros profissionais. A ação de repassar os casos de violência para outros profissionais ou setores demonstra que os enfermeiros se deparam com diversos desafios. Um deles é a falta de compreensão de si mesmos como parte importante do processo de enfrentamento de um fenômeno complexo e multicausal como a violência1515. Lima MCCS, Costa MCO, Bigras M, Santana MAO, Alves TDB, Nascimento OC, et al. Atuação profissional da atenção básica de saúde face à identificação e notificação da violência infanto-juvenil. Rev Baiana Saúde Pública. 2011;35(Suppl.1):118-37.. Os resultados do presente estudo corroboram com o relato de que o medo dos profissionais de saúde de encarar o agressor é uma realidade muito presente nas instituições de saúde pública e pode acarretar a falta de ação dos profissionais como medida de proteção, pois eles se sentem desamparados para lidar com o fenômeno da violência doméstica1515. Lima MCCS, Costa MCO, Bigras M, Santana MAO, Alves TDB, Nascimento OC, et al. Atuação profissional da atenção básica de saúde face à identificação e notificação da violência infanto-juvenil. Rev Baiana Saúde Pública. 2011;35(Suppl.1):118-37..

Deve-se lembrar que, segundo o artigo 13 do ECA55. Estatuto da criança e do adolescente: lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 e legislação correlata. 11. ed. Brasília: Edições Câmara; 2014., a notificação dos casos suspeitos ou confirmados de violência contra crianças e adolescentes é compulsória para os profissionais de saúde. Além de gerar uma denúncia formal, a notificação deve desencadear as ações de proteção às vítimas. A resistência dos profissionais de saúde em realizar a notificação resulta principalmente de alguma experiência negativa ou da perseguição pelos familiares das vítimas denunciadas1616. Al-Ali MN, Lazenbatt A. A cross-cultural comparative study of undergraduate health care professional students’ knowledge, definitions, education, and training experience of domestic violence in Northern Ireland and Jordan. SAGE Open 2012;2(4):1-11..

As causas centrais da subnotificação dos casos de violência contra crianças e adolescentes pelos profissionais da Estratégia de Saúde da Família são: a falta de preparo e de conhecimento dos profissionais; a falta de estrutura da rede de apoio; a falta de proteção ao profissional que realiza a notificação; o medo do profissional de saúde perante os processos legais relacionados à notificação, tais como depoimentos e comparecimento em audiências; e a atuação insatisfatória dos Conselhos Tutelares em muitos casos notificados de violência doméstica1616. Al-Ali MN, Lazenbatt A. A cross-cultural comparative study of undergraduate health care professional students’ knowledge, definitions, education, and training experience of domestic violence in Northern Ireland and Jordan. SAGE Open 2012;2(4):1-11..

Os dados do presente estudo evidenciam que a concretização de redes de apoio aos profissionais de saúde é um dos maiores e mais complexos desafios a serem enfrentados pelo poder público para reduzir os índices de subnotificação de violência doméstica contra crianças e adolescentes. Tal realidade pode ser identificada no seguinte relato:

[...] Porque se a gente notificasse tudo, até o que a gente desconfia de violência, com certeza a gente tinha outros números e ações e política pública pra tomar conta disso. (E2)

O acolhimento às famílias envolvidas em situações de violência é essencial para humanizar e qualificar o cuidado. Deve-se ainda estimular a vinculação da família e desenvolver no profissional de saúde a sensibilidade necessária para a percepção das situações de violência doméstica pois, na maioria dos casos, essas situações são vetadas e “mascaradas” por outras queixas1717. Silva EB, Padoin SMM, Vianna LAC. Violence against women: the limits and potentialities of care practice. Acta Paul Enferm 2013;26(6):608-13..

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados do presente estudo permitiram a identificação das ações da Secretaria Municipal da Saúde para combater a violência doméstica contra crianças e adolescentes, na perspectiva de enfermeiros da atenção básica à saúde. Os relatos das enfermeiras evidenciam que há iniciativas por parte do poder público, mas os profissionais enfrentam dificuldades para participar dessas atividades de capacitação devido, principalmente, à sobrecarga de trabalho nas unidades de saúde. A falta de segurança e a dinâmica de trabalho desarticulada com a rede proteção como, por exemplo, com o Conselho Tutelar, são outras limitações que têm influenciado o trabalho prático dos enfermeiros, com reflexos principalmente no número de notificações dos casos de violência.

O medo dos enfermeiros em relação ao agressor, a falta de capacitação dos profissionais para executar ações contra a violência doméstica, tais como a prevenção, a notificação, o encaminhamento e o acompanhamento das vítimas são fatores que dificultam o combate à violência doméstica e devem ser valorizados não só pelos enfermeiros, mas também por todos os profissionais que atuam nos serviços de atenção à infância e ao adolescente.

Portanto, no que tange a complexidade da violência doméstica contra crianças e adolescentes, faz-se necessário desenvolver um olhar multiprofissional e ações intersetoriais que melhorem as condições de vida destas vítimas, bem como elaborar políticas públicas que viabilizem a garantia dos direitos constitucionais destas populações vulneradas. Além disso, a implantação de programas de educação continuada é urgente e imprescindível para capacitar os enfermeiros para o enfrentamento da violência doméstica contra crianças e adolescentes. Tais programas podem oportunizar o conhecimento das políticas públicas de proteção às vítimas da violência, bem como fornecer subsídios para o exercício seguro do papel dos profissionais de enfermagem na proteção às crianças e aos adolescentes em situação de violência doméstica. Finalmente, o enfermeiro deve se apresentar como agente transformador das práticas, por meio de educação permanente; discussão de casos em equipe interdisciplinar e intersetorial; ações centradas na família e na comunidade, e não apenas na criança e/ou adolescente; ações longitudinais, durante todo o processo de cuidar da criança e do adolescente, desde a atenção primária à hospitalar.

As principais limitações deste estudo se relacionam à não generalização dos resultados observados e à necessidade de complementaridade dos mesmos, especialmente em relação ao cuidado às famílias. Sugere-se o desenvolvimento de pesquisas e programas com visões mais abrangentes que envolvam tanto quem pratica quanto quem sofre a violência, bem como o restante da comunidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    21 Maio 2015
  • Aceito
    20 Maio 2016
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