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Enfermagem obstétrica: trajetória e constituição em sete décadas da Escola de Enfermagem da UFRGS

RESUMO

Objetivo:

Descrever a trajetória e constituição da Enfermagem Obstétrica em sete décadas de existência da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - EENFUFRGS.

Método:

Estudo teórico reflexivo em base documental cujas fontes de consulta foram documentos e experiências descritas pelos autores. A análise dos materiais foi estruturada com base no referencial teórico filosófico de Michel Foucault.

Resultados:

Identificaram-se saberes e poderes que estruturaram e caracterizaram a Arena I: criação da EENFUFRGS; a Arena II: Enfermagem Obstétrica na graduação; a Arena III: formação de enfermeiras obstétricas e a Arena IV: não estamos sós, que salienta a importância da EENFUFRGS em suas relações com outras entidades.

Considerações finais:

Em 70 anos de existência a EENFUFRGS mantém a vitalidade de uma Instituição sólida em seus princípios e jovem na disposição, enfrentando necessários confrontos para garantir o ensino e o exercício da Enfermagem Obstétrica de qualidade.

Palavras-chave:
Enfermagem obstétrica; História da enfermagem; Ensino

ABSTRACT

Objective:

Describing the trajectory and constitution of Obstetric Nursing in seven decades of existence of the Nursing School of the Universidade Federal do Rio Grande do Sul (EENFUFRGS).

Methods:

Theoretical and reflexive study based on documents and author experience. Data analysis was based on Michael Foucault’s theoretical framework.

Results:

Analysis identified knowledge and forces that structured and characterized the Arena I: the creation of EENFUFRGS; the Arena II: Obstetric Nursing in graduation; the Arena III: Obstetric Nurses formation, and Arena IV: we are not alone!, highlight the importance of EENFUFRGS in its relationship with other entities.

Final considerations:

During the 70 years of EENFUFRGS existence, it maintains the vitality of a solid institution in its principles coupled with a youthful in disposition, facing necessary challenges to guarantee quality teaching and practice of Obstetric Nursing.

Keywords:
Obstetric nursing; History of nursing; Education

RESUMEN

Objetivo:

Describir la trayectoria y constitución de la enfermería obstétrica en las siete décadas de la Escuela de Enfermería de la Universidade Federal de Rio Grande do Sul - EENFUFRGS.

Método:

Estudio teórico reflexivo documental basado en documentos y experiencias descritas por los autores. El análisis de los materiales fue basado en las teorías filosóficas de Michel Foucault.

Resultados:

Se identificó conocimientos y poderes que estructuraron y caracterizaron las Arena I: la creación de la EENFUFRGS; Arena II: Enfermería Obstétrica en la graduación; Arena III: formación de enfermeras obstétricas; y Arena IV: no estamos solos, que destaca la importancia de EENFUFRGS en sus relaciones con otras entidades.

Consideraciones finales:

En sus 70 años de existencia, la EENFUFRGS mantiene la vitalidad de una Institución sólida en sus principios pero joven en su disposición, enfrentando los desafíos necesarios para garantizar la enseñanza y el ejercicio de la enfermería obstétrica de calidad.

Palabras clave:
Enfermería obstétrica; Historia de la enfermería; Educación

INTRODUÇÃO

Este artigo visa a descrição da trajetória e constituição da Enfermagem Obstétrica em sete décadas de existência da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - EENFUFRGS ao resgatar histórias da formação das parteiras e enfermeiras obstétricas e, portanto, a criação de novos elos e cores à história das práticas realizadas pela Enfermagem Obstétrica. A Enfermagem Obstétrica nunca se desenvolveu fora de arenas de lutas e a EENFUFRGS teve participação modelar nas batalhas travadas ao longo do tempo, nem sempre bem conhecidas. O termo arena de lutas para fins deste artigo foi significado enquanto saberes e poderes da Enfermagem Obstétrica inseridos em jogos de forças cujos efeitos produtivos são o resultado do embate entre elas. O poder neste artigo deve ser pensado na ação de um sobre o outro com o outro, portanto um jogo ético e não violento cujas lutas evidenciam uma produção e não uma destruição; uma ação que se renovou a cada batalha, ao contrário de uma guerra ou combate,cujos efeitos seriam a dominação ou o fim. Assim, nas arenas de lutas da Enfermagem Obstétrica há lugar para resistência que é, também, o lugar da liberdade, ou seja, uma condição da existência do poder uma vez que é preciso liberdade para que o poder se exerça11. Foucault M. Microfísica do poder. São Paulo: Graal; 2007.. Nestas lutas o poder, em vez de reprimir, estimula e cria condições de liberdade para que o saber da Enfermagem Obstétrica se evidencie.

METODOLOGIA

Estudo teórico reflexivo em base documental cujas fontes de consulta foram documentos e experiências descritas pelas autoras. A análise dos materiais foi estruturada com base no referencial teórico filosófico de Michel Foucault tais como poder, saber, liberdade11. Foucault M. Microfísica do poder. São Paulo: Graal; 2007. e contingenciados em locais específicos, ou arenas22. Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes; 2014., onde discursos da Enfermagem Obstétrica foram colocados em operação.

RESULTADOS

À luz dos materiais analisados identificaram-se saberes e poderes na enfermagem que estruturaram e caracterizaram a Arena I com a criação da EENFUFRGS; a Arena II com a emergência da Enfermagem Obstétrica na graduação; a Arena III cujo foco foi a formação de enfermeiras obstétricas e Arena IV: não estamos sós, que salienta a importância da EENFUFRGS em suas relações com outras entidades.

ARENA I: A CRIAÇÃO DA EENFUFRGS

A EENFUFRGS foi criada em 4 de dezembro de 1950 e é pioneira para os cursos de graduação de enfermeiras no Rio Grande do Sul. Surgiu como curso anexo à Faculdade de Medicina da UFRGS permanecendo assim até 1968. As candidatas ao curso de enfermagem deveriam ter o ginásio completo, apresentar atestado de sanidade física e mental, de idoneidade moral e de vacinas, além de realizar provas de química, física e biologia. A idade requerida era entre 18 e 38 anos. O curso exigia tempo integral das alunas e professoras e, a opção do regime de internato, também para alunas e professoras, foi mantida até a década de 1960. As integrantes do curso eram chamadas de “pupilas do senhor reitor”. A forma de convivência propiciava a uniformização e a monitorização de comportamentos, o exercício da obediência, da dedicação, da disciplina e da abnegação33. Brandão NS. Da tesoura ao bisturi, o ofício das parteiras: 1897-1967 [tese]. Porto Alegre (RS): Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 1998..

As aulas eram ministradas em salas da Faculdade de Medicina e as práticas ocorriam na Irmandade de Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Professores da Faculdade de Medicina ministravam aulas em disciplinas como fisiologia, anatomia humana e obstetrícia; temas sobre vestuário das gestantes, higiene e psicologia da gestação ficavam a cargo das docentes da EENFUFRGS que eram enfermeiras, algumas obstétricas44. Pruss ACSF. O ensino de graduação em enfermagem na Universidade Federal do Rio Grande do Sul referente à parturição nas décadas de 1950 e 1960 [dissertação]. Porto Alegre (RS): Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2014..

À medida que crescia o número de enfermeiras docentes na EENFUFRGS os médicos foram deixando de ministrar aulas nas disciplinas profissionalizantes. Nesta arena pode-se pensar que a luta pelo ensino da Enfermagem Obstétrica está apaziguada na EENFUFRGS, visto que a disciplina relacionada a esta área é ministrada por docentes que são enfermeiras obstétricas.

ARENA II: A ENFERMAGEM OBSTÉTRICA NA GRADUAÇÃO

As Diretrizes e Bases da Educação Nacional instituíram novos currículos mínimos para a educação (LEI 4.024/1961)55. Presidência da República (BR). Lei n. 4024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, DF, 1961 [citado 2019 jan 20]. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4024-20-dezembro-1961-353722-normaatualizada-pl.pdf
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) cujas regras específicas para a enfermagem foram reguladas no parecer nº 271 de 1962 do Conselho Federal de Educação66. Conselho Federal de Educação (BR). Parecer n.º 271 de 19 de outubro de 1962. Currículo do curso de enfermagem. Documenta, 1962;(10):54-60.. Até então os cursos de graduação em enfermagem formavam enfermeiras em três anos. Havia um tronco comum de disciplinas ministrado nos dois primeiros semestres; nos outros quatro semestres as acadêmicas eram direcionadas para as especialidades de escolha. O parecer de 1962 destacou a manutenção das especialidades ao manter a graduação em três anos e criar as habilitações optativas no quarto ano. As egressas do curso de enfermagem da UFRGS podiam realizar tais especializações após a graduação sem seleção adicional, visto que as habilitações tinham o caráter de continuação da graduação.

A reforma curricular do ano de 1962 foi consolidada em 1968 com o movimento da Reforma Universitária77. Presidência da República (BR). Lei nº. 5540, de 28 de novembro de 1968. Fixa normas de organização e funcionamento do ensino superior e sua articulação com a escola média, e dá outras providências. Brasília, DF; 1968 [cited 2019 Jan 20]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5540.htm
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, período de turbulências políticas e de desenvolvimento científico,quando foram priorizadas disciplinas técnicas de caráter curativo em detrimento das de saúde preventiva,valorizando a aprendizagem no ambiente hospitalar88. Teófilo TJS, Gubert FA, Ximenes Neto FRG. Formação de enfermeiros no Brasil: compreensão histórica de seus alicerces. Av Enferm. 2012 [cited 2019 Jan 10];30(3):135-42. Available from: https://revistas.unal.edu.co/index.php/avenferm/article/view/39970/42385
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.

O currículo do curso de graduação em enfermagem da EENFUFRGS sofreu outras reformulações até 2013, quando o curso foi ampliado de quatro anos e meio e 4.035h para cinco anos e 4.121h. A reorganização do curso de graduação promoveu inclusões e exclusões de disciplinas e conteúdos. Atualmente a disciplina que aborda prioritariamente o cuidado de enfermagem em obstetrícia se localiza na quinta etapa do curso e se denomina Cuidado em enfermagem às mulheres e aos recém-nascidos. No Plano de Ensino desta disciplina estão descritos conteúdos específicos relacionados à gestação, ao parto e puerpério, pautados em programas e políticas nacionais99. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 1.459, de 24 de junho de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS - a Rede Cegonha. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2011 [cited 2019 Apr 11]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt1459_24_06_2011.html
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, abordados em sala de aula e nos cenários de práticas. O descompasso entre o que é preconizado para a aplicação de práticas baseadas nas melhores evidências e a atuação da enfermeira na assistência ao parto tem suscitado questionamentos dos acadêmicos às docentes. O reconhecimento de que o que é ensinado traz melhores resultados e satisfação à população atendida, tem produzido a inserção de alunos e docentes no movimento em prol da humanização do parto e nascimento. Isto, dentro do referencial proposto, caracteriza uma arena de lutas onde estudantes e docentes percebem diferenças entre o modelo hegemônico, eminentemente médico e hospitalocêntrico, e o preconizado para o cuidado de Enfermagem Obstétrica à mulher, ao mesmo tempo em que procuram implementar as boas práticas. A luta entre argumentos hegemônicos e violentos em confronto com argumentos baseados em evidências científicas e atitudes éticas sobre o parto e nascimento se dão por meio dos discursos que acolhe e faz funcionar como verdadeiros, um dispositivo11. Foucault M. Microfísica do poder. São Paulo: Graal; 2007.) que permite distinguir enunciados verdadeiros dos falsos e que a EENFUFRGS, enquanto “estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”11. Foucault M. Microfísica do poder. São Paulo: Graal; 2007., faz circular entre colegas, acadêmicos e comunidade.

ARENA III: A FORMAÇÃO DE ENFERMEIRAS OBSTÉTRICAS

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 2005 permitiu a formação de enfermeiras obstétricas de duas diferentes maneiras no âmbito da educação superior: por programas de Residência ou por meio de Cursos de Especialização, ambas exigindo como requisito a graduação em enfermagem.

Os cursos de para formação de enfermeiras obstétricas acontecem na EENFUFRGS desde 1966. A partir de 1999, em meio a discussões sobre a assistência ao parto e nascimento1010. Riffel MJ. A ordem da humanização do parto na educação da vida. 2005 [tese]. Porto Alegre (RS): Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2005. , o Ministério da Saúde se viu envolvido nas mudanças do modelo de atenção ao buscar aproximar as práticas utilizadas às melhores evidências científicas disponíveis, num movimento reforçado pela estratégia da Rede Cegonha, em 2011. Entre programas, estratégias, resoluções e discussões o país se colocou ao encontro dos acordos internacionais, dos quais é signatário, para a redução das mortalidades maternas e infantis. A partir daí, tem firmado convênios com universidades e secretarias de saúde em todo o território nacional e intensificado o financiamento e a promoção de cursos de especialização em Enfermagem Obstétrica, principalmente junto às universidades federais, para a formação de enfermeiras que trabalham em maternidades públicas vinculadas à Rede Cegonha99. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 1.459, de 24 de junho de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS - a Rede Cegonha. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2011 [cited 2019 Apr 11]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt1459_24_06_2011.html
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, visto que, neste programa, a enfermeira obstétrica é a profissional indicada para assistir as mulheres no parto e nascimento de risco habitual.

Em 2013, o Ministério da Saúde se articulou com a Universidade Federal de Minas Gerais para a formação de 900 enfermeiras obstétricas no país. Na primeira das três edições previstas para esta formação, a EENFUFRGS integrou a lista de 18 instituições federais de ensino superior de diferentes estados da federação. Desta maneira, em 2016, a EENFUFRGS foi a única instituição das Regiões Sul e Sudeste do país a formar 12 profissionais oriundas de diferentes regiões do estado do Rio Grande do Sul.

Entre 2011 e 2014 a EENFUFRGS participou do Grupo Condutor da Rede Cegonha do RS, criado pela Comissão Intergestores Bipartite/RS1111. Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul (BR). Resolução nº 444/11 - CIB/RS. Aprova a constituição do Grupo Condutor Estadual da Rede Cegonha no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Secretaria Estadual da Saúde; 2017 [cited 2019 Mar 10]. Available from: http://www1.saude.rs.gov.br/dados/1322062427343cibr444_11.pdf
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,onde representantes das instituições afins se reuniam para discutir estratégias de viabilização da Rede Cegonha no Rio Grande do Sul e onde o Curso de Especialização em Enfermagem Obstétrica foi anunciado ao final de 2014. No início de 2015, o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul editou a Resolução 02/2015 a qual considerou nociva “a possibilidade de realização de parto sem a presença de obstetra, de pediatra, de neonatologista e, até mesmo, sem a presença de médico”1212. Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (BR). Resolução CREMERS nº 02/2015. Porto Alegre: CREMERS; 2015 [cited 2019 Mar 11]. Available from: http://www.cremers.org.br/dowload/parto%20humanizado.pdf
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. A Resolução prescrevia ser “dever do médico do Corpo Clínico [da instituição hospitalar] comunicar o ocorrido à Direção Clínica e à Comissão de Ética, quando existentes, e ao CREMERS”1212. Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (BR). Resolução CREMERS nº 02/2015. Porto Alegre: CREMERS; 2015 [cited 2019 Mar 11]. Available from: http://www.cremers.org.br/dowload/parto%20humanizado.pdf
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) quando um profissional não médico assistisse qualquer parto. A Resolução visava responsabilizar civil e criminalmente o profissional não médico, ou seja, enfermeiras que assistissem ao parto. As entidades representativas da enfermagem do Rio Grande do Sul, como Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiras Obstétricas, o Conselho Regional de Enfermagem e o Sindicato dos Enfermeiros entraram com recurso junto ao Ministério Público Federal para suspensão imediata da Resolução, com a justificativa de que, além de legislar indevidamente sobre outra profissão, colocava em risco a saúde da população. Foram meses de intensas negociações até a justiça federal suspendê-la liminarmente.

Os efeitos da Resolução 02/2015 foram devastadores para o curso de especialização, visto que as instituições hospitalares do Rio Grande do Sul se sentiram obrigadas a negar cenários de práticas para o ensino da assistência ao parto. As especializandas tiveram que ser deslocadas para a Maternidade do Bairro Novo, na cidade de Curitiba-PR, para a realização de suas práticas de parto. A conclusão da formação deste grupo de 12 enfermeiras obstétricas foi postergada para maio de 2016. O Rio Grande do Sul não pode participar da segunda edição do deste programa em função das interdições à assistência e ao ensino da Enfermagem Obstétrica impetradas por entidades de classe e instituições hospitalares alheias à enfermagem. Um outro curso para formação de especialistas só foi possível de ser iniciado em maio de 2018, quando o Ministério da Saúde realizou um acordo direto com EENFUFRGS. As 15 vagas deste curso também foram preenchidas com enfermeiras oriundas de instituições vinculadas à Rede Cegonha de diferentes cidades do Rio Grande do Sul.

De 1966 a 2019 a EENFUFRGS formou 146 enfermeiras obstétricas em 11 cursos, em meio a lutas por ampliação do espaço de atuação e melhoria da atenção à saúde da população.

ARENA IV: NÃO ESTAMOS SÓS!

A obstetrícia brasileira sofreu forte influência das práticas obstétricas realizadas em países europeus como Portugal, Inglaterra, França e Holanda por meio de seus colonizadores. A partir da criação de cursos de medicina e de partos no Brasil as práticas obstétricas passaram a ter forte influência dos Estados Unidos1313. Souza MLBMM. Parto, parteiras, parturientes: Mme. Durocher e sua época [tese]. São Paulo (SP): Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; 1998..

Apoiados pela OMS, na década de 1980, grupos internacionais de pesquisadores se organizaram para sistematizar estudos sobre eficácia e segurança na assistência à gravidez, parto e pós-parto, uma vez que com a adoção mundial do modelo tecnocrático americano os custos com a saúde aumentavam e não havia melhoria nos resultados da assistência e redução nas mortalidades materna e perinatal. A influência americana se expandia nos desenhos de financiamentos de pesquisas evidenciando o poder econômico e corporativo1414. Diniz CSG. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Ciênc Saúde Coletiva. 2005;10(3):627-37. doi: https://doi.org/10.1590/S1413-81232005000300019
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.

A partir da Conferência Internacional sobre Tecnologias Apropriadas ao Nascimento, em 1985, ocorrida no Brasil, os países estabeleceram políticas específicas sobre tecnologias apropriadas para os serviços de saúde privados e públicos, além de ações conjuntas com as comunidades para avaliar as tecnologias de cuidado ao parto e nascimento. A carta de Fortaleza, decorrente desta Conferência, foi publicada na revista Lancet tendo a OMS como autora1515. World Health Organization (CH). Appropriate technology for birth. Lancet. 1985;326(8452):436-7. doi:https://doi.org/10.1016/S0140-6736(85)92750-3
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. Isto provocou a mobilização de pesquisadores para a publicação de uma revisão sistemática de cerca de 40.000 estudos sobre o parto e nascimento desde 1950, incluindo 275 práticas de assistência perinatal que foram classificadas quanto à sua efetividade e segurança1616. Organização Mundial da Saúde (CH). Assistência ao parto normal: um guia prático. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 1996.. Essas são as práticas nas quais o ensino e a pesquisa na área da Enfermagem Obstétrica se inspiram ou baseiam para desenvolver a expertise, evidenciando importante arena de lutas onde pensamentos, opiniões, práticas e cuidados são expostos.

Em 2000, com a persistência de desafios impostos à população mundial, a ONU estabelece metas para o desenvolvimento do milênio para serem atingidas até 2015, entre elas a redução de 75% da mortalidade materna. No entanto o Brasil não alcançou o decréscimo pretendido e, na atualidade a taxa de mortalidade materna volta a crescer1717. portalods.com.br [Internet]. Curitiba: SESI Paraná, c2019 [cited 2019 Apr 12]. Mortalidade materna cresce no Brasil; [aprox. 1 tela]. Available from: http://portalods.com.br/noticias/mortalidade-materna-cresce-no-brasil/
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. Entre as estratégias recomendadas para a melhoria da saúde das populações a OMS indica a necessidade de formar, valorizar e apoiar as enfermeiras obstétricas ressaltando que são essenciais para proporcionar cuidados maternos e neonatais respeitosos e de qualidade1818. World Health Organization (CH). Midwives voices, midwives realities: findings from a global consultation on providing quality midwifery care. Geneva: WHO; 2016 [cited 2019 Apr 24]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/250376/9789241510547-eng.pdf;jsessionid=C052D4E432A1DA27A4ABEDD1D6167FD3?sequence=1
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. Em 2018 a OMS publicou novas recomendações afirmando que a presença de enfermeiras obstétricas possibilita experiências positivas no parto1919. World Health Organization (CH). WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience. Geneva: WHO; 2018 [cited 2018 Mar 11]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/260178/9789241550215-%20eng.pdf;jsessionid=85C6F3DF79F8B5F4B476076B28785A8A?sequence=1
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.

Os governos brasileiros têm intensificado o debate quanto a atenção ao parto e nascimento. A Secretaria de Saúde do estado do Rio Grande do Sul publicou a Resolução 206/17 da SES/RS que preconiza a presença de enfermeiras “nas 24 horas do dia e o compromisso de inserção gradativa da enfermeira obstétrica no processo assistencial”2020. Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul (BR). Resolução nº 206/17 - CIB/RS. Pactua a organização da Rede de Atenção ao Parto e Nascimento de forma regionalizada, no Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre; 2017 [cited 2019 Apr 10]. Available from: http://www.saude.rs.gov.br/upload/arquivos/201706/05110251-cibr206-17.pdf
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. Já o Ministério da Saúde lançou, em 2017, o Programa de Aprimoramento e Inovação no Cuidado e Ensino em Obstetrícia e Neonatologia - APICE ON(21)21. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação Geral de Saúde das Mulheres. Apice On: Aprimoramento e Inovação no Cuidado e Ensino em Obstetrícia Neonatologia. Brasília: Ministério da Saúde; 2017 [cited 2019 Apr 11]. Available from: http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2017/agosto/18/Apice-On-2017-08-11.pdf
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. Enquanto a Resolução prevê a inclusão de enfermeiras na assistência direta e contínua ao parto, o APICE ON propõe a qualificação de pessoal nos hospitais de ensino da rede do Sistema Único de Saúde, onde é manifestada grande resistência às mudanças, apontando esta qualificação como importante possibilidade para a redução do uso excessivo de intervenções desnecessárias no parto e estimulando a inclusão de enfermeiras obstétricas nesta atenção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A EENFUFRGS é pioneira para os cursos de graduação em enfermagem no Rio Grande do Sul. Desde 1950 acompanha e promove modificações nas práticas de cuidado e nas políticas públicas alinhadas às melhores evidências científicas para atenção ao parto e nascimento; enfrenta adversidades junto às entidades de classe para ampliar a formação e o reconhecimento da importância social da enfermeira obstétrica junto à população.

É num cenário de lutas que a EENFUFRGS tem garantido a dignidade do ensino e do exercício das práticas relacionadas à Enfermagem Obstétrica, reconhecendo a enfermeira como profissional destacada para atenção ao parto e nascimento. Em meio a dificuldades, vem formando enfermeiras obstétricas oriundas de diferentes regiões do estado, promovendo a descentralização e socialização de conhecimentos importantes para a disseminação de práticas efetivas e inovadoras, baseadas nas melhores evidências científicas. Em 70 anos de existência a EENFUFRGS mantém a vitalidade de uma Instituição sólida em seus princípios e jovem na disposição, enfrentando necessários confrontos para garantir o ensino e o exercício da Enfermagem Obstétrica de qualidade no Rio Grande do Sul.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2019
  • Aceito
    12 Fev 2020
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