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O uso das plantas medicinais e o papel da fé no cuidado familiar

El uso de las plantas medicinales y el papel de la fe en el cuidado de la familia

RESUMO

Objetivo

Compreender o uso das plantas medicinais e o papel da fé no sistema de cuidado familiar.

Método

Pesquisa qualitativa, realizada em abril e julho de 2015, em um município do Rio Grande do Sul/Brasil, com três informantes conhecedores de práticas de cuidado. A interpretação dos dados seguiu referencial antropológico interpretativo.

Resultados

Emergiram duas categorias: Plantas medicinais no cuidado à saúde e Cuidado com o uso das plantas no ritual de benzer. Identificou-se que o uso das plantas e a cura pela fé constituem uma forma de autoatenção peculiar, própria do território, que resgata o ser humano da perspectiva biológica e íntegra corpo, alma, espírito e ambiente.

Conclusão

A investigação permitiu compreender que as plantas medicinais, além da relação biológica estabelecida, atuam no sistema de cuidado familiar, sendo que a sua utilização não opera conforme os princípios de compra e venda, mas da troca, do dar, receber e retribuir.

Plantas medicinais; Cura pela fé; Cuidadores; Cuidados de enfermagem

RESUMEN

Objetivo

Comprender el uso de plantas medicinales y el papel de la fe en el sistema de cuidado de la familia.

Método

La investigación cualitativa llevada a cabo en abril y julio de 2015, en una localidad de Rio Grande do Sul/Brasil, a partir de tres empleados con conocimientos en las prácticas de cuidado. La interpretación de los datos siguió la referencia antropológica interpretativa.

Resultados

Emergieron dos categorías: Las plantas medicinales en el cuidado de la salud y el cuidado con el uso de las plantas en el ritual de la bendición. Se identificó que el uso de plantas y curación por la fe es una forma de autoatención que rescata el ser humano desde el punto de vista puramente biológico y el cuerpo, alma, espíritu y medio ambiente.

Conclusión

La investigación hizo entender que las plantas medicinales actúan más allá de la relación biológica en el sistema de cuidado de la familia. No funciona de acuerdo con los principios de compra y venta, sino de intercambio, de dar, recibir y dar vuelta.

Plantas medicinales; Curación por la fe; Cuidadores; Atención de enfermería.

ABSTRACT

Objective

To understand the use of medicinal plants and the role of faith in the family care system.

Method

The adopted methodology is qualitative research, conducted in April and July 2015, in a municipality of Rio Grande do Sul, Brazil, Brazil, with three informants who have knowledge of the healthcare practices. The data were interpreted using interpretive anthropology.

Results

Data interpretation led to two categories: Medicinal plants in health care and Care with the use of plants in the blessing ritual. It was identified that the use of plants and faith healing is a particular form of self-care in that given community. The purpose of this practice is to cure people from a biological and comprehensive perspective, involving the body, soul, spirit, and environment.

Conclusion

The research revealed that medicinal plants go beyond the merely biological relationship in the family care system. Use of these plants is not based on the principle of buying and selling, but rather on the act of exchanging, giving, receiving, and reciprocating.

Plants, medicinal; Faith healing; Caregivers; Nursing care

INTRODUÇÃO

Atualmente no Brasil e no mundo, tem se observado que questões ambientais, sociais e econômicas se mesclam com o tema qualidade de vida, cuidado, acesso à saúde, segurança, autonomia e humanização. Ressaltam a necessidade da abordagem interdisciplinar e permitem explorar especificidades de cuidado, que por vezes são invisíveis, mas significativas no contexto dos diferentes grupos sociais.

Os movimentos sociais da década de oitenta reivindicavam a inclusão de cuidados, visando traduzir e integrar, para a sua realidade, práticas do sistema médico complexo. Esta discussão culminou na aprovação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde (SUS)(11. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS: atitude de ampliação de acesso. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2006.), credenciando serviços de homeopatia, plantas medicinais e fitoterapia, medicina tradicional chinesa/acupuntura, medicina antroposófica e termalismo social, como práticas de cuidado.

Além dessas práticas complementares e integrativas, existem outras formas de cuidado que se apoiam na fé e na operação do divino, na qual benzedores, curandeiros, videntes e médiuns, atuam visando a cura do corpo e da alma. Capacitando o indivíduo para interconectividades consigo mesmo, com o outro e com o ambiente. Essas práticas desenvolvem um cuidado individualizado, exclusivo, único para cada cliente, não sendo possível recriá-las, devido a sua singularidade e necessidade de atuação de um poder externo, não humano, por conseguinte não mensurável, inexplicável, o que as tornam à luz da ciência em algo incompreensível(22. Mauss, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify; 2003.

3. Arias JM, Riera JRM. El ser humano y la génesis del trabajo enfermero comunitario. Cult Cuid. 2013 [citado 2016 jun 16];36(2);59-5. Disponível em: http://dx.doi.org/10.7184/cuid.2013.36.07.
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4. Silva DC, Budó MLD, Schimith MD, Heisler E, Simon BS, Torres GV. Utilização de plantas medicinais por pessoas com úlcera venosa em tratamento ambulatorial. J Res Fundam Care online. 2015;7(3):2985-97.
-55. McIntyre E, Saliba AJ, Wiener KK, Sarris J. Herbal medicine use behaviour in Australian adults who experience anxiety: a descriptive study. BMC Complement Altern Med. 2016;16:60.).

A base desse sistema está na relação e vínculo entre as pessoas, ultrapassa as fronteiras econômicas, sendo reconhecido e identificado pelos que se relacionam em seu entorno. Estabelece relação com o paradigma do Dom que se apoia na tríplice obrigação coletiva de dar, receber e retribuir(66. Capella R, coordenadora. A saúde em Florianópolis: das benzeduras na velha Desterro aos novos conceitos de promoção da saúde. Florianópolis: Fábrica de Comunicação; 2010.), culminando na reciprocidade, que surge a partir do estabelecimento do vínculo e da construção social.

Esse contexto contrasta com o sistema médico hegemônico, predominante na saúde brasileira, que reduz o ser humano a dimensão biológica. Atua negando a subjetividade do usuário, desenvolvendo ações de cuidado centrado na cura, priorizando a utilização de medicamentos e diagnósticos com aporte tecnológico de alto custo(77. Borges MS, Shimizu HE, Pinho DLM, Almeida AMO. O modo de cuidar na benzeção: saber popular e racionalidade divina. Rev Min Enferm. 2008;12(2):241-8.). Relegando a prestação de cuidado ao cumprimento de um plano de ações determinadas por profissionais.

Inibe-se, com isso, a construção de relações de cuidado que envolvam outros saberes e abordagens, que favoreçam o cuidado qualificado, legítimo e produtor de autonomia, embasado na dignidade e na identidade do sujeito, respeitando o conhecimento prévio do mesmo, possibilitando um saber autêntico, essencial a reorganização do sistema assistencial brasileiro.

Nesse contexto, o núcleo de pesquisa saúde rural e sustentabilidade investiga as práticas, saberes e o cuidado na saúde, na enfermagem, no sistema familiar e o uso de plantas medicinais dos diferentes grupos sociais. Assim, tencionando a valorização da ação familiar cotidiana de cuidado, aproximando e compreendendo o cuidado que emerge ao dialogar sobre as práticas experienciadas. A perspectiva é evidenciar informações que substanciem e qualifiquem um saber sensível, simbólico e integral. Dessa forma procurando, detalhar o cuidado e as suas relações com a estrutura do sistema mais amplo, explorando o que ainda é pouco visível para o sistema biomédico ou a rede oficial de saúde, mas que faz parte do cotidiano no cuidado familiar.

Nesta trajetória, ao mesmo tempo em que se vivencia o resgate destas práticas, algumas legitimadas oficialmente, ditas complementares no cuidado, outras nem tanto, como a interface saúde-fé e reciprocidade, constata-se há necessidade de se outorgar um cuidado perseverante que acontece no dia a dia, na ação.

Na produção científica acerca do tema, predominam estudos sobre uso de plantas medicinais no cuidado embasado nos preceitos do sistema biológico(88. Krippner S. Os primeiros curadores da humanidade: abordagens psicológicas e psiquiátricas sobre os xamãs e o xamanismo. Rev Psiquiatr Clín. 2007;34(Supl. 1):17-24.-99. Nery VCA. Rezas, crenças, simpatias e benzeções: costumes e tradições do ritual de cura pela fé. In: INTERCOM 2006: Anais do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2006 set 4-9; Brasília, Brasil. Brasília; 2006 [citado 2016 jun 16]. Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2006/resumos/R0939-1.pdf.
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). Sendo que poucos estudos apontam para a compreensão de formas de cuidado singulares, que utilizam a fé e as plantas medicinais como recursos no processo de cura e alívio da dor(22. Mauss, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify; 2003.

3. Arias JM, Riera JRM. El ser humano y la génesis del trabajo enfermero comunitario. Cult Cuid. 2013 [citado 2016 jun 16];36(2);59-5. Disponível em: http://dx.doi.org/10.7184/cuid.2013.36.07.
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4. Silva DC, Budó MLD, Schimith MD, Heisler E, Simon BS, Torres GV. Utilização de plantas medicinais por pessoas com úlcera venosa em tratamento ambulatorial. J Res Fundam Care online. 2015;7(3):2985-97.
-55. McIntyre E, Saliba AJ, Wiener KK, Sarris J. Herbal medicine use behaviour in Australian adults who experience anxiety: a descriptive study. BMC Complement Altern Med. 2016;16:60.). Nessa perspectiva objetiva-se compreender o uso das plantas medicinais e o papel da fé no cuidado familiar.

METODOLOGIA

Consiste num recorte do banco de dados do projeto: “Autoatenção e uso de plantas medicinais no bioma pampa: perspectivas para o cuidado de enfermagem rural” desenvolvido em parceria com a Embrapa Clima Temperado.

Nesta investigação foi realizada uma abordagem qualitativa, que utilizou como técnicas de coleta de dados a observação sistemática, o registro fotográfico, a coleta de plantas medicinais e a entrevistas semiestruturadas. Os dados, deste artigo, foram coletados de abril a julho de 2015, a partir de três informantes chave, indicados pela Secretaria de Desenvolvimento Primário do Município de Rio Grande, por serem reconhecidos no contexto como conhecedores de práticas de cuidado em saúde. O local de estudo foi o domicílio dos informantes, na área rural do município. As entrevistas foram agendadas e gravadas, após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

A coleta de dados ocorreu a partir da observação sistemática das práticas de cuidado com uso de plantas medicinais, a fim de reconhecer e compreender a realidade ambiente/território/informante. Este cenário foi explorado apoiado numa entrevista semiestruturada em profundidade com diálogos dirigidos em relação as ações de cuidado, a organização e mobilização de práticas realizadas, a identificação da finalidade desta prática e a associação com recursos que recorriam para integralizar o cuidado dentro da sua expectativa. O roteiro de entrevista foi composto de questões contendo abordagens relacionadas ao contexto sociocultural, sistema de cuidado e o uso das plantas como terapêutica, sendo complementado com o recurso do genograma e ecomapa(1010. Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para avaliação e intervenção em família. 3. ed. São Paulo: Roca; 2002.) em relação ao sistema de cuidado familiar.

Com relação às plantas medicinais realizou-se o registro fotográfico no ambiente de ocorrência natural ou cultivo, georreferenciamento por meio de GPS de navegação, e o registro em diário de campo. As informações das plantas medicinais foram organizadas em um quadro para o resgate do conhecimento com o nome popular, uso, indicação, cuidados no preparo e dose. Realizou-se, também, a coleta de ramos preferencialmente em fase reprodutiva, os quais foram desidratados e conservados de maneira sistemática e organizada, para identificação botânica e posteriormente tombados no herbário da Embrapa Clima Temperado, constituindo um banco de dados, que dará suporte às diversas pesquisas científicas.

Análise qualitativa seguiu o modelo operativo de Minayo(1111. Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciênc Saúde Coletiva. 2012;17(3):621-6.). Após a transcrição, organização e tipificação do material recolhido no campo, se procedeu a leitura atenta dos dados pelos pesquisadores. A seguir os dados foram divididos em dois grupos: informações referentes ao contexto sociocultural e o cuidado. Os relatos integraram duas categorias temáticas: Plantas medicinais no cuidado à saúde e o Cuidado com o uso das plantas no ritual de benzer. Para resguardar o anonimato os informantes foram identificados por códigos P1, P2, P3.

A análise norteou-se pelo referencial antropológico interpretativo de Geertz, o qual compreende a cultura como uma construção social dinâmica, tecida pelas ações cotidianas, nesta interação significam e reproduzem experiências, expressas em símbolos(1212. Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC; 2011.). A planta medicinal, nesta perspectiva, é um símbolo dinâmico empregado em diferentes práticas, sendo que no projeto o objetivo foi de explorar na perspectiva da autoatenção e cuidado em saúde(1313. Menéndez EL. Intencionalidad, experiencia y función: la articulación de los saberes médicos. Rev Antropol Soc. 2005;14(1):33-69.).

Nesse projeto todos os preceitos éticos foram respeitados com base na Resolução 466/2012, de competência do Conselho Nacional de Saúde, tendo sido aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Enfermagem da UFPel, protocolo 076/2012. Os informantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados serão apresentados em duas categorias na perspectiva de objetivar a compreensão, a saber: Plantas medicinais e o cuidado à saúde e o cuidado com o uso das plantas no ritual de benzer. Entretanto, no referencial interpretativo adotado é essencial contextualizar no tempo e espaço os atores deste cuidado.

Contexto sociocultural e os atores cuidadores

Foram abordadas três pessoas, residentes em dois distritos rurais do município de Rio Grande/RS, com idades 55, 59 e 64 anos, sendo duas mulheres e um homem. Quanto ao grau de escolaridade, houve predomínio do ensino fundamental incompleto. A principal fonte de renda dos informantes era proveniente das atividades de agricultura e pecuária. Ao serem abordados em relação à religião dois informaram ser católicos e um espírita, sendo que todos os participantes referiram-se como benzedores. Os três vivem nessa localidade há mais de 40 anos, sendo que dois nasceram no distrito. Todos participam ativamente das atividades culturais e religiosas da comunidade.

Segundo o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)(1414. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [Internet]. Brasília (DF): IBGE; c2010- . Cidades@: Rio Grande do Sul>Rio Grande; [citado 2016 jul 02]; [aprox. 3 telas]. Disponível em: http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=431560&search=rio-grande-do-sul|rio-grande.
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil....
), de 2010, a população de Rio Grande, era constituída por 197.228 habitantes, destes 7.781 vivem na zona rural. O domicílio dos informantes se distanciava do espaço urbano em média 35 km, sendo o caminho de estrada não pavimentada.

A cidade do Rio Grande, atualmente com forte atividade portuária, foi fundada em 1737 com a construção do Forte Jesus Maria José, base de apoio ao domínio português ao Sul. Localizado na Planície Costeira do Rio Grande do Sul, teve seu desenvolvimento relacionado à posição estratégica ocupada no Estuário da Lagoa dos Patos junto a Barra do Rio Grande. Integra a microrregião do Litoral Lagunar do bioma pampa do litoral sul, possuindo uma diversidade ambiental, composta por dunas encontradas em toda a costa litorânea, margeadas pela Laguna dos Patos, campos com vegetação rasteira e herbácea(1515. Matei AP, Filippi EE. O bioma pampa e o desenvolvimento socioeconômico em Santa Vitória do Palmar. Ensaios FEE. 2013;34(Supl. 1):739-64.).

Os distritos de Povo Novo e Quinta, onde vivam os informantes, têm em sua trajetória, significados importantes na formação cultural do meio rural de Rio Grande. Povo Novo surgiu com pequenos lavradores portugueses, durante a invasão espanhola entre 1763 a 1776, o assentamento localizava-se à margem da Estrada Real da Palma(1616. A Igreja de Nossa Senhora das Necessidade: história Povo Novo. 2010 set 13 [citado 2016 set 01]. In: Blog Associação Estação Quinta [Internet]. Rio Grande: c2010- . [aprox. 5 telas]. Disponível em: http://estacaoquinta.blogspot.com.br/2010_09_01_archive.html.
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).

O núcleo da Torutama, que já existia anteriormente, a Fazenda Real na ilha da Torutama, recebeu a maior parte das famílias portuguesas, formando o Pueblo Nuevo del Torutama nas terras pertencentes a Manoel Fernandes Vieira, que se retirou durante o domínio espanhol(1616. A Igreja de Nossa Senhora das Necessidade: história Povo Novo. 2010 set 13 [citado 2016 set 01]. In: Blog Associação Estação Quinta [Internet]. Rio Grande: c2010- . [aprox. 5 telas]. Disponível em: http://estacaoquinta.blogspot.com.br/2010_09_01_archive.html.
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). Quando da restauração das terras portuguesas, o antigo proprietário retoma a sua área, originária esta das primeiras doações de sesmarias na região, as 112 famílias de lavradores e criadores de origem açoriana foram transferidas para o Rincão d’El Rey, a área hoje compreendida pelo atual distrito do Povo Novo. A Vila da Quinta teve sua criação como distrito em 1912, a geografia do território do distrito foi construída ao longo do tempo com as contínuas divisões: vendas, permutas e heranças, tornando-se aos poucos um espaço urbanizado no mundo rural(1616. A Igreja de Nossa Senhora das Necessidade: história Povo Novo. 2010 set 13 [citado 2016 set 01]. In: Blog Associação Estação Quinta [Internet]. Rio Grande: c2010- . [aprox. 5 telas]. Disponível em: http://estacaoquinta.blogspot.com.br/2010_09_01_archive.html.
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).

A população da zona rural de Rio Grande guarda no imaginário crenças vinculadas ao misticismo açoriano e português(22. Mauss, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify; 2003.). Observou-se que esses valores se propagam em enumeram como atividades de lazer, festas religiosas, nas quais fazem parte entoar cantos em homenagem ao Espírito Santo. Nessas ocasiões, um grupo de pessoas, saem ao fim do dia, às vésperas do Natal, Ano-Novo ou no Dia de Reis, nas portas das casas, para cantar, celebrar e anunciar a vida com alegria e o nascimento do Menino Jesus. Inclusive constatou-se que um dos informantes faz parte do grupo de reis da comunidade, que se reúne periodicamente, para manifestação da partilha e amizade. A ocorrência destas manifestações culturais, na atualidade, também foram identificas em estudo realizado com grupo de descendentes açorianos em Santa Catarina(22. Mauss, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify; 2003.) .

Na região, também, há relato da existência de bruxas que ao serem afrontadas, disseminam suas bruxarias, causando até a morte, em especial de recém-nascidos. Esses relatos carregam consigo uma simbologia um modo específico de pensar o mundo, que constitui um constante ressignificar das práticas de cuidado em saúde(1717. Borges AM. Plantas medicinais no cuidado em saúde de moradores da Ilha dos Marinheiros: contribuições à enfermagem [dissertação]. Pelotas (RS): Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Pelotas; 2010.).

Percebe-se, desta forma, que a identidade cultural é um conjunto vivo de relações sociais e patrimônios simbólicos historicamente compartilhados, que estabelece a comunhão de determinados valores entre os membros deste grupo social, influenciando as representações sobre saúde e doença, assim como as práticas de cuidado realizadas(1818. Badke MR, Budó MLD, Alvim NAT, Zanetti GD, Heisler EV. Popular knowledge and practices regarding healthcare using medicinal plants. Texto Contexto Enferm. 2012;21(2):363-70.).

Nesta perspectiva, Saúde é um processo construído historicamente em ações para as quais atribuem valor, dando forma aos significados que são compartilhados, entre o passado e o presente, derivando em algo adaptado, diferente, que tem influência do ambiente físico e natural nos quais os grupos sociais convivem. Para as pessoas que participaram do estudo a saúde é representada não só pela ausência de doença, mas também pela possibilidade de desenvolver uma atividade laboral, pelo diálogo e por terem paz de espírito.

As plantas medicinais no cuidado à saúde

A utilização de plantas medicinais pela população de Rio Grande já foi registrada(1717. Borges AM. Plantas medicinais no cuidado em saúde de moradores da Ilha dos Marinheiros: contribuições à enfermagem [dissertação]. Pelotas (RS): Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Pelotas; 2010.) como prática no cuidado da saúde, exercido desde o início da colonização, fazendo parte da história e da realidade local.

Por conseguintes, os informantes da pesquisa, moradores das localidades do Povo Novo e da Quinta, citaram 127 plantas, dessas 56 foram citadas mais de uma vez, as quais compõem o quadro 1. Foi realizada a identificação botânica de 48 espécies, as demais não foram possíveis, pois, durante a coleta de dados, algumas plantas não tinham frutos e/ou flores, o que inviabilizou a precisão na identificação.

Quadro 1
– Levantamento das plantas de uso medicinal e místico mais citadas pelos informantes da pesquisa. Rio Grande, RS – 2015

As plantas citadas eram utilizadas no tratamento e prevenção de doenças como na promoção da saúde, diante de 81 sinais, sintomas ou doenças. Esses dados corroboram com outros estudos(33. Arias JM, Riera JRM. El ser humano y la génesis del trabajo enfermero comunitario. Cult Cuid. 2013 [citado 2016 jun 16];36(2);59-5. Disponível em: http://dx.doi.org/10.7184/cuid.2013.36.07.
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4. Silva DC, Budó MLD, Schimith MD, Heisler E, Simon BS, Torres GV. Utilização de plantas medicinais por pessoas com úlcera venosa em tratamento ambulatorial. J Res Fundam Care online. 2015;7(3):2985-97.
-55. McIntyre E, Saliba AJ, Wiener KK, Sarris J. Herbal medicine use behaviour in Australian adults who experience anxiety: a descriptive study. BMC Complement Altern Med. 2016;16:60.,1717. Borges AM. Plantas medicinais no cuidado em saúde de moradores da Ilha dos Marinheiros: contribuições à enfermagem [dissertação]. Pelotas (RS): Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Pelotas; 2010.,1919. Soares AN, Morgan BS, Santos FBO, Matozinhos FP, Penna CMM. Crenças e práticas de saúde no cotidiano de usuários da rede básica de saúde. Rev Enferm UERJ. 2014;22(1):83-8.-2020. Silva TRM. Saber cuidar, saber contar: ensaios de antropologia e saúde popular [resenha]. Rev Antrop Soc Alunos PPGAS-UFSCar. 2010;2(1):145-50.) que apontam que o sistema de cuidado popular apropria-se das práticas biomédicas, reinterpretando, rearranjando e classificando saberes e práticas dentro da sua experiência e de acordo com necessidades. Utilizam-se e compartilham esses saberes, constituindo outro modelo explicativo de saúde e doença(1212. Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC; 2011.).

Na oralidade dos discursos, o uso das plantas não ficou restrito a infusões, xaropes e tinturas, sendo usados também para massagem, no preparo de alimentos, banhos de descarrego, no ritual de benzer e para afastar ou espantar temporal.

P3:[...] A camomila é muito bom ter em casa, traz bons fluidos, e para quem tem criança pequena com cólica é um santo remédio. Ajuda a cura as feridas, e também acalma os ânimos.

P1: [...]Arruda usa pra benzer, mas se colocar no álcool aplica-se nas regiões onde se tem dores reumáticas e também pode ser usada para a sarna, tanto dos animais como humana. O alecrim também se usa pra varias coisa é usado pra benzer, afasta as energias ruins e também para gastrite e úlcera de estômago.

Emergiu a confluência de indicações a partir da experiência e observou-se a utilização de diferentes modelos explicativos de saúde\doença associado à cura e o uso das plantas, embasados em sistemas que não se detém apenas ao cuidado do corpo físico ou mente, carregados de atitudes de acolhimento, que ajudam o indivíduo e sua família a reelaborarem as experiências de sofrimento vivenciadas(33. Arias JM, Riera JRM. El ser humano y la génesis del trabajo enfermero comunitario. Cult Cuid. 2013 [citado 2016 jun 16];36(2);59-5. Disponível em: http://dx.doi.org/10.7184/cuid.2013.36.07.
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,55. McIntyre E, Saliba AJ, Wiener KK, Sarris J. Herbal medicine use behaviour in Australian adults who experience anxiety: a descriptive study. BMC Complement Altern Med. 2016;16:60.). Destaca-se a união da fé e o uso de plantas, que para maior objetividade será discutido separadamente.

P2: [...] As pessoas me procuram pedindo a zedoaria que ajuda no câncer. Se lava bem a raiz, corta e deixa secar no sol, depois se coloca em vidro escuro, uma tintura, não pode pegar luz pra conserva tudo de bom que a planta tem.

Identificou-se que as plantas medicinais inserem-se na rede de cuidado desta comunidade como um recurso terapêutico. Embora tenha sido relatado pelos informantes a melhoria no acesso aos recursos de saúde do sistema biomédico, como a construção de Unidades Básicas na área rural e implementação da Estratégia de Saúde da Família. O uso de plantas e os rituais de benzer ainda se encontram presentes, evidenciando que essas práticas não são usadas somente na ausência dos recursos do sistema oficial de saúde, mas também se constituem uma forma de autoatenção própria desse grupo social. Desta forma, constituem-se como uma das práticas do sistema de cuidado, resgatando a perspectiva não somente biológica, mas integrando corpo, alma, espírito e ambiente.

O cuidado com o uso das plantas no ritual de benzer

Diante da complexidade do processo saúde doença, os cuidadores populares buscam diversas técnicas de cura objetivando à integralidade do cuidado, nessa comunidade, o ritual de benzer com uso de plantas e elementos da natureza, destacou-se como forma de cuidado, dado que corrobora com outros estudos(33. Arias JM, Riera JRM. El ser humano y la génesis del trabajo enfermero comunitario. Cult Cuid. 2013 [citado 2016 jun 16];36(2);59-5. Disponível em: http://dx.doi.org/10.7184/cuid.2013.36.07.
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,55. McIntyre E, Saliba AJ, Wiener KK, Sarris J. Herbal medicine use behaviour in Australian adults who experience anxiety: a descriptive study. BMC Complement Altern Med. 2016;16:60.) que utilizam essa prática na cura e no alívio do sofrimento.

O ritual de benzer como recurso terapêutico reporta a cultura europeia, mas especificamente a açoriana. Os açorianos trouxeram uma bagagem cultural repleta de crenças e religiosidades, que eram aplicados em todos os aspectos do cotidiano, destaca-se o ritual de benzer como forma de esconjurar o mal, se apegando na crença, do poder de Deus. As benzedeiras tinham o poder e o conhecimento de curar e afastar os males físicos e espirituais de adultos e crianças, enquanto que o homem era procurado em especial em casos de picada de cobra, hemorragia ou para curar animais(55. McIntyre E, Saliba AJ, Wiener KK, Sarris J. Herbal medicine use behaviour in Australian adults who experience anxiety: a descriptive study. BMC Complement Altern Med. 2016;16:60.).

Essa herança cultural foi enriquecida pela miscigenação brasileira, ao chegarem ao país os açorianos encontraram uma cultura que também utilizava orações e purificações no cuidado, além de incluir dietas, exercícios, ervas e relaxamento(44. Silva DC, Budó MLD, Schimith MD, Heisler E, Simon BS, Torres GV. Utilização de plantas medicinais por pessoas com úlcera venosa em tratamento ambulatorial. J Res Fundam Care online. 2015;7(3):2985-97.), todos esses elementos contribuíram para a construção do sistema de cuidado brasileiro, que por diversas vezes reafirma os rituais apesar dos avanços da biomedicina, ainda persiste, como recurso de saúde, conforme as falas abaixo demonstram:

P1: [...] Na dúvida benze e posteriormente observa.

P1: [...] A gente faz como o médico manda toma o remédio, mas já deu de acontecer de benzer e não ir no médico...

P2: [...] primeiro a gente usa o chá e benze em casa, depois, se não melhor procura o médico.

P2: [...] a gente toma o chá, benze, faz massagens e por últimos os exames.

Os relatos apresentam o ritual de benzer e uso de plantas como primeiro recurso de cuidado, não tendo sido observado diferença ou nível de prioridade entre eles, estando integrados. Esse recurso de cuidado não inclui o profissional do sistema oficial, constituindo-se, assim, uma ação de autoatenção. Traz uma visão humanística ao processo do cuidar, o indivíduo torna-se coparticipante do processo de cura, avaliando a eficácia do tratamento, optando pelo uso concomitante de outras terapias e pela busca de tratamento do sistema oficial de saúde, determinando as etapas do cuidado(55. McIntyre E, Saliba AJ, Wiener KK, Sarris J. Herbal medicine use behaviour in Australian adults who experience anxiety: a descriptive study. BMC Complement Altern Med. 2016;16:60.).

Essa visão humanística está ligada ao fato do ritual de benzer ser visto como um dom, o qual se apoia em dois imperativos éticos, o primeiro com Deus e o segundo com aqueles que buscam auxílio(33. Arias JM, Riera JRM. El ser humano y la génesis del trabajo enfermero comunitario. Cult Cuid. 2013 [citado 2016 jun 16];36(2);59-5. Disponível em: http://dx.doi.org/10.7184/cuid.2013.36.07.
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). O benzedor é escolhido de Deus, esta escolha é revelada na descoberta do seu dom, que pode ser passado dentro da própria família de geração a geração, ser recebido de outro benzedor(55. McIntyre E, Saliba AJ, Wiener KK, Sarris J. Herbal medicine use behaviour in Australian adults who experience anxiety: a descriptive study. BMC Complement Altern Med. 2016;16:60.) ou por intervenção divina. Nessa amostra, observou-se que os informantes da pesquisa relatam terem recebido o conhecimento de outros familiares ou de divindades, a colaboradora P1 relata ter recebido o dom da avó e da sogra que eram benzedeiras e o colaborador P2 tinha o pai que era benzedor, e refere ter em um sonho sido escolhido pela Virgem Maria para benzer.

O resultado pretendido com a busca da benzedura seja ele a cura, o alívio de um mal-estar, o alcance de uma graça, entre outros, não depende somente do benzedor e das plantas usadas, mas está ligado as condições de fé de quem realiza e de quem recebe. Nesta perspectiva a relação de confiança e atenção, compõe as formas de organização, de dar foco ao que se relaciona ao sofrimento. No desenvolvimento do ofício de benzer, na ocorrência da cura e no alívio do sofrimento, vai se estabelecendo a confiança da comunidade naquele que benze, o qual passa a ser indicado como recurso de saúde pela comunidade. Estes achados também foram evidenciados em outros estudos realizados no Brasil, que utilizam a prática de benzer(22. Mauss, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify; 2003.-33. Arias JM, Riera JRM. El ser humano y la génesis del trabajo enfermero comunitario. Cult Cuid. 2013 [citado 2016 jun 16];36(2);59-5. Disponível em: http://dx.doi.org/10.7184/cuid.2013.36.07.
http://dx.doi.org/10.7184/cuid.2013.36.0...
,55. McIntyre E, Saliba AJ, Wiener KK, Sarris J. Herbal medicine use behaviour in Australian adults who experience anxiety: a descriptive study. BMC Complement Altern Med. 2016;16:60.).

O ritual de benzer foi procurado em situações que o sistema biomédico não reconhece sofrimento e/ou identifica uma doença. Algumas, dessas ocorrências, têm sua origem atribuída ao sobrenatural, à compreensão de que o ser humano é composto por corpo, alma e espírito, e estes são indissociáveis. Um problema que afeta um, pode ser percebido em outro, e a cura não depende apenas de intervenção no corpo, intensificando a necessidade de uma intervenção sobrenatural. O benzedor consegue identificar e diferenciar a partir da observação, da interface com o grupo social e durante o ritual o contexto e a identidade de quem é benzido(33. Arias JM, Riera JRM. El ser humano y la génesis del trabajo enfermero comunitario. Cult Cuid. 2013 [citado 2016 jun 16];36(2);59-5. Disponível em: http://dx.doi.org/10.7184/cuid.2013.36.07.
http://dx.doi.org/10.7184/cuid.2013.36.0...
,55. McIntyre E, Saliba AJ, Wiener KK, Sarris J. Herbal medicine use behaviour in Australian adults who experience anxiety: a descriptive study. BMC Complement Altern Med. 2016;16:60.). Conforme descrito na fala a baixo:

P1: [...] Os médico não acreditam quando as pessoas estão com quebrante, mau olhado, encalho, e daí a gente benze. A gente benze também problemas de insolação, dor, mau jeito, dor de dente, dor de cabeça, sapinho, verruga e espanta temporal.

O fato de o ritual de benzer ser um dom pode explicar a dificuldade de repassar o conhecimento para seus descendentes, visto que ambos relatam que dentro da família não têm pessoas interessadas no ofício. Desse modo, pode-se concluir que para se receber o dom, a pessoa tem de estar interessada, ou seja, disposta a recebê-lo. O benzedor é um canal de Deus, um ser que vive para servir, fato expresso no ditado usado por um dos benzedores:

P1: [...]Que não vive para servir, não serve para viver.

Servir torna-se o objetivo principal da vida do benzedor, identifica-se aí uma aproximação com a teoria da dádiva universal(66. Capella R, coordenadora. A saúde em Florianópolis: das benzeduras na velha Desterro aos novos conceitos de promoção da saúde. Florianópolis: Fábrica de Comunicação; 2010.), observa-se a presença da tríplice obrigação coletiva de doação, de recebimento e devolução de bens simbólicos e materiais, na construção de um sistema de reciprocidade de caráter interpessoal, baseado no dar, receber e retribuir. Obstante, servir não é algo desejável nesse mundo individualista, capitalista, pautado nas leis do comércio, no qual tudo tem seu preço e deve ocorrer dentro de parâmetros rigidamente estabelecidos e em tempo oportuno, acaba por assim, dificultando a existência de jovens que estejam dispostos a receber o ofício e segui-lo.

P: [...] É a senhora costuma ensinar seus filhos a benzer, conhecer as plantas que a senhora faz os chás?

P1: [...]Os chá sim, as benzeduras não...

P: [...]Eles tem interesse de aprender ou não?

P1: [...] Não sei (risos), essa juventude é diferente como eles tem outras coisa não parece acreditar muito, mas chá eu ensinava...E quando eles se apertam pedem pra mim fazer.

Outro ponto que afasta novos integrantes ao ofício é que o ato de benzer não carrega consigo retribuição de pagamento monetário, pois o sagrado não é vendido e nem o benzedor faz propaganda de si mesmo, ficando isso ao encargo da experiência do indivíduo que recebeu o cuidado, seus relatos de cura, que são divulgados na comunidade, semelhante ao identificado em outros grupos sociais estudados que salientam como importante o uso de plantas medicinais no cuidado(33. Arias JM, Riera JRM. El ser humano y la génesis del trabajo enfermero comunitario. Cult Cuid. 2013 [citado 2016 jun 16];36(2);59-5. Disponível em: http://dx.doi.org/10.7184/cuid.2013.36.07.
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,55. McIntyre E, Saliba AJ, Wiener KK, Sarris J. Herbal medicine use behaviour in Australian adults who experience anxiety: a descriptive study. BMC Complement Altern Med. 2016;16:60.).

Essas relações pautadas no paradigma do dom estabelecem ações em reciprocidade, nas quais a pessoa que tem o dom de benzer se vincula com o benzido, lhe repassando cuidados. Enquanto a pessoas benzida sentem-se comprometidas em retribuir ao cuidador de diversas formas: trazendo plantas, relatando experiências de cuidado já vivenciadas em que obteve desfecho de cura, realização de uma tarefa de trabalho (rachar lenha, vigiar a casa, alimentar os animais), mas raramente esta retribuição será por recurso financeiro em espécie. Isto é, o pagamento financeiro pela benzedura não é uma troca aceita neste sistema. Desse modo, o paradigma do dom permeia as relações que não são pautadas em recursos econômicos, mas principalmente na confiança, no vínculo, na ética e no ciclo de dar-receber-retribuir(66. Capella R, coordenadora. A saúde em Florianópolis: das benzeduras na velha Desterro aos novos conceitos de promoção da saúde. Florianópolis: Fábrica de Comunicação; 2010.), sistema de cuidado também escrito por estudo realizado com tribo indígena brasileira(44. Silva DC, Budó MLD, Schimith MD, Heisler E, Simon BS, Torres GV. Utilização de plantas medicinais por pessoas com úlcera venosa em tratamento ambulatorial. J Res Fundam Care online. 2015;7(3):2985-97.).

Todavia o ritual de benzer fazendo parte do sistema de cuidado utilizado pelas pessoas da comunidade, muitas vezes é uma prática desconhecida, ignorada e ou desvalorizada pelos profissionais de saúde do sistema oficial que trabalham com comunidades, acredita-se que isso ocorra por se tratar de uma prática que permeia o sobrenatural e a fé.

Na observação participante pode se vivenciar a experiência de ritual de benzer, na qual os informantes da pesquisa utilizavam as plantas e elementos da natureza como veículos de cura, ao mesmo tempo em que pronunciavam rezas desconhecidas para os pesquisadores.

Ter experienciado essa prática de cuidado nos remete a refletir em relação aos procedimentos utilizados na biomedicina, nos quais o ser cuidado necessita passar por uma preparação específica, em situações de cirurgia e alguns exames, despindo-se de suas roupas e de seus pertences particulares, passando a vestir outras roupas, toucas, protetores de pés, e submetendo-se a inserção de cateteres e agulhas em seu corpo, elementos incomuns na sua prática de autocuidado cotidiano.

Outrossim, as práticas místicas de cuidado observadas, operam no sistema de reciprocidade, apresentam elementos desconhecidos ou ocultos aos profissionais que atuam com base no sistema de saúde oficial. Ao mesmo tempo que este sistema, no imaginário coletivo, muitas vezes também apresenta elementos desconhecidos e inexplicáveis de cura, quando as prescrições e práticas ultrapassam a sua compreensão(33. Arias JM, Riera JRM. El ser humano y la génesis del trabajo enfermero comunitario. Cult Cuid. 2013 [citado 2016 jun 16];36(2);59-5. Disponível em: http://dx.doi.org/10.7184/cuid.2013.36.07.
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).

O ritual de benzer faz parte do sistema de cuidado cultural, o qual possui signos e significados coletivos e individuais, com traços de acolhimento e solidariedade. Busca auxiliar na (re)elaboração da experiência do sofrimento e na (re)organização do modo de viver saudável, habilitando o indivíduo a permanecer enfrentando os desafios do cotidiano social(1919. Soares AN, Morgan BS, Santos FBO, Matozinhos FP, Penna CMM. Crenças e práticas de saúde no cotidiano de usuários da rede básica de saúde. Rev Enferm UERJ. 2014;22(1):83-8.). Resgatar essa forma de cuidado, como uma prática significativa no alívio do sofrimento, possibilita discutir importância que esse cuidado tem para as pessoas, como à comunidade científica, bem como apontar formas de integração do cuidado profissional e o familiar, com vistas a prática do cuidado integral que considere outros aspectos do viver, o qual não é fragmentado.

Nesse contexto, a planta ou parte dela (galhos, folhas ou ramos), no ato do ritual de benzer ganha significado de fé e reverência, além da ação medicinal, propiciando a cura e o cuidado de crianças, adultos, idosos, animais e o controle de pragas nas lavouras. Compara-se a uma pedra quando a essa é dada a função de servir de altar, e passa a ter um novo sentido, tornando-se sagrada. Nesse processo o benzedor/benzedeira são as pessoas socialmente reconhecidas como capazes de intermediar a cura, que ocorre com a ligação das plantas com o divino(33. Arias JM, Riera JRM. El ser humano y la génesis del trabajo enfermero comunitario. Cult Cuid. 2013 [citado 2016 jun 16];36(2);59-5. Disponível em: http://dx.doi.org/10.7184/cuid.2013.36.07.
http://dx.doi.org/10.7184/cuid.2013.36.0...
).

A propriedade clínica, nesse processo, não está na planta ou nos seus elementos fitoquímicos; depende de quem intermédia o processo de cuidado. A planta lembrada ou citada carrega consigo as histórias e exemplos dos cuidados, confirmando a eficácia da terapêutica(2020. Silva TRM. Saber cuidar, saber contar: ensaios de antropologia e saúde popular [resenha]. Rev Antrop Soc Alunos PPGAS-UFSCar. 2010;2(1):145-50.).

Esse sistema de cuidado que utiliza plantas e fé baseou-se na reciprocidade, no dom divino de cura, atua além da doença. Valoriza a cultura local, guarda conhecimentos, cantigas, preces, devoção e rituais que são compartilhados com todos. O cuidador dedica-se ao ser cuidado, transmite paz e conforto, em troca recebe o reconhecimento da comunidade e o dom de cura. Constituindo-se um recurso de saúde utilizado pelas famílias dessas comunidades, no entanto esse estudo teve como limitação ter acompanhado as famílias que recebem o cuidado.

CONCLUSÃO

Essa investigação permitiu compreender que o uso das plantas medicinais e o papel da fé no sistema de cuidado familiar atuam além da relação biológica do cuidado em saúde. Não operando conforme os princípios de compra e venda, mas da troca, de dar, receber e retribuir. Esse sistema de cuidado apoiasse na reciprocidade, no vínculo, na ética e no dom da cura.

Conduziu a reflexão sobre as habilidades e conhecimentos necessários ao desenvolvimento da atenção de enfermagem em comunidades rurais, que incorporem no cuidado outras práticas diferentes das ofertadas pelo sistema oficial. Dentre os conhecimentos destacaram-se as terapias complementares, o uso de plantas medicinais, indicação, contraindicação e interação medicamentosa.

Ressalta-se a inevitabilidade de incluir no currículo de formação da enfermagem disciplinas que dialogue com outras formas de cuidado diferentes do cuidado da biomedicina, que não se detenha as questões biológicas, como: a antropologia, a sociologia, a medicina tradicional chinesa, a medicina homeopática.

Esse diálogo poderá reduzir a lacuna entre o cuidado profissional e o cuidado intrafamiliar, visto que permite à enfermagem resgatar o indivíduo cuidado da fragmentação existente na forma de cuidar do sistema oficial de saúde, ao mesmo tempo em que fomenta a emancipação desses indivíduos e suas famílias em relação às práticas de saúde, dando maior autonomia para tomar decisões acerca do cuidado.

O número reduzido de informantes e o fato deste artigo discutir os dados de apenas um município levam a expor os limites do estudo e sugerir outras pesquisas, com mais sujeitos e em outros territórios, para significar de forma expressiva o vínculo entre as práticas de cuidado, a fé e o uso das plantas medicinais.

Concomitante a este movimento nos parece importante sensibilizar os enfermeiros para atuarem em diferentes contextos sócios culturais, na perspectiva de intrumentalizá-los para intervir favorecendo o processo de cura através da adoção de práticas de saúde mais adequadas a cada família e comunidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2016
  • Aceito
    21 Mar 2017
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