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O ethos e o pathos na sala de parto

El instituto ethos y el pathos en la sala de parto

RESUMO

Objetivo

Compreender o ethos e o pathos presentes nos discursos de mulheres parturientes e profissionais de saúde no contexto da sala de parto.

Método

Pesquisa qualitativa do tipo interpretativa. Utilizou-se o método da Análise do Discurso. Participaram das entrevistas 36 mulheres e 24 profissionais de saúde de maternidades do interior de Minas Gerais.

Resultados

Os discursos sinalizam a concepção que as mulheres têm do parto, centrada no olhar do outro e nas suas representações; as dificuldades das enfermeiras para operacionalizar o cuidado e construir uma imagem profissional autônoma. O discurso médico enfatiza a especialidade, a capacidade de intervir em situações de risco e as mudanças no status da profissão.

Conclusões

A construção do ethos de médicos e enfermeiros é fundamental para o delineamento de campos de saberes mais flexíveis e parauma atuação profissional condizente com os seus papéis e comprometida com os preceitos éticos e legais do cuidado obstétrico.

Tocologia; Saúde da mulher; Discursos; Pesquisa qualitativa; Pessoal de saúde

RESUMEN

Objetivo

Comprender el ethos y el pathos presente en los discursos de las mujeres embarazadas y los profesionales de la salud en el contexto de la sala de parto.

Método

Estudio sobre el enfoque cualitativo, el tipo de interpretación. Participado en las entrevistas con 36 mujeres y 24 profesionales de la salud. Los escenarios fueron siete maternidades en el interior de Minas Gerais.

Resultados

Los discursos indican la concepción que tienen las mujeres de parto, centrada en los ojos de los demás y en sus representaciones. Las dificultades de las enfermeras en operacionalizar el cuidado y construir con una imagen profesional. El discurso médico destaca la habilidad, la capacidad de intervenir en situaciones de riesgo y los cambios en la condición de la profesión.

Conclusiones

la construcción de la ética de los médicos y de las enfermeras es fundamental para el diseño de campos de conocimiento más flexibles y un desempeño profesional coherente con su función y comprometida con los problemas éticos y jurídicos de los cuidados en obstetricia.

Tocología; Salud de la mujer; Discursos; Investigación cualitativa; Personal de salud

ABSTRACT

Objective

To understand the ethos and pathos in the discourses of pregnant women and healthcare professionals in the context of the delivery room.

Method

This is a qualitative and interpretative study. The research approach was discourse analysis. The study participants were 36 women and 24 health workers from seven maternity hospitals in midwestern Minas Gerais, Brazil.

Results

The discourses indicate the notion the women have of childbirth, centered in the eyes of others and in their representations. The nurses have difficulty operationalising care and building a professional image. The medical discourse stresses the skills, the ability to intervene in high-risk situations, and changes in the status of the profession.

Conclusions

The construction of the ethos of physicians and nurses to essential to design more flexible fields of knowledge and ensure a professional performance that is consistent with their role, committed to the ethical and legal issues of obstetric care.

Midwifery; Women’s health; Discourses; Qualitative research; Health personnel

INTRODUÇÃO

Este trabalho é resultado da tese de doutorado “O sensível e o insensível na sala de parto: interdiscursos de profissionais de saúde e mulheres”(11. Oliveira VJ. O sensível e o insensível na sala de parto: interdiscursos de profissionais de saúde e mulheres [tese]. Belo Horizonte (MG): Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais; 2016 [citado 2017 fev 27]. Disponível em: http://www.enf.ufmg.br/pos/defesas/580D.PDF
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) Analisa o ethos e o pathos discursivo na voz das mulheres e dos profissionais de saúde, procurando caracterizar sua constituição e o tom presente nos diferentes discursos sobre a assistência ao parto com ênfase à maneira de se mostrar e ao dizer destes sujeitos discursivos na cena do parto.

Ethos e pathos são termos emprestados da retórica de Aristóteles. Ethos, na análise do discurso, representa a apresentação de si, na interação discursiva. Entende-se que, ao se pronunciar, o sujeito deve fazer reconhecer como autêntico o seu dizer. Já o conceito de pathos pode ser definido como um transbordamento emocional, no qual sua proximidade com a fala mágica confere-lhe a possibilidade de persuasão e permite produzir a emoção no interlocutor ou no auditório(22. Charaudeau P, Maingueneau D. Dicionário de análise do discurso. 3. ed. São Paulo: Contexto; 2014. p. 220.).

Nesta perspectiva, compreende-se que o discurso proferido pelo sujeito atribui uma posição institucional e delimita uma relação de saber entre os envolvidos. Ao discursar, o locutor usa a linguagem para transformar os fatos e exasperar ou minimizar os sentimentos de indignação ou de afeto. Construindo, assim, uma atitude emocional capaz de patemizar as coisas e as pessoas(33. Pires EL. A dimensão subjetiva, da argumentação e do discurso: focalizando as noções de ethos e de pathos. EID&A: Rev Eletrôn Estudos Integrados Discursos Argum. 2012;(2):52-62.).

Trazer estes conceitos para analisar o discurso sobre a assistência ao parto representa um desafio e implica em refletir sobre as dificuldades do profissional de saúde e das mulheres em sustentar e situar a sua fala.

Um dos problemas que se enfrenta em relação à assistência ao parto diz respeito a esta incapacidade do profissional de saúde e da mulher de distinguir claramente o lugar de onde se fala, ao estabelecer um discurso que não se sustente apenas nas aparências de autoridade, medo, submissão ou grito, mas que seja capaz de produzir efeitos sensíveis.

Há um discurso forte na obstetrícia que relaciona a vivência do parto ao empoderamento feminino. Ao longo da gestação procura-se criar todo um cenário para justificar a intervenção na assistência ao parto, levanta-se riscos mais supostos do que reais como bebê grande, circular de cordão, ficando a decisão da mulher fragilizada diante do poder de convencimento do médico(44. Riscado LC, Jannotti CB, Barbosa RHS. Deciding the route of delivery in Brazil: themes and trends in public health production. Texto Contexto Enferm. 2016 [cited 2017 Feb 27];25(1):e3570014. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072016000100501&lng=en&nrm=iso&tlng=en.
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).

Esta relação discursiva profissional de saúde/parturiente tornou-se tão conflituosa, que passou a ser classificada pela Organização Mundial de Saúde como uma das tipologias de maus tratos às mulheres, caracterizando a agressão verbal dentro do conceito de violência obstétrica considerada, igualmente, como um dos problemas emergentes de saúde pública e direitos humanos(55. Organização Mundial de Saúde (CH). Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde [declaração]. Geneva: OMS; 2014 [citado 2017 fev 27]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/134588/3/WHO_RHR_14.23_por.pdf.
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).

Existe uma imagem pré-discursiva sobre o parto, ancorada em representações coletivas, que determina esta experiência como algo horrível, imprevisível, doloroso e que por isso precisa ser apagada. Essas crenças sobre o corpo da mulher e o processo de parto refletem-se nas práticas assistenciais, na organização do serviço e no ethos institucional, configurando o modelo de assistência ao parto no país(66. Portella M, Monteiro A, entrevistadores. Simone Diniz [entrevista]. Coletiva. 2012 set./dez [citado 2017 fev 17];(9):12 telas. Disponível em: http://www.coletiva.org/index.php/entrevista/?n=76.
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).

Ao refletir sobre esta problemática discursiva na assistência à parturiente deve-se considerar que existem perspectivas sobre a assistência ao parto que ganham voz e corpo no discurso das mulheres e dos profissionais de saúde. Ao fazer esta reflexão questiona-se: Como o discurso sobre parto e nascimento tem sido estabelecido nas relações dos profissionais de saúde e mulheres/parturientes?

No campo da saúde, a imagem que a sociedade constrói do médico e da enfermeira está intimamente relacionada às modalidades das suas falas. Criou-se a figura do médico carrasco, autoritário, arrogante e vilão que se contrapõe a imagem da enfermeira cuidadora, auxiliar do médico e guardiã da parturiente. Entende-se que a imagem que o profissional de saúde tem de si mesmo se relaciona intimamente à ativação destes estereótipos gestados socialmente(11. Oliveira VJ. O sensível e o insensível na sala de parto: interdiscursos de profissionais de saúde e mulheres [tese]. Belo Horizonte (MG): Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais; 2016 [citado 2017 fev 27]. Disponível em: http://www.enf.ufmg.br/pos/defesas/580D.PDF
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).

Como num esquema coletivo cristalizado, são imagens prontas que passam a mediar a relação do sujeito com a realidade. No entanto, enfatizar as noções de ethos e de pathos, aplicadas no discurso da saúde, nos permite compreender como se caracteriza a maneira de sentir e de dizer destes sujeitos envolvidos na cena do parto e revelar como se dá a patemização discursiva do parto.

Espera-se que esta posição reflexiva, sobre a imagem e a construção de uma atitude emocional na sala de parto, permita conhecer as dificuldades colocadas por estes sujeitos, para a implementação de um novo modelo de atenção ao parto, além de desvelar os desafios que o jogo político traz para os profissionais no cotidiano das instituições de saúde.

Este artigo tem como objetivo compreender o ethos e o pathos presentes nos discursos de mulheres parturientes e profissionais de saúde no contexto da sala de parto. Buscando revelar a forma como os profissionais de saúde e as mulheres constroem a imagem de si e do outro, tendo em vista seus interlocutores e as condições de produção do discurso na cena do parto.

METODOLOGIA

A abordagem metodológica utilizada foi a análise do discurso da corrente francesa, na perspectiva de Foucault e Maingueneau, por entender que a imagem e os sentimentos que o sujeito revela de si no discurso tem um papel importante no êxito das discussões e pontos de vista em processos interacionais, como na relação profissional de saúde/parturiente no parto.

A pesquisa qualitativa abrange uma abordagem interpretativa do mundo(77. Gomes AMTG. Análise de discurso francesa e teoria das representações sociais: algumas interfaces teórico-metodológicas. Psicol Saber Social. 2015;4(1):3-18 doi: http://dx.doi.org/10.12957/psi.saber.soc.2015.17558.
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), os discursos , além de representarem o mundo concreto, também são capazes de evocar possibilidades diferentes da realidade(88. Maia DG. Interseção da análise crítica do discurso e da semiótica social: uma análise do texto multimodal das camisas de formatura. Anais SILEL. 2013;3(1): 13p.).

Num enfoque discursivo acredita-se ser impossível construir um objeto de discurso sem criar simultaneamente uma atitude emocional em relação a este objeto(22. Charaudeau P, Maingueneau D. Dicionário de análise do discurso. 3. ed. São Paulo: Contexto; 2014. p. 220.), aqui representado no parto, tanto na perspectiva das mulheres como dos profissionais de saúde.

O cenário de estudo foram sete maternidades de pequeno porte de uma região do interior de Minas Gerais, por considerar o pouco conhecimento, tanto da assistência como de estudos nesses locais, além de que estas não fizeram parte do inquérito nacional de parto.

Participaram desse estudo 36 mulheres e 24 profissionais de saúde (médicos e enfermeiros obstetras). Por se tratar de um estudo qualitativo, não foi intenção preocupar-se com a quantificação dos participantes, mas com a sua representatividade, a priori. A amostragem final foi feita por saturação teórica, quando se percebeu que não havia mais acréscimo nas informações obtidas. Respeitou-se, entretanto, pelo menos um profissional médico e um enfermeiro de cada cenário.

Os critérios de inclusão para os profissionais de saúde foram: estar inseridos no quadro de funcionários da maternidade, prestar assistência direta à mulher no parto e ser enfermeiro ou médico obstetra. Em relação às mulheres: idade entre 15 e 45 anos, ter sido parturiente em uma das maternidades, cenários desse estudo; ter tido parto normal ou cesárea, com permanência de, no mínimo, seis horas de internação.

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas, com um roteiro semiestruturado para os profissionais e um para as mulheres, com questionamentos sobre: Gostaria que você se apresentasse. Quem é você? Relate como foi para você o nascimento do seu filho. Descreva como vê a relação entre você e o profissional de saúde que lhe prestou cuidados no parto. Conte um acontecimento que te marcou no seu atendimento. O que significa ser (médico ou enfermeiro) obstetra? Você pode contar uma situação vivenciada na sala de parto que envolva você e a usuária?

As entrevistas foram gravadas em aparelho digital e transcritas na íntegra, para análise e interpretação dos discursos. Além disso, utilizou-se observação de situações ocorridas durante o trabalho de parto e parto, procurando dar ênfase ao diálogo estabelecido entre os profissionais de saúde e as mulheres, que foram registradas em um diário de campo. A coleta de dados ocorreu de setembro de 2014 a março de 2015.

O anonimato dos participantes foi garantido mediante identificação alfanumérica, conforme o segmento ao qual pertencem: M para as mulheres, Med para Médicos e Enf para Enfermeiros, seguidos de número de acordo com a aproximação para as entrevistas.

O trabalho de campo teve início após aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa da UFMG – parecer número 791.265 CAAE: 3252471420000.5149, e a coleta de dados aconteceu mediante a assinatura do TCLE pelos participantes ou responsáveis legais em conformidade com a Resolução 466/2012, que determina que crianças e adolescentes não podem participar de um estudo sem a devida autorização de um adulto responsável. Neste sentido o estudo foi explicado tanto as participantes adolescentes quanto ao seu responsável legal, que posteriormente assinaram os termos de assentimento e consentimento.

A análise do discurso compreendeu um movimento de três etapas: 1ª. Organização, transcrição e disposição dos discursos na íntegra. 2ª. Leitura vertical que compreende a leitura exaustiva de cada discurso individual para apreensão das ideias centrais. 3ª. Leitura horizontal para determinar as ideias ou significados que se assemelham ou não com a organização dos dados convergentes em temas comuns, determinando as categorias e subcategorias(77. Gomes AMTG. Análise de discurso francesa e teoria das representações sociais: algumas interfaces teórico-metodológicas. Psicol Saber Social. 2015;4(1):3-18 doi: http://dx.doi.org/10.12957/psi.saber.soc.2015.17558.
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).

A etapa final da análise constituiu-se num exercício constante de interpretação sobre o dito e o não dito. O ethos e o pathos das mulheres e dos profissionais de saúde revelam-se como um construto social perpassado por inúmeros discursos, enquanto verdades, que rotulam determinadas formas de ser e de se sentir mulher e diferentes maneiras de ser e de cuidar como enfermeira ou médico obstetra.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise revela três categorias organizadas na sequência descrita: O ethos no discurso de si e o pathos no interdiscurso de mulheres na sala de parto; O ethos no discurso de si e o pathos no interdiscurso de enfermeiras obstetras na sala de parto; O ethos no discurso de si e o pathos no interdiscurso de médicos obstetras na sala de parto.

O ethos no discurso de si e o pathos no interdiscurso de mulheres na sala de parto

Antes de vivenciar o parto a mulher já tem constituído um ethos pré-discursivo que é a imagem da mulher com medo, frágil e submissa. O ponto de vista dos outros caracteriza o ethos, que é a imagem que a mulher constrói de si e o pathos imagem subsidiada pelo olhar e interdiscurso do outro mobilizando a emoção.Os discursos das mulheres sinalizam que a concepção que elas têm do parto está mais no olhar do outro do que no olhar da parturiente.

Eu tive sorte porque quando eu engravidei as pessoas falavam: Eles forçam o parto muito, chegando lá você não grita, esforça pra ganhar rápido, se você ficar gritando eles maltratam você. (M 28)

Eu vim com pensamento que seria rápido, que não ia ser tão doloroso, mas as mulheres que já eram mães me olhavam com olhar de tristeza. Todas que você conversar não vai ser muito diferente. (M 19)

O modo de as mulheres que participaram desta investigação conceberem o cuidado recebido traduz o modelo de poder disciplinar, descrito por Foucault como uma ação sobre o corpo, mediante o controle do gesto, do comportamento, da normalização do prazer e da interpretação do discurso, com o propósito de comparar e hierarquizar, construindo, assim, uma relação de poder(99. Foucault M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2012.).

Como o parto é uma experiência vivenciada também corporalmente, a análise das narrativas sinalizam as representações que as mulheres têm sobre os processos biológicos, acerca de seus corpos e dos discursos do saber científico. A mulher faz analogia da instituição hospitalar com um açougue.

A gente fica assustada, as pessoas tem mania de falar que aqui é um açougue, a gente coloca aquilo na cabeça e fica vai acontecer isso, isso e isso. (M23)

A população e alguns médicos põem medo na gestante, falam coisas para perturbar a já perturbada mente das gestantes: você vai ganhar neném aqui, este hospital é um açougue, e a pessoa já chega brigando, com cara feia. Dizendo se o neném morrer eu vou matar o médico. (Med 7)

Ao fazer analogia da instituição hospitalar a um açougue, a mulher apresenta o parto como um evento traumático que pode colocar em risco a sua imagem e integridade corporal. Ao se remeter à figura de um açougue, seu discurso designa o receio de um corpo desfigurado e retalhado como a imagem usualmente vista no açougue; um amontoado de carne pendurada, fria e inerte.

Outra representação dessa figura analógica expressa no discurso é a redução da mulher ao seu corpo, sendo este a única potencialidade que interessa no momento. Um mero corpo capaz de gerar e parir, que deve ser controlado para atender a máquina antropológica do discurso, que define o que é a vida e o ser humano(1010. Tiburi M. Aborto como metáfora II [Internet]. Cult. 2013 out;[citado 2017 fev 27]. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/aborto-como-metafora-ii/
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).

As ideologias discursivas estão contidas nos discursos sociais e são reproduzidas nos enunciados ao afirmarem que a qualidade da assistência ao parto é mediada por valores de mercado, como a meritocracia e o individualismo.

Eu pensei que ia ser um absurdo, muita gente julga o SUS por ser um atendimento horrível e naquela aflição tanto ele quanto você acaba falando coisas que não precisa ser ouvida. (M12)

Como é pelo SUS a gente fica mais jogada, não é bom. Se fosse particular Eu acho que pelo plano de saúde trata a pessoa melhor do que pelo SUS. (M34)

Evidencia-se uma relação profissional de saúde-mulher permeada por trocas. Atribui-se uma assistência de qualidade a um valor padrão. Paga-se para ter melhor parturição e melhor saúde, herança de uma sociedade capitalista. Neste contexto, circunstâncias violentas da assistência ao parto, constrangedoras e marcadas pela ocorrência de intervenções desnecessárias, transformam a experiência de parir e nascer em uma vivência aterrorizante, onde as mulheres se sentem alienadas e impotentes(1111. Sena LM, Tesser CD. Violência obstétrica no Brasil e o ciberativismo de mulheres mães: relato de duas experiências. Interface: Comunic Saúde Educ. 2017;21(60):209-20.).

Essa realidade pode ser constatada em muitos serviços do SUS, que a despeito de todas as estratégias para melhoria da assistência, o modelo predominante ainda é considerado inseguro e não baseado em evidências científicas. E é freqüentemente marcado por uma relação interpessoal autoritária, que inclui formas de tratamento discriminatória, desumana e ou degradantes(1212. Reis VAF, Ramires XYA, Berlinck, MTB. As dores do parto: reflexões psicopatológicas em torno da angústia e do narcisismo primitivo. Estilos Clin. 2014 jan/abr;19(1):67-77.).

Acredita-se que apenas o comprometimento do cuidado médico com a lógica de mercado da indústria de medicamentos e equipamentos médicos, não consegue explicar as intervenções desnecessárias na assistência ao parto. Há que se questionar outros aspectos como, o viés ideológico do progresso da técnica, que banaliza práticas inseguras e sem evidências científicas, construindo ausências de conhecimento para a população(1313. Luz LH, Gico VV. Blogs como canais alternativos de comunicação para o renascimento do parto. Intercom: Rev Bras Ciênc Comun. 2016 [citado 2017 fev 27];39(2):147-60. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/1809-58442016210.
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).

O discurso das mulheres é conflitante, os sentimentos que permeiam a vivência do parto, pela singularidade de cada mulher, torna-o muito intenso. Apesar de sentirem dor e medo no momento do parto as mulheres tendem a se sentir aliviadas e agradecidas após o nascimento de um bebê saudável, o que, para elas compensaria qualquer mau tratamento recebido durante a assistência.

Quando eu escutei o primeiro chorinho dele, foi a melhor hora pra mim, porque eu tava com muito medo. (M10)

A gente não consegue nem falar. É muita dor, mas é emocionante, choro..., hora que você vê a carinha, a gente sofre... mas é lindo. (M19)

Hora que ela nasceu foi a melhor coisa do mundo... senti aliviada, calma. É muita tensão, muita coisa na cabeça... (M27) Assim que tirou ele, nossa senhora, tadinho que alívio pra mim e pra ele. (M31)

Um verdadeiro milagre, eu me emociono... Não esperava ter um filho, eu nunca tive vontade de ser mãe. Mas ele agora é a minha vida. Eu me derreto, só de lembrar da cena. (M32)

A plenitude e o prazer de conseguir ter um filho intensificam-se com a manifestação do choro do bebê. A lembrança da cena do parto é descrita como um milagre, tão intensa é a sensação de completude, de algo sem limites e inesperado. Milagre no latim vem do verbo mirare que é maravilhar-se. O parto pode ser comparado a um milagre na perspectiva da parturiente, por ser um acontecimento que não cabe nas explicações científicas. Além do seu nascimento enquanto mãe pode-se dizer que a mulher ao parir, faz renascer angústias e afetos. Os sentimentos são ambivalentes; amor e dor se tornam aliados na experiência de ser mãe(1212. Reis VAF, Ramires XYA, Berlinck, MTB. As dores do parto: reflexões psicopatológicas em torno da angústia e do narcisismo primitivo. Estilos Clin. 2014 jan/abr;19(1):67-77.).

O parto deve ser entendido como um processo que exige um olhar, que ultrapasse as concepções objetivas da realidade dos fatos e que se fundamenta nas experiências humanas vividas(11. Oliveira VJ. O sensível e o insensível na sala de parto: interdiscursos de profissionais de saúde e mulheres [tese]. Belo Horizonte (MG): Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais; 2016 [citado 2017 fev 27]. Disponível em: http://www.enf.ufmg.br/pos/defesas/580D.PDF
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). Assim, o cuidado à mulher no processo parturitivo deve ser construído por uma relação mais humana e próxima à parturiente.

O ethos no discurso de si e o pathos no interdiscurso de enfermeiras obstetras na sala de parto

A imagem que a sociedade constrói da enfermeira é generalizada por impressões estereotipadas que incluem figuras como santas, heroínas e prostitutas. Relacionam-na à função de auxiliar do médico, a gentil, a amiga que pode dar o suporte necessário. Acrescida a esta imagem preconcebida no ideário social, as enfermeiras criam outra de si próprias e de seu trabalho, identificada com características essencialmente femininas como a emotividade, a sensibilidade e o cuidado com o outro e do outro que retrata o pathos.

Ser enfermeira obstetra é um realização profissional, pessoal, eu não me vejo fazendo outra coisa, é o que eu sempre quis, ver o bebê nascendo, aquele momento mágico da vida, a felicidade dos pais. (Enf 1)

Significa ajudar a dar vida, conforto. É fazer a diferença na vida dela, tornar o momento mais especial. O parto é natural, se não tiver ninguém ele acontece. (Enf 4)

Amo meu trabalho, gosto de cuidar, pra mim é emocionante e gratificante o parto natural. (Enf 6)

A maternidade me fascina, é uma área que eu estou por gostar, tudo que vem do nascimento é grandioso. (Enf 7)

Não é só gostar, é ter amor, paixão. Somos diferentes do médico, ele cuida da intercorrência, da patologia, do que não deu certo, nos prestamos assistência no tato, no olhar. (Enf 8)

Os discursos são “patemizados” pela paixão e o fascínio que o parto desperta em quem

cuida. Ao dizerem por que são enfermeiras obstetras sublimam possíveis dificuldades e desafios presentes ao campo profissional. As narrativas são mobilizadas pela emoção que o parto desperta.

O cuidado na perspectiva da enfermeira obstetra gera possibilidades de construção, fundadas no compartilhar e escutar, o que permite a expressão das emoções, tanto da mulher quanto delas mesmas, o significado do cuidado parturitivo vai além do que seja apenas técnico e envolve o melhor do lado humano(1414. Zveiter M, Souza IEO. Solicitude constituindo o cuidado de enfermeiras obstétricas à mulher-que-dá-à-luz-na-casa-de-parto. Esc Anna Nery. 2015 mar [citado 2017 mar 03];19(1):86-92. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452015000100086.
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).

Para alguns autores(22. Charaudeau P, Maingueneau D. Dicionário de análise do discurso. 3. ed. São Paulo: Contexto; 2014. p. 220.) é impossível construir um objeto de discurso sem criar simultaneamente uma atitude emocional em relação a este objeto, aqui representado no parto, que é na perspectiva delas, o objeto de paixão, de cuidado.

Ser enfermeiro é trabalhar com amor, exige muito zelo, paciência. (Enf 10)

Porém, para mediar este discurso emotivo com a realidade, sabe-se que a enfermeira na sua atuação profissional, além de ter paixão pelo que faz, precisa desenvolver habilidades e competências; adquirir segurança técnica e perceber a complexidade que envolve o processo de parir. O cuidado à mulher de maneira afetuosa, empática e segura exige um profissional diferenciado, com formação ético-humanística e científica(1515. Caus ECM, Santos EKA, Nassif AA, Monticelli M. O processo de parir assistido pela enfermeira obstétrica no contexto hospitalar: significados para as parturientes. Esc Anna Nery. 2012;16(1):34-40.).

Ao narrar o cotidiano de trabalho na maternidade as enfermeiras sinalizam as dificuldades que vivenciam para exercer o cuidado.

Tento otimizar meu tempo pra elas, mas nem sempre é possível. Eu dou assistência no ambulatório, no alojamento conjunto, no berçário, na parte administrativa. Não consigo fazer tudo ao mesmo tempo (Enf 3).

O parto às vezes acontece sem eu estar no setor, como enfermeira não fico só na maternidade, às vezes estou na pediatria, no banco de leite, resolvendo problemas burocráticos. (Enf 5)

Eu procuro estar o tempo todo ao lado das pacientes, mas na nossa maternidade é difícil, o enfermeiro tem que prestar assistência em outras alas. (Enf 10)

Neste âmbito de trabalho, as dificuldades encontradas pelas enfermeiras para promover uma atenção qualificada vão além da operacionalização do tempo, na tentativa de conciliar as atividades assistenciais com as administrativas.

Observa-se que há um déficit no saber e no fazer em obstetrícia atribuído muitas vezes à influência biomédica na sua formação e atuação, fato que pode contribuir para a utilização de práticas não recomendadas pelas evidências científicas na condução do parto(1616. Canassa NSA, Borenstein MS, Brüggemann OM, Gregório VRP. O saber/fazer das parteiras na Maternidade Carmela Dutra de Florianópolis – SC (1967/1994). Rev Bras Enferm. 2011;64(3):423-30.).

No campo da saúde o limite dos saberes é impreciso, na qual uma profissão sempre busca apoio em outra para a realização de suas tarefas. Existe uma necessidade emergente de se construir práticas mais democráticas e de se estabelecer identidades sociais para as profissões e os campos de saber(1717. Silva RM, Jorge HMF, Matsue RY, Ferreira Júnior AR, Barros NF. Uso de práticas integrativas e complementares por doulas em maternidades de Fortaleza (CE) e Campinas (SP). Saúde Soc. 2016 mar;25(1):108-20.).

Há, contudo, necessidade de respaldo para a execução de práticas e a legitimação do saber científico.

A enfermagem obstétrica não tem protocolo específico, não assume um caso. Eu não posso fazer a avaliação, faço o acompanhamento, mas a definição do tipo de parto é feita pelo médico. ( Enf 3)

Eu gosto de utilizar os protocolos do Ministério da Saúde, por ser o nosso respaldo, foi ele que abriu as portas para nós. Aqui não é rotina usar o partograma. Eu já tentei implantar... mas o partograma usado aqui é confuso, você não consegue ver a evolução do parto. (Enf 4)

Identifica-se que a inexistência de protocolos e a falta de apoio institucional, citadas nesses discursos, impedem certa atitude de empoderamento do cuidado à parturiente. Ainda, é tímida a inserção do enfermeiro obstetra nas práticas assistenciais reconhecidamente úteis e recomendadas por organizações internacionais(1818. Narchi NZ, Cruz EF, Gonçalves R. O papel das obstetrizes e enfermeiras obstetras na promoção da maternidade segura no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva. 2013 abr [citado 2017 mar 03];18(4):1059-68. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232013000400019.
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).

Esta problemática sobre o ethos e pathos da enfermeira emerge além do discurso sinalizado na fala das especialistas. Implica-se em uma necessidade de investimento, em melhor formação e qualificação profissional permanente desta categoria, bem como na reorganização dos serviços e na incorporação de protocolos assistenciais para a melhoria da qualidade(1414. Zveiter M, Souza IEO. Solicitude constituindo o cuidado de enfermeiras obstétricas à mulher-que-dá-à-luz-na-casa-de-parto. Esc Anna Nery. 2015 mar [citado 2017 mar 03];19(1):86-92. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452015000100086.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Verifica-se que não é necessário a enfermeira fazer um autorretrato ou configuração do seu ethos ao falar da sua profissão, pois a imagem que ela constrói de si transveste-se no olhar e no interdiscurso do médico, que configura o pathos da enfermeira. Pode-se considerar que a imagem cristalizada que se tem da enfermeira obstetra não pertence a um só olhar e sim, em um entrecruzamento de diferentes olhares.

No nosso serviço é só o obstetra que funciona, a enfermeira fica para dar as luvas, medicação, não interfere no parto. Não sei se não deixam ela fazer, ou se não querem. Eu acho que a enfermeira ajudaria bem mais, se tivesse uma prática maior. A única coisa que faz é o mesmo que qualquer enfermeira faz na clínica médica. (Med 4)

Eu tenho vontade de trabalhar com a enfermeira obstetra, ela ajudar a acompanhar o trabalho de parto e indicar a cesárea através do partograma. Ainda não consegui, apesar de ter uma aqui, mas ela faz só serviço burocrático. (Med 8)

Não temos enfermeira obstetra aqui fazendo parto, temos uma que cuida de toda a maternidade. Faz parte das nossas exigências ter uma enfermeira no pré-parto, cuidando das pacientes, nos auxiliando, para uma assistência mais humanizada. (Med 12)

Para os médicos a enfermeira obstetra, além de ser sua auxiliar, tem mais um trabalho burocrático, de supervisão, para cumprir exigências administrativas. Persiste no discurso do campo da saúde, o saber hegemônico que se caracteriza pela produção contínua de uma diferença epistemológica, que não reconhece os saberes em pé de igualdade e que por este motivo estabelece uma relação hierárquica, gerando silenciamentos, exclusões e liquidações de outros conhecimentos(1616. Canassa NSA, Borenstein MS, Brüggemann OM, Gregório VRP. O saber/fazer das parteiras na Maternidade Carmela Dutra de Florianópolis – SC (1967/1994). Rev Bras Enferm. 2011;64(3):423-30.).

A representação que a parturiente tem da enfermeira obstetra configura-se no pathos, imagem que é constituída a partir de algo presente no outro que lhe afeta, comove e sensibiliza.

Eu tive duas profissionais no meu parto fundamentais: a enfermeira obstetra e a minha obstetra. A enfermeira foi ótima, colocou o meu marido e minha irmã ativos no meu parto, me ajudando a fazer exercício na bola, ir para o chuveiro. Eu falo que foi Deus que colocou ela de plantão. (M 36)

A única coisa boa, além de ta vendo o rostinho da minha filha, foi a enfermeira ter me acompanhado, fazendo massagem, passou conforto, tem hora que você precisa de uma palavra amiga. Eu só tenho a agradecer por ela ter me ajudado. (M5)

Confirma-se a humanização no parto pelo cuidado prestado pela enfermeira, aliado à sua capacidade de ouvir, de apoiar e de confortar; aspectos que são relevantes para uma boa parição. Infere-se que sua atuação possibilita a participação ativa da gestante no processo de parto, além do envolvimento de pessoas importantes para ela nesse momento.

Corrobora com essa interpretação um estudo realizado em Portugal sobre as representações sociais da enfermeira obstetra(1919. Martins MFSV, Remoaldo PCAC. Representações da enfermeira obstetra na perspetiva da mulher grávida. Rev Bras Enferm. 2014 jun;67(3):360-5.), que retrata sua imagem com qualidades relacionais, capazes de promover a interação. As representações reafirmam-na como uma pessoa detentora de experiência profissional e facilidade de transmitir conhecimentos, além de estimular a participação ativa da gestante.

A partir dos resultados deduz-se que para a enfermeira obstetra o significado do cuidado não se restringe à realização de procedimentos. O apoio empático, assim como as orientações e a utilização de práticas apoiadas no modelo humanizado, além de contribuir para uma vivência satisfatória do parto, apresentam-se como estratégias capazes de construir uma relação harmoniosa entre mulheres/profissionais e dar visibilidade ao trabalho da enfermeira, tão restrito, ainda, nos cenários de investigação deste trabalho.

O ethos no discurso de si e o pathos no interdiscurso de médicos obstetras na sala de parto

Na constituição do ethos institucional e na organização do processo de trabalho, socialmente, funções mais complexas são atribuídas ao médico, delegando as atividades de natureza manual a outros membros da equipe. Valores como domínio do conhecimento, capacidade de decisão e imparcialidade são utilizadas para definir o status de médico.

O discurso do médico reflete a especificidade de seu trabalho em estabelecer o diagnóstico, na capacidade de decidir e de intervir em situações de risco. Suas emoções ou pathos, se distingue pela tecnocracia e poder na interação discursiva.

Me emociona... no parto, quando a coisa não vai bem e você tem que tomar certas atitudes. (Med 2).

Já tive complicações na sala de parto distócias, parto pélvico, mas o médico tem um preparo, pra ter frieza, aguentar o momento difícil. (Med 12)

É gratificante pegar um descolamento de placenta, um prolapso de cordão que você corre com a paciente, você vê que se não tivesse a sua ação, se não fosse você dar assistência ali na hora... (Med 13)´

Diante da diversidade de especificações do trabalho em saúde, observamos que o médico, no desempenho de uma ação, mobiliza, ao mesmo tempo, seus saberes e modos de ser e de agir. Esse modo de agir é influenciado por saberes específicos, pelo cenário histórico-social e pelo paradigma hegemônico de ciência e pela cultura institucional e profissional(1717. Silva RM, Jorge HMF, Matsue RY, Ferreira Júnior AR, Barros NF. Uso de práticas integrativas e complementares por doulas em maternidades de Fortaleza (CE) e Campinas (SP). Saúde Soc. 2016 mar;25(1):108-20.).

Um enunciado traz práticas inerentes a cada sujeito e é possível identificar no discurso, uma linguagem própria de uma classe ou de uma categoria. Por isso compartilham de um mesmo status, a exemplo dos médicos, que possuem uma maneira bem peculiar, de agir diante de situações complicadas e de risco(99. Foucault M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2012.).

A imagem do obstetra teve importantes mudanças que atingiram este status e a sua perspectiva com relação à profissão, revelando esta outra faceta do ethos e o pathos do médico sob o olhar de si mesmo e da sua população.

É uma opção difícil, quase um sacerdócio, doação, você tem que abrir mão de coisas, sua vida é vigiada, você é obrigado a ser médico 24 horas, esquecem que você tem uma vida social, filhos, esposa. (Med 6)

É um sacrifício muito grande, uma especialidade pesada, de remuneração não tão grande igual às outras especialidades, mas tem alegria. (Med 9)

O discurso médico utiliza a metáfora do sacerdócio para retratar a abnegação que a profissão lhe exige, embora traga alegrias. Parece difícil, na sua perspectiva, dicotomizar o ser médico da vida pública e privada. Pode-se atribuir essa associação da Medicina ao sacerdócio à origem semântica do vocábulo, que significa uma autoridade para agir em nome de Deus, com generosidade e desprendimento, na execução de uma missão. Além disso, a medicina foi exercida inicialmente por sacerdotes que, como figuras históricas se perpetuam na memória do discurso do médico.

Tal discurso se contrapõe à realidade atual da profissão que é exercida por profissionais remunerados, com responsabilidades perante uma instituição de saúde e acima de tudo estão sujeitos a processos e críticas por práticas equivocadas na assistência ao parto.

Está difícil fazer obstetrícia, a paciente não quer sentir dor, se você passa um fórceps para ajuda-la, ela fala: “o médico quase me matou”. O médico tem medo dos processos, não fica com muita coisa com a paciente. Mas eu gosto, apesar da crítica, de não receber direito. (Med 10)

A obstetrícia é a segunda especialidade com processos, isto está levando a uma posição de defesa frente a paciente e atrapalhando a relação médico/paciente. Nem sempre você consegue se expressar. (Med 5)

Você tem que ter muito cuidado porque qualquer coisinha que existe na obstetrícia a culpa é do obstetra. (Med 13)

A responsabilidade do parto centrada no médico e o receio de ser penalizado acabam por intervir na relação médico/parturiente, levando a uma atitude defensiva por parte deste profissional. O medo de ser negligente pode interferir na indicação da via de parto e expor mãe e bebê aos riscos de uma cesárea desnecessária, além de um aumento efetivo nos custos em saúde(2020. Cury L, Paula FJ. Análise do perfil dos processos judiciais em obstetrícia e o impacto do laudo pericial nas decisões do magistrado. Saúde, Ética & Justiça. 2013;18(1):110-5).

Percebe-se que os principais obstáculos na promoção de uma assistência de qualidade no processo de parto são: uma relação médico-paciente conflituosa, a dificuldade de estabelecer vínculo e os discursos sociais contidos no discurso agressivo e desnecessário da equipe ao caracterizar a atitude das mulheres como não responsabilidade e pouco colaborativa.

E uma realização pessoal, apesar dos obstáculos, tem que gostar. É uma profissão que está ficando cada vez mais difícil em termos do vínculo com a paciente, das condições de trabalho. (Med 11)

É difícil, a gente trabalha porque gosta. E ainda tem que ouvir: “Quem mandou engravidar, porque arrumou? não sei o que” Acho ridículo quem fala isso. Se eu assumi trabalhar no SUS, não importa quem vem, eu tenho que fazer o meu serviço, bem feito e apoiar quem precisa de mim da melhor forma. (Med 14)

Obstetra, na frente de, aquele que vem para ajudar. Não é para parir o nenêm pra ela, como se o obstetra fosse responsável pelo parto. E não é a mãe continua sendo responsável, ela tem que colaborar. Toda a sala de parto é a paciente. ( Med 4)

Identifica-se aqui a capacidade discursiva de relativizar do pathos no ethos ao ethos no pathos, na tentativa de persuadir e convencer. Pode-se inferir que o discurso do profissional de saúde caracteriza o comportamento da mulher em função de abordagens normativas e preconcebidas, não demonstrando habilidade de estabelecer estratégias de cuidado capazes de promover as emoções necessárias para mudar as atitudes.

Considera-se que embora tenha especificidades, o trabalho na assistência ao parto é coletivo, centrado na mulher, realizado por profissionais capacitados e habilitados para desenvolver atividades fundamentais à manutenção da estrutura institucional. Importante salientar que e a não articulação interdisciplinar na assistência gera fragmentação do cuidado e dificulta os avanços.

CONCLUSÕES

Constata-se que cada discurso possui um tom, uma corporalidade que atribui legitimidade a este, apoiando-se nos estereótipos culturais e valores de dado grupo social. O ethos no discurso do profissional de saúde é embrião da disposição deste para o cuidado ético- político e as emoções configuram o pathos e são como uma partitura que rege o discurso das mulheres no contexto do parto.

A realidade narrada evidencia que para uma redefinição do ethos e do pathos na configuração da imagem profissional são imprescindíveis o apoio institucional, o compromisso dos gestores com políticas públicas e a formação qualificada de ambas as categorias. Acredita-se que a construção do ethos profissional de médicos e enfermeiros obstetras é fundamental para o delineamento de campos de saberes mais flexíveis, de forma que a atuação desses profissionais seja condizente com os seus papeis na reorganização do modelo e comprometida com os preceitos éticos e legais do cuidado obstétrico.

Considera-se que, ainda, existem muitos aspectos latentes entre as disciplinas profissionais envolvidas no cuidado à mulher e que precisam ser investigados com mais profundidade como questões de gênero, classe e condição da mulher no campo público. Tais características estão intimamente relacionadas à constituição do ethos da mulher parturiente e dos profissionais de saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2016
  • Aceito
    28 Mar 2017
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