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Percepção de estudantes da educação básica sobre drogas: um olhar à luz de Merleau-Ponty

Percepción de los estudiantes de educación básica sobre las drogas: una mirada a la luz de Merleau-Ponty

Resumo

OBJETIVO

desvelar a percepção de estudantes da educação básica sobre drogas.

MÉTODOS

Estudo fenomenológico fundamentado em Maurice Merleau-Ponty, realizado com 14 estudantes em escola do interior da Bahia, Brasil, por meio do Grupo Focal, entre abril e junho de 2013, os relatos foram analisados com base na Analítica da Ambiguidade.

RESULTADOS

Foram apresentados em três categorias: senso comum e conhecimento científico ocupam locus opostos; droga vicia; o bem e o mal das drogas lícitas e ilícitas.

CONCLUSÕES

a percepção dos estudantes sobre as drogas entrelaçada ao conhecimento científico e, ao mesmo tempo colocando-a no centro do fenômeno, separando as lícitas como boas e ilícitas como más, aponta para a necessidade de medidas socioeducativas, entre educadores, estudantes e familiares, que visem descentralizar o lugar da droga no contexto em que o fenômeno acontece para que compreendamos a complexidade envolvida no tema.

Palavras-chave:
Adolescente; Drogas ilícitas; Filosofia em enfermagem

Resumen

OBJETIVO

Conocer la percepción de los estudiantes de educación básica sobre las drogas.

MÉTODOS

Estudio fenomenológico basado en Maurice Merleau-Ponty, realizado con 14 estudiantes en el interior de una escuela de Bahía, Brasil, a través de un grupo de enfoque, los meses de abril a junio de 2013, las historias fueron analizados sobre la base de la técnica Analítica Ambigüedad.

RESULTADOS

Se presentan en forma de tres categorías: el sentido común y el conocimiento científica ocupan locus opuesto; drogadictos; el bien y el mal de las drogas legales e ilegales.

CONCLUSIÓN

La percepción de los estudiantes sobre las drogas entrelazadas al conocimiento científico y al mismo tiempo colocándola en el centro del fenómeno, separando las lícitas como buenas e ilícitas como malas, apunta a la necesidad de medidas socioeducativas, entre educadores, estudiantes y familiares, que visen Descentralizar el lugar de la droga en el contexto en que el fenómeno ocurre para que comprendamos la complejidad involucrada en el tema.

Palabras clave:
Adolescente; Drogas ilícitas; Filosofía en enfermería

Abstract

OBJECTIVE

Unveil the perception of students from basic education about drugs.

METHODS

Phenomenological study based on Maurice Merleau-Ponyt, conducted with 14 students of a school in Bahia, Brazil, through the Focus Group, in the months of April to June of 2013. The reports have been analyzed based on the Ambiguity Analytics technique.

RESULTS

They have been presented in the form of three categories: common sense and scientific knowledge occupy opposite locus; drug addicts; the good and evil of legal and illegal drugs.

CONCLUSIONS

The students' perception of drugs intertwined with scientific knowledge and at the same time placing it at the center of the phenomenon, separating the lawful as good and illicit as bad, which points to the need for socio-educational measures among educators, students and family members, aimed at the decentralization of the drug place in the context in which the phenomenon happens so that we understand the complexity involved in the theme.

Keywords:
Adolescent; Street drugs; Philosophy; nursing

INTRODUÇÃO

O consumo de drogas constitui um importante problema de saúde pública mundial, devido a diversidade de aspectos que envolve, como o potencial de dependência e suas graves consequências sociais11 Fiore M. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Novos Estud CEBRAP. 2012 mar; 92 9-21.. Geralmente, o primeiro contato com a droga ocorre durante a fase da adolescência, uma vez que essa etapa da vida é marcada por procuras, descobertas, aumento da importância dos grupos, conflitos consigo mesmo e com a família e participação em novos espaços que os tornam mais vulneráveis a situações externas, como condutas sexuais de risco e uso de drogas22 Monteiro , CFS Araújo TME, Sousa, CMM Carvalho MC, Martins, LLLS. Adolescentes e o uso de drogas ilícitas: um estudo transversal. Rev Enferm UERJ. 2012 lul-set;20(3):344-8..

A literatura científica aponta que existe associação, fatores de risco e proteção para o uso de substâncias psicoativas entre escolares na adolescência33 Elicker E, Palazzo LS, Aerts DRGC, Alves GG, Câmara S. Uso de álcool, tabaco e outras drogas por adolescentes escolares de Porto Velho-RO, Brasil. Epidemiol Serv Saúde. 2015;24(3):399-410.-44 Malta DC, Mascarenhas MDM, Porto DL, Barreto SM, Neto OLM. Exposição ao álcool entre escolares e fatores associados. Rev Saúde Pública 2014;48(1):52-62.. A busca intensa por uma identidade pessoal, a onipotência juvenil e o desejo por novas experiências, associada ao desafio da estrutura familiar e social são apontados como gatilhos para o uso de drogas entre estudantes33 Elicker E, Palazzo LS, Aerts DRGC, Alves GG, Câmara S. Uso de álcool, tabaco e outras drogas por adolescentes escolares de Porto Velho-RO, Brasil. Epidemiol Serv Saúde. 2015;24(3):399-410..

Na Pesquisa Nacional sobre a Saúde do Escolar (PeNSE), 8,7% dos escolares relataram haver experimentado alguma droga ilícita, com destaque para o tabaco que revelou um consumo nos últimos 30 dias de 5,1% entre os mesmos55 Malta DC, Machado IE, Porto DL, Silva MMA, Freitas PC, Costa AWN, et al. Consumo de álcool entre adolescentes brasileiros segundo a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE 2012). Rev Bras Epidemiol. 2014;17(Supl. 1):203-14.. O álcool ganha importância em 39,2% dos escolares participantes de um estudo em Porto Velho/RO33 Elicker E, Palazzo LS, Aerts DRGC, Alves GG, Câmara S. Uso de álcool, tabaco e outras drogas por adolescentes escolares de Porto Velho-RO, Brasil. Epidemiol Serv Saúde. 2015;24(3):399-410.. Pesquisa aponta que em 143 municípios brasileiros o padrão de consumo de bebidas alcoólicas entre adolescentes de 14 a 17 anos tem sido preocupante, uma vez que 75,0% disseram já ter consumido bebida alcoólica pelo menos uma vez na vida44 Malta DC, Mascarenhas MDM, Porto DL, Barreto SM, Neto OLM. Exposição ao álcool entre escolares e fatores associados. Rev Saúde Pública 2014;48(1):52-62.. A nível mundial estudo realizado e países como Argentina, Peru e Uruguai, encontraram prevalências de 56,8%, 27,1% e 59,6%, respectivamente, no consumo de álcool entre adolescentes66 World Health Organization (CH). Global school-base student health survey. Geneva: WHO; 2015 [cited 2017 May 05]. Available from: Available from: http://www.who.int/chp/gshs/en .
http://www.who.int/chp/gshs/en...
.

A preocupação que nos move está relacionada à associação entre um menor desempenho escolar como baixa frequência, participação e ocorrência de reprovações diretamente relacionadas ao consumo de drogas33 Elicker E, Palazzo LS, Aerts DRGC, Alves GG, Câmara S. Uso de álcool, tabaco e outras drogas por adolescentes escolares de Porto Velho-RO, Brasil. Epidemiol Serv Saúde. 2015;24(3):399-410.. O próprio ambiente escolar pode ser considerado um local de vulnerabilidade, devido a fácil circulação dessas substâncias, pressão dos grupos para o uso e a convivência com adolescentes envolvidos em tráfico.

Por outro lado, estudiosos apontam que a escola, vista como um agente transformador constituída em um ambiente protetor pode possibilitar discussões e veiculação de informações sobre essas substâncias77 Costa AG, Camurca VV, Braga JM, Tatmatsu DIB. Drogas em áreas de risco: o que dizem os jovens. Physis. 2012 abr-jun;22(2):803-19. . Torna-se necessário estudos que preencham a lacuna dos dados objetivos e compreendam, na perspectiva de quem vivencia, o contexto escolar, as relações familiares e sociais e a facilidade de acesso ao álcool, tabaco e outras drogas prejudiciais à saúde, para que possamos suscitar as intersubjetividades dessas relações.

Nessa perspectiva, compreendendo o contexto do uso de drogas como uma experiência fenomênica, uma vez que envolve um universo multifacetado, tentaremos encontrar os sentidos e motivos para o evento, a partir da realização de estudo no espaço escolar com a finalidade de conhecer as percepções dos adolescentes sobre o consumo de drogas, uma vez que, a cultura, o meio no qual está inserido e a visão de mundo, influenciam diretamente na forma como se relacionam com elas.

Desse modo, estabelecemos como questão de pesquisa: qual a percepção de estudantes de escolas públicas do ensino fundamental e médio sobre vulnerabilidade e proteção para o uso de drogas? Para respondê-la definimos como objetivo do estudo: desvelar a percepção de estudantes da educação básica sobre drogas.

O objetivo da pesquisa conduziu-nos ao referencial teórico-filosófico de Maurice Merleau-Ponty acerca da percepção humana, cuja descrição condiz com as perspectivas do estudo. Esta teoria afirma que perceber não é uma recepção passiva das representações do que nos é dado de fora para posterior interpretação, mas sim um contato direto com o mundo que toma a forma de envolvimento ativo com as coisas à nossa volta.

Acreditamos que um estudo desta natureza favorece a elaboração de estratégias de redução de danos à saúde, resultantes do consumo de drogas, com ênfase no fortalecimento de fatores protetores; valoriza também o conhecimento prévio dos estudantes sobre o assunto, bem como explora as dúvidas emergentes desse conhecimento.

MÉTODOS

Estudo qualitativo fundamentado na ontologia da experiência de Merleau-Ponty, que descreve a percepção como essência do ser humano - experiência dialógica e intersubjetiva que se exprime como generalidade88 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2015.. O artigo emergiu de um eixo temático de uma dissertação de mestrado intitulada “Percepção de estudantes do ensino fundamental e médio sobre vulnerabilidade e proteção para o uso de drogas”99 De Jesus IS. Percepção de estudantes do ensino fundamental e médio sobre vulnerabilidade e proteção para o uso de drogas [dissertação]. Jequié (BA): Programa de Pós-graduação em Enfermagem e Saúde, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; 2013..

O cenário da pesquisa foi uma escola pública no interior da Bahia, Brasil, onde realizamos o estudo com 14 estudantes da educação básica, especificamente do Ensino Fundamental II e Médio. O procedimento para a aproximação dos participantes do estudo foi mediante a apresentação da proposta em cada sala. Como critérios de inclusão estabelecemos: ser estudante do ensino fundamental e médio de escola pública de ambos os sexos, ter idade entre 12 e 18 anos, estar regularmente matriculado entre o sexto e nono ano do ensino fundamental e primeiro a terceiro ano do ensino médio. O critério de exclusão foi não frequentar a escola com regularidade.

Os estudantes que se disponibilizaram a participar receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que explicava como o estudo seria realizado e seus possíveis desconfortos e benefícios. Os alunos maiores de idade assinavam o termo, aos menores de idade explicávamos que deveriam assinar o Termo de Assentimento Esclarecido, e entregar o TCLE aos seus responsáveis para a consequente autorização. Entre aqueles que assinaram o termo e os que assinaram o Termo de Assentimento e trouxeram a assinatura de seus pais, foi realizado um sorteio na perspectiva de obter pelo menos um aluno de cada série, envolvendo o ensino Fundamental II e Médio.

Utilizamos o Grupo Focal (GF) como estratégia para fomentar a intersubjetividade, pois esta técnica estimula a interação e a comunicação entre as pessoas que estão reunidas, e é mediada por um pesquisador que assume uma postura ativa na produção dos dados1010 Krueger RA, Casey MA. Focus groups: a pratical guide for applied research. 5th ed. Singapore: Sage Publications Asia-Pacific, Inc.; 2015..

Essa técnica de coleta das informações é compatível com a proposta fenomenológica, que concebe a percepção não como uma ocorrência pura, mas que aparece na intersecção de nossas experiências, pela engrenagem de umas nas outras. Deste modo, consiste em um processo intersubjetivo que forma uma unidade coexistencial pela “retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha”(8:18).

Os encontros de GF ocorreram no período de abril a junho de 2013, em dois momentos com duração de, aproximadamente, uma hora e meia, em que foi possível ouvir os estudantes sobre o tema drogas. As falas foram gravadas e os relatos transcritos e, em seguida, analisados por meio da Analítica da Ambiguidade1111 Sena ELS, Gonçalves LHT, Granzotto MJM, Carvalho PAL, Reis HFT. Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Rev Gaúcha Enferm. 2010 dez;31(4):769-75., técnica desenvolvida para estudos que envolvam a percepção humana, considerando que se trata de uma experiência ambígua.

A técnica consiste em identificar e suspender teses que ocorrem à percepção, compreendendo-as como uma vivência ambígua, em que operam, simultaneamente, naturezas distintas: uma que é impessoal e que se impõe a nós, independente de nossa vontade; e outra, que é pessoal e envolve nossos caracteres socioculturais1111 Sena ELS, Gonçalves LHT, Granzotto MJM, Carvalho PAL, Reis HFT. Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Rev Gaúcha Enferm. 2010 dez;31(4):769-75.. Assim, a intersubjetividade com os relatos dos participantes da pesquisa desvelou três teses sobre as drogas, as quais se constituíram em categorias do estudo, a saber: senso comum e conhecimento científico ocupam locus opostos; droga vicia; o bem e o mal das drogas lícitas e ilícitas.

O estudo atendeu os preceitos éticos que orientam as pesquisas científicas com seres humanos1212 Ministério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União [da] República Federativa do Brasil. 2013 jun 13;150 (112 Seção 1):59-62., sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia sob o protocolo de nº 054976/2012.

Para identificar as falas dos participantes e resguardar o anonimato, os identificamos com nomes de pintores do movimento impressionista, que consistiu na ruptura com a lógica da arte pitoresca francesa do século XIX, valorizou a criação de efeitos óticos de luz e sombra, aspecto ressonante na obra de Merleau-Ponty, ao considerar que o mundo sempre se apresenta para nós em perfil, como em uma relação figura-fundo, em que o desvelar da figura vela o fundo e o desvelar do fundo pode revelar inúmeras figuras88 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2015..

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados encontrados nessa pesquisa nos levaram a elaboração de três categorias, que não se findam em si mesmas, mas abrem possibilidades para novas compreensões a cada leitura, sendo elas: Senso comum e conhecimento científico ocupam locus opostos; Droga vicia e; o Bem e o mal das drogas lícitas e ilícitas.

Senso comum e conhecimento científico ocupam locus opostos

A discussão das narrativas dos estudantes sobre drogas teve como ponto de partida o objetivo do estudo, e se estendeu pela articulação entre as teses percebidas nos fragmentos de falas, os estudos que versam sobre o tema drogas, e o referencial filosófico de Maurice Merleau-Ponty. Esse diálogo possibilitou a experiência de tornar-nos outro, fazendo emergir a discussão entre os locus opostos do senso comum e do conhecimento científico.

Na discussão dos estudantes no Grupo Focal 1 sobre o que concebiam como droga, as substâncias apontadas foram as seguintes:

Maconha, cocaína, LSD, ecstasy. (Claude Monet)

Alguns remédios, que é feito de drogas, álcool. (Edouard Manet)

Tudo é droga, né professora? (Edgar Degas)

Até o café né. (Auguste Renoir)

Até o café mesmo é droga, que contém cafeína. (Alfred Sisley)

Coca-cola também é uma droga sabia? (Camille Pissarro)

51, conhaque, potinho de duelo. (Eliseu Visconti)

Whisky. (Almeida Júnior)

Cerveja, coca... (Timótheo da Costa)

Todo tipo de bebida que contém álcool, é uma droga. (Henrique Cavaleiro)

A discussão dos estudantes superou nossas expectativas em relação ao conhecimento deles sobre o tema, particularmente no que concerne a identificação de alguns subtipos de drogas que, culturalmente são aceitas, a despeito de, em nosso cotidiano, o termo droga ser estreitamente relacionado às substâncias ilícitas.

Desse modo, as descrições corroboraram com o conceito farmacológico de droga como, “substância que, quando administrada ou consumida por um ser vivo, modifica uma ou mais de suas funções, com exceção daquelas substâncias necessárias para a manutenção da saúde normal”11 Fiore M. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Novos Estud CEBRAP. 2012 mar; 92 9-21.. Eles reconheceram o potencial que drogas lícitas, a exemplo dos medicamentos e do café, consumidas pela maioria das pessoas, têm ao agir sobre o organismo humano e suas funções. Também, reconhecem que a tradição sociocultural ignora este potencial.

A percepção dos estudantes favorece a suspensão da tese que situa o saber científico e o do senso comum em locus opostos, como se fossem em si mesmos campos do saber separados. A academia que, convencionalmente, produz e detêm o conhecimento científico, subestima as potencialidades do senso comum de compartilhar, a partir da coexistência, o saber discutido nesses ambientes. No entanto, por conta da globalização da informação, acaba existindo por parte da população a tendência de assimilação do discurso científico. Da mesma forma, a tradição do conhecimento científico faz perceber que foi o senso comum que mobilizou e continua a fazer o homem produzir ciência.

Além disso, o pensamento fenomenológico traz à luz a limitação da ciência de representar o mundo por completo, ao ponto de fechar-se em si mesma, e encerrar todos os questionamentos para além dela. Portanto, é a própria ciência que nos impõe o desafio de reformulá-la, de modo que sempre há algo a ser produzido, pois não existem limites à observação e podemos imaginá-la mais completa e mais exata do que a efetuada em determinado momento1313 Merleau-Ponty M. Conversas - 1948. São Paulo: Martins Fontes; 2004. .

Sendo assim, a ciência já existente e o conhecimento já produzido, nos interroga e nos conduz à percepção de um impensado que abre possibilidades à construção de novos saberes. É a partir do já produzido que temos algo para produzir, e sobre este, dizer alguma coisa1414 Merleau-Ponty M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify; 2002..

Torna-se relevante destacar o diálogo entre o cientista e o senso comum na produção e difusão de conhecimentos sobre as drogas, uma vez que esse compartilhamento constitui-se elemento protetor no contexto do uso prejudicial. A discussão fomentada com os estudantes sustentam essa afirmação, pois, ao tratarmos sobre as estratégias de prevenção do uso de drogas, no Grupo Focal 2 eles consideraram o seguinte:

Dialogar[...] (Auguste Renoir)

A realidade, saber o que é que a pessoa ta vivendo. (Henrique Cavaleiro)

Palestra, tipo depoimento. (Edouard Manet)

Quando uma pessoa tá numa palestra, que vê o que foi que aquela pessoa que tá falando já passou, aí já começa a botar na mente: ó, ele está falando aí e eu to passando pela mesma coisa, na mente dele: “rapaz, eu também to passando por isso, e por isso essa mulher ta falando essa coisa assim”. Aí ela vai pensar... (Edgar Degas)

Diálogo... (Timótheo da Costa)

Conversando, dando conselho. (Claude Monet)

Orientando. (Almeida Júnior)

Incentivando para não fazer isso. (Vicente do Rego Monteiro)

Sentar, conversar[...] (Auguste Renoir)

Sendo assim, o potencial de proteção emerge da produção do conhecimento em parceria com os adolescentes, pois eles consideram mais eficientes as estratégias dialógicas e interativas, porque favorecem a reflexão e o julgamento crítico. Por conseguinte, os programas preventivos que se limitam, meramente, a transmitir informações, são considerados sem valor e criticados pela maioria dos adolescentes pelo fato de não contemplarem os aspectos humanos em sua integralidade1515 Zeitoune RCG, Ferreira VS, Silveira HS, Domingos AM, Maia AC. O conhecimento de adolescentes sobre drogas lícitas e ilícitas: uma contribuição para a enfermagem comunitária. Esc Anna Nery. 2012 jan-mar;16(1):57-63..

Além disso, como os estudantes preferem informar-se sobre a temática das drogas com os amigos, pais, professores, e profissionais especialistas no assunto, quanto mais informadas as pessoas estiverem, maiores as chances de divulgarem conteúdos coerentes e relevantes1616 Rocha FM, Vargas D, Oliveira MAF. Cuidar de dependentes de substâncias psicoativas: percepções dos estudantes de enfermagem. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(3):671-7..

É importante salientar que a escuta de depoimentos de pessoas que já se envolveram com drogas de maneira prejudicial - destacando o fato de terem conseguido retomar suas vidas sem o comprometimento, devido à relação que estabeleceram com a substância, foi apontada como elemento protetor pelos estudantes. Isso já havia sido sinalizado em estudo que traz a percepção de estudantes de enfermagem sobre o cuidar de dependentes de substancias psicoativas, em que a interação com os mesmos os fizeram quebrar certos preconceitos e proporcionou a percepção ampliada do problema como um fenômeno complexo, cuja atenção não se deve apenas ao indivíduo, mas também a família, o contexto socioeconômico e cultural em que essas pessoas estão inseridas1717 Organização Mundial da Saúde. Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artmed; 1993..

O contexto preventivo que valoriza o diálogo e a interação ressoa na filosofia merleau-pontyana, cujo entendimento sobre a produção do conhecimento é de que ela ocorre no contexto da relação, o que equivale a dizer que se trata de uma construção intersubjetiva e, como tal, não tem um locus definido, mas transita na intersecção entre o “nós”88 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2015..

Na relação dialógica, a fala do outro não apenas convida-nos à retomada de falas faladas, mas, também, arrasta-nos a um movimento de ideias, o qual seríamos incapazes de fazê-lo sozinho88 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2015.. Este movimento, finalmente, abre-nos a significações estranhas. “É preciso assim que eu admita, aqui, que não vivo somente meu próprio pensamento, mas que, no exercício da fala, me torno aquele que escuto”(1:41). Ao passo em que nos ocorre a produção desse conhecimento, outra tese nos é apresentada durante a pesquisa e que nos leva para novas discussões, tão relevantes e não menos importante quanto esta.

Droga vicia

Durante as discussões realizadas no Grupo Focal 1, emergiu a tese socioculturalmente construída e defendida ao longo dos anos, inclusive por profissionais da saúde, de que drogas são substâncias capazes de gerar “vício” (hábito repetitivo, dependência). Quando problematizamos sobre qual o critério que eles achavam que era utilizado para considerar uma substância como droga surgiram os seguintes comentários:

Ela deixa a pessoa com vício. (Edgar Degas)

Vicia e causa sequelas, como dor de cabeça; a pessoa fica com mal- estar, quando fica sem tomar, passa mal. (Camille Pissarro)

Tem uns deles que são tão viciados que, quando vai usar um tipo de droga, eles inventam outra droga pra poder usar. (Eliseu Visconti)

Os estudantes enfatizam que as drogas, além de viciar, produzem danos à saúde, sobretudo à saúde física e “causa sequela”. Esta concepção fortalece as teorias que enfocam a questão da dependência química e o potencial de abuso referente às substâncias psicoativas, que consistem numa doença crônica e multicausal comumente associados a danos à saúde e relacionados a comportamento sexual de risco, e envolvimento com episódios de violência e acidentes55 Malta DC, Machado IE, Porto DL, Silva MMA, Freitas PC, Costa AWN, et al. Consumo de álcool entre adolescentes brasileiros segundo a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE 2012). Rev Bras Epidemiol. 2014;17(Supl. 1):203-14.. As falas apresentam a noção de que as drogas têm efeito sobre o sistema nervoso central e podem produzir modificações no psiquismo, ou seja, elas são substâncias psicoativas. Utilizaram o termo droga, que é genérico, a fim de identificar as drogas psicotrópicas como aquelas que possuem um tropismo pela psique1717 Organização Mundial da Saúde. Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artmed; 1993..

Assim, os resultados apontam a valorização do biológico em detrimento das demais dimensões que se entrelaçam na constituição da experiência humana. Trata-se de uma visão ingênua do fenômeno das drogas, que não inclui os contextos subjetivos do sofrimento psíquico e social. A figura dos danos físicos, que o abuso de drogas pode gerar, destaca-se sobre o fundo em que se perfilam outros danos decorrentes do campo psicossocial1515 Zeitoune RCG, Ferreira VS, Silveira HS, Domingos AM, Maia AC. O conhecimento de adolescentes sobre drogas lícitas e ilícitas: uma contribuição para a enfermagem comunitária. Esc Anna Nery. 2012 jan-mar;16(1):57-63..

Ainda na discussão do Grupo Focal 1, percebemos que ainda ecoa outras teses reproduzidas em nossa cultura sobre o conceito de droga, historicamente tratada como um dos piores flagelos da humanidade ou um fantasma que ronda o mundo. Estas teses podem ter favoreceram o surgimento do estigma em relação à substância e aos usuários, gerando sofrimento que assume contornos biopsicossociais1818 Feliz CB, Vianna ACF. O preconceito e o estigma na cobertura midiática sobre drogas no Rio de Janeiro. Contemporânea. 2015;13(3):566-81..

Uma vez que o termo droga assumiu um significado mais abrangente do que aquele adotado pela OMS - estendendo o seu sentido para tudo que é ruim, sem qualidade, e que prejudica a saúde - vem evocando sentimentos negativos como medo, sensação de perigo, marginalização e criminalidade1919 Bard ND, Antunes B, Roos CM, Olschowsky A, Pinho LB. Estigma e preconceito: vivência dos usuários de crack. Rev Latino-Am Enfermagem. 2016; 24:e2680.. A percepção de que a droga em si mesma pode viciar e causar danos à saúde física aparece durante a discussão principalmente a partir das expressões:

Álcool também vicia. (Claude Monet)

[...] agora, a tal da pedra, ela é miserável mesmo. A pedra não tem esse que fala assim ó “ah vou fumar só uma vez e vou ficar ali naquilo”. Não, enquanto ela não vê você com a cabeça feita mesmo, ela não sossega. (Edgar Degas)

No entanto, à substância psicoativa em si mesma não se deve atribuir juízo de valor, como sendo boa ou má, sobretudo se considerarmos que uma mesma droga pode funcionar como medicamento e, como um tóxico2020 Trad S. Controle do uso de drogas e prevenção no Brasil: revisitando sua trajetória para entender os desafios atuais. In: Nery Filho A, MacRae E, Tavares LA, Nuñez ME, Rêgo M, organizadores. As drogas na contemporaneidade: perspectivas clínicas e culturais. Salvador: EDUFBA; 2012. p. 97-112.. Ademais, as drogas agem de maneira singular em cada organismo, não sendo possível determinar suas reais consequências, já que os efeitos e os danos decorrentes do uso de substâncias são condicionados ao início do consumo, frequência, quantidade, estado físico, mental e social2020 Trad S. Controle do uso de drogas e prevenção no Brasil: revisitando sua trajetória para entender os desafios atuais. In: Nery Filho A, MacRae E, Tavares LA, Nuñez ME, Rêgo M, organizadores. As drogas na contemporaneidade: perspectivas clínicas e culturais. Salvador: EDUFBA; 2012. p. 97-112..

Quando se considera a droga como sendo em si mesma, ignorando a relação que o consumidor estabelece com ela, rotula-se a substância como culpada. Assim, subestima-se o fato de que os possíveis danos à saúde no sentido integral provêm do vínculo que o usuário estabelece com a substância e as consequências daí decorrentes. Às vezes esse vínculo é tão estreito que passa a ser priorizado, em detrimento das inúmeras possibilidades de autorrealização. Nesse sentido, há que se deslocar o foco das substâncias para os grupos de consumidores e os contextos em que ocorrem a inserção e a permanência no universo das drogas para a dinâmica de seu consumo2020 Trad S. Controle do uso de drogas e prevenção no Brasil: revisitando sua trajetória para entender os desafios atuais. In: Nery Filho A, MacRae E, Tavares LA, Nuñez ME, Rêgo M, organizadores. As drogas na contemporaneidade: perspectivas clínicas e culturais. Salvador: EDUFBA; 2012. p. 97-112..

O contexto cultural de combate às drogas reforça a ambiguidade vivenciada pelo usuário. Não obstante, a tradição em propagar que o uso de drogas “faz mal” - na relação que o usuário estabelece com a droga e o próprio contexto em que ocorre esse uso, muitas vezes em eventos sociais, em ambientes de interação com os amigos - proporciona uma experiência positiva de abertura a novas relações, fortalecimento de vínculos de amizade, e até mesmo construção de novas redes sociais. Assim, falar do uso de drogas não é falar apenas de uma questão biológica, é falar de um indivíduo integral, para o qual as drogas possuem uma representação específica1616 Rocha FM, Vargas D, Oliveira MAF. Cuidar de dependentes de substâncias psicoativas: percepções dos estudantes de enfermagem. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(3):671-7..

Além do mais, o fenômeno da dependência não é intrínseco à química em si, mas envolve também, e de forma bastante entrelaçada, os contextos psicológicos e sociais que mobilizam constantemente uma infinidade de possibilidades àqueles que usam drogas. Destas, a substância constitui apenas uma obscuridade necessária à clareza que fará ver as figuras que se destacam no horizonte da vida.

Essa percepção abre possibilidade para repensarmos as convicções que nos engessam e não nos permitem perceber o fundo - experiência ressignificada pelo consumo da droga - que se apresenta na figura da substância em si. Pois, as condutas humanas arrastam consigo um fundo de existência, que estão sempre em movimento e resultam da relação que estabelecem com os outros e com as coisas que despertam nossos sentimentos e revestem-nos de humanidade1313 Merleau-Ponty M. Conversas - 1948. São Paulo: Martins Fontes; 2004. .

A despeito da percepção sobre a droga elaborada nesta categoria, daremos sequencia à dualidade existente nesse contexto, que ora se apresenta como ambígua e se entrelaça, ora se apresenta como tese e se distancia.

O bem e o mal das drogas lícitas e ilícitas

Não obstante, o uso de drogas acompanhar a história da humanidade, a proibição e regulamentação do uso de substâncias que alterem as funções psíquicas, bem como sua classificação quanto a licitude, a chamada “guerra contra as drogas” é incomparavelmente mais recente, sustentadas em argumentos tendenciosos que desconsideram ou rejeitam bases científicas sobre o assunto, geralmente influenciados por argumentos políticos de interesses escusos1818 Feliz CB, Vianna ACF. O preconceito e o estigma na cobertura midiática sobre drogas no Rio de Janeiro. Contemporânea. 2015;13(3):566-81..

Tal contexto contribuiu para a construção do juízo de valor sobre determinadas drogas no qual as substâncias consideradas lícitas são percebidas como boas ou menos prejudiciais, enquanto que as ilícitas são demonizadas e consideradas um grande mal que precisa ser combatido veementemente. A discussão realizada no Grupo Focal 1 refletem a naturalização da convicção social geradora da tese de que droga lícita é boa e droga ilícita é má:

[...] é mais prejudicial [drogas ilícitas]. (Henrique Cavaleiro)

O álcool, eu acho que é diferente, eu acho que o álcool só faz mal se a pessoa consumir muito. É que nem a droga também. (Timótheo da Costa)

Como é que vai liberar esse tipo de droga [ilícita] se é uma coisa que faz mal? Não pode existir. (Camille Pissarro)

A tese de que as drogas ilícitas são mais prejudiciais que as lícitas alienam as pessoas ao ponto dos estudantes acreditarem que as drogas lícitas, por serem socialmente aceitas, não trazem tantos problemas quanto às drogas ilícitas. Isso acontece, sobretudo, em relação ao álcool, visto que a mídia e a sociedade estimulam o consumo, seja com propagandas associadas à riqueza, humor, sucesso e ao prestígio, ou através da estreita relação da substância com momentos festivos e de confraternização1515 Zeitoune RCG, Ferreira VS, Silveira HS, Domingos AM, Maia AC. O conhecimento de adolescentes sobre drogas lícitas e ilícitas: uma contribuição para a enfermagem comunitária. Esc Anna Nery. 2012 jan-mar;16(1):57-63..

Nesse sentido, compreende-se que a permissividade e complacência em relação às drogas lícitas parecem garantir o investimento da mídia em propagandas que supervalorizam essas substâncias; ao mesmo tempo, a ilegalidade da droga a desprestigia, pois é associada a condutas criminosas que são rejeitadas socialmente. Tal imagem, muitas vezes, descentra o olhar para o lucro, que se apresenta como o fundo da conduta. Desta forma, o retorno financeiro para o mercado legal perfila os danos reais e potenciais à saúde pública que o consumo abusivo da droga lícita pode acarretar1818 Feliz CB, Vianna ACF. O preconceito e o estigma na cobertura midiática sobre drogas no Rio de Janeiro. Contemporânea. 2015;13(3):566-81..

Os prejuízos originados pelo consumo excessivo de substâncias lícitas, principalmente no que refere ao álcool, são legitimados pela própria lei ao torná-lo legal. Esta legitimação não é do ponto de vista da permissão para o consumo, mas da aprovação como comportamento autenticado culturalmente. E quando nos referimos à lei não consideramos apenas a normatização, mas a própria construção social e, segundo a filosofia merleau-pontyana, é a pessoalidade, ou seja, são nossas tradições culturais que legitimam a tese da bondade das substâncias lícitas88 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2015..

Todavia, a depender do padrão de uso, todas as drogas podem causar sérios problemas à vida, mas, também podem contribuir para melhorar a saúde em algumas situações. Tal compreensão apareceu na discussão do Grupo Focal 1 do seguinte modo:

Porque tem umas [drogas] que são usadas para algumas doenças também. A maconha, tem gente que fuma para se acalmar, problemas de coração, alguma coisa assim[...] (Eliseu Visconti)

Mas maconha também ajuda em algumas doenças, não é? (Alfred Sisley).

A percepção de que algumas drogas têm potencial para contribuir com a saúde, não apenas no aspecto psíquico, mas físico, permite a suspensão da tese que atribui juízo de valor à ação das drogas no organismo. Como, por exemplo, a compreensão de que as drogas em si mesmas não são más ou boas, elas são substâncias químicas que, introduzidas no organismo, produzem um efeito. Nesse sentido, o foco das políticas públicas não deve ser o combate à droga, mas o ser humano, que busca a interação com ela. O que precisa ser feito é evitar que as pessoas se coloquem e ponham outras em risco enquanto usam droga e, reduzir os danos que não foram possíveis evitar.

O conflito entre legalizar ou não, opacifica o que deve ser iluminado em termos de proteção à vida, qual seja, a superação dos modelos normativo e patológico em relação ao fenômeno da droga e o reconhecimento da intersubjetividade, sujeito em contexto do uso de drogas. Logo, é imprescindível reconhecermos a ambiguidade social que recrimina o uso de algumas substâncias e legaliza outras, utilizando-se de argumentos racionais e simplistas que sintetizam a questão à saúde física e jurídica, ignorando os aspectos afetivos e emocionais envolvidos, bem como as informações e posições contraditórias entre profissionais de saúde sobre o assunto1919 Bard ND, Antunes B, Roos CM, Olschowsky A, Pinho LB. Estigma e preconceito: vivência dos usuários de crack. Rev Latino-Am Enfermagem. 2016; 24:e2680..

Para tanto, faz-se necessário superar alguns desafios como: as tensões entre os setores governamentais de saúde, justiça e segurança pública, e pensar a questão como um complexo intersetorial; as vulnerabilidades e desigualdades sociais e, sobretudo, a tolerância social e jurídica do uso abusivo das drogas legais, principalmente do álcool, subestimando as drogas legais e superestimando as ilegais2020 Trad S. Controle do uso de drogas e prevenção no Brasil: revisitando sua trajetória para entender os desafios atuais. In: Nery Filho A, MacRae E, Tavares LA, Nuñez ME, Rêgo M, organizadores. As drogas na contemporaneidade: perspectivas clínicas e culturais. Salvador: EDUFBA; 2012. p. 97-112..

A superação da dicotomia bem/mal em relação às drogas deve ser extrapolada na mesma medida daquela relativa ao lícito/ilícito, pois o combate às drogas construída com base nessa diferença tentou resolver um problema complexo - formado por inúmeros componentes conectados uns aos outros, que tendem a consequências inesperadas - com uma medida simples, que só faz sentido para problemas que têm causas e consequências previsíveis.

Considerando que investir contra um sistema complexo, com muita força, potencializa as consequências inesperadas, o modelo proibicionista das drogas é incompatível com o modo singular de ser do homem em comunidade no mundo. Essa condição de ser com o outro gera uma “vulnerabilidade existencial”, impossível de ser modificada. Assim, qualquer abordagem preventiva que tenha como princípio fundamental, erradicar o uso de drogas está fadada ao fracasso1919 Bard ND, Antunes B, Roos CM, Olschowsky A, Pinho LB. Estigma e preconceito: vivência dos usuários de crack. Rev Latino-Am Enfermagem. 2016; 24:e2680..

Somente quando nos questionamos sobre a licitude das drogas é que refletimos sobre como a cultura lida de forma maniqueísta com elas. Também, é só através da reflexão e da intersubjetividade que conseguiremos retomar as tradições de maneira crítica, para transcendermos em direção a uma cultura que supere o bem/mal do lícito/ilícito, valorizar a vida e as relações e diminuir os danos causados pelo uso abusivo que fazemos de drogas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo possibilitou desvelar a percepção de estudantes do ensino fundamental e médio sobre drogas, fundamentada em Maurice Merleau-Ponty, organizada a partir das categorias: senso comum e conhecimento científico ocupam locus opostos; droga vicia; o bem e o mal das drogas lícitas e ilícitas. Tais categorias favoreceram a compreensão da necessidade de maior diálogo com a população na qual pretendemos apresentar políticas preventivas, utilizando os saberes que já circulam e são produzidos para fomentar reflexões e ações contextualizadas; a necessidade de deslocarmos nosso olhar da substância para as pessoas em vulnerabilidade e seus contextos; a superação da dicotomia de bem/mal, lícito/ilícito em relação às drogas, ponderando questões sociais, políticas, legais e mercadológicas que as envolvem.

Acreditamos que a filosofia de Merleau-Ponty foi bastante relevante para a compreensão das narrativas dos participantes do estudo em relação às drogas, pois possibilitou desvelar teses importantes em relação ao tema que podem servir de para construção de estratégias de prevenção mais reflexivas, no âmbito da gestão e da assistência, que permitam aos gestores, profissionais de saúde e até mesmo de educação, uma compreensão mais próxima da realidade desses sujeitos, sobretudo, adolescentes em contexto escolar, para fazerem repensar o lugar da droga na história das pessoas.

Discutir com os estudantes utilizando metodologia grupal ao mesmo tempo em que despertou o diálogo nos deu a sensação de que muito ainda falta ser desvelado e que esse “não dito”, talvez esteja relacionado à construção histórica e social estigmatizadora diante do tema, às idiossincrasias dos estudantes que podem não ter colocado alguma mais pessoal.

Apesar de ter alcançado o objetivo proposto, apontamos como limitação do estudo a escassez de publicações relacionadas à temática, tendo como fundamento teórico a fenomenologia, o que, de certa forma, comprometeu a sustentação dos resultados desvelados, mediante o aprofundamento do diálogo com outros estudiosos do assunto. A pesquisa e anuncia a necessidade de elaborar novos estudos, a fim de ampliar a discussão sobre o tema.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    26 Maio 2016
  • Aceito
    01 Jun 2017
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