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A violência obstétrica na percepção das multíparas

RESUMO

Objetivo:

Conhecer a percepção das multíparas acerca das suas experiências com a violência obstétrica.

Métodos:

Estudo qualitativo descritivo realizado de janeiro a maio de 2019 nas unidades básicas de saúde do município de Rio Grande, Rio Grande do Sul. Participaram 20 mulheres multíparas da comunidade. Os dados foram coletados por entrevistas e submetidos à análise de conteúdo.

Resultados:

Foram construídas duas subcategorias: Violência Obstétrica quando primíparas, onde as mulheres sofriam violência verbal para colaborarem com o período expulsivo do parto; Violência Obstétrica quando multíparas, onde foi observada violência verbal e física, pautadas pelo grande número de filhos que possuíam.

Considerações finais:

A violência obstétrica nas instituições de saúde é fato vivenciado por muitas mulheres. O trauma sofrido as acompanha ao longo da vida. É preciso evitar a naturalização de práticas violentas durante o processo de parto/nascimento garantindo um cuidado respeitoso e sem discriminação.

Palavras-chave:
Violência de gênero; Paridade; Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

To know the perception of multiparous women about their experiences with obstetric violence.

Methods:

Qualitative descriptive study carried out from January to May 2019 in basic health units in the city of Rio Grande, Rio Grande do Sul. Twenty multiparous women from the community participated in the study. Data were collected through interviews and submitted to content analysis.

Results:

Two subcategories were constructed: Obstetric Violence in primiparous women, where women suffered verbal violence to collaborate during fetal expulsion in labor; Obstetric violence in multiparous women, where there was verbal and physical violence related to the fact that the women had many children.

Final considerations:

Obstetric violence in health institutions is experienced by many women. The trauma suffered will follow them through their lives. The naturalization of violent practices during labor and birth should be avoided, in order to ensure respectful and non-discriminatory care.

Keywords:
Gender-based violence; Parity; Nursing

RESUMEN

Objetivo:

Conocer la percepción de las mujeres multíparas sobre sus experiencias con la violencia obstétrica.

Métodos:

Estudio descriptivo cualitativo llevado a cabo de enero a mayo de 2019 en unidades básicas de salud en la ciudad de Rio Grande, Rio Grande do Sul. Participaron veinte mujeres multíparas de la comunidad. Los datos fueron recolectados a través de entrevistas y sometidos a análisis de contenido.

Resultados:

Se construyeron dos subcategorías: violencia obstétrica cuando era primípara, donde las mujeres sufrían violencia verbal para colaborar con el período expulsivo del parto; Violencia obstétrica cuando es multípara, donde se observó violencia verbal y física, guiada por la gran cantidad de niños que tuvieron.

Consideraciones finales:

La violencia obstétrica en las instituciones de salud es un hecho experimentado por muchas mujeres. El trauma sufrido los acompaña a lo largo de sus vidas. Es necesario evitar la naturalización de las prácticas violentas durante el proceso de nacimiento / parto, garantizando una atención respetuosa y no discriminatoria.

Palabras clave:
Violencia de género; Paridad; Enfermería

INTRODUÇÃO

O termo violência obstétrica (VO) surgiu na América Latina em 2000, juntamente com os movimentos sociais em defesa do nascimento humanizado(1)1. Oliveira LGSM, Albuquerque A. Violência obstétrica e direitos humanos dos pacientes. Rev CEJ. 2018;XXII(75):36-50.. O ministério da Saúde do Brasil reconheceu o termo em junho desse ano. A VO é fruto de uma opressão patriarcal que leva à redução, à repressão e à objetivação dos corpos femininos, limitando seu poder e suas maneiras de expressão. A mulher, nesse cenário, é destituída de sua identidade, fragmentada, deixando sua totalidade e passando a ser apenas um útero, em abrigo para o feto, uma máquina de fazer bebês(2)2. Jardim DMB, Modena CM. Obstetric violence in the daily routine of care and its characteristics. Rev Latino-Am Enfermagem. 2018;26:e3069. doi: https://doi.org/10.1590/1518-8345.2450.3069
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Declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS) diz que, no mundo inteiro, muitas mulheres sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto nas instituições de saúde. Tal tratamento não apenas viola os direitos das mulheres ao cuidado respeitoso, mas também ameaça o direito à vida, à saúde, à integridade física e à não-discriminação. Segundo a publicação, eliminar o desrespeito, os abusos e os maus-tratos durante o parto somente será possível por meio de um processo inclusivo, com a participação das mulheres, comunidades, profissionais e gestores da saúde(3)3. Organização Mundial da Saúde (CH). Prevenção e eliminação de abusos, desrespeitos e maus tratos durante o parto em instituições de saúde. Genebra: OMS; 2014 [cited 2019 Oct 10]. Available from: Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf?sequence=3
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O Brasil é o segundo país no mundo em percentual de cesarianas. Enquanto a OMS estabelece em até 15% a proporção de nascimentos por cesariana, no Brasil esse percentual é de 57%(4)4. Fundo das Nações Unidas para a Infância (BR). Quem espera, espera. Brasília, DF: UNICEF; 2017 [cited 2019 Oct 20]. Available from: Available from: https://www.unicef.org/brazil/media/3751/file/Quem_espera_espera.pdf
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. As Políticas Públicas de Atenção ao Parto e Nascimento descrevem a assistência de saúde centrada na mulher, com diminuição de intervenções desnecessárias, valorizando o protagonismo e autonomia da mulher na parturição.

A pesquisa justifica-se pela relevância do tema e sua recente discussão no ano de 2019, pois em maio o Ministério da Saúde divulgou nota oficial não reconhecendo o termo violência obstétrica. No entanto, devido à grande discussão social, o termo foi reconhecido. No Brasil, verificou-se que uma a cada quatro mulheres sofre VO durante seu processo de parto, segundo pesquisa com 2.365 mulheres e 1.181 homens, realizada pela ABRAMO e SESC em 2010(5)5. Fundação Perseu Abramo. (BR). Serviço Social do Comércio (BR) Mulheres brasileiras e gênero no espaço público e privado. São Paulo: FPAbramo, Sesc; 2010 [citado 2019 nov 10]. Disponível em: Disponível em: http://apublica.org/wp-content/uploads/2013/03/www.fpa_.org_.br_sites_default_files_pesquisaintegra.pdf
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A discussão ampliada do tema com novos dados e realidades pode auxiliar na construção de estratégias de enfrentamento da questão. Nesse contexto, a questão que norteou o estudo foi qual a percepção das multíparas acerca das suas experiências com a violência obstétrica? A partir dessa objetivou-se conhecer a percepção das multíparas acerca das suas experiências com a violência obstétrica.

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo qualitativo, de caráter descritivo-exploratória que, além de observar e registrar a incidência do fenômeno busca explorar sua dimensão, a maneira pela qual ele se manifesta e fatores com os quais ele se relaciona(6)6. Polit DF, Cheryl TB. Fundamentos de pesquisa em enfermagem: avaliação de evidências para a prática da enfermagem. 9 ed. Porto Alegre: Artmed; 2018.. O estudo foi realizado de janeiro a maio de 2019, nas casas das participantes cadastradas em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) do Município de Rio Grande/RS. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas individuais, em profundidade, com 20 multíparas para conhecer as suas experiências com a multiparidade. Dessas, oito informaram ter sofrido VO. A análise dos dados na categoria Violência Obstétrica gerou duas subcategorias: Violência Obstétrica quando primíparas e Violência Obstétrica quando multíparas.

Os critérios de inclusão foram: ter cinco ou mais filhos biológicos vivos e ter idade maior ou igual a 18 anos. Como critério de exclusão: ter problema de memória e/ou raciocínio que as impedisse de lembrar dos partos. As mulheres foram captadas nas Unidades Básicas de Saúde do município. Os dados foram coletados por meio de entrevistas agendadas previamente e ocorreram durante a visita dos agentes comunitários de saúde aos domicílios.

Neste estudo foram atendidas às Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas em Seres Humanos, estabelecidas pela Resolução 466/12 do Ministério da Saúde do Brasil(7)7. Ministério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União. 2013 jun 13;150(112 Seção 1):59-62.. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande, conforme parecer nº 233/2018 em 23 de outubro de 2018. Todas as participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Para fins de identificação e garantia do anonimato das participantes foram utilizadas siglas seguidas de um número de acordo com a ordem em que as entrevistas foram realizadas, sendo a M1 a primeira mulher entrevistada, seguindo até a M20, a vigésima e última. Os filhos foram identificados pela ordem do nascimento, sendo F1 o primeiro filho, até o F11, o décimo primeiro filho de uma multípara. As idades dos filhos variaram entre 3 e 33 anos mostrando que o problema da VO se perpetua desde há muito tempo até a atualidade.

Os dados coletados foram analisados pela técnica de análise de conteúdo de Bardin(8)8. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.. Nesse tipo de análise, o tema representa uma unidade de significado, formando núcleos de sentido. As fases da análise são: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Na pré-análise ocorreu a organização do material, uma leitura flutuante das entrevistas buscando-se visualizar as particularidades das falas que contribuíram para a separação do texto em unidades para a categorização. A fase de exploração do material consistiu no agrupamento dos núcleos de sentido semelhantes, dando origem aos temas ou as categorias e na etapa de tratamento dos dados, inferência e interpretação realizou-se a discussão desses baseada no referencial teórico do projeto. A partir dessa análise foi possível construir duas categorias: Violência obstétrica quando primíparas e Violência obstétrica quando multíparas.

RESULTADOS

Participaram do estudo 20 mulheres, todas multíparas. Tinham de cinco a onze filhos e de 25 a 74 anos de idade. Seu nível de escolaridade foi de não-alfabetizadas até pós-graduandas. Oito entrevistadas relataram terem sofrido VO (40%), em diferentes momentos da vida reprodutiva. Em todos os casos elas não tinham acompanhantes e estavam em situação de vulnerabilidade social. A análise dos dados gerou duas categorias, quando relatam ter percebido a violência já no nascimento do primeiro filho e também após quando, eram multíparas.

Violência obstétrica quando primíparas

Inicialmente, a VO não parecia estar relacionada à multiparidade por aparecer no nascimento dos F1, quando elas eram adolescentes. Tal fato mostra que o trauma sofrido por estas mulheres não foi esquecido, mesmo tendo ocorrido entre 12 e 10 anos atrás, no caso de M6 e M4, respectivamente. São ditas falas corriqueiras comumente ouvidas pelas mulheres nos centros obstétricos quando as mesmas se queixaram de dor.

Quando tive a F1, a enfermeira falou: “Não doeu para entrar e agora diz que doí para sair!” (M6)

[...] então ela me disse: “Vamos de uma vez! Fazem os filhos e depois não querem sentir dor!” (M4)

Muitas vezes, as profissionais também reproduzem a violência de gênero contra outras mulheres. Isso evidencia a existência de uma hierarquia sexual, de modo que, quanto maior a vulnerabilidade da mulher, mais rude e humilhante tende a ser o tratamento oferecido a ela. Assim, mulheres pobres, negras, adolescentes, sem pré-natal ou sem acompanhante, profissionais do sexo, usuárias de drogas, vivendo em situação de rua ou encarceramento estão mais sujeitas a negligência e omissão de socorro(9)9. World Health Organization (CH). WHO recommendations: Intrapartum care for a positive childbirth experience. Geneva: WHO; 2018 [cited 2019 out 24]. Available from: Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/260178/9789241550215-eng.pdf?sequence=1
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No aborto fui maltratada no hospital. Eu era menor de idade e foi aquele fuzuê de madrugada. Acorda todo mundo, os profissionais estavam estressados, me mandaram para abortar em casa. (M7)

A banalização da dor é inicialmente a primeira violência sofrida. São profissionais aparentemente estressados e que não querem ouvir as mulheres em suas queixas. São ditas as mesmas frases, os mesmos procedimentos relatados há anos por várias mulheres. Desde a medicalização do parto, quando este parou de ocorrer nos lares e migrou para os hospitais, a mulher teve que submeter-se desde a posição mais confortável para quem auxilia no nascimento até outros procedimentos de rotina relatados. É lastimável a frequência dessa ocorrência e da falta de políticas atuantes no ramo.

Para exigir uma participação ativa durante o parto, o estímulo para que a mulher faça força e auxilie no processo de parturição é feito sob ameaças. A contratura das pernas comumente observada em primíparas, devido ao medo da dor e do desconhecido é evitada com o forçamento e ameaças de igual formato.

Tem uma de 13 anos aí. [...]. Tu viu o que aconteceu com ela. Pensei: -Vou ter que abrir as pernas e fazer bastante força. Eu louca de medo, chorando, falei: -Não me bate! Eu vou fazer tudo que vocês mandarem, só não me bate. Ela falava e eu fazia prontamente, rapidinho. (M15)

O Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento foi instituído pelo Ministério da Saúde através da Portaria/GM n. 569, de 1/6/2000. Em publicação oficial, de 2017, é reforçado que mulheres em trabalho de parto devem ser tratadas com respeito, ter acesso às informações baseadas em evidências e serem incluídas na tomada de decisão. Para isso, os profissionais que as atendem deverão estabelecer uma relação de confiança com as mesmas, perguntando-lhes sobre seus desejos e expectativas(10)10. Ministério da Saúde (BR). Diretrizes nacionais de assistência ao parto normal. Versão resumida. Brasília: Ministério da Saúde; 2017 [cited 2019 Oct 15]. Available from: Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_nacionais_assistencia_parto_normal.pdf
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. Incluir as mulheres nas decisões sobre os seus corpos é trazer uma participação ativa, explicando a elas como podem auxiliar nesse processo de forma a facilitar o nascimento e não aterrorizá-las.

Violência obstétrica quando multíparas

Ao analisar as falas buscando relação com a multiparidade, notou-se que a VO apresentou relação com o elevado número de filhos. O fato de não ser o primeiro filho parecia fornecer mais autoridade para a equipe de saúde agredir as mulheres.

Tu sabes bem que essa dor é normal! Eles tratam a gente totalmente diferente por ter muitos filhos. Passei muito sacrifício no F7. (M19)

Teu filho (F5) vai morrer! Aqui nesta cidade não tem UTI Neonatal! Até chegar a Rio Grande já morreu. Já tivesse um monte de filho prematuro. Se morrer tu já deve estar acostumada! (M14)

E essa daí é a última? Disse a médica que estava de plantão, e eu respondi: -É. Eu espero que sim. A enfermeira foi grosseira na hora de fazer a raspagem. Nisso a F6 ficou com o rostinho no líquido. Eu falei para ela: -Moça ela vai se afogar nessa água. Ela respondeu: -Não vai não e continuou fazendo. Eu meia torta puxei a bebê. (M6)

Já não é teu primeiro, na hora de fazer foi bom! A enfermeira no hospital me botou injeção (ocitocina) e não precisava. Sempre dão na mesa de parto, mas ela me deu na sala de observação e fez eu caminhar até a mesa de parto dizendo: -Anda de uma vez que a criança vai nascer aqui no chão! (M20)

Surge, nas falas preconceito por ter outros filhos e por serem prematuros, além do questionamento se será o último filho, mas sem orientação contraceptiva que a auxilie sobre isso. A violência verbal é aquela citada devido o número de filhos e a violência física envolve procedimentos desnecessários, como a tricotomia e caminhar no último estágio do parto. Esses são contraindicados, mas são ainda utilizados, segundo as participantes.

É recomendada atenção organizada a todas as mulheres de uma forma que mantenha garantida a sua dignidade, privacidade, confidencialidade, integridade física e tratamento adequado. A atenção à parturiente deve permitir a tomada de decisão informada e o recebimento de apoio contínuo durante o trabalho de parto. A raspagem púbica ou perineal de rotina não é recomendada antes do parto vaginal. O uso de fluídos intravenosos não é recomendado para encurtar a duração do trabalho de parto(9)9. World Health Organization (CH). WHO recommendations: Intrapartum care for a positive childbirth experience. Geneva: WHO; 2018 [cited 2019 out 24]. Available from: Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/260178/9789241550215-eng.pdf?sequence=1
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Das violências obstétricas citadas, a M17 sofreu muitos tipos de abuso no nascimento de seus gêmeos, F8 e F9. Ela foi obrigada a ir caminhando, após um parto vaginal, até o bloco cirúrgico para fazer a cesárea do segundo gemelar. Lá, sofreu novas situações de violência conforme descrito a seguir.

Eu falei para os estudantes que tinha medo de ganhar com essa médica, pois ela é famosa na cidade pela violência. O primeiro gêmeo F8 foi parto vaginal. A F9 ela disse que iria botar os ferros para virar a F9 que estava sentada. Eu disse que não. Ela respondeu: -Nem queria mesmo, te levanta e vamos para cesárea. Me levantou e me levou caminhando até a sala da cesárea com o cordão do F8 pendurado e a tesoura (pinça) na ponta. (M17)

O primeiro corte então da cesárea eu senti e o anestesista falou: -Ela está sentindo, está levantando a perna! Ela respondeu: -Não está sentindo nada. Isso é fiasco. Aí ele me levantou e disse: -Vou dar outra anestesia nela!. Durante a cesárea eu via que ela puxou um cano para fazer uma lavagem e aquela água com sangue escorria. (M17)

A enfermeira disse: -Te acalma, vai dar tudo certo contigo. Eu chorava e dizia que estava me sentindo mal. Outro médico perguntou: -O que tais fazendo nela? Isso não é uma laqueadura. Estás tirando tudo para fora dela. Ela me disse que ia deixar as trompas no vidro para eu fazer com massa. Minha pressão subiu. Em casa eu fiquei toda roxa, toda cortada, me levantava com ajuda e caminhava agachada. (M17)

A história de M17 relata várias formas de violência, principalmente a psicológica. Publicação da OMS relata sete tipos de VO: abuso físico, abuso sexual, abuso verbal, estigma e discriminação, falha em atender aos padrões profissionais de atendimento, baixa relação entre mulheres e profissionais e condições e restrições do sistema de saúde(11)11. Bohren MA, Vogel JP, Hunter EC, Lutsiv O, Makh SK, Souza JP, et al. The mistreatment of women during childbirth in health facilities globally: a mixed-methods systematic review. PLoS Med 2015;12(6):e1001847. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1001847
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Pesquisas mostram o mau atendimento descrito das seguintes formas: falta de manejo da dor no parto, ocorrência de complicações que ameacem a integridade física tanto da mulher quanto do bebê, exposição desnecessária da intimidade da paciente, dificuldades na comunicação, realização de procedimento ou exame sem consentimento ou de forma não respeitosa, discriminação por condição social ou cor, e, sobretudo, por tratamento grosseiro marcado pela impaciência ou indiferença dos profissionais e por falas de cunho moralista e desrespeitoso(12)12. Anunciação OS, Lamy ZC, Pereira MUL, Madeira HGR, Loyola CD, Gonçalves LLM, et al. Revés de um parto: relatos de mulheres que perderam o filho no período neonatal. Cad Saúde Pública. 2018;34(12): doi: https://doi.org/10.1590/0102-311x00190517
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Revisão integrativa dos últimos 10 anos mostrou o cenário da VO em 13 países. Os autores remetem a uma profunda relação existente entre a representação da ideologia de gênero e a ocorrência. A imagem da mulher consolidada culturalmente como um ser reprodutor, submisso, com inferioridade física e moral, abre precedente para a dominação, o controle, os abusos e a coação de seus corpos e de sua sexualidade, entrelaçados pelas questões discriminatórias. Nessa concepção de gênero, as mulheres são objetivadas, rotuladas naturalmente como corpos reprodutores e a subjetividade delas é anulada e são destituídas de qualquer direito de escolha(2)2. Jardim DMB, Modena CM. Obstetric violence in the daily routine of care and its characteristics. Rev Latino-Am Enfermagem. 2018;26:e3069. doi: https://doi.org/10.1590/1518-8345.2450.3069
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A banalização da VO, discretamente naturalizada em condutas tidas como “brincadeiras” e “piadas” por profissionais da saúde é até esperada pelas pacientes, que, socialmente, difundem essa realidade para outras mulheres como algo normal da vida cotidiana. Outro contraponto importante para a permanência dos atos violentos na assistência obstétrica firma-se no desconhecimento da mulher em relação aos seus direitos sexuais e reprodutivos. Na realidade, as mulheres não conseguem distinguir se sofreram ou não atos violentos, porque confiam nos profissionais que conduzem a assistência e, também, pela própria condição de fragilidade física e emocional que os processos obstétricos acarretam. Essa passividade permite a imposição autoritária de normas e valores morais depreciativos por profissionais de saúde que, mais uma vez, julgam saber o que é melhor para as pacientes, colocando-as em uma situação de impotência(2)2. Jardim DMB, Modena CM. Obstetric violence in the daily routine of care and its characteristics. Rev Latino-Am Enfermagem. 2018;26:e3069. doi: https://doi.org/10.1590/1518-8345.2450.3069
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Estudo que enfocou a realidade brasileira em 33 artigos trouxe a análise de estudos e sobre a violência institucional no parto, sendo a psicológica, a física e a estrutural as mais comuns nas maternidades brasileiras. Na maioria das vezes são relatadas pela mulher, embora profissionais também percebam e admitam sua perpetração. São relatos de coação profissional para o nascimento via cirurgia cesárea, bem como violência psicológica, marcada pelo fornecimento de informações falsas, por ameaças e pela desqualificação das decisões da mulher, sem diferenças entre classe social ou tipo de prestador de serviço. Encontrou-se também, a restrição de movimentos da parturiente no parto e a realização de procedimentos sem consentimento ou explicações, bem como o emprego de técnicas desaconselhadas pelas evidências científicas. Em geral, não foram percebidas pelos profissionais como violência física, mas como garantia de segurança, chancelada pela autoridade profissional, em especial a do médico(13)13. Marrero L, Brüggemann OM. Institutional violence during the parturition process in Brazil: integrative review. Rev Bras Enferm. 2018;71(3):1152-61. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0238
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Outra reflexão importante apontada por alguns autores fundamenta-se no paradoxo do exercício da VO por profissionais da saúde do sexo feminino, em alguns momentos identificadas como algozes, mais violentas que seus colegas homens no exercício da obstetrícia. Há uma negativação do fenômeno da feminização da assistência gineco-obstétrica associado ao crescente problema da VO e às questões de gênero. Também é ressaltada a dicotomia existente nesse processo por serem executoras e potencialmente vítimas quando necessitam de assistência em alguma demanda obstétrica(2)2. Jardim DMB, Modena CM. Obstetric violence in the daily routine of care and its characteristics. Rev Latino-Am Enfermagem. 2018;26:e3069. doi: https://doi.org/10.1590/1518-8345.2450.3069
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Assim, esses profissionais de saúde vivenciam o seu processo de autonomia centrado somente em seus valores, não dialogando com os saberes das mulheres. Torna-se necessário que a assistência seja centrada no cuidado seguro, como subsídio para um cuidado centrado na mulher, mesmo estando sustentado em uma autonomia repressora que tem o poder de determinar as condutas a serem realizadas. A falta de compreensão das carências das mulheres e a institucionalização de valores individuas dos profissionais de saúde para o cuidado, possibilitam a VO(14)14. Rodrigues DP. Os valores dos profissionais de saúde e sua influência no cuidado obstétrico: cotidiano das maternidades [tese] Niterói (RJ): Universidade Federal Fluminense; 2019 [cited 2019 Oct 20]. Available from: Available from: https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/9680/1/Diego%20Pereira%20Rodrigues.pdf
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CONCLUSÃO

Concluiu-se que muitas mulheres não percebem serem vítimas da violência obstétrica por desconhecerem o termo e possuírem dificuldade de identificar os atos vividos como uma violação da sua integridade física, psicológica e moral. As que percebem, parecem normalizar através das falas os atos violentos vivenciados, pois costumam se submeter à equipe que as atendem passivamente, em outros espaços de atendimento, além do momento do parto.

Nos relatos observou-se a violência mais intensa nos partos a partir do quinto filho em comparação com o primeiro, quando elas ainda eram adolescentes. O fato delas terem muitos filhos, pareceu conferir autoridade à equipe de saúde na prática da VO, ao perceber nesse fato a vulnerabilidade social que elas se encontravam.

A vulnerabilidade social surge como pano de fundo na causa da multiparidade em muitas histórias. A exposição da mulher a situações de desamparo da família, enquanto adolescente, desproteção do estado em relação à violência são fatores determinantes para o agravamento da sua condição.

O estudo possui como limitação o entendimento prévio das mulheres em relação à violência obstétrica, visto que é um tema pouco debatido socialmente. A ampliação da discussão sobre o tema nas instituições e sociedade é urgente a fim de promover uma melhor qualidade dos partos e nascimentos. Essa pesquisa pode contribuir para o ensino e assistência de enfermagem ao promover a reflexão sobre a vulnerabilidade das mulheres nas experiências relatadas. Torna-se importante a realização de pesquisas que ampliem o debate do tema nas instituições de saúde e de ensino.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2019
  • Aceito
    19 Jun 2020
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