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Meios de trabalho do enfermeiro na articulação da rede de atenção psicossocial

RESUMO

Objetivo:

Analisar os meios de trabalho do enfermeiro utilizados na articulação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

Método:

Estudo qualitativo exploratório-descritivo, realizado na RAPS de uma Gerência Distrital de saúde de Porto Alegre. Utilizou-se como técnica de coleta de dados a entrevista semiestruturada, realizada no período de outubro a dezembro de 2017. Os dados foram submetidos à análise temática sob referencial marxista do Processo de Trabalho.

Resultados:

A análise resultou em duas categorias temáticas: Gestão do Cuidado e Práticas de Cuidado. A primeira é composta por dois meios de trabalho: coordenação de equipe e reuniões com os demais componentes do território. A segunda, envolve três meios de trabalho: contatos telefônicos com serviços da RAPS; encaminhamentos do usuário na RAPS e apoio matricial.

Considerações finais:

Tendo em vista a superação do modelo manicomial, os meios de trabalho dos enfermeiros são instrumentos de produção de diálogos que visam ampliar o cuidado psicossocial.

Palavras-chave:
Enfermeiras e enfermeiros; Trabalho; Cuidados de enfermagem; Saúde mental; Redes comunitárias

ABSTRACT

Objective:

To analyze nurses' means of work used in the articulation of the Psychosocial Care Network (PCN)

Method:

An exploratory-descriptive qualitative study conducted at the PCN of a District Health Management in Porto Alegre. The data collection technique used was the semi-structured interview held from October to December 2017. Data was subjected to thematic analysis under the Marxist theory of the Labor Process.

Results:

The analysis resulted in two thematic categories: Care Management and Care Practices. The first consists of two means of work: team coordination and meetings with the other components of the territory. The second involves three means of work: telephone contacts with PCN services; user referrals in the PCN and matrix support.

Final considerations:

In view of overcoming the asylum model, nurses' means of work are instruments for producing dialogs aimed at expanding psychosocial care.

Keywords:
Nurses; Work; Nursing care; Mental health; Community networks

RESUMEN

Objetivo:

Analizar los medios de trabajo utilizados por los enfermeros en la articulación de la Red de Atención Psicosocial (RAPS).

Método:

Estudio cualitativo, exploratorio y descriptivo realizado en la RAPS de un Distrito de Gestión de la Salud en Porto Alegre. La técnica de recolección de datos utilizada fue la entrevista semiestructurada, de octubre a diciembre de 2017. Los datos se sometieron al análisis temático bajo la teoría marxista del proceso de trabajo.

Resultados:

El análisis derivó en dos categorías temáticas: gestión de la atención y prácticas de atención. El primero consiste en dos medios de trabajo: coordinación del equipo de trabajo y reuniones con los otros componentes del territorio. El segundo implica tres medios de trabajo: contactos telefónicos con servicios de la R APS; referencias de usuarios en la RAPS y soporte de matriz.

Consideraciones finales:

En vista de superar el modelo de los manicomios, los medios de trabajo de los enfermeros son instrumentos para producir diálogos destinados a expandir la atención psicosocial.

Palabras clave:
Enfermeras y enfermeros; Trabajo; Atención de enfermería; Salud mental; Redes comunitarias

INTRODUÇÃO

A atenção em saúde mental é pautada na existência de dois modelos em permanente tensionamento: o modo manicomial e o modo psicossocial. O modo manicomial tem o foco na doença, desconsiderando as subjetividades dos sujeitos, bem como, vai contra a ideia de direitos humanos, pois é pautado em um tratamento focado em ações punitivas e de isolamento. Em contrapartida, o modo psicossocial, advindo da Reforma Psiquiátrica na década de 80, entende que as questões de saúde mental devem levar em consideração a existência de múltiplos fatores e situações no sofrimento humano, colocando a doença entre parênteses e, valorizando as culturas, afetos, questões sociais, econômicas, ou seja, biopsicossociais11. Amarante P, Nunes MO. Psychiatric reform in the SUS and the struggle for a society without asylums. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23(6):2067-74. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
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Em consonância com o modo psicossocial, o trabalho em saúde mental deve ser pensado junto à sociedade, no contexto territorial, buscando um cuidado digno e enfrentamento das violações de direitos humanos11. Amarante P, Nunes MO. Psychiatric reform in the SUS and the struggle for a society without asylums. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23(6):2067-74. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
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. Nesse sentido, há também um direcionamento para que o sujeito, percebido como cidadão livre, tenha participação ativa em seu cuidado ao buscar os serviços de saúde mental.

Com isso, as práticas de cuidado que têm como finalidade a cura, com meios de trabalho ancorados na psiquiatria, são questionadas, pois a solução-cura torna-se simplista, sendo necessário entender que cuidar significa se ocupar de fazer com que se transformem os modos de viver e sentir o sofrimento11. Amarante P, Nunes MO. Psychiatric reform in the SUS and the struggle for a society without asylums. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23(6):2067-74. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
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Por meios de trabalho, entende-se os elementos que preexistem na natureza sem a intervenção humana ou instrumentos previamente elaborados que servem para direcionar a atividade do trabalhador na transformação do objeto de trabalho em um produto pretendido22. Marx K. O capital: crítica da economia política - Livro 1. 2ª ed. São Paulo: Boitempo; 2017. .

Nas práticas de cuidado do enfermeiro, o que se questiona não é o cuidado que é produzido, mas a maneira como é produzido, ou seja, com que meios de trabalho. Frente a isso, o enfermeiro deve, em seu processo de trabalho, proporcionar a escuta e a valorização do sujeito em sofrimento mental.

Entende-se que o trabalho da enfermagem é coletivo, pois suas ações são realizadas a partir da prática interprofissional e colaborativa, entre trabalhadores de diferentes áreas, no sentido de integração, do trabalho em equipe e da corresponsabilização do cuidado ao paciente33. Souza GC, Peduzzi M, Silva JAM, Carvalho BG. Teamwork in nursing: restricted to nursing professionals or an interprofessional collaboration. Rev Esc Enferm USP. 2016;50(4):640-7. doi: https://doi.org/10.1590/S0080-623420160000500015
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. Por outro lado, observa-se que essa integração na realização do trabalho em saúde ainda é incipiente e, o trabalho em enfermagem ainda carrega características de divisão dentro do próprio âmbito profissional, sendo composta por diferentes categorias de formação: enfermeiros, técnicos e auxiliares. Cada um destes trabalhadores presta parte da assistência em saúde separado dos demais, executando atividades delegadas, mantendo assim, um espaço limitado de decisão, criação e domínio de conhecimentos44. Tavares e Souza MM, Pereira JP, Melo CMT. Suffering and precariousness at work in nursing. J Res Fundam Care Online. 2015;7(1):2072-82. doi: https://doi.org/10.9789/2175-5361.2015.v7i1.2072-2082
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Considera-se, então, que a enfermagem pode potencializar o seu trabalho se realizar sua prática de cuidado em equipe, de forma compartilhada, rompendo com a lógica fragmentada e focada na divisão de trabalho que ocorre nos serviços que persistem marcados de forma hegemônica com as práticas do modo manicomial. Assim, o usuário não precisará adaptar a sua necessidade de saúde para a disciplina em que cada trabalhador tem competência e poderá abordar as questões que envolvem as demandas de sua vida.

No campo da saúde mental, os enfermeiros têm o desafio de trabalhar em uma rede de serviços substitutiva ao modo manicomial chamada de Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). A RAPS é formada por diferentes serviços de atenção primária, secundária e terciária de saúde que devem promover a saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com demandas relacionadas ao uso de crack, álcool e outras drogas55. Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011: Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União [da] República Federativa do Brasil. 2013 mai 21;151(96 Seção 1):37-8. -66. Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017: Altera as Portarias de Consolidação no 3 e nº 6, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre a Rede de Atenção Psicossocial, e dá outras providências. Diário Oficial da União [da] República Federativa do Brasil. 2018 jan 22;156(15 Seção 1):46. .

Para que os serviços de saúde funcionem como uma rede é necessário que se mude a lógica de trabalho e de relação entre os serviços, de modo que busquem estreitar a comunicação e a relação entre si, trabalhando de forma horizontal e integrada, trocando informações e responsabilidades. A fim de que isso aconteça, as ações desenvolvidas nos pontos de atenção da RAPS devem estar conectadas. Ou seja, articuladas de maneira que coloquem a rede e os usuários em movimento77. Zanardo GLP, Bianchessi DLC, Rocha KB. Dispositivos e conexões da rede de atenção psicossocial (RAPS) de Porto Alegre - RS. Est Inter Psicol. 2018;9(3):80-101..

Dessa forma, este artigo tem como questão norteadora: quais meios de trabalho são utilizados pelos enfermeiros e como influenciam na articulação da Rede de Atenção Psicossocial? Sendo assim, objetivou-se analisar os meios de trabalho do enfermeiro utilizados na articulação da Rede de Atenção Psicossocial. Justifica-se a escolha do tema pela necessidade de aprofundar o estudo da organização do trabalho da enfermagem em saúde mental, em um contexto de transformação paradigmática, como decorrência da reforma psiquiátrica, em constante tensionamento. Pois se entende que refletindo as mudanças, as potencialidades e as dificuldades no processo de trabalho da enfermagem em saúde mental, é possível ampliar abordagens, estratégias e meios de trabalho que valorizem a coletividade, a atenção psicossocial humanizada e o respeito aos direitos dos usuários de saúde mental.

MÉTODO

Estudo exploratório-descritivo de abordagem qualitativa, que possibilita obter informações por meio da aproximação do pesquisador de fenômenos e de experiências vividas pelos próprios sujeitos88. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014. , oriunda da dissertação de mestrado intitulada “O trabalho do enfermeiro na construção da Rede de Atenção Psicossocial”99. Braga, FS. O trabalho do enfermeiro na construção da Rede de Atenção Psicossocial [dissertação] Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2018. .

Os serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) de Porto Alegre estão distribuídos em 17 Distritos de Saúde (DS), que formam as oito Gerências Distritais (GD). As GD são estruturas administrativas e gestoras regionais. Caracterizam-se como espaços de discussão e prática onde são formuladas as estratégias para a atenção à saúde no SUS. Assim, este estudo foi realizado junto à RAPS, em diferentes DS vinculadas a uma GD de Porto Alegre, nos serviços que tinham enfermeiros na equipe. A escolha dos participantes ocorreu de modo intencional, através de convite, e em acordo com o critério de inclusão de trabalhar no mínimo há três meses nos serviços da RAPS da GD, excluindo-se os trabalhadores que estivessem afastados das atividades laborais por férias ou licença. Assim, participaram do estudo 12 enfermeiros. A fim de preservar o anonimato dos participantes, nos discursos seus nomes foram substituídos pela letra E (Enfermeiros), seguida do número ordinal de 1 a 12 (E1 a E12).

As informações foram coletadas através de entrevista semiestruturada, no período de outubro a dezembro de 2017. Esse instrumento combinou perguntas fechadas e abertas em que o entrevistado teve a possibilidade de discorrer sobre o tema sem se prender a indagação formulada, obedecendo a um roteiro que é apropriado fisicamente e utilizado pelo pesquisador88. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014. . O roteiro possuía duas questões norteadoras: fale sobre o trabalho que realiza envolvendo os demais serviços de saúde mental da rede; quais benefícios esse trabalho pode trazer para a rede?

Para sistematização dos dados, foi utilizada a análise de conteúdo das informações através da análise temática88. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014. ) sob referencial marxista do Processo de Trabalho que decompõe este processo em três momentos: a atividade orientada a um fim (o trabalho propriamente dito), o objeto de trabalho (elemento que será modificado através do trabalho e transformado em produto) e os meios de trabalho (instrumento que o trabalhador utiliza no objeto do trabalho como um guia para a atividade)22. Marx K. O capital: crítica da economia política - Livro 1. 2ª ed. São Paulo: Boitempo; 2017. . A análise temática foi realizada em três etapas: a pré-análise; a exploração do material; e o tratamento dos dados, a inferência e a interpretação88. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014. . Na etapa da pré-análise se implementou leitura e conferência da transcrição textual do áudio de cada entrevista, inseridas no software Nvivo 11, selecionando-se as unidades de registro e as unidades de contexto. Na exploração do material, a categorização agregou cada unidade de contexto em núcleos de compreensão para formar as categorias temáticas. No tratamento dos resultados obtidos e interpretação, essas informações foram analisadas à luz do referencial teórico.

Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), seguindo-se a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde para as considerações éticas. Este estudo é aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Porto Alegre sob CAAE nº 72361717030015338 de outubro de 2017.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Participaram 12 enfermeiros, sendo oito de Unidades de Saúde da Atenção Básica, um da Equipe de Saúde Mental Adulto (ESMA), um do Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS II), um do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSad) e um da Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Entre esses, os tempos decorrido desde a formação como enfermeiro variou entre 5 e 34 anos de formação com uma média de 14,1 anos. Referente aos tempos trabalhando nos seus respectivos serviços entre de 1 a 7 anos. Esses tempos demonstram a heterogeneidade do conjunto de participantes enquanto trabalhadores produtores de cuidado em saúde.

A concepção de trabalho, na qual se fundamenta o estudo, está em acordo com a teoria marxista de intencionalidade da atividade humana de trabalho defendida por Marx em O Capital, ou seja, “no final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente”22. Marx K. O capital: crítica da economia política - Livro 1. 2ª ed. São Paulo: Boitempo; 2017. .

Na análise das informações deste estudo, identificaram-se cinco meios de trabalho dos enfermeiros que compõem as duas categorias temáticas: Gestão do Cuidado e Práticas do Cuidado. A primeira é relacionada com atividades direcionadas aos trabalhadores, ao meio ambiente e à unidade de saúde, sendo composta por dois meios de trabalho: coordenação da equipe e reuniões com os demais componentes do território. A segunda constitui-se pela realização de ações de cuidados de enfermagem e envolve três meios de trabalho: contatos telefônicos com serviços da RAPS; encaminhamentos do usuário na RAPS e apoio matricial.

Os enfermeiros estão diretamente envolvidos nas ações gerenciais focadas nos usuários dos serviços, ou seja, ações gerenciais ligadas às atividades de cuidados1010. Gehlen GC, Silva Lima MAD. Nursing work in care practice at Emergency Care Units. Invest Educ Enferm. 2013;31(1):26-35.. Assim, essas duas categorias temáticas unificadas caracterizam o processo de trabalho do enfermeiro.

A gestão do cuidado é uma atribuição do enfermeiro diretamente relacionada à busca pela qualidade assistencial, sendo um meio de trabalho para a concretização das políticas de saúde, melhores condições de trabalho e facilitadora no processo de relacionamento interpessoal da equipe, estabelecendo vínculos e organização para o alcance do cuidado integral1111. Treviso P, Peres SC, Silva AD, Santos AA. Competências do enfermeiro na gestão do cuidado. Rev Adm Saúde. 2017;17(69). doi: https://doi.org/10.23973/ras.69.59
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. Desta forma, apresentamos a coordenação de equipe como meio de trabalho desta categoria.

Há cinco anos eu estou aqui na Prefeitura de coordenadora do CAPS II. [...] Atualmente, eu faço a gestão do CAPS, toda a parte de Recursos Humanos, de ponto, de ir em reuniões, representações (E2).

Além de assistência, eu realizo coordenação. [...] eu tenho um turno mais administrativo, para poder responder e-mails e várias outras demandas que vem para essa questão de coordenação (E7).

Este meio de trabalho, utilizado enquanto referência para articulação da RAPS, é utilizado por nove enfermeiros dos 12 entrevistados. Os enfermeiros afirmam a necessidade e o desejo de estarem juntos aos usuários produzindo estratégias de cuidado em atenção psicossocial, mesmo tendo dificuldades na utilização do meio de trabalho coordenação de equipe.

Tem algumas coordenadoras que preferem ficar só na gestão, mas eu gosto do contato com o paciente (E3).

Nas unidades a gente fica afogado nessa demanda espontânea de atender paciente, tantos pacientes que a gente acaba não conseguindo programar ações de coordenação (E4).

É bem difícil exercer a assistência e coordenação. Bem complicado quando se é única enfermeira. Então, essa é a parte que eu acho mais difícil. A parte burocrática nos toma muito tempo (E12).

Os depoimentos dos entrevistados apontam a dificuldade dos enfermeiros na realização das suas atividades de cuidado direto (assistência) e indireto (coordenação) aos usuários da rede de serviços, ficando muitas vezes, focados nas burocracias de seus cargos.

A dimensão gerencial, quando burocratizada, reduz o processo de trabalho do enfermeiro e o torna mecanicista. Por esse olhar, por mais que os serviços de saúde ainda estejam centrados em ações prescritivas, burocráticas e tecnicistas, a burocracia não deve prejudicar a gestão do cuidado, mas permitir ao enfermeiro gestor do cuidado o entendimento que é ator e propulsor de mudanças, e que por meio de ações de gestão planejada desenvolvidas coletivamente, pode produzir cuidado conforme a realidade de cada cenário de serviço1212. Soder R, Oliveira IC, Silva LAA, Santos JLG, Peiter CC, Erdmann AL. Desafios da gestão do cuidado na Atenção Básica: perspectiva da equipe de enfermagem. Enferm Foco 2018;9(3):76-80. doi: https://doi.org/10.21675/2357-707X.2018.v9.n3.1496
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Ao utilizar a coordenação de equipe como meio de trabalho, o enfermeiro produz um cuidado indireto, através da dimensão gerencial, com um potencial importante para a articulação da RAPS, pois este se torna a referência para os demais componentes do território e pode efetivar um cuidado de boa qualidade ao usuário que busca estes serviços. Assim, qualifica-se a gestão do cuidado na rede de serviços de saúde, promove-se um cuidado de saúde mental que atende as necessidades do usuário e fortalece o modo psicossocial.

As reuniões com demais componentes do território, como meio de trabalho da gestão do cuidado, são utilizadas pelos enfermeiros em um trabalho coletivo para melhoria da comunicação entre os trabalhadores, produzindo o cuidado em saúde em um processo de trabalho dinâmico, não alienado, participativo e em acordo com as necessidades dos usuários. Sobre esse meio de trabalho, os enfermeiros relatam:

Próxima reunião de conselho local, a gente vai colocar isso. A gente quer começar [um grupo] com a terceira idade (E5).

Reunião de colegiado é uma coisa que a gente participa na gerência. É uma reunião grande ampliada que é junto com os serviços [da atenção básica], mas é mais um fórum que a gerência coordena, coisas nossas. Participam todos os coordenadores de unidade da região (E2).

Participam os serviços especializados da saúde mental [na reunião da RAPS]. Agora se avançou em algumas coisas, tem o Hospital E., tem uma assistente social que participa. Que é bem legal para organizar a saúde de um usuário. Quando ele tem alta, muitas vezes, já direciona para os CAPS. A FASC [Fundação de Assistência Social e Cidadania] teve uns momentos que se afastou, agora está retomando [...] tem a participação do pessoal da política de saúde mental também. Sempre tem a participação da política junto nas reuniões mensais. (E3).

O Serviço de Atendimento Familiar [da assistência social] ajuda muito. E geralmente as meninas, elas são muito receptivas, elas vêm na reunião de equipe, a gente discute alguns casos também (E8).

As reuniões com os demais componentes da RAPS é um meio de trabalho estratégico para articulação e aproximação dos trabalhadores em espaços potentes de gerenciamento e cuidado integral aos usuários. Os enfermeiros relataram a participação na reunião de conselho local; reunião de equipe do serviço; reunião de coordenadores de serviços de saúde da GD (reunião de colegiado); e a reunião dos trabalhadores da atenção psicossocial especializada das GD (reunião da RAPS).

Observa-se na literatura que quanto maior a multiplicidade de pessoas e serviços envolvidos, e mais complexa a intervenção para resolução de determinado problema, maior é o nível de coordenação envolvido para alcançar o resultado esperado. Nas situações que envolvem a cronicidade e suas complexidades, exige-se o uso simultâneo de uma diversidade de serviços e ações. A gestão não pode ser vislumbrada, desta forma, como algo estático, e sim, dinâmico e ajustado a cada especificidade, buscando a construção de redes que cooperam, interagem e integram diferentes atores e serviços envolvidos1313. Almeida PF, Medina MG, Fausto MCR, Giovanella L, Bousquat A, Mendonça MHM. Coordenação do cuidado e Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde. Saúde Debate. 2018;42(spe1):244-60. doi: https://doi.org/10.1590/0103-11042018s116
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O direcionamento da pauta da reunião, na tentativa de afastar a burocratização, permite deliberações de possibilidades de intervenção que serão realizadas com os usuários. Desta forma, para além de um encontro burocrático, as reuniões devem ter a finalidade de aproximar os trabalhadores para a discussão de casos de usuários específicos, o gerenciamento da articulação da rede, atendendo as necessidades de cuidado direto e indireto. Produz-se, igualmente, a interrelação dos trabalhadores ao se conhecerem pessoalmente, buscando-se a eficiência dos atendimentos produzidos e o comprometimento da equipe para considerar as subjetividades dos usuários.

O diálogo nas reuniões é dispositivo de potência para articulação em rede, uma vez que esse meio de trabalho possibilita aos trabalhadores trocarem reflexões que propiciam uma melhor gestão dos processos de cuidado.

As reuniões trazem a ideia desse dinamismo grupal, pois é neste espaço de encontro, que une um conjunto de participantes entrelaçados por um objetivo comum, em que cada trabalhador com suas diferenças, experiências e singularidades individuais, possibilita uma aproximação aos problemas, reconhecimento de conflitos para então identificar recursos potenciais ou criativos para propor alternativas e superar obstáculos1414. Santos MA, Scatena L, Dias MGRO, Pillon SC, Miasso AI, Souza J, et al. Grupo operativo com professores do ensino fundamental: integrando o pensar, o sentir e o agir. Rev SPAGESP. 2016;17(1):39-50. .

As reuniões servem como um espaço de concepção e aprendizagem desse grupo, proporcionando um espaço de debate entre seus membros. Dessa forma, ao se reunirem periodicamente para debater atividades de trabalho, os trabalhadores da rede passam a se conhecer e se relacionar através de comunicação, buscando a realização de uma tarefa: o cuidado.

Na categoria temática Práticas de Cuidado, observa-se que os contatos telefônicos com serviços da RAPS são meios de trabalho que facilitam e agilizam a comunicação entre os serviços, influenciando positivamente no modo de organização e fortalecimento da rede.

É possível analisar nos relatos que, pelas especificidades de cada componente de rede, a comunicação entre os serviços realizadas por ligações telefônicas têm diferentes intenções. Os enfermeiros da UPA, por exemplo, utilizam os telefonemas, majoritariamente, como meio de trabalho para produzir a transferência dos usuários. Assim, realiza contato telefônico somente com os familiares e trabalhadores da central de leitos e do SAMU.

É o enfermeiro que tem que ficar ligando: liga para ambulância para agendar remoção; liga para o familiar, pede isso, pede aquilo, pede os documentos. Então, o enfermeiro já tem assistência e ainda tem todos os turnos, a [ligação da] central de vagas [...] Aí pega essa informação e vai se discutir com a equipe (E1).

A reciprocidade também acontece, os enfermeiros dos demais serviços da RAPS só entram em contato com a UPA em casos específicos ao tentar conseguir a internação de um usuário.

Daqui para lá [UPA], a gente também liga. Mas isso não é garantia de internação. Quando a gente liga? Quando a gente liga precisando de uma internação (E10).

Nota-se que a comunicação é uma tecnologia que está presente na utilização de diversos meios do processo de trabalho em enfermagem. O fortalecimento das relações com os demais pontos de atenção da rede de cuidado, o estabelecimento de direcionamento e gerenciamento nos instrumentos de comunicação possibilita ao trabalhador de saúde acompanhar o trajeto do usuário durante o seu fluxo na linha de cuidado. Por linha de cuidado, entende-se o trajeto do usuário por todos os serviços da rede que se articulam, se comunicam e lançam mão de tecnologias de saúde para resolver suas demandas. É importante pontuar que é necessária a co-responsabilização dos trabalhadores neste processo, para que o usuário não perca seu vínculo com serviços de referência territorial.(atenção básica)1515. Panzera CST. Rede de urgência e emergência no grande oeste de Santa Catarina e a educação [dissertação] Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2017 [cited 2019 Apr 10]. Available from: http://hdl.handle.net/10183/159633
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Os contatos telefônicos ocorrem com maior efetividade entre os serviços de saúde da atenção básica e atenção psicossocial especializada, facilitando a construção dos processos de trabalho e cuidado aos usuários. Isso ocorre porque esses serviços se encontram periodicamente através das reuniões de colegiado, na qual os trabalhadores se sentem fortalecidos para construção da rede e sentem mais facilidade de realizar as ligações por conta das relações estabelecidas presencialmente.

[...] sabendo com quem eu estou falando [ao telefone], é muito mais fácil. A gente consegue circular melhor na rede a partir de quando a gente se conhece (E2).

Para o CAPS ad a gente tem liberdade de ligar direto e marcar um acolhimento para esse paciente lá (E7).

Os contatos telefônicos são uma forma de comunicação mais ágil, entre os enfermeiros dos diferentes pontos de atenção, para dar e receber orientações sobre o cuidado a um usuário de saúde mental específico.

A gente troca muitas coisas, ligam para falar daquele paciente que está esperando e não está bem. Então, eles sabem que a gente dá o suporte. De alguma forma, acho que a gente conseguiu organizar uma rede. [E3]

Os contatos telefônicos também servem como um meio de trabalho para realizar combinação do encaminhamento de usuários de saúde mental para os serviços de atenção psicossocial especializada da rede.

Se a gestante está com algum problema individual, pessoal, passa para mim, eu faço um atendimento. Já ligo diretamente para a saúde mental, já tento organizar, ela sai com encaminhamento da consulta. A gente já faz direto assim, por exemplo, a gestante é uma prioridade. [E9]

O encaminhamento do usuário na RAPS, segundo meio de trabalho da categoria prática de cuidado, é usado na articulação em rede entre os serviços de saúde que atendem de portas abertas (UPA, CAPSad, UBS e ESF). Sobre isso, os enfermeiros referem:

Os casos de álcool ou uso de drogas, a gente consegue o encaminhamento direto no CAPS ad (E6).

A gente orienta o local e eles vão, portas abertas, assim, livre demanda. Eles chegam lá, mas a gente não chega a ter nenhuma resposta do CAPS ad (E8).

Para a unidade básica, a gente encaminha, às vezes, com próprio encaminhamento de documento de referência. Mas quando o paciente não usa medicação nenhuma, geralmente, a gente só orienta que tem unidade básica perto da casa dele, que ele utilize (E10).

O encaminhamento do usuário para outros serviços da RAPS é um meio de trabalho utilizado para iniciar o processo de articulação na busca da resolução de um problema do usuário. Assim, o encaminhamento ocorre através de uma orientação do enfermeiro para atenção as suas demandas, buscando promover a continuidade do cuidado ao usuário produzido pelas equipes de saúde. É considerado como fator de fortalecimento da RAPS, pois é através dele que inicia o usuário na sua linha de cuidado.

A linha de cuidado segue uma ideia de trabalho em saúde que deve partir do sujeito, que ao mesmo tempo é sujeito corpo e que se amplia ao sujeito aprendiz, cidadão, social e cultural. Desta forma, as ações de cuidado devem partir de cada realidade, situação de vida e saúde identificada, incorporando a necessidade de novos serviços e atores para compor e trabalhar com a complexidade deste sujeito ativo e dinâmico1616. Ribeiro CT, Nascimento ZA. O encontro entre educação, saúde e psicanálise na tecitura de uma rede de cuidado às pessoas que usam drogas. Rev Latinoam Psicopatol Fundam. 2018;21(3):660-4. doi: https://doi.org/10.1590/1415-4714.2018v21n3p660.13
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. Neste sentido, o encaminhamento pode ajudar com que este sujeito tenha suas situações de saúde resolvidas, fazendo uma caminhada pela rede, incorporando novos serviços, atores e práticas de cuidado de acordo com suas necessidades.

Observa-se nos relatos que a abertura de horário estendido noturno ampliou o acesso da atenção primária e tem levado os enfermeiros a encaminhar os usuários para essa unidade quando a demanda de saúde mental não é emergencial, mas precisa ser acolhida. Assim, ao realizar o encaminhamento, o enfermeiro contribui para a redução da demanda reprimida.

O que a gente consegue resolver a gente resolve, senão, a gente encaminha para algum outro lugar. [...] E com as unidades que estão tendo turno estendido agora, como o [Centro de Saúde] Modelo, por exemplo, a gente consegue encaminhar para lá alguns pacientes também (E11).

Contudo é importante tensionar que esses encaminhamentos realizados para outros serviços da RAPS, para além da necessidade de oferta de um atendimento mais dinâmico e resolutivo, há que se atentar para a lógica da transferência de responsabilidade, a qual propicia o fortalecimento dos encaminhamentos desnecessários, pois quando se encaminha o usuário para o outro receber/resolver, sem a preocupação do acompanhamento, da continuidade do cuidado, reduz-se a possibilidade de resolutividade, ocasionando ainda, fragmentação do trabalho e desresponsabilização pelos casos e usuários.

Em relação à ampliação do acesso promovido pela abertura das unidades em horário estendido pode perder a sua potencialidade se outros dispositivos não forem simultaneamente implantados, como mudanças no modelo de agendamento para priorizar a demanda espontânea, modelos que estimulem a continuação do cuidado e evitar a propagação da fragmentação no atendimento em diferentes serviços nos quais os usuários não possuem vínculo.

Isso é observado na literatura, que aborda que a abertura de atendimento em saúde, baseado nos moldes curativos, impede a corresponsabilização e o compartilhamento do cuidado, pois os trabalhadores da saúde estão acostumados a enviar o usuário para consulta com o especialista baseados na concepção de sinais e sintomas que são apresentados1717. Pessoa BHS, Gouveia EAH, Correia IB. Funcionamento 24 horas para Unidades de Saúde da Família: uma solução para ampliação de acesso? um ensaio sobre as “upinhas” do Recife. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2017;12(39). doi: https://doi.org/10.5712/rbmfc12(39)1529
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O terceiro meio de trabalho que integra a categoria temática Práticas do Cuidado trata-se do apoio matricial realizado por meio da interconsulta, conforme relatam os enfermeiros:

Tem algumas unidades que são nossas referências, então eles vêm na terça-feira aqui para fazer o matriciamento e, muitas vezes, daqui a gente sai com alguma coisa para fazer dentro das unidades (E2).

Então, a gente sempre tem esses dois matriciamentos. Eu sou enfermeiro responsável por matriciar todas as crianças no EESCA e a enfermeira X é responsável por matriciar todos os adultos no ESMA (E7).

Mudou o fluxo, antes a gente levava direto para o EESCA, agora a gente faz o matriciamento com o NASF e o NASF avalia. Dependendo, alguns casos eles nos apoiam, nos ajudam e chamam a família para conversar (E8).

O apoio matricial diz respeito à responsabilização compartilhada do cuidado e da construção conjunta de intervenções, saberes e fazeres nos diferentes níveis assistenciais. Esta proposta de arranjo organizacional permite a articulação entre os serviços, a comunicação entre os diferentes trabalhadores mediados por princípios inter e/ou transdisciplinar1818. Hirdes A. Matrix Support in mental health: the perspective of the experts on the work process. Saúde Debate. 2018;42(118):656-68. doi: https://doi.org/10.1590/0103-1104201811809
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A interconsulta, como uma ferramenta do apoio matricial objetiva a assistência e a ação pedagógica entre serviços de saúde, equipes de trabalhadores e usuários. Este meio de trabalho ultrapassou seu sentido inicial de consultoria, pois compreende uma ação ampliada, que abrange tanto a assistência ao usuário quanto a equipe e instituição. Quando desenvolvida no âmbito multidisciplinar permite que casos complexos sejam discutidos de forma mais integral, pois envolve intervenção conjunta e diversos trabalhadores, bem como permite que se tenha uma visão ampliada dos casos assistidos e uma maior assistência pelas equipes de saúde1919. Farias GB, Fajardo AP. A interconsulta em serviços de Atenção Primária à Saúde. Rev Eletrôn Gestão Saúde. 2015 [cited 2019 Mar 17];6(Supl-3):2075-93. Available from: http://periodicos.unb.br/index.php/rgs/article/view/3076
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Observa-se nas falas dos trabalhadores que o apoio fornecido fortalece um trabalho coletivo e maior segurança no tema da saúde mental, no entanto, enfrenta suas resistências na dificuldade de compreensão ampliada da saúde mental e participação de todos os membros da equipe.

Quando a gente começou a propor que a gente iria discutir os casos, ver o que era, estar discutindo com a equipe, teve muita resistência. Então, os médicos se recusavam a participar do matriciamento, ficava muitas vezes, como até agora, é focado no enfermeiro. [...] Quem se envolve com matriciamento são pessoas que tem, de alguma forma, uma escuta mais diferenciada na saúde mental. Então, tem profissionais que detestam, que não gostam dessa coisa de saúde mental, mas esses não são os profissionais que a gente matricia (E3).

Os casos que a gente não consegue dar conta aqui na unidade, a gente leva para o matriciamento no CAPS [...]. Normalmente, quem fazia essa discussão era o médico, mas no período estamos sem médico. A gente já teve outras vezes sem. Eu normalmente posso combinar com eles e levar os casos (E11).

O apoio matricial por meio da interconsulta necessita efetivamente da participação coletiva dos diversos trabalhadores presentes da RAPS. A organização e seleção dos casos de saúde mental que serão matriciados fica sob responsabilidade do enfermeiro e do médico da atenção básica que dividem essa atividade para organizar o processo de trabalho da equipe. As discussões de caso da saúde mental, por meio das interconsultas, são mais efetivas quando realizadas com apreciações interdisciplinares, pois é possível ampliar a pluralidade de experiências e conceitos de saúde, identificar os recursos da rede e as necessidades e possibilidades na construção da articulação.

A radicalidade do apoio matricial tem promovido uma trincheira de resistência para os trabalhadores fortalecerem novas formas de construção das redes em saúde, em contraposição a hegemonia de coordenações antidemocráticas e do modelo biomédico, produzindo a integração e compartilhamento do cuidado entre as equipes de saúde da rede2020. Castro CP, Campos GWS. Apoio Matricial como articulador das relações interprofissionais entre serviços especializados e atenção primária à saúde. Physis. 2016;26(2):455-81. doi: https://doi.org/10.1590/S0103-73312016000200007
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O encontro dos trabalhadores oferece visibilidade para a necessidade dessas ações conjuntas e, além disso, a reflexão para enfrentar o sucateamento dos serviços especializados que funcionam com a porta fechada e o acolhimento com agendamento, o que, por vezes, pode-se considerar uma redução da ferramenta para dificultar o encaminhamento dos usuários esses serviços.

Os meios de trabalho identificados no processo de trabalho dos enfermeiros (coordenação da equipe, reuniões com os demais componentes do território, os contatos telefônicos com serviços da RAPS; os encaminhamentos do usuário na RAPS e o apoio matricial), em parte, ainda reproduzem o pensamento de buscar serviços especializados que não os coloquem como corresponsáveis pelo cuidado do usuário de saúde mental em seu território, voltando-se a eles (serviços especializados) para discussão de casos e intervenções, corroborando com a desarticulação na RAPS e na manutenção de um cuidado manicomial, focado na doença.

Em contrapartida, há potencialidades nos meios de trabalho utilizados pelos enfermeiros que indicam um movimento para tentativa de comunicações em rede e o cuidado territorial, buscando efetivar um trabalho coletivo, contrapondo o modelo biomédico para a construção e o fortalecimento da RAPS. Este movimento se dá pela utilização de tecnologias relacionais como o diálogo, o apoio entre trabalhadores, a tentativa de ampliar o debate da saúde mental na rede.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa se analisou os meios de trabalho do enfermeiro utilizados na articulação da Rede de Atenção Psicossocial: coordenação da equipe, reuniões com os demais componentes do território, contatos telefônicos com serviços da RAPS; encaminhamentos do usuário na RAPS e apoio matricial.

Reflete-se que existe uma busca pela mudança de modelo, sentida na necessidade prática dos enfermeiros, em que sai de um foco manicomial, centrado na doença e na exclusão social, para um modo psicossocial, que propõe o cuidado em liberdade e organizado em rede. No entanto, ainda que exista esse movimento de mudança e potencialidades para a articulação da RAPS, os enfermeiros enfrentam dificuldades em um trabalho que gere uma corresponsabilização compartilhada entre toda a rede pelo processo de cuidado do usuário e seu retorno ao território, bem como, abordagens para além da doença e especialidades.

É importante ressaltar que o contexto político atual indica caminhos para sucateamento e retrocessos no modo da atenção psicossocial focado no sujeito e suas complexidades, contribuindo para persistência ao modelo tradicional de psiquiatria embasado por ações restritas a medicalização, diagnósticos, sinais e sintomas. Diante disso, conclui-se que os enfermeiros e equipes, apesar das limitações, criam possibilidades e meios de trabalho na gestão e prática de cuidado que são potentes para fortalecer a abordagem psicossocial na vida do usuário, mesmo em meio a normas e portarias ministeriais que vem descontruindo políticas públicas de inclusão e reforçando o modelo de contrarreforma psiquiátrica.

A pesquisa trouxe como diferencial a escuta dos enfermeiros sobre seus meios de trabalho em diversos pontos da rede, visando a intersetorialidade e os diferentes contextos no cuidado em saúde mental. Como limitação deste estudo, aponta-se o fato de ter sido local, ou seja, com foco em um grupo de interesse, e desta forma apresentando dados por um ponto de vista. Sugere-se a realização de estudos qualitativos que possibilite ouvir usuários e familiares sobre o trabalho de enfermagem em rede de atenção psicossocial.

As implicações para enfermagem e novas pesquisas nesse tema devem levar em consideração a necessidade permanente de discussão de modelos de saúde para o fortalecimento do modo psicossocial, entendendo que ainda apresentamos um cuidado em permanente tensionamento, ou seja, com abordagens tradicionais que reforçam a solução de problemas biológicos em detrimento de uma visão de saúde biopsicossocial e em rede intersetorial. Para tal, a pesquisa qualitativa pode ser uma importante ferramenta por ouvir as vozes que denunciam as contradições e dissonâncias no cotidiano das redes e serviços.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2019
  • Aceito
    16 Set 2019
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