INTRODUÇÃO
Este trabalho parte de construção teórico-metodológica da saúde coletiva que analisa o fenômeno consumo de drogas como processo social, e que se concretiza de diferentes maneiras em contextos específicos(1). Nessa direção, tanto as necessidades como as linguagens particulares de grupos são efetivamente consideradas nas mensagens educativas. Entretanto, a educação sobre drogas vem sendo realizada sem a participação dos jovens, o que torna as mensagens transmitidas pouco significativas para esse grupo em geral. A comunicação se efetiva quando há participação dos jovens no processo de criação das mensagens educativas(2).
A pesquisa-ação emancipatória (PAE), de caráter crítico, vem sendo desenvolvida em conformidade com os fundamentos da saúde coletiva, que propõem a participação dos jovens na elaboração de programas educativos sobre drogas. Para efetivá-la, o pesquisador convida os participantes – pesquisadores da academia e grupos sociais que enfrentam os problemas – a problematizarem criticamente a realidade que enfrentam. Dessa forma, os participantes são incentivados a buscarem conhecimento e outras ferramentas para compreender os problemas, relacionando-os com a totalidade social, desvendando a rede de causalidade que envolve esses problemas, e formulando propostas que mobilizem e fortaleçam os grupos envolvidos para a transformação das causas das adversidades enfrentadas. Nesse processo, busca-se compreender os problemas, a partir do questionamento de sua naturalidade ou funcionalidade, a fim de revelar o que está envolvido na sua determinação e suas contradições(3-4).
Autores reconhecidos internacionalmente enaltecem a importância da pesquisa-ação para a promoção de mudanças sociais de diferentes naturezas(5-6). Na perspectiva aqui desenvolvida, a PAE se operacionaliza em diferentes fases que se coadunam às etapas da pedagogia histórico-crítica de Saviani(3-7), conforme discutido em outros espaços(3-4) por meio de oficinas emancipatórias, técnica metodológica grupal, que contempla a instrumentalização dos participantes e a coleta de dados em investigações participativas(8).
O objetivo desse estudo é relatar a experiência da utilização da PAE como recurso para elaboração de programação midiática de educação sobre drogas, de modo a expor suas potencialidades para problematizar a realidade de vida dos jovens participantes.
MÉTODO
Trata-se de um relato de experiência sobre a realização de um estudo que utilizou a PAE e que teve como objetivo a elaboração de programação midiática de educação sobre drogas, com jovens. Relato oriundo da tese de doutorado(9), intitulada “Comunicação em saúde: pesquisa-ação para elaboração de programa midiático de educação sobre drogas direcionada a jovens”.
Pesquisa desenvolvida após a aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, parecer sob nº 403.385 de 17/09/2013, e aprovação do projeto pelos responsáveis da escola. Foi realizada nos meses de fevereiro a setembro de 2014, com recesso em junho e julho devido às férias escolares dos jovens e à copa do mundo.
Estudo realizado em uma escola pública estadual de ensino fundamental, médio e educação para jovens adultos, na região de Guaianases, São Paulo (SP), Brasil. Os sujeitos do estudo foram em média 13 jovens do ensino médio interessados na temática, com idades entre 15 e 17 anos, sendo nove do sexo masculino, todos residentes no bairro, onde a escola está inserida.
Preliminarmente, antes de dar início à coleta dos dados, foram realizados quatro encontros. Nestes encontros, estabeleceram-se com a escola os seguintes acordos: um professor ficaria responsável pelos desdobramentos da proposta no espaço escolar; o espaço físico para desenvolver as oficinas seria oferecido pela escola e cada encontro seria acordado com o professor responsável pelo projeto na escola; se possível, a escola ofereceria materiais para apoiar o processo educativo; haveria um cronograma previamente estabelecido.
Para composição do grupo de participantes realizou-se divulgação da ação educativa nas salas de aula do ensino médio, esclarecendo-se o objetivo da pesquisa. Os jovens interessados foram encaminhados ao auditório da escola para orientações quanto as dúvidas e encaminhamento das questões éticas. Destacou-se a necessidade de conversarem com os pais ou responsáveis, consultando-os sobre a permissão para participar do estudo. Em seguida, firmou-se com os responsáveis a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TECLE), no caso dos que tinham menos de 18 anos e assinatura do Termo de Assentimento pelo jovem.
A coleta de dados foi realizada através da oficina emancipatória(3-8), em 13 encontros, com cerca de duas horas cada. Todas as oficinas foram gravadas e filmadas pelos próprios jovens em momentos de apresentação de dramatizações e de síntese.
RESULTADOS
A realização das oficinas se processou em fases, não estanques, que se encontravam inexoravelmente interligadas. Todas as decisões concernentes as sequências das oficinas foram tomadas mediante análise pelo grupo, ao final de cada oficina, do conjunto de necessidades apresentadas pelos participantes.
A primeira fase – exploratória foi de identificação do problema – um momento dedicado ao estabelecimento dos primeiros contatos com os participantes da pesquisa, quando os pesquisadores estabeleceram um diálogo situacional e de identificação dos problemas específicos. Nesta fase realizou-se quatro oficinas.
A segunda fase, que consiste em concretizar o tema, foi o passo da problematização do fenômeno investigado. A terceira fase, de planejamento e encaminhamentos de respostas aos problemas, foi o momento da instrumentalização teórica e prática dos participantes, para apropriação de ferramentas necessárias ao enfrentamento da situação, aqui compreendido como processo de politização para o movimento social. A segunda e a terceira fases das oficinas foram realizadas concomitantemente e concretizaram-se em cinco oficinas. Nesta fase, em tese, se prevê a revisão da PAE, de forma que nesse momento, os jovens relataram dificuldades relativas ao fato de que alguns professores não os estavam liberando para participar do projeto. Buscou-se um novo acordo sobre os dias da realização do projeto na escola. Assim, as oficinas passaram a se alternar nos dias da semana, a fim de evitar que os jovens perdessem sempre a mesma aula. É digno de nota que o professor representante do projeto junto à escola e aos alunos esteve continuamente presente, oferecendo apoio.
A quarta fase, de expressão dos novos conhecimentos e monitoramento da pesquisa-ação e a quinta fase, de expressão da nova síntese pelos participantes pretendem efetivar a fusão do saber formal com o informal, quando todos os envolvidos no processo educativo apropriam-se do novo saber construído pelo grupo. Tenta-se captar as novas sínteses através de diferenças conceituais e pelos relatos sobre novas práticas sociais que são trazidas pelo grupo de participantes. A quarta e a quinta fases foram realizadas concomitantemente, e concretizaram-se em quatro oficinas.
Durante todo o processo, havia preocupação em elaborar estratégias para instrumentalizar a construção coletiva do conhecimento e não se perdia de vista a importância da participação efetiva dos jovens. Para tanto, criou-se um grupo em uma rede social onde se trocava informações com os jovens, e também com o professor responsável pelo projeto na escola.
A seguir, descrevem-se os temas, objetivos, estratégias e desdobramentos de cada fase das oficinas. Desdobramentos são os resultados que sintetizam as fases das oficinas. Cada desdobramento motiva a consecução das oficinas que vêm sequencialmente.
Primeira fase
A partir da discussão do tema central – educação sobre drogas dos jovens pela mídia -, foi possível sintetizar a presença dos seguintes temas: ser jovem e viver nos espaços de periferia; as necessidades da periferia; as representações sobre a periferia nas diferentes mídias e as práticas de lazer dos jovens da periferia.
Os objetivos das oficinas foram: apreender a realidade concreta da vida do jovem da periferia; reconhecer o lugar ocupado pelo consumo, principalmente, o consumo de drogas e apreender o papel da mídia na vida dos jovens.
As estratégias utilizadas foram: criação de um grupo na rede social com o objetivo de manter contato, para além dos espaços das oficinas; elaboração em grupo de painéis sobre a região; construção de jornais salientando as necessidades sociais da região, pesquisa fotográfica dos espaços por onde os jovens circulam; dramatização resgatando as possibilidades de novas formas de programas midiáticos; pesquisa de informações em jornais, revistas e na internet sobre a região. Todas as atividades foram acompanhadas de fechamento com roda de conversa.
Os desdobramentos da primeira fase foram: a periferia é destinada aos pobres, um lugar com ausência de Estado devido às precariedades e falta dos serviços públicos; é representada na mídia de forma estereotipada com destaque aos fatores negativos, como violência e consumo de drogas.
Segunda e terceira fases
Nestas fases foram trazidos ao debate os referenciais da saúde coletiva para compreender o consumo de drogas. Os temas destas duas fases foram: modo de produção, representações sobre as necessidades para a reprodução social, participação e socialização dos jovens; influência da mídia na periferia e na socialização dos jovens e a representação da periferia e dos jovens na mídia.
Os objetivos foram: discutir com os jovens os conhecimentos de sua referência a respeito dos problemas que cercam o fenômeno dos temas dessas fases e buscar ferramentas culturais que possibilitem a luta social.
As estratégias utilizadas foram: mostra e discussão do filme “Quanto vale ou é por quilo?” – produção cinematográfica com roteiro de Eduardo Benaim e Newton Canitto, do cineasta e diretor Sérgio Bianchi, lançado em 2005. Disponibilizou-se na rede social um texto para apoiar a discussão sobre o filme. Em roda de conversa identificou-se os temas a serem discutidos a partir do filme e as instituições públicas presentes na região, buscando-se conhecer o papel que exercem no espaço geossocial da periferia.
Realizou-se seleção, audição, criação e discussão dos estilos músicas rap e funk. Os jovens selecionaram músicas considerando como as letras retratam a periferia, o consumo em geral e o consumo de drogas em particular. Introduziram-se desenhos em quadrinhos como subsídio para motivar os jovens a elaborar quadrinhos tomando por base sua realidade. Outros meios utilizados foram: fotografias na mídia sobre a zona leste e fotografias feitas pelos próprios jovens. Finalizou-se esta etapa com os jovens expondo os trabalhos realizados, e comparando-os com o que é transmitido na mídia.
Desdobramentos das oficinas foram: o incentivo da mídia oligopolista para uma socialização baseada no consumo, a exploração da pobreza, o isolamento da periferia e a repressão à participação.
Quarta e quinta fases
Nestas fases os temas discutidos foram: o Estado neoliberal e o sistema de proteção social público, as necessidades da presença atuante do Estado nas periferias, estratégias juvenis como estratégia de participação e de transformação social.
Os objetivos foram: elaborar uma nova síntese dos problemas abordados nas oficinas; criar roteiros para programa midiático de educação sobre drogas, direcionado aos jovens das periferias.
As estratégias utilizadas foram: escolha de músicas que retratam a periferia de maneira crítica, elaboração de músicas pelos jovens, que contemplassem as saídas para os jovens da periferia; preparação do roteiro do programa de rádio e sua revalidação com os jovens. No roteiro as palavras que causavam estranheza entre os jovens foram por eles modificadas por melhor expressar seu dia a dia.
Desdobramentos das oficinas foram: a seleção de músicas que abordam os problemas da periferia e as consequências do consumo de drogas. Os jovens expressaram a necessidade de serem apresentados nas grandes mídias como criativos, e trouxeram a mídia alternativa como espaço aberto para a expressão dos jovens da periferia, tanto para a educação em saúde como para a cultura.
Nesta fase foram elaborados cinco roteiros para programas de rádio, com os seguintes temas: ser jovem da periferia, a importância da mídia na vida dos jovens; inverdades divulgadas nas mídias sobre as periferias; instituições de socialização, para além da mídia; propostas para transformar a situação das marginalidades das periferias. Todas as oficinas foram preparatórias para a elaboração desses roteiros. Os jovens decidiram quais seriam os temas, conteúdos, linguagem e estilo dos roteiros, inclusive acompanhamento musical. Houve um momento de consulta a profissionais de rádio, que propuseram ajustes, os quais passaram pela avaliação dos jovens.
O estudo apresentou como dificuldades: o espaço físico inadequado para desenvolver as oficinas e a não inclusão das oficinas no programa escolar, o que propiciaria a participação dos professores e teria garantido outros espaços para a participação dos jovens. Por tratar-se de um estudo interdisciplinar envolvendo saúde, educação e comunicação a participação desses outros profissionais enriqueceria, ainda mais, o processo. Como facilidades pode-se apontar o envolvimento de um professor responsável pelos desdobramentos da proposta no espaço escolar e o interesse dos jovens, que se motivaram a participar e valorizaram a atividade.
De maneira geral, ressalta-se que embora um profissional de rádio tivesse apoiado a elaboração dos roteiros e a gravação dos programas de rádio desenvolvidos, não se pode contar com esse profissional durante todo o processo.
DISCUSSÃO
A operacionalização da PAE por meio das oficinas emancipatórias permitiu que os jovens tomassem o espaço do grupo como sendo próprio, um espaço de direito, o que vai ao encontro da literatura sobre participação efetiva(10). Todas as narrativas dos jovens sobre o fenômeno investigado foram cotejadas com a realidade social, ou seja, com as formas de trabalho e vida e de sociabilidade(11).
Deve-se atentar na PAE com a maneira de se comunicar e com a linguagem que se estabelece entre os participantes, dado que a comunicação é uma relação social, que mutuamente influencia os participantes. Logo, é essencial reconhecer que a linguagem e o pensamento são resultantes das condições históricas e sociais(12). Havia influência mútua entre os pesquisadores e os jovens participantes. Essa influência mútua só foi possível porque havia diálogo e interesse entre as partes de igualar-se.
Participar requer o diálogo, a influência mútua, e o projeto a ser desenvolvido deve fazer sentido aos jovens. A participação foi essencial para quebrar o silêncio dos jovens, o que se coaduna com a literatura crítica que observa que os indivíduos não devem ser tomados como meros objetos para uma ação, com prescrições prontas, e manipulação, processo de negação do homem como indivíduo consciente. As decisões e prescrições prontas, geralmente, são inoperantes, pois não nascem da análise crítica da realidade dos participantes(13).
Mudanças reais ocorrem ao longo de processos e não mecanicamente. À medida que o homem amplia sua consciência sobre a realidade, amplia sua possibilidade de participação, expande a possibilidade de poder de decisão e suas necessidades, bem como suas possibilidades de exercer algum controle sobre as instituições sociais. Ao tomar parte no grupo e assumir as decisões em conjunto, aos poucos o indivíduo passa a se conhecer, deixando a posição de indivíduos-objetos para a posição de indivíduos-conscientes, críticos, incapazes de ficar parados apenas observando a realidade, mas buscando transformá-la(13).
Participar efetivamente produz satisfação, uma vez que os participantes percebem haver respeito às mensagens e questões por eles trazidas. Esse processo pode apoiar a escolha crítica de representantes, da sala de aula ao parlamento. A instauração do Estado Democrático de Direito e a possibilidade de participação foram e são importantes para que os direitos sociais dos jovens sejam garantidos e suas necessidades sociais respondidas(14).
É primordial nesse processo reconhecer que a juventude é constituída socialmente. Os jovens estão caminhando do processo de socialização primária, que pretende prepará-los para a vida em sociedade, para o de socialização secundária. Nessa ressocialização, que tem por objetivo preparar os jovens para a vida adulta, alargam-se seus espaços de socialização(15). Na socialização primária as principais instituições são: a família, a escola, a comunidade, os pares e a mídia. Na ressocialização, trata-se de preparar o jovem para o trabalho produtivo. Muitas vezes, as formas de socialização dos jovens não são acolhidas nos processos formais de formação para o trabalho(16), o que pode levar à não participação.
É importante que o processo educativo não se restrinja à utilização das linguagens oral e escrita, sendo bastante pedagógico apresentar aos jovens diversas formas de expressão, que reconhecem e respeitam as linguagens de preferência dos jovens. Deve-se ser sensível aos motivos da participação ou da não participação dos jovens nos programas que são desenvolvidos para o desenvolvimento desses jovens.
A primeira fase, que discutiu a educação sobre drogas pela mídia, trouxe a vivência dos jovens sobre a periferia, momento cercado por forte crítica, que os envolveu pessoalmente; foi importante para motivar os jovens a participar das oficinas, já que tratou da realidade que vivem.
A segunda e terceira fases discutiram os aspectos mais gerais de funcionamento do capitalismo e especialmente o funcionamento da mídia como agência de socialização. Tratou-se de momento de expansão de horizontes de conhecimento e de adensamento teórico, o que foi feito sempre através de atividades lúdicas, que foram trabalhadas como ferramentas de desalienação(1), ou seja, ferramentas que possibilitam a análise crítica da realidade.
A quarta e a quinta fases, que culminaram com a elaborações dos roteiros de programas de rádio, foram marcadas por intensa discussão sobre as formas de agir do Estado na periferia e sobre as reações dos jovens, que se mobilizaram através de “rolezinhos”(8)e outras formas de manifestações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A PAE possibilitou a participação e o diálogo efetivos dos jovens, pois abriu espaço para a problematização da realidade concreta. O extenso processo de discussão e análise com todos os jovens sobre os temas que emergiram da crítica à realidade do espaço geossocial onde vivem possibilitou utilizar as linguagens de preferência e de domínio dos jovens. A disponibilização de ferramentas de “desalienação”, entre outros recursos pedagógicos de expressão e comunicação, foram elementos-chave para a expressão dos jovens, para trazer à tona suas convicções e para a construção do roteiro da programação midiática de educação sobre drogas baseado nessas convicções e na crítica social que elaboraram sobre a vida na periferia.
A elaboração dos roteiros de programas de rádio, com a participação de jovens, mostrou-se fundamental para que o resultado fosse coerente com a realidade que os jovens vivem na periferia e os mobilizou. As práticas de educação e saúde e especialmente de enfermagem podem se beneficiar desse aprendizado.
Recomenda-se na educação sobre drogas voltada para os jovens, a utilização de mídias variadas, pois os jovens utilizam diferentes formas de comunicação, e que as mensagens educativas sejam curtas, provocativas, indagativas. Recomenda-se também que sejam intercaladas com músicas por eles reconhecidas no seu universo cultural e que tragam temas críticos da realidade e reiterem a importância da participação política dos jovens.
As limitações da experiência relatada se referem à impossibilidade de testar os programas de rádio durante o processo, o que teria permitido dinâmica viva e contínua de feedback e reestruturação dos roteiros.