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Representações sociais de pessoas usuárias da Atenção Primária à Saúde sobre violência: estudo de gênero

RESUMO

Objetivo:

Analisar a estrutura e os conteúdos das representações sociais das pessoas usuárias da atenção primária à saúde sobre violência.

Método:

Estudo qualitativo fundamentado na Teoria das Representações Sociais, realizado nas unidades de saúde de Rio Grande com 150 pessoas entre janeiro e abril de 2019 por meio de evocações livres e entrevistas, tratadas por software e análise contextual, respectivamente.

Resultados:

Violência contra pessoas, violência, violência física, dependência de substâncias e assalto formaram a representação no núcleo central. As pessoas representaram a violência como a interpessoal, incluindo intrafamiliar e urbana. Às mulheres foi relacionada a violência doméstica e o exercício da violência verbal, enquanto nos homens houve maior relação com a violência urbana e uso da violência física.

Considerações finais:

Por meio da representação social da violência, torna-se possível a reflexão sobre a temática no cenário da atenção primária à saúde, contribuindo para a elaboração de estratégias e ações direcionadas.

Palavras-chave:
Violência; Atenção primária à saúde; Estratégia saúde da família; Gênero e saúde; Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

To analyze the structure and content of social representations about violence by primary health care users.

Method:

Qualitative study based on the Theory of Social Representations, carried out in Rio Grande health units with 150 people between January and April 2019 by applying free evocations and interviews, which were treated by using software and contextual analysis, respectively.

Results:

Violence against people, violence, physical violence, substance dependence, and robbery made up the representation in the central core. People represented violence as interpersonal, including intrafamily and urban. Women were related to domestic violence and the exercise of verbal violence, while men were more closely related to urban violence and the use of physical violence.

Final considerations:

Obtaining the social representation of violence makes it possible to reflect on the subject in the primary health care scenario, contributing to the development of strategies and targeted actions.

Keywords:
Violence; Primary health care; Family health strategy; Gender and health; Nursing

RESUMEN

Objetivo:

Analizar la estructura y el contenido de las representaciones sociales de las personas que utilizan la atención primaria de salud sobre la violencia.

Método:

Estudio cualitativo basado en la Teoría de las Representaciones Sociales, realizado en las unidades de salud de Rio Grande con 150 personas entre enero y abril de 2019 por medio de evocaciones libres y entrevistas, tratadas por software y análisis contextual, respectivamente.

Resultados:

La violencia contra las personas, la violencia, la violencia física, la dependencia de substancias y el asalto formaron la representación en el núcleo central. Las personas representaban la violencia como interpersonal, incluida intrafamiliar y urbana. Las mujeres estaban relacionadas con la violencia doméstica y el ejercicio de la violencia verbal, mientras que los hombres estaban más estrechamente relacionados con la violencia urbana y el uso de la violencia física.

Consideraciones finales:

A través de la representación social de la violencia, se hace posible reflexionar sobre el tema en el escenario de atención primaria de salud, contribuyendo al desarrollo de estrategias y acciones específicas.

Palabras clave:
Violencia; Atención primaria de salud; Estrategia de salud familiar; Género y salud; Enfermería

INTRODUÇÃO

A etiologia da violência envolve múltiplas causas, uma interação entre condições biológicas, ambientais, históricas, psicológicas e sociais que atuam como fonte de riscos ou de proteção da sua ocorrência. Também as questões de gênero desempenham papel fundamental na produção de prejuízos à saúde. Entende-se por gênero a construção social do masculino e do feminino, constituído por símbolos, normas e instituições que legitimam modelos de masculinidade/feminilidade e padrões de comportamento, aceitáveis ou não para homens e mulheres11. Scott J. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Maria Ávila and Cristine Dabatt, translators. Recife: SOS Corpo; 1991 [cited 2019 Jul 15]. Available from: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/185058/mod_resource/content/2/G%C3%AAnero-Joan%20Scott.pdf
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. O movimento tradicionalista gaúcho, construído a partir de valores patriarcais, é um exemplo desse modelo de comportamento construído e aceito, ao associar a força a eles e a delicadeza ou cuidado a elas22. Henriques MN, Lisboa Filho FF. Identidade e gênero: representações femininas nos programas televisivos Bah!. Cad Gên Divers. 2017;3(3):58-71. doi: https://doi.org/10.9771/cgd.v3i3.23658
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.

As consequências da violência, quando não fatal, envolvem ferimentos, depressão, ansiedade, estresse pós-traumático, isolamento social, alteração no sono, padrão alimentar inadequado e uso abusivo de drogas e medicamentos. Dessa forma, a violência gera sobrecarga nos sistemas de saúde e de justiça criminal e, consequentemente, um impacto na economia, ao considerar o absenteísmo, tal como a perda de produtividade e de capital humano33. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, editors. World report on violence and health. Geneva: WHO; 2002 [cited 2019 Jul 14]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42495/9241545615_eng.pdf;jsessionid=89BA615EB0045917DE63F4491F73E466?sequence=1
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-44. Organização Mundial da Saúde (CH). Relatório mundial sobre a prevenção da violência 2014. São Paulo: USP; 2015 [cited 2019 Jul 15]. Authorized translation. Available from: http://nevusp.org/wp-content/uploads/2015/11/1579-VIP-Main-report-Pt-Br-26-10-2015.pdf
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. Além disso, a violência não atinge somente a vítima, mas também quem convive com ela, calcula-se que para cada homicídio sete a dez familiares, aproximadamente, sem contar amigos ou vizinhos, são afetados profundamente pela perda traumática55. Costa DH, Njaine K, Schenker M. Repercussions of homicide on victims’ families: a literature review. Ciênc Saúde Coletiva. 2017;22(9):3087-97. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232017229.18132016
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Dessa forma, considerando a complexidade da violência, deve-se articular os diversos setores e serviços da sociedade. Na área da saúde, a Atenção Primária à Saúde, mais especificamente a Estratégia Saúde da Família (ESF), se caracteriza como uma importante ferramenta de detecção e prevenção das situações de violência devido ao acesso privilegiado aos usuários de saúde por meio de um conjunto de ações que abrangem a promoção, a proteção e a prevenção de agravos, desenvolvendo uma atenção integral que impacte positivamente nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades66. Brazilian Ministry of Health. Decree no. 2,436, of September 21, 2017, which addresses the Brazilian National Primary Care Policy, establishing the review of guidelines to organize primary care in the context of the Brazilian Unified Health System. Brasília; 2017 [cited 2018 Oct 31]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html
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Apesar da constatação de que a violência faz parte de como o masculino se constrói na sociedade, não se deve fixar em estereótipos, mas sim retirar o homem da condição de agressor e violento, bem como a mulher de frágil e passiva. Assim, para mudar a forma como a violência é naturalizada se torna fundamental entender o que as pessoas representam por violência. Neste sentido, a Teoria das Representações Sociais permite a compreensão do conhecimento consensual, isto é, as noções apreendidas e compartilhadas em casa, na rua, na escola ou nos meios de comunicação, responsáveis pela produção das representações sociais, bem como possibilita a sua ressignificação, buscando compreender o raciocínio, a lógica empregada na construção de determinada representação77. Moscovici S. On social representations. In: Forgas JP. Social cognition: perspectives on everyday understanding. New York: Academic Press; 1981. p. 181-209. .

Acredita-se que conhecer a representação social das pessoas usuárias da ESF acerca da violência contribuirá para a compreensão dos determinantes de riscos ou de proteção sobre o fenômeno, bem como as relações de gênero existentes. Ainda, a partir dessa representação, entende-se que será possível pensar e propor estratégias viáveis para a desnaturalização e prevenção da violência, considerando a realidade das pessoas usuárias da ESF. Assim, essa pesquisa tem como questão norteadora: qual a estrutura e os conteúdos das representações sociais das pessoas usuárias da Atenção Primária à Saúde sobre violência? Dessa forma, objetiva-se: analisar a estrutura e os conteúdos das representações sociais das pessoas usuárias da Atenção Primária à Saúde sobre violência.

MÉTODO

Pesquisa descritiva, com abordagem qualitativa, fundamentada na Teoria das Representações Sociais, a qual possui força suficiente para alimentar as práticas culturais em vigor, perpetuando-as ou transformando-as77. Moscovici S. On social representations. In: Forgas JP. Social cognition: perspectives on everyday understanding. New York: Academic Press; 1981. p. 181-209. . Atualmente, no município de Rio Grande/RS, existem 25 unidades de saúde vinculadas à ESF, denominadas como Unidades Básicas Saúde da Família (UBSF).

Assim, todas as 25 UBSF fizeram parte da pesquisa, através de duas técnicas, evocações livres e entrevistas. A técnica das evocações livres consistiu em solicitar aos participantes que referissem as cinco primeiras palavras que viessem à mente frente ao termo indutor “violência”. Enquanto a entrevista contou com o apoio de um roteiro semiestruturado elaborado especificamente para este estudo, com perguntas abertas norteadoras, das quais citam-se: Para você, qual o significado de violência? Quais fatores levam a sua ocorrência? Já enfrentou/presenciou alguma situação de violência? Como a violência acomete homens e mulheres? Como a unidade de saúde pode contribuir para a prevenção? Entre outras.

A coleta de dados ocorreu entre janeiro e abril de 2019, convidando-se para a técnica das evocações seis pessoas usuárias que buscaram espontaneamente a unidade, mantendo-se a igualdade de três homens e três mulheres, totalizando 150 pessoas. Para as entrevistas, escolheu-se, intencionalmente, oito unidades com maior demanda, sendo quatro unidades urbanas, duas rurais e duas litorâneas, convidando-se 32 pessoas das 150 já participantes da primeira etapa, mantendo-se a igualdade de dois homens e duas mulheres. Acrescenta-se que as pessoas usuárias foram convidadas a participar após terem suas necessidades atendidas na UBSF, na sala de espera, sem prejuízo destas com o acesso aos serviços da unidade.

Os critérios de inclusão foram pessoas usuárias da ESF com idade igual ou superior a 18 anos que não possuíam limitações cognitivas de fala, compreensão e audição. Enquanto os critérios de exclusão foram todas as pessoas usuárias da ESF, não brasileiras, que tenham buscado a unidade de saúde em situação de emergência. Após o convite, o participante expressou o aceite assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A etapa das evocações teve duração média de cinco a dez minutos, enquanto o tempo médio das entrevistas foi de 30 minutos.

Em cada uma das UBSF foi solicitado uma sala para realizar a coleta de dados de ambas as etapas, em local livre de ruídos e interferências. A entrevista foi gravada (em áudio) após o consentimento dos participantes. Preservando-se o compromisso com a sua confidencialidade e o seu anonimato, os participantes foram identificados pela inicial “P” de “Pessoas”, seguido do número da ordem de realização da entrevista (P1, P2, P3...), além da caracterização se sexo Feminino (F) ou Masculino (M).

Para a análise das evocações, criou-se um dicionário de padronização para as palavras e expressões evocadas e após se utilizou o software Ensemble de Programmes Permettant L´Analyse des Evocations 2005 (EVOC). Esse programa permite a organização das palavras conforme a frequência e ordem de evocação para a construção do quadro de quatro casas, formado pelo Núcleo Central (NC), contraste, primeira e segunda periferia. A partir das palavras constantes nos quadrantes, foi realizada a Análise Contextual proposta por Bardin, a qual se baseia em buscar nas entrevistas o contexto das palavras presentes no quadro de quatro casas, trabalhando com a palavra de forma a produzir inferências e interpretações do conteúdo da comunicação88. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, obtendo o parecer número 264/2018.

RESULTADOS

As 150 pessoas participantes do estudo tinham entre 18 e 79 anos. A cor/raça autodeclarada que predominou foi branca (56,6%), seguida de negra (40,6%). Quanto a orientação sexual, 97,3% dos participantes se declararam heterossexuais. A maioria possuía nível fundamental de escolaridade (50,6%) e 50% estavam empregadas. Também a maior parte dos indivíduos possuíam um companheiro(a), residindo na maioria das vezes com o (a) mesmo (a) (67,3%), sendo de um (24,6%) a dois filhos (28,6%) a média mencionada.

O corpus formado pelas evocações das pessoas usuárias da ESF frente ao termo indutor “violência”, totalizou 668 palavras, sendo 73 diferentes. Em uma escala de um a cinco, a média da Ordem Média de Evocação (OME ou RANG) foi 2,8, a frequência mínima 11, a frequência média 24 e o aproveitamento do corpus foi de 71,6%. A análise desse conjunto de dados resultou no quadro de quatro casas (Quadro 1).

Quadro 1 -
Quadro de quatro casas formado pela evocação das pessoas usuárias das UBSF frente ao termo indutor “violência”. Rio Grande, RS, Brasil, 2019

Os termos mais frequentes e mais prontamente evocados (menor rang) compõem o núcleo central, caracterizado por ser mais estável e resistente a mudanças. Localizado no quadrante superior esquerdo, o núcleo da representação foi composto pelos termos violência contra pessoas, violência, violência física, dependência de substâncias e assalto.

Destacou-se a expressão “violência contra pessoas” que foi evocada 86 vezes, sendo a mais frequente, porém a última na ordem de evocação (rang 2,779), abrangendo violência contra crianças, mulheres, homossexuais e idosos. O termo “violência” foi o mais prontamente evocado (rang 2,037) e o segundo mais frequente (54), compreendendo situações de abuso, agressão, briga e maus-tratos. Por sua vez, a expressão “violência física” foi a terceira mais frequente e mais prontamente evocada (39; 2,436, respectivamente), obtendo destaque sob outros tipos de violência que aparecem nos quadrantes restantes. Compreendendo a violência física, destacaram-se empurrão, tapa, chute, soco e espancamento.

Desnecessário, se as pessoas conseguissem conversar [...] não precisava agarrar uma mulher, espancar uma criança, judiar de um idoso, é inaceitável. (P28-F).

Um casal [...] no serviço onde eu trabalhava [...] aquilo levou um bom tempo para sair da minha cabeça. Ele bateu nela com muita força. Nunca imaginei que ele ia chegar e dar um soco na cara dela [...] atirou ela na rua e deu um pontapé [...]. (P10-F).

A primeira coisa que me vem em mente é a questão dos homossexuais, o homem sofrendo violência [...] a gente vê muito a questão da homofobia hoje, a violência com LGBT. (P17-M).

Ainda no núcleo central, o termo “dependência de substâncias”, evocado 27 vezes, teve associação com o uso de substâncias como a bebida alcoólica e o tráfico de drogas. Por fim, o termo assalto, embora menos frequente, foi o segundo mais prontamente evocado (2,280).

Existe a droga, que é uma das principais violências, a bebida... (P25-F).

Hoje a violência existe mais por conta da droga, os entorpecentes [...] o tráfico é o que gera tudo [...] hoje a corrupção e o tráfico é o que gera violência. (P11-M).

Outra coisa é assalto. Eu acho que para assalto não tem nem justificativa, uma coisa que não consegue justificar. Ainda para o feminicídio tu vê que o executor do crime tem um motivo, que igual não é um motivo. Agora assalto, tu vais dizer o que? Só por que ele é pobre está assaltando? Não justifica. (P14-M).

A zona de contraste, localizada no quadrante inferior esquerdo, é formada por palavras pouco evocadas, com frequência menor que a média, mas que se encontram nas primeiras posições no rang, comportando elementos que expressam variações da representação. Assim, os termos homicídio, violência verbal, violência doméstica, ódio, falta de respeito e negativo caracterizaram esse quadrante. O elemento “homicídio” foi o mais frequente e o menos prontamente evocado (21; 2,619), abrangendo palavras como assassinato e morte. O termo “ódio”, por sua vez, compreendeu sentimentos como indignação, raiva e revolta. A expressão “falta de respeito” surgiu como a terceira mais evocada (2,154), caracterizada por falta de consideração com o outro. Por último, o termo “negativo” menos frequente (12), porém mais imediatamente evocado (2,000), resumiu percepções negativas para com a violência, tais como absurdo e ruim.

A morte do meu irmão. Horrível. Aquilo ali foi uma violência [...] lhe confesso que se ele passar por mim, qualquer um deles, não sei o que vou... Vou lhe dizer que não é nem revolta deles, é pela injustiça [...]. (P22-M).

Violência significa... acho que a intolerância, o ódio que as pessoas têm umas das outras e as vezes por motivos banais [...] agora mesmo, o que mais aparece é o feminicídio, contra as mulheres. Os caras ainda têm aquela mentalidade de que a mulher é obrigada a ser submissa. Se separam, não concordam, e batem nas mulheres. (P14-M).

Acho que é essa questão de sempre querer impor a minha razão, impor a minha vontade, não ceder, não abrir espaço para o outro, querer ter sempre razão em tudo. Acaba que as pessoas, já estão estressadas, irritadas, e dali se gera um ato de violência, muitas vezes de briga, como no trânsito... (P23-F).

Ainda na zona de contraste, a expressão “violência verbal” foi a segunda mais frequentemente evocada (19). A terceira mais frequente e segunda mais prontamente evocada foi “violência doméstica” (16; 2,125).

Da parte da mulher acho que as vezes se prevalece da fragilidade e da lei, e pega um homem sem paciência, aí dá no que dá. Mas fora isso, é uma violência das duas [partes] porque a mulher não bate, mas ofende e é uma violência. (P4-M).

Elas querem sair gritando e falando, ela violenta, é mais fácil uma mulher violentar o homem com palavras do que na agressão [física]. Então, talvez ela fere mais os sentimentos dele, usa palavras mais cruéis [...]. Tem muitas pessoas que aceitam o que está acontecendo com elas, então não vejo tão inocente assim. Tipo o marido que bate na mulher, ela está sendo espancada e aceitando porque quer. A minha opinião é que só é violentado quem aceita.(P20-F).

Às vezes a mulher é tinhosa. A mulher às vezes provoca (risos). E as vezes é o homem também, que não aceita alguma coisa. (P5-F).

Nunca passei por violência física, porém violência, aquela pressão psicológica, verbal. Estou há um bom tempo fazendo acompanhamento psicológico, medicação, e ele está lá, lindo, maravilhoso, achando que nunca fez nada [...]. (P9-F).

Violência é destruição, já passei por isso, violência dentro de casa, fui agredida pelo meu ex-marido, não é bom, é uma coisa ruim, acaba te afetando e afetando todos que estão na tua volta. (P32-F).

O sistema periférico é mais flexível que o núcleo central e se caracteriza por ser sensível ao contexto imediato. A primeira periferia é composta por elementos importantes em função das suas elevadas frequências e pode indicar um reforço ao núcleo central. Assim, nesse quadrante, surgiu a expressão “impunidade”, sensação presente para algumas das pessoas participantes, compreendendo a falta de leis e/ou necessidade de leis e punições mais rígidas.

Lá [na prisão] eles têm televisão, frigobar, [...] bife, cebola, batata, acho que isso não é uma forma de “[...] estou sendo punido”. Eles traficam, comem melhor que eu em casa [...]. Acho que tem que mudar a lei, ser mais rígida. (P11-M).

Acho que o primeiro passo para isso é as leis, é impunidade, mexer nisso, se tiver que colocar pena de morte, coloca, acho que isso vai diminuir, vai minimizar, mas não vai acabar com a violência. [...] tem uma questão de educação, acho que começa pela escola, mas também pelas leis porque se tu fores ensinado na escola e em casa que não deves brigar e tiver leis que te puna seriamente... (P14-M).

A segunda periferia, localizada no quadrante inferior direito, aborda as contradições e manifestações da heterogeneidade do grupo e, consequentemente, as possíveis mudanças em uma representação social. Nesse quadrante, estão presentes os termos menos frequentes e menos prontamente evocados, tais como violência urbana, violência moral, tristeza, maltratar animais, violência sexual, medo, caráter e preconceito. A “violência urbana” foi evocada 18 vezes, aparecendo em contextos de violência no trânsito, em festas, na escola, no futebol e no trabalho, compreendidos como ambientes não domésticos. A palavra “tristeza” foi a terceira mais evocada (3,118) e a segunda mais frequente (17). Os “maus-tratos” com animais foram evocados 17 vezes. A “violência sexual” foi a expressão mais prontamente evocada (2,813), constantemente remetida ao estupro.

A violência significa uma agressão, algo que seja contra ao que a pessoa aceite [...] contra um indivíduo ou um animal, seja o que for. (P1-F).

[...] desprezo qualquer tipo de violência, seja no trânsito, em festas, em casa ou contra a mulher, como tem tido vários [casos] agora [...] acho que falta diálogo [...]. Infelizmente acredito que a mulher sofra mais violência, não justifico, mas acho que pelo fato de ser mulher. Acho que o homem sofre violência mais em festa, dificilmente vai sofrer em casa ou no serviço. E a mulher já não, a mulher sofre muita violência, que é a violência sexual, que é o chefe, em casa, pelo companheiro, filhos [...]. (P19-F).

[...] Violência das mais graves assim, uma festa aqui no bairro mesmo, um rapaz deu um tiro na cabeça do outro, ele caiu encostado no meu pé [...]. (P11-M).

Crueldade, é triste, no momento que tu usas a violência, a verbal ou a física, é inaceitável, é trágico. (P28-F).

Já presenciei violência sexual, na minha infância sofri isso, morava com a minha vó e até... [emocionado] só minha esposa que sabe. Sofri muito com isso, porque eu como homem é difícil tocar nesse ponto, desculpa. Sofri essa violência quando menor e, por isso, me tornei uma pessoa mais agressiva e hoje em dia quero [choro], quero botar a minha cabeça na realidade, esquecer do passado [...]. Me tornei uma pessoa agressiva e apanhava da minha vó, do filho da minha vó, do meu tio, porque a minha mãe e meu pai não estavam por perto [...]. Me arrependo profundamente, cada dia que lembro da violência que fiz, da violência que sofri. (P30-M).

Também evocada, 18 vezes, a “violência moral” envolveu situações como o bullying e a humilhação. Reforçando essa forma de violência, a palavra “preconceito” foi a quinta mais frequente e a quinta mais imediatamente evocada (11; 3,364), compreendendo situações de discriminação, racismo e homofobia. O termo “medo” foi o segundo mais prontamente evocado (3,000), entendido também como pânico e silêncio, evidenciando omissão da violência devido à presença desse sentimento. A expressão “caráter” também apareceu como a segunda nas evocações (3,000), envolvendo a personalidade de quem comete alguma violência.

Tanto na minha infância por conta de violência física, da agressão, porque tive um pai agressivo, por ele ser militar, quanto pela violência do bullying, que sofri na escola. E hoje em dia, pessoas do meio, por meu marido ser magro e negro e eu ser gordinha e branca, sofro esse preconceito. (P1-F).

Eu já sofri, questão de preconceito, de homofobia, nada de agressão física [...], mas verbal já e é algo que infelizmente a gente acaba acostumando, entre aspas, porque a gente acaba deixando de lado esse tipo de violência [...]. Normalmente, a gente acaba tendo que ficar calado por medo de sofrer algo maior, uma discussão se tornar uma briga. (P17-M).

Violência já aconteceu comigo, então acho que é um sentimento de ciúmes, tudo que citei, ciúmes, possessividade, insegurança [...]. O ciúme tem um ponto bom, mas quando o parceiro é obcecado [...]. A mulher não pode ter tanto medo [...] se a gente tiver medo deles, nunca vamos a lugar nenhum. A gente poderia falar mais, incentivar outras mulheres a dizer mais [...]. Já tive bastante vergonha de falar que apanhei, ele falava que ia mudar e no fim não mudava e sempre acontecia a mesma coisa. Já fiquei de olho roxo, já sangrou muito a minha boca [...]. É vergonhoso dizer, expor, mas a gente não pode ter medo, porque se a gente continuar acobertando as safadezas deles, a gente pode não estar viva no outro dia... (P31-F).

[...] tu tens medo de sair de casa, de largar um filho para ir à escola ou se tu queres sair, se divertir, tais correndo risco a todo o momento por causa da violência. (P11-M).

Minha criação foi bem difícil, fui abandonado pela minha mãe e pelo meu pai, me tornei uma pessoa agressiva, se eu apanhasse na rua, eu apanhava em casa, se eu batesse na rua, eu apanharia só uma vez. Então, me tornei uma pessoa muito agressiva [...]. Hoje em dia, como vi a minha tia apanhar muito do meu tio, disse que quando casasse nunca seria um homem violento [...]. Dou soco na parede, soco na geladeira, chuto tudo, mas a minha esposa não [...]. (P30-M).

DISCUSSÃO

As pessoas usuárias da ESF representaram a violência como aquela ocorrida contra outra pessoa, seja criança, mulher, idoso, homossexual e inclusive aos animais, grupos considerados mais vulneráveis, reforçando a identificação de fragilidade nas vítimas. As situações de abuso, agressão, briga e maus-tratos permearam a representação da violência, ao ser elencado principalmente a forma física, contextualizada pelo empurrão, tapa, chute, soco e espancamento. Ainda, associaram o assalto e o uso de substâncias, como álcool e outras drogas, com a ocorrência e agravo da violência.

A representação demonstrou prevalência da violência interpessoal. Nela, engloba-se tanto a intrafamiliar, aquela entre membros da família ou parceiros íntimos, quanto a violência na comunidade, ou seja, a não doméstica, geralmente entre indivíduos sem relação pessoal33. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, editors. World report on violence and health. Geneva: WHO; 2002 [cited 2019 Jul 14]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42495/9241545615_eng.pdf;jsessionid=89BA615EB0045917DE63F4491F73E466?sequence=1
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. A violência contra a mulher, envolvendo principalmente os casais, é um exemplo de violência intrafamiliar citado, enquanto o assalto se enquadra como violência na comunidade. Especificamente o assalto foi valorizado, por uma pessoa do sexo masculino, como algo mais grave que o feminicídio, por não possuir um motivo, uma justificativa para ocorrer.

O uso e o tráfico de drogas são compreendidos como situações que podem gerar e agravar a violência, principalmente a urbana, resultando em assaltos e tiroteios frequentes99. Oliveira AMN, Marques LA, Silva PA, Prestes RC, Biondi HS, Silva BT. Perception of healthcare professionals regarding primary interventions. Texto Contexto Enferm. 2015;24(2):424-31. doi: https://doi.org/10.1590/0104-0707201500009201
https://doi.org/10.1590/0104-07072015000...
-1010. Delgado Matos I, Gómez Dorado M, Alcaraz Martínez M. Sistema de vigilancia contra la violencia intrafamiliar. Medisan. 2015 [cited 2019 Jul 15];19(5):580-86. Available from: http://scielo.sld.cu/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1029-30192015000500002
http://scielo.sld.cu/scielo.php?script=s...
. Estudos associam o uso de substância psicoativa e sofrimento mental dos homens com a ocorrência de violência1010. Delgado Matos I, Gómez Dorado M, Alcaraz Martínez M. Sistema de vigilancia contra la violencia intrafamiliar. Medisan. 2015 [cited 2019 Jul 15];19(5):580-86. Available from: http://scielo.sld.cu/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1029-30192015000500002
http://scielo.sld.cu/scielo.php?script=s...
-1313. Hester M, Ferrari G, Jones SK, Williamson E, Bacchus LJ, Peters TJ, Feder G. Occurrence and impact of negative behaviour, including domestic violence and abuse, in men attending UK primary care health clinics: a cross-sectional survey. BMJ Open. 2015;5:e007141. doi: https://doi.org/10.1136/bmjopen-2014-007141
https://doi.org/10.1136/bmjopen-2014-007...
. O alcoolismo, considerado um dos fatores desencadeantes dos atos violentos, é um dos motivos utilizados por equipes de saúde para atrair os homens agressores ou potenciais agressores para a consulta1414. Murphy CM, Ting LA, Jordan LC, Musser PH, Winters JJ, Poole GM, Pitts SC. A randomized clinical trial of motivational enhancement therapy for alcohol problems in partner violent men. J Subst Abuse Treat. 2018;89:11-9. doi: https://doi.org/10.1016/j.jsat.2018.03.004
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.

Além da referida associação, acerca do uso de substâncias e o público masculino, a violência física foi frequentemente relacionada ao modelo de masculinidade, de modo que o homem personifica o discurso da construção da sua identidade baseada no poder, na agressividade e na sexualidade incontrolada1515. Njaine K, Silva ACLG, Rodrigues AMM, Gomes R, Delziovo CR. Violência e perspectiva relacional de gênero. Florianópolis: UFSC; 2014 [cited 2018 Aug 25]. Available from: https://ares.unasus.gov.br/acervo/handle/ARES/1863?show=full
https://ares.unasus.gov.br/acervo/handle...
. As pessoas participantes deste estudo reconheceram o espaço público, não doméstico, como o local em que mais ocorre a violência relacionada aos homens, onde os agressores costumam ser colegas, amigos ou desconhecidos, demonstrando uma tendência de reafirmação da masculinidade.

Enquanto o espaço público e o emprego da violência física foram relacionados aos homens, às mulheres se associou a forma verbal e o ambiente doméstico como o principal local de ocorrência da violência contra elas. Na violência contra as mulheres, diferentemente dos homens, os autores são, na maioria das vezes, parceiros ou ex-parceiros e familiares1616. Martín-Baena D, Montero-Piñar I, Escriba-Aguir V, Vives-Cases C. Violence against young women attending primary care services in Spain: prevalence and health consequences. Family Practice. 2015;32(4):381-6. doi: https://doi.org/10.1093/fampra/cmv017
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. Assim, os homens, no processo de socialização, buscando o distanciamento de características relacionadas ao feminino, se predispõem a comportamentos como a agressividade e a competitividade que acabam por resultar, muitas vezes, em doenças, lesões e mortes aos próprios homens e também àqueles que o cercam1515. Njaine K, Silva ACLG, Rodrigues AMM, Gomes R, Delziovo CR. Violência e perspectiva relacional de gênero. Florianópolis: UFSC; 2014 [cited 2018 Aug 25]. Available from: https://ares.unasus.gov.br/acervo/handle/ARES/1863?show=full
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As consequências da violência foram citadas por mulheres que a vivenciaram, evidenciando sequelas não somente da violência física, mas também da verbal e psicológica, sendo possível afirmar que a violência física afeta a mulher psicológica, moral e socialmente. Resultados de estudos1212. Fontes LFC, Conceição OC, Machado S. Childhood and adolescent sexual abuse, victim profile and its impacts on mental health. Ciênc Saúde Coletiva. 2017;22(9):2919-28. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232017229.11042017
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,1616. Martín-Baena D, Montero-Piñar I, Escriba-Aguir V, Vives-Cases C. Violence against young women attending primary care services in Spain: prevalence and health consequences. Family Practice. 2015;32(4):381-6. doi: https://doi.org/10.1093/fampra/cmv017
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-1717. Satyanarayana VA, Chandra PS, Vaddiparti K. Mental health consequences of violence against women and girls. Curr Opin Psychiatry. 2015;28(5):350-6. doi: https://doi.org/10.1097/YCO.0000000000000182
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) evidenciam indicadores de saúde piores para as mulheres em situação de violência, com a probabilidade duas vezes maior de sofrimento psíquico, maior ocorrência de queixas somáticas, uso de medicação psicotrópica, analgésica e/ou drogas, baixa autoestima, sono, cansaço, dor, alterações de peso corporal, constipação, nervosismo, estresse pós-traumático, insegurança, vergonha e isolamento social. Sabe-se que essas consequências, especialmente a vergonha, o medo, o isolamento social e, muitas vezes, a dependência emocional e financeira, dificultam o rompimento da relação e, logo, das situações de violência.

Neste estudo, a violência sexual, especificamente o estupro, foi mais associada as mulheres. No entanto, uma pessoa do sexo masculino relatou a sua situação vivida, demonstrando conflito por vivenciar essa violência e ser homem. A ocorrência do estupro, tendo como vítimas os homens, ainda não é suficientemente explorada pela literatura, devido, principalmente, a diversos tabus que dificultam a verbalização dessa violência pelas vítimas do sexo masculino. Também como consequências, além da dificuldade em exteriorizar a violência sofrida, há forte relação com o uso abusivo de álcool, bem como de queixas/diagnósticos psicológicos como depressão, ansiedade, insônia e irritabilidade com a ocorrência de violência1111. Carvalho MRS, Oliveira JF, Gomes NP, Santos MM, Estrela FM, Duarte HMS. Interface between conjugal violence and alcohol consumption by the partner. Rev Bras Enferm. 2018;71(5):2109-15. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0540
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-1212. Fontes LFC, Conceição OC, Machado S. Childhood and adolescent sexual abuse, victim profile and its impacts on mental health. Ciênc Saúde Coletiva. 2017;22(9):2919-28. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232017229.11042017
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. Da mesma maneira, resultado de outro estudo demonstrou a propensão desses sintomas psicológicos não somente nos homens que são acometidos pela violência, mas também naqueles que a praticam, evidenciando uma tendência de ansiedade e depressão cinco vezes maior no homem violento1313. Hester M, Ferrari G, Jones SK, Williamson E, Bacchus LJ, Peters TJ, Feder G. Occurrence and impact of negative behaviour, including domestic violence and abuse, in men attending UK primary care health clinics: a cross-sectional survey. BMJ Open. 2015;5:e007141. doi: https://doi.org/10.1136/bmjopen-2014-007141
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Ainda, dentro da classificação de violência interpessoal, destacam-se os homicídios e os feminicídios. Para que a morte seja classificada como homicídio devem predominar sinais que indiquem que os ferimentos foram causados por outro indivíduo, com a intenção de ferir ou matar44. Organização Mundial da Saúde (CH). Relatório mundial sobre a prevenção da violência 2014. São Paulo: USP; 2015 [cited 2019 Jul 15]. Authorized translation. Available from: http://nevusp.org/wp-content/uploads/2015/11/1579-VIP-Main-report-Pt-Br-26-10-2015.pdf
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. Por sua vez, o termo feminicídio, conceito relativamente novo, refere-se ao assassinato de mulheres, motivado simplesmente pelo fato de ser mulher1818. Brazilian Ministry of Women, Racial Equality, and Human Rights. Brazilian National Guidelines - Feminicide: investigating, suing, and judging women’s violent deaths from a gender perspective. Brasília; 2016 [cited 2018 Oct 31]. Available from: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/diretrizes_feminicidio.pdf
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. Essas situações expressam a forma máxima da violência. Embora o termo “homicídio” tenha sido mais frequentemente evocado, as situações relatadas pelos participantes, na sua maioria, evidenciaram exemplos e citações acerca do feminicídio.

Como justificativa para o feminicídio, verificou-se um padrão de masculinidade caracterizado por ciúmes, desconfiança e não aceitação do fim da relação. Da mesma forma, foi possível evidenciar que mulheres e homens responsabilizaram a mulher pela violência sofrida, seja por submissão, aceitação ou até mesmo provocação por parte delas, culpabilizando-as e colocando em dúvida a veracidade ou importância da situação de violência. Assim, pode-se verificar a ocorrência e perpetuação de uma cultura machista internalizada não somente nos homens, como também nas mulheres.

A palavra “ódio”, por sua vez, definida em sentimentos como raiva, revolta e vingança, pode ser associada na definição de feminicídio, considerado também o crime de ódio contra o gênero feminino, reafirmando a presença de uma masculinidade tóxica, ou seja, uma masculinidade construída socialmente sob premissas estereotipadas, nocivas tanto aos homens quanto toda a sociedade, caracterizada por repressão das suas emoções e a canalização de suas manifestações pessoais em forma de agressão e violência1515. Njaine K, Silva ACLG, Rodrigues AMM, Gomes R, Delziovo CR. Violência e perspectiva relacional de gênero. Florianópolis: UFSC; 2014 [cited 2018 Aug 25]. Available from: https://ares.unasus.gov.br/acervo/handle/ARES/1863?show=full
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Na expressão “impunidade”, percebeu-se exclusivamente falas do sexo masculino, reforçando a ideia de indignação/revolta aos homens, destacando a importância da educação no lar e na escola acerca de atitudes não-violentas, bem como leis mais rígidas e punitivas. As pessoas participantes evidenciaram a sua percepção em relação ao sistema prisional, caracterizado fortemente pelo senso comum, ao considerar esse ambiente repleto de privilégios e regalias, de modo que o Estado deveria devolver a violência que a sociedade pratica como forma de justiça. Tal fato evidencia que dentro de cada pessoa oprimida, considerando, neste estudo, o nível fundamental de escolaridade e o vínculo empregatício presente em metade dos participantes, existe um potencial opressor, de modo que quando se percebem na situação de oprimidos, a maioria deles, ao invés de buscarem a libertação, se tornam opressores1919. Arroyo MG. Artigo - Paulo Freire: outro paradigma pedagógico? Educ Rev. 2019;35:e214631. doi: https://doi.org/10.1590/0102-4698214631
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Na primeira e segunda periferia, percebeu-se a reprodução, de geração em geração, dos comportamentos masculinos ensinados e incentivados pela família, tanto por meio do encorajamento verbal quanto através do testemunho de violências durante a infância e adolescência. Foi possível verificar, entre os participantes, a convivência em um ambiente violento moldando a personalidade agressiva e explosiva na fase adulta. As crianças que testemunham a ocorrência da violência possuem maior comprometimento da sua saúde mental, tendendo a naturalizar e reproduzir o comportamento violento nas relações sociais, inclusive futuramente em uma relação de conjugalidade1111. Carvalho MRS, Oliveira JF, Gomes NP, Santos MM, Estrela FM, Duarte HMS. Interface between conjugal violence and alcohol consumption by the partner. Rev Bras Enferm. 2018;71(5):2109-15. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0540
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A convivência em um ambiente violento condiciona as pessoas a repetirem as mesmas práticas quando adultos, seja na condição de vítima ou de agressor. Desse modo, a violência recai sobre todos aqueles que a vivenciam, levando à sua propagação intergeracional1111. Carvalho MRS, Oliveira JF, Gomes NP, Santos MM, Estrela FM, Duarte HMS. Interface between conjugal violence and alcohol consumption by the partner. Rev Bras Enferm. 2018;71(5):2109-15. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0540
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. Nesse sentido, uma resposta abrangente à violência deve não só proteger e apoiar as pessoas nesta situação, mas também promover a não-violência, transformando as circunstâncias que favorecem a sua eclosão33. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, editors. World report on violence and health. Geneva: WHO; 2002 [cited 2019 Jul 14]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42495/9241545615_eng.pdf;jsessionid=89BA615EB0045917DE63F4491F73E466?sequence=1
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Ainda, como parte da representação, as pessoas usuárias da ESF elencaram a violência moral, como o bullying e a humilhação, além de situações preconceituosas, de discriminação, de racismo, de homofobia e de machismo, evidenciando um grupo que não está no padrão imposto pela sociedade e que, por essa razão, se torna mais vulnerável as violências citadas. Alguns participantes citaram o termo medo, que pode ser associado tanto ao medo da violência em si quanto ao não denunciar, omitindo as situações de violência pelo receio da retaliação. O medo de represália, a vergonha e a dependência financeira ou emocional são entendidas em muitos estudos como barreiras para a superação da violência99. Oliveira AMN, Marques LA, Silva PA, Prestes RC, Biondi HS, Silva BT. Perception of healthcare professionals regarding primary interventions. Texto Contexto Enferm. 2015;24(2):424-31. doi: https://doi.org/10.1590/0104-0707201500009201
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,1717. Satyanarayana VA, Chandra PS, Vaddiparti K. Mental health consequences of violence against women and girls. Curr Opin Psychiatry. 2015;28(5):350-6. doi: https://doi.org/10.1097/YCO.0000000000000182
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,2020. Othman S, Goddard C, Piterman L. Victims’ barriers to discussing domestic violence in clinical consultations: a qualitative enquiry. J Interpers Violence. 2014:29(8):1497-513. doi: https://doi.org/10.1177/0886260513507136
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, tendo em vista que uma das maneiras de coibir a violência é justamente retirando-a do silêncio, rompendo com o ciclo de violência1818. Brazilian Ministry of Women, Racial Equality, and Human Rights. Brazilian National Guidelines - Feminicide: investigating, suing, and judging women’s violent deaths from a gender perspective. Brasília; 2016 [cited 2018 Oct 31]. Available from: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/diretrizes_feminicidio.pdf
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Considera-se que as unidades básicas de saúde, especialmente as ESF, possuem um papel importante na luta contra todo e qualquer tipo de violência, que podem influenciar ou causar processos de adoecimento, resultando em significativas questões de saúde para a prevenção e reparação desses agravos através de políticas públicas, deixando para o sistema judicial a responsabilidade da punição. Tendo em vista que as representações sociais trouxeram significativas vivências pessoais acerca da violência, a detecção, prevenção, atendimento e acolhimento pelos profissionais de saúde se faz fundamental, especialmente do profissional enfermeiro, considerando que este está à frente da saúde na atenção básica, atuando inclusive como coordenador da ESF e responsável pelas ações e cuidados de Educação em Saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A estrutura e conteúdo da representação social das pessoas usuárias da ESF evidenciou a violência como a forma interpessoal, incluindo-se a intrafamiliar e a urbana. Verificou-se que a representação da violência pode ser influenciada pela realidade cotidiana, marcada fortemente pela dependência de substâncias e o tráfico. Na representação, a figura feminina foi descrita como aquela pessoa em situação de violência doméstica ou sexual, e, quando causadora de violência, faz uso apenas da forma verbal. Já a figura masculina foi representada como vítima de violência urbana e causador da violência física. Por outro lado, o homem surgiu também como vítima de homofobia ou de violência na infância, o que possivelmente, o levou a reproduzir violências quando adulto.

Entende-se que a pesquisa contribuiu ao dar voz as pessoas usuárias da ESF, evidenciando os determinantes sobre o fenômeno, o que poderá facilitar a elaboração de estratégias e ações mais direcionadas dos profissionais, como a realização de grupos com rodas de conversa sobre a temática, incluindo sua prevenção e identificação, bem como a divulgação dos serviços de atendimento às situações de violência. Ainda, o estudo, mesmo não enfatizando a violência contra as mulheres, contribuiu para evidenciar que esse tipo de violência é presente e relevante para os participantes, despontando importantes questões de gênero, ao relacionar, muitas vezes, o padrão de masculinidade vigente na ocorrência de diversas formas de violência, especialmente as direcionadas as mulheres.

Esta pesquisa apresentou algumas limitações, pois se identificou a necessidade de conhecer a representação das pessoas usuárias das unidades que não integram a ESF e que funcionam 24 horas, por atenderem uma demanda diferenciada, que busca o serviço principalmente no período noturno. Ainda, o estudo oportunizou um espaço de desabafo, pois apesar de se tratar de uma temática difícil, mobilizando lembranças e sentimentos diversos, observou-se que os participantes tinham necessidade de falar abertamente sobre o assunto, o que despertou a iniciativa da realização de um Projeto de Extensão acerca da temática, intervindo para e com as pessoas usuárias da ESF.

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Editado por

Editor associado:

Cíntia Nasi

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2019
  • Aceito
    18 Dez 2019
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