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Gestão do cuidado às condições crônicas no rural sob a coordenação de enfermeiras

RESUMO

Objetivo

Analisar a perspectiva de Enfermeiras Coordenadoras de Equipes de Saúde da Família sobre a gestão do cuidado às pessoas em adoecimento crônico no rural.

Método

Estudo exploratório de abordagem qualitativa, realizado em uma Região de Saúde do Rio Grande do Sul, junto às Enfermeiras em cargo de Coordenação das Unidades de Saúde da Família, entre 2014 e 2015. A amostra foi constituída por sete participantes. A análise dos dados se deu por análise de conteúdo do tipo temática, com apoio do software NVIVO.

Resultados

Categorias temáticas identificadas: A organização político-administrativa da atenção em saúde; As pluralidades do Rural impondo Especificidades à Gestão do Cuidado e Estratégias para a gestão do cuidado no rural.

Considerações finais

Apontam-se elementos da gestão do cuidado que estão relacionados não só ao atendimento individual, mas também elementos ligados a dimensões mais amplas da atenção em saúde, como as relações sociais e políticas que tensionam os territórios e que têm implicações à prática clínica.

Palavras-chave
Saúde da população rural; Enfermagem em saúde pública; Gestão em saúde; Atenção integral à saúde

ABSTRACT

Objective

To analyze the perspective of Nurses Coordinators of Family Health Teams on the management of care for people with chronic illness in rural areas.

Method

Qualitative approach exploratory study, carried out in a Health Region of Rio Grande do Sul, together with the Nurses in charge of the Units, between 2014 and 2015. The sample included seven participants. Data analysis was driven by thematic categorization and using NVIVO software.

Results

The thematic categories identified were: The administrative political organization of health care; The pluralities of rural impose specifics on care management and Strategies for management of care in the rural areas.

Final considerations

We pointed out elements of care management that are related not only to individual care, but also elements related to broader dimensions of health care, such as the social and political relationships that tension over the territories and that have implications to clinical practice.

Keywords
Rural health; Public health nursing; Health management; Comprehensive health care

RESUMEN

Objetivo

Analizar la perspectiva de las Enfermeras Coordinadoras de los Equipos de Salud de la Familia sobre la gestión de la atención a las personas con enfermedades crónicas en el rural.

Método

Estudio exploratorio de abordaje cualitativo, realizado en una Región de Salud de Rio Grande do Sul junto a las Enfermeras en cargo de Coordinación de las Unidades de Salud de la Familia, entre 2014 y 2015, la muestra consistió en siete participantes. El análisis de datos se realizó mediante análisis de contenido temático, con soporte del software NVIVO.

Resultados

Categorías temáticas identificadas: La organización política administrativa de la atención en salud; Las pluralidades del rural imponiendo especificidades a la gestión del cuidado y Estrategias para la gestión del cuidado en el campo.

Consideraciones finales

Se apuntan elementos de la gestión del cuidado que están relacionados no sólo a la atención individual, sino también elementos vinculados a dimensiones más amplias de la atención en salud.

Palabras clave
Salud rural; Enfermería en salud pública; Gestión en salud; Atención integral de salud

INTRODUÇÃO

A Enfermagem em saúde rural tece importantes avanços e delimita espaço neste campo do conhecimento. De forma complexa e interdisciplinar, tem constituído um relevante corpus teórico e conceitual que dá sustentação às práticas de cuidado11. Lima AR, Buss E, Ruiz MC, González JS, Heck RM. Rural nursing formation possibilities: integrative review. Acta Paul Enferm. 2019;32(1):113-9. doi: https://doi.org/10.1590/1982-0194201900016
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-22. Hauenstein EJ, Glick DF, Kane C, Kulbok P, Barbero E, Cox K. A model to develop advanced practice nurses for rural practice. J Prof Nurs. 2014;30(6):463-73. doi: https://doi.org/10.1016/j.profnurs.2014.04.001
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. Este cenário colabora com a reflexão sobre a necessidade de (re)construir as práticas da Enfermeira na Atenção Primária em Saúde (APS) para a ampliação de seu papel e garantia da centralidade que possui no cuidado aos indivíduos, famílias e territórios33. Ferreira SRS, Périco LAD, Dias VRG. The complexity of the work of nurses in Primary Health Care. Rev Bras Enferm. 2018;71( Suppl 1):704-9. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0471
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.

Neste sentido, ocupar-se em estudar o rural, para além de um espaço econômico-produtivo, configura-se como uma possibilidade de colaborar com a qualificação do acesso aos serviços de saúde e com a compreensão das especificidades que envolvem este território, assim como a ação das políticas públicas44. Santos VCF, Gerhardt TE. A mediação em saúde: espaços e ações de profissionais na rede de atenção à população rural. Saude Soc. 2015;24(4):1164-79. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902015139792
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-55. Burille A, Gerhardt TE, Lopes MJ, Dantas GC. Subjetividades de homens rurais com problemas cardiovasculares: cuidado, ameaças e afirmações da masculinidade. Saude Soc. 2018;27(2):435-47. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018162943
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. A população que vive no rural ainda encontra dificuldades em acessar de forma plena seus direitos, de modo que se faz oportuno investir esforços em dar visibilidade a este público e discutir como garantir a efetividade da proteção social e das formas de desenvolvimento sustentável66. Allieu A, Ocampo A, Rossi NW. Removing barriers to access social protection in rural areas: a core priority to achieve Sustainable Development Goal 1.3. Policy Focus. 2019 [cited 2020 May 10];16(1):39-41. Available from: https://ipcig.org/pub/eng/PIF44_Rural_poverty_reduction_in_the_21st_century.pdf
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.

O Sistema Público de Saúde brasileiro tem se esforçado em oferecer atenção em saúde para o rural, propondo política específica para este território e implementando estratégias que facilitam o acesso aos serviços de saúde e qualificam a gestão dos casos, baseando-se na APS e no atendimento das necessidades e demandas em saúde das populações do campo e da floresta44. Santos VCF, Gerhardt TE. A mediação em saúde: espaços e ações de profissionais na rede de atenção à população rural. Saude Soc. 2015;24(4):1164-79. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902015139792
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-77. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política nacional de saúde integral das populações do campo e da floresta. Brasília: Ministério da Saúde; 2013 [cited 2020 May 15]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacoes_campo.pdf
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. A estruturação da atenção em saúde a partir da APS tem resultados melhores em relação ao uso dos recursos e impactos na situação de saúde da população. Estes elementos se mostram pertinentes especialmente em relação às condições crônicas, pois estes agravos tensionam a superação da fragmentação da atenção e o aperfeiçoamento do funcionamento político-institucional dos sistemas de cobertura universal88. Mendes EV. Interview: The chronic conditions approach by the Unified Health System. Ciênc Saúde coletiva. 2018;23(2):431-6. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018232.16152017
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-99. Hansen J, Groenewegen PP, Boerma WG, Kringos DS. Living in a country with a strong Primary Care System is beneficial to people with chronic conditions. Health Aff (Millwood) 2015;34(9):1531-7. doi: https://doi.org/10.1377/hlthaff.2015.0582
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. Neste sentido, o termo condições crônicas em saúde assemelha-se ao das doenças crônicas não-transmissíveis, mas instiga e desafia debates que ultrapassem o entendimento da doença como algo relacionado ao corpo individual, remete a condições de saúde que exigem ações contínuas e integradas por parte do Estado e da sociedade, mais atentas à individualidade do processo saúde-doença88. Mendes EV. Interview: The chronic conditions approach by the Unified Health System. Ciênc Saúde coletiva. 2018;23(2):431-6. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018232.16152017
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.

A gestão da atenção em saúde se mostra como um importante elemento para que gestores e profissionais de saúde constituam objetivos comuns, compartilhem e transladem o conhecimento do campo teórico para o prático-assistencial, tendo em vista que a gestão do cuidado tem como centralidade a produção de atenção integral à saúde, com qualidade e segurança, orientada às necessidades de saúde das pessoas e populações1010. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 2017 set 22 [cited 2020 Jun 10];154(183 Seção 1):68-76. Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=22/09/2017&jornal=1&pagina=68&totalArquivos=120
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-1111. Padilha RDQ, Gomes R, Lima VV, Soeiro E, Oliveira JMD, Schiesari LMC, et al. Principles of clinical management: connecting management, healthcare and education in health. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23(12):4249-57. doi: https://doi.org/10.1590/1413-812320182312.32262016
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. Esta é uma necessidade cada vez mais premente no campo da assistência, especialmente quando se coloca em voga condições que desafiam os sistemas de saúde, como as condições crônicas, as quais exigem respostas e ações contínuas, proativas e integradas do sistema de atenção, dos profissionais de saúde e das pessoas usuárias para o seu controle efetivo, eficiente e com qualidade88. Mendes EV. Interview: The chronic conditions approach by the Unified Health System. Ciênc Saúde coletiva. 2018;23(2):431-6. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018232.16152017
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. Neste sentido, o adoecimento crônico é reconhecidamente um grave problema de saúde pública no mundo, e no Brasil se tem dificuldades estruturais e orçamentárias para seu enfrentamento, somadas às persistentes iniquidades em saúde1212. Francisco PMSB, Segri NJ, Borim FSA, Malta DC. Prevalence of concomitant hypertension and diabetes in Brazilian older adults: individual and contextual inequalities. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23(11):3829-40. doi: https://doi.org/10.1590/1413-812320182311.29662016
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-1313. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças Não Transmissíveis. Vigitel Brasil 2018: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2018. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Aug 04]. Available from: https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2019/julho/25/vigitel-brasil-2018.pdf
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Diante da constante (des)legitimação do sofrimento imposta pela cronicidade, é premente que se encontrem estratégias de gestão do cuidado, de modo a se articularem as diferentes esferas que envolvem o usuário no processo de adoecimento e dar centralidade a ele na atenção em saúde88. Mendes EV. Interview: The chronic conditions approach by the Unified Health System. Ciênc Saúde coletiva. 2018;23(2):431-6. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018232.16152017
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,1010. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 2017 set 22 [cited 2020 Jun 10];154(183 Seção 1):68-76. Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=22/09/2017&jornal=1&pagina=68&totalArquivos=120
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,1414. Canesqui AM. Legitimidade e não legitimidade das experiências dos sofrimentos e adoecimentos de longa duração. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23(2):409-16. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018232.14732017
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. O adoecimento crônico produz modos de viver a vida mais complexos e problemáticos no rural, principalmente em função da necessidade da articulação do cuidado em rede e de forma organizada e ordenada55. Burille A, Gerhardt TE, Lopes MJ, Dantas GC. Subjetividades de homens rurais com problemas cardiovasculares: cuidado, ameaças e afirmações da masculinidade. Saude Soc. 2018;27(2):435-47. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018162943
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. Assim, aponta-se para a compreensão de que o conhecimento profundo dos usuários de um sistema é elemento essencial que torna possível romper com a gestão baseada na oferta, característica dos sistemas fragmentados, e instituir a gestão do cuidado baseado nas necessidades em saúde88. Mendes EV. Interview: The chronic conditions approach by the Unified Health System. Ciênc Saúde coletiva. 2018;23(2):431-6. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018232.16152017
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A reorganização do modelo de atenção e a interiorização dos serviços de saúde, em especial nas áreas rurais, são temas relevantes para o debate sobre proteção social no Brasil, especialmente para as políticas públicas em saúde, haja vista a maior vulnerabilidade destas populações diante do adoecimento44. Santos VCF, Gerhardt TE. A mediação em saúde: espaços e ações de profissionais na rede de atenção à população rural. Saude Soc. 2015;24(4):1164-79. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902015139792
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-66. Allieu A, Ocampo A, Rossi NW. Removing barriers to access social protection in rural areas: a core priority to achieve Sustainable Development Goal 1.3. Policy Focus. 2019 [cited 2020 May 10];16(1):39-41. Available from: https://ipcig.org/pub/eng/PIF44_Rural_poverty_reduction_in_the_21st_century.pdf
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,1515. Pitilin E, Lentsck M. Primary Health Care from the perception of women living in a rural area. Rev Esc Enferm USP. 2015;49(5):726-32. doi: https://doi.org/10.1590/S0080-623420150000500003
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. O esforço em reconhecer as dimensões rurais do Brasil é fundamental para intervir no processo saúde-doença no âmbito da APS no Sistema Único de Saúde (SUS), uma vez que o universo rural tem singularidades e especificidades que condicionam a organização dos serviços e das práticas em saúde1616. Pessoa VM, Almeida MM, Carneiro FF. Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde Debate. 2018;42(spe 1):302-14. doi: https://doi.org/10.1590/0103-11042018S120
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Partindo da perspectiva de que a Enfermeira transita entre a produção do cuidado e a gerência do serviço de saúde33. Ferreira SRS, Périco LAD, Dias VRG. The complexity of the work of nurses in Primary Health Care. Rev Bras Enferm. 2018;71( Suppl 1):704-9. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0471
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, acredita-se que a prática desta profissional deve se voltar à atenção clínica sustentada pelo cuidado centrado na pessoa, na atenção aos sistemas familiares e aos indivíduos nos mais diferentes ciclos vitais e construção de identidades, assim como adequar a organização dos serviços de saúde à diversidade do território em que se inserem. Dito isso, e considerando a relevância de estudar espaços de atuação destas profissionais, assim como os diferentes cenários das políticas públicas, compartilha-se esta pesquisa realizada com o rural de uma região de saúde no Sul do Brasil. Este estudo se norteou pela seguinte pergunta de pesquisa: Como se dá a gestão do cuidado voltado às condições crônicas no rural? Partindo disto, tem por objetivo: analisar a perspectiva de Enfermeiras Coordenadoras de Equipes de Saúde da Família sobre a gestão do cuidado às pessoas em adoecimento crônico no rural.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo exploratória e descritiva, seguindo as orientações metodológicas de Minayo11. Lima AR, Buss E, Ruiz MC, González JS, Heck RM. Rural nursing formation possibilities: integrative review. Acta Paul Enferm. 2019;32(1):113-9. doi: https://doi.org/10.1590/1982-0194201900016
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77. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política nacional de saúde integral das populações do campo e da floresta. Brasília: Ministério da Saúde; 2013 [cited 2020 May 15]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacoes_campo.pdf
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. A área empírica do estudo foi uma das Regiões em Saúde do estado do Rio Grande do Sul, composta por seis municípios, quais sejam: Alvorada, Cachoeirinha, Glorinha, Gravataí, Porto Alegre e Viamão. Neste enfoque, à organização da Atenção em Saúde no Rural, foram incluídos dois municípios, o município A e o B, em função de eles serem os únicos que oferecem atendimento para o rural. Os demais, apesar de terem área rural em seus territórios, não dispõem deste tipo de formato de equipe. Os nomes dos municípios foram mantidos em sigilo em função de questões éticas. O município A e o B encontram-se a 23 Km e 10 Km de distância de Porto Alegre, respectivamente.

A seleção da amostra foi intencional, as participantes do estudo foram Enfermeiras em cargo de Coordenação das Unidades de Saúde da Família localizadas no rural da área empírica, quatro do município A e três do município B . Os critérios de inclusão foram: ser enfermeiro e estar em cargo de coordenador das Unidades de Saúde da Família (USF) no Rural. Os critérios de exclusão foram: estar no cargo há menos de seis meses, a fim de obter informações mais alinhadas com o cotidiano do serviço, e remarcar a entrevista, em função da distância percorrida pelos pesquisadores até chegarem aos serviços de saúde no rural. Assim, a amostra constituiu-se de sete Enfermeiras Coordenadoras de USF do rural na área empírica. Não houve perda na amostra, todas as coordenadoras aceitaram participar da pesquisa. Ainda, destaca-se que nem todas as equipes contavam com uma Enfermeira em cargo de coordenação. No período de geração de dados empíricos, havia treze Equipes de Saúde atuando na área empírica, aglomeradas em sete serviços de saúde, ou seja, em alguns serviços havia mais de uma equipe atuando na mesma Unidade de Saúde. As equipes estavam assim distribuídas: no município A, havia dez equipes inseridas em cinco USF; e, no B, três equipes em dois serviços de saúde.

A coleta de dados do projeto matriz se deu por meio de roteiro de entrevista semiestruturada que continha três eixos: I - Ações e Práticas Profissionais; II - Fluxo do processo de trabalho no atendimento das Doenças Crônicas e III - Gestão do cuidado em saúde. As questões contidas nos eixos buscavam explorar: a abordagem ao usuário no serviço de saúde e no território; os fluxos nos processos de trabalho que favoreciam o acolhimento e responsabilização da equipe pelos usuários do rural; as práticas adotadas pela equipe na formação de vínculos com usuários e famílias; o olhar sobre a realidade familiar e meio social para proposição do cuidado; a identificação de mecanismos de integração com redes sociais; e as facilidades e dificuldades na relação com usuários do rural adoecidos crônicos. Cabe destacar que, à época da geração de dados, utilizou-se o termo doenças crônicas, sendo adotadas condições crônicas para o debate aqui proposto, seguindo reflexões mais amplas sobre a experiência do adoecimento crônico, como do pesquisador Eugênio Vilaça Mendes88. Mendes EV. Interview: The chronic conditions approach by the Unified Health System. Ciênc Saúde coletiva. 2018;23(2):431-6. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018232.16152017
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Para a realização das entrevistas, as coordenadoras foram contatadas previamente por meio de contato telefônico para acordar a data de execução delas, entre 2014 e 2015. Todas as entrevistas foram realizadas no local de trabalho, por escolha das entrevistadas, e tiveram duração média de 40 minutos. As entrevistas foram gravadas em equipamento de áudio digital, transcritas na íntegra e, após, procedeu-se com a dupla checagem entre os pesquisadores. Depois da realização de cada uma das entrevistas, foram registradas notas de campo contendo breves descrições sobre o serviço de saúde visitado e, também, outras informações sobre o deslocamento das entrevistadoras, para que essa informação pudesse auxiliar noutras incursões no campo empírico. Para resguardar a identidade das participantes, suas falas foram codificadas em Enfermeira Coordenadora no Rural 1 (ECR 1) e assim sucessivamente, de acordo com a ordem de apresentação dos dados empíricos. A identificação das categorias empíricas foi realizada com o apoio do software NVIVO 9.

A análise dos dados foi sistematizada por meio do referencial da análise de conteúdo do tipo categorização temática, proposta por Minayo1717. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec; 2014., seguindo as seguintes etapas: pré-análise: com a retomada das questões norteadoras e dos objetivos iniciais da pesquisa; exploração do material: por meio da classificação das falas com a finalidade de alcançar o núcleo de compreensão do texto, momento no qual foi realizada a criação de categorias; tratamento dos resultados obtidos: destaque das informações mais relevantes à compreensão do objeto em estudo; e interpretação: realização do esforço interpretativo para relacionar as referências adotadas pelas pesquisadoras com a realidade empírica que se apresentou, avançando no sentido de compreender e interpretar o que foi apresentado pelas entrevistadas. A saturação dos dados foi alcançada quando as entrevistas não trouxeram mais informações novas, isso foi evidenciado no momento da exploração dos dados oferecidos pela amostra do estudo. As categorias temáticas foram organizadas seguindo os referenciais da Saúde Coletiva como o vínculo, acolhimento, gestão do cuidado, Redes de Atenção em Saúde e mediação em saúde para sustentação da discussão das mesmas.

Este estudo foi aprovado pela Comissão de Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pelos Comitês de Ética da UFRGS e da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre (SMS/PMPA), respectivamente sob pareceres números, 708.357/2014 e 885.916/2014. Todas as participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Em todas as fases da pesquisa foram respeitados os preceitos éticos da legislação vigente de pesquisas com seres humanos.

Em tempo, cabe destacar que ao longo do detalhamento do método da pesquisa foram seguidos os critérios descritos no Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ) para sustentar o rigor e a credibilidade da pesquisa, descrevendo aspectos como a equipe de pesquisa e reflexividade, o desenho do estudo e a análise de dados.

RESULTADOS

As categorias identificadas, a partir da análise dos resultados, foram: A organização político-administrativa da atenção em saúde; As pluralidades do Rural impondo Especificidades à Gestão do Cuidado e Estratégias para a gestão do cuidado no rural. Estas serão apresentadas ao longo dos resultados e discutidas a partir do referencial teórico e conceitual da Saúde Coletiva.

A organização político-administrativa da atenção em saúde

No cenário em estudo, verificou-se que as equipes atuam em um espaço geográfico fisicamente extenso, o que implica uma logística de organização administrativa diferente daquilo que é pensado para as áreas urbanas, tendo em vista que isto dificulta o estabelecimento de rotinas de atendimento domiciliar. Estas distâncias que permeiam o rural tensionam as Enfermeiras Coordenadoras a assumir pontos de referência que fazem sentido para o rural, como a delimitação das áreas a partir das paradas de ônibus e demarcações nas quais a equipe consiga se movimentar para atender aos usuários.

[...] nossa área de abrangência vem desde da parada 109 até a parada 79...então...bastante grande e a nossa área de cadastro do agente comunitário é 1km para dentro, iniciando da RS para dentro né...para os seus lados, tanto pro lado esquerdo quanto para o direito, porque se não, não tem condições de fazer as visitas e acompanhamento mensal dos usuários se for mais do que isso. (ECR01)

Entre as Enfermeiras Coordenadoras emergiu a questão de que as equipes não têm conseguido fazer a planificação de seus espaços geográficos, tanto em função do tamanho da área adscrita, como da constante migração dos usuários, promovendo a movimentação das pessoas entre os bairros e territórios, e da própria divisão administrativa nos municípios, o que é alvo de constantes disputas políticas. Isto gera efeitos na gestão dos processos que estão implicados na territorialização e organização do fluxo de atendimento dos usuários. Uma das coordenadoras relatou que, em função do redesenho do território, a equipe não dispõe mais de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) para atender os usuários de determinada área, mesmo eles tendo vínculo com a equipe e, historicamente, tendo recebido atendimento no serviço de saúde. O movimento de manter o compromisso com a atenção em saúde dos usuários neste cenário se deu em função da repercussão midiática da situação.

[...] Então eu não tenho mais agente de saúde lá, eu não faço mais visita lá e era para gente não atender mais as pessoas, elas teriam que se dirigir para a unidade de [nome do município vizinho]. Tiraram até a escola de lá, tudo né? Mas aí deu muita repercussão, que as pessoas estavam cadastradas aqui, tinham um vínculo aqui. Veio inclusive mídia, veio secretário aqui, e aí mandaram um outro comunicado: para gente atender como demanda livre, sem cadastro de família. (ECR02)

Ao relatar o processo da gestão do cuidado, as Enfermeiras Coordenadoras pontuaram aspectos mais amplos do exercício profissional, como o vínculo trabalhista. Isto se dá em função de que os trabalhadores exercem funções semelhantes com vínculo trabalhista e remunerações diferentes entre os concursados e os contratados, o que tem gerado efeitos sobre as relações interpessoais e de responsabilização pelas tarefas de trabalho no cotidiano dos serviços de saúde. Assim relata a coordenadora de um dos serviços de saúde pesquisados:

[...] nós somos contratadas e no princípio é bem complicado, porque as pessoas sentem uma diferença do salário, quantidade de trabalho e o salário que se recebe, o nosso é maior...e aí acabou que a gente teve conversar, uma conversa bem adulta a respeito disso, a gente não tem culpa de nada. [...] não é meu problema contigo... é um problema mais acima... [...] (ECR01)

Uma das coordenadoras apontou a dificuldade que enfrentam em organizar o atendimento diante da estrutura física inadequada, fazendo com que elas busquem alternativas para conseguir prestar atendimento aos usuários. Mas, a entrevistada menciona a percepção de que não é digno para o usuário ter de se submeter a condições inadequadas em função da falta de estrutura física do serviço de saúde.

Aqui na unidade a gente tem problemas de espaço físico, eu e a outra enfermeira a gente tem que dividir consultório, porque não tem consultório para as duas enfermeiras. Isso é um problema? É, é um problema quando eu vou receber um paciente e ela também. Se eu receber na sala, ela vai receber no corredor. Não é digno uma pessoa ser atendida no corredor, ter sua vida exposta, seus problemas expostos, porque estará todo mundo circulando e passando. Ela não vai ter a privacidade dela. Mas, não posso simplesmente cruzar meus braços [...] (ECR03)

Outro aspecto que perpassa a gestão do cuidado no rural é o estigma que ainda era percebido pelas entrevistadas em relação à necessidade da atenção em saúde ser tão organizada quanto o atendimento que era prestado aos moradores da área urbana. Em um dos municípios, ainda foi relatado que o atendimento formalizado vem se implementando. Uma das coordenadoras referiu que ela foi a primeira a assumir o cargo de coordenação do serviço. Anteriormente, a visibilidade em relação ao atendimento aos usuários era de abandono e pouca atenção despendida por parte da gestão municipal em relação ao fluxo de trabalho no serviço de saúde.

[...] esse posto sempre foi muito abandonadinho [...].antes não tinha isso, as pessoas chegavam aqui era por ficha, não tinha nem acolhimento, pagavam alguém para ficar na fila de madrugada, ai a médica as vezes não vinha...outras vezes chegava 10 horas... Então, não tinha ações, era técnica sozinha fazendo o que podia e a médica de vez em quando vinha aqui...era bem assim. [...] (ECR04)

Além disso, foi apontado por algumas das coordenadoras, nos dois municípios, que há ainda deficiências estruturais dos serviços de saúde para oferecer atendimento e para garantir a acessibilidade daqueles que usam as unidades de saúde.

[...] esse posto desde quando iniciou foi inaugurado, ele foi adaptado, ele era uma casa adaptada, algumas peças transformadas para ter o consultório...mas toda unidade precisa de reforma [...] tem cupins nos consultórios, nos três, no meu, no médico, no odonto, a sala de reuniões e a sala de triagem, do curativo quando chove mais intenso já tem goteira. [...] Teve a verba do PMAQ, a gente está aguardando... [...] (ECR05)

A organização político-administrativa da atenção à saúde no âmbito local, especialmente no rural, apresenta um quadro de diferentes iniquidades em relação à forma como se organiza a oferta de cuidado. Também, parece estar imbricada às atividades desenvolvidas pelas Enfermeiras Coordenadoras que buscam, em consonância com as equipes, dar conta de diferentes desafios na atenção ao usuário morador do rural.

As pluralidades do rural impondo especificidades à gestão do cuidado

A atuação das Enfermeiras Coordenadoras no gerenciamento do processo de trabalho das equipes é desafiada por particularidades impostas pelo rural. Uma das Coordenadoras apontou que os usuários, por estarem afastados fisicamente do serviço de saúde, precisam percorrer grandes distâncias para receber atendimento e isto precisa ser pensado quando são propostas as agendas dos profissionais, exigindo deles compreensão e flexibilidade.

[...] para organizar o serviço a gente tem que pensar: “não, ele é de tal local. De fato, ele nunca vai conseguir chegar nesse horário que eu estou querendo”. [...] eu tenho que pensar que o paciente mora em tal lugar e, se ele não tem carroça ele depende de ônibus, e o ônibus entra lá só um horário. Se não, ele vai ter que caminhar cinco quilômetros até a faixa para pegar outro ônibus para chegar aqui. [...] (ECR02)

No esforço de adequação do processo de trabalho, os serviços de saúde dispõem de veículos cedidos pelas secretarias municipais de saúde para que seja possível deslocar-se no território, oportunizando atender àquelas áreas que não dispõem do atendimento dos ACS. Um recurso importante para a garantia do acesso aos serviços de saúde, tendo em vista que esta realidade emergiu nos municípios, áreas ainda descobertas, sem equipes de referência.

Temos um carro meio período de 15 em 15 dias para visita domiciliar... [...] a gente dá preferência para as pessoas fora de área, para as pessoas que são fora da área de abrangência, porque as que estão dentro da área já estão sendo acompanhadas, né!? Estão sendo visitadas...talvez não com a frequência que a gente gostaria, mas estão sendo visitadas pelo agente comunitário. [...] (ECR01)

Diante das fragilidades estruturais percebidas pelas Enfermeiras, fez-se como uma constante entre elas o movimento de cobrança da gestão municipal para ampliação da oferta de recursos para qualificar os serviços de saúde.

[...] seguidamente eu converso com a gestão da secretaria que seria importante mais uma agente comunitária de saúde para nós. Eles falam que pela quantidade já estaria adequado, mas eles reconhecem que como é zona rural e as distâncias para se fazer as visitas domiciliárias... [...] (ECR05)

No rural, a gestão do cuidado também se mostrou impactada por elementos externos à vontade dos profissionais, como o clima. Nos períodos chuvosos não é possível acessar determinadas localidades, forçando os moradores a ficarem isolados ou até mesmo diminuindo sua frequência no serviço de saúde.

[...] Se chove eu não tenho como ir em determinados locais, porque a gente não passa, nem de carro, nem a pé. As pessoas de fato ficam isoladas. Aqui tem muita dificuldade de acesso, mesmo dentro da Morungava para vir até a unidade. (ECR02)

Quanto ao deslocamento e acesso aos serviços de saúde, foi evidenciada a dificuldade dos usuários em se locomover até as unidades, por falta de veículo próprio, ou acessibilidade a um meio de transporte público próximo a sua residência ou do serviço de saúde. Como solução para este obstáculo, os usuários buscam atendimento fora do território, por sua viabilidade, como ressaltado por uma das entrevistadas.

[...] Aqui para a zona rural é meio complicado, tem muitos pacientes que não tem carro, dependem de ônibus, os horários de ônibus são complicados (...)tem que descer um pouco longe e caminhar ou dependem de carona, as vezes o paciente não está bem durante o dia, mas só de noite que o familiar vai estar em casa com o carro, aí a pessoa fica mal durante o dia aguardando o familiar chegar para conseguir levar. (ECR06)

A atenção em saúde no rural apresentava aos profissionais realidades que impõem importante sobrecarga, pois os usuários são dependentes quase que exclusivamente das equipes que atuam nesse território, inclusive alguns dos moradores fazem saídas esporádicas do rural. A condição dos trabalhadores serem a exclusiva representação do Estado no território e a vulnerabilidade vivenciada em determinadas localidades tensionava constantemente sua atuação.

É uma sobrecarga e uma angústia, ao mesmo tempo. A gente é o único... o acolhimento que te falei, as necessidades, elas não têm fim, e aí o que acontece? A maioria delas são causas sociais, mas que com certeza já comprometeram o corpo de alguma forma. [...] Basicamente questões sociais e as pessoas querem remédio para isso: medicalizar as questões sociais. (ECR02)

As Enfermeiras Coordenadoras apontaram dificuldades em receber o necessário suporte da Rede de Atenção à Saúde (RAS) para atender às demandas dos usuários. Isto se dava em função das dificuldades em estabelecer comunicação com os demais serviços da área urbana dos municípios a fim de que possa facilitar o fluxo de utilização. Também, por verificarem que a forma de atendimento aos usuários é burocratizada e dificultada pela lógica de funcionamento dos encaminhamentos que demanda deslocamentos constantes do usuário do rural até o urbano, assim como pela própria capacidade instalada da rede em dar conta do atendimento.

[...] não está conseguindo que esse paciente, quando precisa da rede, ele não está conseguindo acessar a rede. Ele até tenta acessar o especialista, tu encaminhas ele, as partes burocráticas que ele tem que passar para conseguir acessar aquele especialista. [...] mas tu não enxergas isso no teu cotidiano, tu sabes que tem, mas não enxerga que tu consigas... a nutricionista mesmo, saiu de licença e já mandaram um memorando dizendo para encaminhar só os casos mais graves para nutricionista dar conta, a que ficou lá. [...] (ECR07)

As Enfermeiras relataram situações em que elas verificam que os demais profissionais da RAS têm dificuldades em compreender as especificidades do rural e não fazem o movimento de adaptar seus protocolos ou modo de atendimento.

[...] a SAMU não vem aqui, a ambulância do município não entra nos becos, elas param aqui na RS [rodovia] aguardam a chegada do paciente. [...] até que eles venham até aqui e levem a pessoa para o hospital...foi quanto tempo aí, né!? Com certeza mais de 2 horas. [...] (ECR04)

As pluralidades do rural impõem especificidades à gestão do cuidado e estes elementos exigem ainda mais do trabalho das Enfermeiras Coordenadoras, sendo que em muitos territórios as equipes de saúde são os únicos recursos que representam o Estado que está disponível aos usuários. O esforço por adequar processos de trabalho aos constantes obstáculos que surgem, às distâncias, ao clima, às dificuldades de locomoção, à sobrecarga e ao suporte da rede, demonstram a persistência destas profissionais na busca por melhores condições junto à administração municipal.

Estratégias para a gestão do cuidado no rural

A gestão do cuidado ao adoecido crônico no rural tem se desenvolvido por meio de estratégias como as reuniões de equipe, mas ainda com determinada resistência em se manter esses momentos. No entanto, é reconhecido pelas coordenadoras como um dispositivo para discutir e planejar o atendimento prestado pelas equipes e a gestão dos casos atendidos.

Já foi pensado até em se tirar esse momento, mas se manteve o momento das reuniões de equipe. Porque é super corrido nos outros momentos, a gente fica envolvido nas atividades, nas consultas, nas orientações e a gente não consegue sentar e conversar com a equipe, então é super importante como uma facilidade para organizar a forma como atendemos aqui. [...] (ECR05)

Em algumas localidades havia rádio comunitária, o que facilitava a comunicação entre a equipe e as pessoas que moram em localidades distantes da ESF e a divulgação de grupos de convivência. Também, as alianças terapêuticas entre as equipes e as comunidades provocam a emancipação de processos mais amplos da organização de estratégias para a promoção da saúde. Uma das coordenadoras relatou que a rádio comunitária foi um importante recurso para fortalecer o grupo de educação em saúde voltado para o público com diagnóstico de Hipertensão Arterial Sistêmica e Diabetes mellitus.

Temos a rádio comunitária, fizemos a propaganda e conseguimos um local. Antes, a gente começou fazendo aqui...bem modesto, aqui na cozinha...e ai começou a vir gente, 10...depois 15...depois 40, não tinha mais como fazer aqui, a gente começou...ficar cheio de gente aqui em todo o local e pedimos para as agentes se organizarem na região e conseguir um local e conseguimos o CTG no Morro Grande, na parada 95. Conseguimos esse espaço toda quarta feira a tarde de 15 em 15 dias para o grupo de HAS e DM...[...] (ECR01)

O grupo é feito no clube de mães, na escola...o grupo de saúde mental. O vínculo é muito bom. (ECR08)

Uma das coordenadoras apontou que, com o trabalho que vem se desenvolvendo junto aos adoecidos crônicos que vivem no rural, pautando-se no acolhimento e nas atividades em grupo, tem sido possível promover a autogestão entre os usuários em algumas localidades. Isto foi considerado como uma potência para a atenção em saúde prestada pelas equipes no rural.

[...] "eu nunca fui ao médico, não preciso", temos muitas pessoas que têm essa mentalidade ainda, consegui fazer com o acolhimento, quando entrei para cá, consegui fazer com que muita gente parasse de procurar os prontos atendimentos... [...] o grupo também ajudou bastante, de HAS e DM. O pessoal adora mesmo, vai lá assim e se diverte, falam e nem todo mundo se conhece e entre eles querem fazer outro grupo que é o da atividade física, entre eles mesmo estão se movimentando para se fazer atividade física, então esse grupo de HAS e DM está dando muito certo. (ECR01)

A gestão do cuidado no rural recebia importante apoio dos ACS. Além de conformar o vínculo com a população, detinha o papel de informar sobre as rotinas da unidade, a agenda da equipe, como proceder para ser atendido e solicitar atendimento. Isso faz com que as pessoas se sintam mais próximas de sua unidade e que o atendimento seja resolutivo.

[...] Primeira coisa é o ACS fazer o vínculo do paciente com a unidade de saúde, busca ativa, ações de promoção, prevenção no que for de...enfim...na alçada deles né...eles têm um papel essencial. (ECR04)

As coordenadoras, em sua maioria, apontaram o vínculo como uma ferramenta para a gestão do cuidado, pois facilita desde o reconhecimento das necessidades em saúde dos usuários e a negociação da proposição de projetos terapêuticos. No relato a seguir uma das coordenadoras aponta a potência do acolhimento e do vínculo, dando o exemplo de um colega médico:

[...] elas gostam muito dele e escutam o que ele diz, é uma vantagem ter esse vínculo. Para as pessoas se cuidarem tem que ter também esse...esse...vínculo, não adianta vir e não olhar no olho da pessoa e já prescrever medicação...não é... tem muita coisa a ser feita. (ECR04)

O cuidado ao adoecido crônico no rural em boa parte dos serviços estava relacionado ao diagnóstico de Hipertensão Arterial Sistêmica e Diabetes mellitus em função das estratégias de atendimento estarem voltadas a esses adoecimentos. Mas, houve relatos de outros adoecimentos crônicos importantes no rural como aqueles relacionados à saúde mental e obesidade. As estratégias de gestão do cuidado apresentadas são diversas, mas ainda sem a necessária padronização entre os serviços de saúde. Ainda, destaca-se que as estratégias que fortalecem o trabalho em equipe e o vínculo são aquelas que aparecem como as mais proeminentes entre os relatos, algo que possivelmente está relacionado ao adoecido crônico que mora no rural e que enfrenta diferentes barreiras para alcançar o almejado atendimento em saúde.

DISCUSSÃO

A gestão do cuidado no rural está permeada por elementos que tangenciam a organização política e administrativa da atenção em saúde aos usuários e a dinamicidade do próprio território. Os dados levantados reforçam a compreensão de que o adoecimento crônico requer esforços compartilhados55. Burille A, Gerhardt TE, Lopes MJ, Dantas GC. Subjetividades de homens rurais com problemas cardiovasculares: cuidado, ameaças e afirmações da masculinidade. Saude Soc. 2018;27(2):435-47. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018162943
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,88. Mendes EV. Interview: The chronic conditions approach by the Unified Health System. Ciênc Saúde coletiva. 2018;23(2):431-6. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018232.16152017
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,1313. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças Não Transmissíveis. Vigitel Brasil 2018: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2018. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Aug 04]. Available from: https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2019/julho/25/vigitel-brasil-2018.pdf
https://portalarquivos2.saude.gov.br/ima...
-1414. Canesqui AM. Legitimidade e não legitimidade das experiências dos sofrimentos e adoecimentos de longa duração. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23(2):409-16. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018232.14732017
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e que a gestão do cuidado no rural lida com a tensão constante entre as especificidades locais e a organização do sistema de saúde de forma mais ampla. Cabe ressaltar o estigma que ainda existe por parte da gestão municipal e dos trabalhadores do urbano no atendimento da população rural, condições estas que impõem distanciamento e dificulta o acesso aos serviços de saúde44. Santos VCF, Gerhardt TE. A mediação em saúde: espaços e ações de profissionais na rede de atenção à população rural. Saude Soc. 2015;24(4):1164-79. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902015139792
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-55. Burille A, Gerhardt TE, Lopes MJ, Dantas GC. Subjetividades de homens rurais com problemas cardiovasculares: cuidado, ameaças e afirmações da masculinidade. Saude Soc. 2018;27(2):435-47. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018162943
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. Isto se mostrou de forma mais proeminente quando as Coordenadoras demandavam a qualificação dos recursos físicos e das equipes, também quando precisavam encaminhar os usuários para outros pontos da RAS.

A insuficiência de recursos físicos e as barreiras de deslocamento dos usuários para outros serviços de saúde compromete a integralidade do cuidado e a garantia de direitos. Assim, considera-se que seja necessário qualificar a estrutura dos serviços de saúde para que seja possível intervir em processos sociais e ambientais que são comuns ao rural, como as distâncias físicas e sociais que ainda mantém a população rural afastada do acesso aos serviços de saúde, principalmente os adoecidos crônicos44. Santos VCF, Gerhardt TE. A mediação em saúde: espaços e ações de profissionais na rede de atenção à população rural. Saude Soc. 2015;24(4):1164-79. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902015139792
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-55. Burille A, Gerhardt TE, Lopes MJ, Dantas GC. Subjetividades de homens rurais com problemas cardiovasculares: cuidado, ameaças e afirmações da masculinidade. Saude Soc. 2018;27(2):435-47. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018162943
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,99. Hansen J, Groenewegen PP, Boerma WG, Kringos DS. Living in a country with a strong Primary Care System is beneficial to people with chronic conditions. Health Aff (Millwood) 2015;34(9):1531-7. doi: https://doi.org/10.1377/hlthaff.2015.0582
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. Estes elementos demandam o debate crítico e permanente sobre a gestão do cuidado às condições crônicas, tendo em vista a urgência em superar as fragilidades apontadas pelas entrevistadas. E, na associação entre o viver no rural e a complexidade das condições crônicas, há que se ter mais sensibilidade e respostas sociais mais proativas por parte do Estado e da sociedade civil.

O vínculo e o acolhimento são importantes ferramentas da gestão do cuidado à população e, nas áreas rurais, torna-se um desafio ainda maior visto as distâncias e as dificuldades estruturais impostas, como a insuficiência de transporte público. Para que se possa repensar o rural como espaço de produção de cuidado, existe a necessidade de se construir a compreensão das dimensões presentes no rural, incluindo a necessidade de compor políticas públicas que atendam às demandas dessas populações, garantindo acesso a bens e a serviços essenciais ao desenvolvimento e a própria permanência, como condições econômicas, sociais e culturais, dando visibilidade às novas ruralidades emergentes no campo44. Santos VCF, Gerhardt TE. A mediação em saúde: espaços e ações de profissionais na rede de atenção à população rural. Saude Soc. 2015;24(4):1164-79. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902015139792
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-55. Burille A, Gerhardt TE, Lopes MJ, Dantas GC. Subjetividades de homens rurais com problemas cardiovasculares: cuidado, ameaças e afirmações da masculinidade. Saude Soc. 2018;27(2):435-47. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018162943
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,1818. Mesquita MO, Riquinho DL, Gerhardt TE, Ruiz ENF, organizadoras. Saúde coletiva, desenvolvimento e (in)sustentabilidades no rural. Porto Alegre: Ed. UFRGS; 2018 [cited 2020 Aug 04]. Available from: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/183081/001078008.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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O processo de estudar a gestão do cuidado junto às Enfermeiras Coordenadoras demonstrou que é justamente a pluralidade do rural aquilo que proporciona o tensionamento para o campo da saúde para repensar a burocratização do atendimento e o distanciamento entre os saberes tradicionais e acadêmicos. Tendo em vista que fatores como clima, extensão geográfica e a própria relação burocratizada com a RAS em suas diferentes filas de espera, documentos de encaminhamentos que precisam ser levados pelos usuários pessoalmente até o urbano expõe aspectos relacionados à persistência de desigualdades estruturais e estigma. Diante disso, emerge a potência de agregar de forma transversal diferentes dispositivos e abordagens no cuidado aos adoecidos crônicos que viabilizem construir uma ponte para acessar subjetividades, de modo a assumir um formato mais articulado e sensível55. Burille A, Gerhardt TE, Lopes MJ, Dantas GC. Subjetividades de homens rurais com problemas cardiovasculares: cuidado, ameaças e afirmações da masculinidade. Saude Soc. 2018;27(2):435-47. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018162943
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,1515. Pitilin E, Lentsck M. Primary Health Care from the perception of women living in a rural area. Rev Esc Enferm USP. 2015;49(5):726-32. doi: https://doi.org/10.1590/S0080-623420150000500003
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. Processo este que se mostra capaz de conduzir à produção do cuidado qualificada e digna no contexto individual e coletivo, ultrapassando as barreiras que afastam os usuários de seus direitos66. Allieu A, Ocampo A, Rossi NW. Removing barriers to access social protection in rural areas: a core priority to achieve Sustainable Development Goal 1.3. Policy Focus. 2019 [cited 2020 May 10];16(1):39-41. Available from: https://ipcig.org/pub/eng/PIF44_Rural_poverty_reduction_in_the_21st_century.pdf
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,1515. Pitilin E, Lentsck M. Primary Health Care from the perception of women living in a rural area. Rev Esc Enferm USP. 2015;49(5):726-32. doi: https://doi.org/10.1590/S0080-623420150000500003
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Neste sentido, assim como as Enfermeiras Coordenadoras apontaram, há um movimento relevante a ser discutido no qual os profissionais têm se envolvido com a realização de atividades em locais físicos fora dos serviços de saúde como os centros comunitários, igrejas e rádios comunitárias. No rural, estas ações contribuem com o cuidado ao adoecido crônico, em vista da aproximação das dimensões assistencial e gerencial da prática profissional, pois ao mesmo tempo que desempenham atividades de coordenadoras dos serviços, também desenvolvem atividades clínicas e educativas adaptadas ao rural. Estas ações evidenciam a complexidade da enfermagem rural e do próprio trabalho das Enfermeiras na APS11. Lima AR, Buss E, Ruiz MC, González JS, Heck RM. Rural nursing formation possibilities: integrative review. Acta Paul Enferm. 2019;32(1):113-9. doi: https://doi.org/10.1590/1982-0194201900016
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,33. Ferreira SRS, Périco LAD, Dias VRG. The complexity of the work of nurses in Primary Health Care. Rev Bras Enferm. 2018;71( Suppl 1):704-9. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0471
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. Ainda, acredita-se que, de algum modo, há a ressignificação das práticas em saúde e o esforço em atender o conceito polissêmico de gestão do cuidado, que vai desde o planejamento e a organização dos serviços de saúde voltados para a gestão da clínica, até o estabelecimento de princípios para a elaboração de ações nessa área1111. Padilha RDQ, Gomes R, Lima VV, Soeiro E, Oliveira JMD, Schiesari LMC, et al. Principles of clinical management: connecting management, healthcare and education in health. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23(12):4249-57. doi: https://doi.org/10.1590/1413-812320182312.32262016
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,1919. Gomes R, Lima VV, Oliveira JMD, Schiesari LMC, Soeiro E, Damázio LF, et al. The polisemy of clinical governance: a review of literature. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;20(8):2431-9. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232015208.11492014
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A enfermagem possui um papel central na coordenação do cuidado no âmbito da APS no rural em função de trabalhar diretamente com as demandas desses usuários, executando o exercício profissional em suas diferentes modalidades assistenciais como a Consulta de Enfermagem, visitas domiciliárias, acolhimento e ações educativas em grupos e individuais. Ainda, a relevância das Enfermeiras no cuidado ao adoecido crônico está em colocar-se na linha de frente da luta pela garantia de seus direitos de forma conjunta com as equipes, propondo projetos terapêuticos individuais que tensionam cotidianamente saberes e práticas, baseando-se em evidências científicas, em Práticas Avançadas em Enfermagem (PAE), como a solicitação e realização de determinados exames, assim como autonomia para referenciar e contrarreferenciar usuários, e centrado na própria comunidade11. Lima AR, Buss E, Ruiz MC, González JS, Heck RM. Rural nursing formation possibilities: integrative review. Acta Paul Enferm. 2019;32(1):113-9. doi: https://doi.org/10.1590/1982-0194201900016
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,33. Ferreira SRS, Périco LAD, Dias VRG. The complexity of the work of nurses in Primary Health Care. Rev Bras Enferm. 2018;71( Suppl 1):704-9. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0471
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,44. Santos VCF, Gerhardt TE. A mediação em saúde: espaços e ações de profissionais na rede de atenção à população rural. Saude Soc. 2015;24(4):1164-79. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902015139792
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-55. Burille A, Gerhardt TE, Lopes MJ, Dantas GC. Subjetividades de homens rurais com problemas cardiovasculares: cuidado, ameaças e afirmações da masculinidade. Saude Soc. 2018;27(2):435-47. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018162943
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. E, quando se está discutindo questões relacionadas às condições crônicas, insere-se neste debate elementos relacionados à função das Enfermeiras como mediadoras da ação do Estado localmente ao dar materialidade à políticas públicas e programas em saúde quando executam suas ações, atuando como agentes de produção social da saúde e parte da rede de proteção social do qual os adoecidos crônicos tanto carecem44. Santos VCF, Gerhardt TE. A mediação em saúde: espaços e ações de profissionais na rede de atenção à população rural. Saude Soc. 2015;24(4):1164-79. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902015139792
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,88. Mendes EV. Interview: The chronic conditions approach by the Unified Health System. Ciênc Saúde coletiva. 2018;23(2):431-6. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018232.16152017
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.

A partir das reflexões suscitadas neste estudo, ressalta-se a necessidade da formação de profissionais mais autônomos e críticos sobre seu processo de trabalho, que desenvolvam competências voltadas à liderança em enfermagem e com conhecimentos especializados nesta área de atuação. Isto poderia ser um caminho para que pudessem se adaptar e construir saberes e práticas em enfermagem rural com base nas necessidades e especificidades do cotidiano de cuidado11. Lima AR, Buss E, Ruiz MC, González JS, Heck RM. Rural nursing formation possibilities: integrative review. Acta Paul Enferm. 2019;32(1):113-9. doi: https://doi.org/10.1590/1982-0194201900016
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,1616. Pessoa VM, Almeida MM, Carneiro FF. Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde Debate. 2018;42(spe 1):302-14. doi: https://doi.org/10.1590/0103-11042018S120
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. E, também, para que possam estar atentos às iniquidades das quais as populações do campo e da floresta estão expostas, estas que não se referem somente à falta de acesso a bens materiais, como televisão, geladeira e luz elétrica, mas ao acesso à direitos e exercício pleno da cidadania. Disso emergem situações de vulnerabilidade decorrentes de condições impostas pela ausência de oportunidades e da pobreza que se manifesta na falta de emprego, de acesso à alimentação adequada, moradia digna, educação, saneamento básico e aos serviços de saúde77. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política nacional de saúde integral das populações do campo e da floresta. Brasília: Ministério da Saúde; 2013 [cited 2020 May 15]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacoes_campo.pdf
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. Nesta conjuntura, pode-se apontar questões relacionadas à construção social da identidade dos indivíduos no viver no campo com suas especificidades produtivas, com a relação com a terra e com a construção do feminino e masculino55. Burille A, Gerhardt TE, Lopes MJ, Dantas GC. Subjetividades de homens rurais com problemas cardiovasculares: cuidado, ameaças e afirmações da masculinidade. Saude Soc. 2018;27(2):435-47. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018162943
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A discussão proposta neste estudo traz à luz a necessidade de que os profissionais atuantes no rural compreendam a historicidade da constituição dos territórios rurais e o contexto onde estão inseridos, isto se dá no sentido de empreender a gestão do cuidado ao adoecido crônico reconhecendo a diversidade dos itinerários que são tecidos nestes territórios. Ainda, sem negligenciar algumas particularidades vivenciadas na prática profissional da Enfermeira no rural, pode-se apontar desafios cotidianos, quais sejam, a diversidade socioeconômica e de perfis epidemiológicos, a dificuldade de acesso aos serviços de saúde e o isolamento social promovido pelo não acesso a bens determinados bens e serviços como a internet e transporte público, assim como o clima66. Allieu A, Ocampo A, Rossi NW. Removing barriers to access social protection in rural areas: a core priority to achieve Sustainable Development Goal 1.3. Policy Focus. 2019 [cited 2020 May 10];16(1):39-41. Available from: https://ipcig.org/pub/eng/PIF44_Rural_poverty_reduction_in_the_21st_century.pdf
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,2020. Lima ARA, González JS, Ruiz MCS, Heck RM. Nursing interfaces in rural care: an integrative review. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20180426. doi: https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2018-0426
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da gestão do cuidado às pessoas adoecidas crônicas no rural trouxe à luz fragilidades relacionadas à organização político-administrativa da atenção em saúde, exigindo o planejamento de estratégias que deem conta de diferentes desafios impostos pelo rural - elencados nos resultados - e que dificultam a organização dos fluxos, a gestão de processos e do cuidado neste espaço. Ainda, o estudo demonstra que as Enfermeiras Coordenadoras que atuam no meio rural enfrentam dificuldades impostas pelo meio e pela estrutura deste espaço. A gestão do cuidado voltada às condições crônicas no rural se dá junto aos usuários deste território utilizando-se de estratégias e ferramentas que potencializam o cuidado, driblando os obstáculos como organização da rotina de cuidado domiciliar diferente das áreas urbanas; alternativas ante a inadequada estrutura física (divisão de consultório, por exemplo); luta frente à gestão municipal para visibilizar a problemática da atenção no rural, ampliação da oferta de recursos para qualificar os serviços e planejamento das agendas (consultas, atividades de grupo) levando em consideração as distâncias percorridas pelos usuários; dentre outros aspectos que demonstram a persistência destas profissionais na busca pela qualificação da gestão do cuidado a este público.

A gestão do cuidado no rural pela perspectiva das Enfermeiras Coordenadoras de Equipes de Saúde da Família apresenta o processo de trabalho nesse território permeado pelas pluralidades existentes no rural, estas que impõem especificidades ao cuidado e ao cotidiano das equipes, além de mobilizar as Enfermeiras na busca de melhorias estruturais, da própria burocratização do acesso e da RAS junto à administração municipal. O estudo proporcionou importantes reflexões para contribuição na construção do conhecimento da Enfermagem rural e no cuidado ao adoecido crônico. A possibilidade de elencar os obstáculos e as potencialidades da gestão do cuidado neste espaço auxiliam no planejamento do trabalho de Enfermeiras que atuam no rural.

Mesmo diante dos avanços alcançados, o cenário apresentado indica que ainda se faz necessário discutir estratégias que possam facilitar o acesso dos usuários do rural às equipes, assim como estabelecer dispositivos que tenham a potência de garantir relações horizontais e baseadas no cuidado. O estudo traz para o debate, elementos da gestão do cuidado que estão relacionados não só ao atendimento individual, mas também elementos ligados a dimensões mais amplas da atenção em saúde, como as relações sociais e políticas que tensionam os territórios e que tem implicações à prática clínica, elementos importantes à prática profissional das Enfermeiras.

Este estudo aponta para a necessária formação em Enfermagem que proporcione competências e habilidades para o trabalho clínico no atendimento dos adoecidos crônicos que vivem no rural e, também, para a implementação de ações públicas que sejam alinhadas às especificidades deste território. A esperada coerência da gestão do cuidado perpassa a dinamicidade do território em questão e a necessária equidade do atendimento prestado, visando assegurar o direito à saúde e proporcionar o exercício da cidadania pela via da saúde. As Enfermeiras implementam diferentes estratégias para a gestão do cuidado no rural, dentre elas as reuniões de equipe, inclusive para o gerenciamento dos casos, uso de equipamentos sociais como a rádio comunitária para melhorar a comunicação da unidade e atividades de promoção da saúde junto à comunidade, grupos, acolhimento e vínculo da equipe com os usuários, engajamento dos ACS e o fortalecimento do trabalho em equipe. E, em tempo, cabe destacar que a gestão do cuidado ao adoecido crônico no rural mais equânime é o que se aproxima das características apontadas acima.

As especificidades apontadas são relevantes para o compartilhamento acadêmico, principalmente no cenário internacional, haja vista que o Brasil ainda é um país eminentemente rural, tanto em função das distâncias quanto em relação do quantitativo de pessoas que vivem nestes espaços geográficos, o que se diferencia de outros países menores territorialmente e que já se estabeleceram de forma mais estruturada no âmbito do acesso aos serviços de saúde. Cabe destacar que, as limitações do estudo versam sobre o uso de uma única técnica de pesquisa, a entrevista com as Enfermeiras Coordenadoras. Para a constituição de outros estudos, aponta-se para o envolvimento dos usuários em pesquisas que venham a explorar dimensões da gestão do cuidado como a corresponsabilização pelos interesses coletivos e pela produção da atenção em saúde no rural.

Agradecimento

Ao apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (Fapergs) em parceria com o Ministério da Saúde (MS), com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) do Brasil e à Secretaria de Estado da Saúde do Rio Grande do Sul/SES-RS, no âmbito do Programa de Pesquisa para o SUS: gestão compartilhada em saúde, sob chamada Fapergs/MS/CNPq/SESRS n. 002/2013.

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Editado por

Editor associado

Carlise Rigon Dalla Nora

Editor-chefe

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    05 Ago 2020
  • Aceito
    12 Jan 2021
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