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Cultura de segurança do paciente na percepção dos profissionais de saúde: pesquisa de métodos mistos

RESUMO

Objetivo:

Analisar a cultura de segurança do paciente percebida pelos profissionais de saúde de um hospital e compreender os elementos que a influenciam.

Métodos:

Misto sequencial explanatório, conduzido em duas etapas conectadas, em hospital, em 2017. A etapa quantitativa ocorreu mediante aplicação do questionário a 618 profissionais e a qualitativa, com dez, pela técnica de grupo focal. A análise foi descritiva para dados quantitativos e de conteúdo, para os qualitativos. Posteriormente, os dados foram submetidos à análise integrada.

Resultados:

Das 12 dimensões, sete foram consideradas frágeis, sendo a mais crítica “resposta não punitiva aos erros”, com 28,5% de respostas positivas. Processos burocratizados, mal desenhados e descoordenados, decisões regionais, falhas de comunicação, hierarquia, sobrecarga, punição e judicialização foram relacionados à percepção.

Conclusão:

A cultura de segurança do paciente foi considerada frágil e os elementos relacionados à organização do trabalho, à gestão de pessoas e ao risco jurídico influenciaram essa percepção negativa.

Palavras-chave:
Segurança do paciente; Cultura organizacional; Gestão da segurança; Garantia da qualidade dos cuidados de saúde; Serviços hospitalares; Qualidade da assistência à saúde

ABSTRACT

Objective:

To analyze the patient safety culture perceived by health professionals working in a hospital and to understand the elements influencing it.

Methods:

A sequential explanatory mixed methods study, conducted in 2017 in two interrelated stages in a hospital. The quantitative stage was carried out by applying the questionnaire to 618 professionals and the qualitative stage, with ten, using the focus group technique. The analysis was descriptive statistics for the quantitative data and of content for the qualitative data. Subsequently, the data were submitted to integrated analysis.

Results:

Of the 12 dimensions, seven were considered weak, the most critical being “non-punitive response to error” with 28.5% of positive answers. Bureaucratic, poorly designed and uncoordinated processes, regional decisions, communication failures, hierarchy, overload, punishment and judicialization were related to the perception.

Conclusions:

The patient safety culture was considered weak, and elements related to work organization, people management and legal risk influenced this negative perception.

Keywords:
Patient safety. Organizational culture. Safety management. Quality assurance; health care. Hospital services. Quality of health care

RESUMEN

Objetivo:

Analizar la cultura de seguridad del paciente percibida por los profesionales de la salud y comprender los elementos que influyen en ella.

Métodos:

Estudio de método mixto explicativo secuencial, realizado en dos etapas interrelacionadas en un hospital en el año 2017. La etapa cuantitativa se realizó mediante la aplicación del cuestionario a 618 profesionales y la etapa cualitativa, con diez, mediante la técnica de grupo focal. El análisis fue estadística descriptiva para los datos cuantitativos y de contenido para los datos cualitativos. Posteriormente, los datos se sometieron a análisis integrado.

Resultados:

De las 12 dimensiones, siete se consideraron débiles, siendo la más crítica la “respuesta no punitiva a los errores”. Los procesos burocráticos, mal diseñados e descoordinados, decisiones regionales, fallas de comunicación, jerarquización, sobrecarga, castigo y judicialización se relacionaron con la percepción.

Conclusiones:

La cultura de seguridad del paciente se consideró débil y elementos relacionados con la organización del trabajo, la gestión de personas y el riesgo legal influyeron esta percepción negativa.

Palabras clave:
Seguridad del paciente; Cultura organizacional; Administración de la seguridad; Garantía de la calidad de atención de salud; Servicios hospitalarios; Calidad de la atención de salud

INTRODUÇÃO

O movimento mundial pela segurança do paciente tem como marco de confluência a publicação do relatório “Errar é Humano: construindo um sistema de saúde mais seguro”, no ano de 1999 que estimou número alarmante de óbitos por falhas decorrentes da assistência nos hospitais americanos11. Kohn LT, Corrigan JM, Donaldson MS, editores. To err is human: building a safer health system. Washington, D.C.: National Academies Press; 2000. doi: https://doi.org/10.17226/9728
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. Apesar dos esforços e de importantes avanços ao longo dos anos, o trabalho para tornar a assistência aos pacientes mais segura progrediu de forma mais lenta do que o previsto e, segundo painel de especialistas, o sistema de saúde segue operando com baixo grau de confiabilidade, constatando-se, com frequência, danos desnecessários aos pacientes, principalmente nos países em desenvolvimento22. National Patient Safety Foundation (US). Free from harm: accelerating patient safety improvement fifteen years after to err is human. Boston, MA: National Patient Safety Foundation; 2015 [cited 2021 Apr 26]. Available from: http://www.ihi.org/resources/Pages/Publications/Free-from-Harm-Accelerating-Patient-Safety-Improvement.aspx
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-33. Yu A, Flott K, Chainani N, Fontana G, Darzi A. Patient Safety 2030. London, UK: NIHR Imperial Patient Safety Translational Research Centre; 2016 [cited 2021 Apr 26]. Available from: https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/institute-of-global-health-innovation/centre-for-health-policy/Patient-Safety-2030-Report-VFinal.pdf
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Na busca por estratégias que garantam uma assistência segura, construir e nutrir uma cultura que reconheça os desafios da segurança do paciente e implemente soluções viáveis emergem como requisitos essenciais a ser desenvolvido pelas organizações de saúde44. Rodziewicz TL, Hipskind JE. Medical error prevention. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2020. [cited 2021 Apr 26]. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK499956/
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. Cultura de Segurança do Paciente (CSP) é definida como o produto de valores, atitudes, percepções, competências e padrões de comportamentos individuais e de grupo, os quais determinam o compromisso, o estilo e a proficiência da administração de uma organização com a gestão da segurança55. Nieva VF, Sorra J. Safety culture assessment: a tool for improving patient safety in healthcare organizations. Qual Saf Health Care. 2003;12(Suppl. 2):ii17-ii23. doi: https://doi.org/10.1136/qhc.12.suppl_2.ii17
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Reconhece-se uma instituição de saúde com uma cultura de segurança fortalecida quando todos os trabalhadores assumem responsabilidade pela segurança de colegas, pacientes, familiares e a própria; prioriza-se a segurança acima de metas financeiras e operacionais; os profissionais são encorajados e recompensados a identificar, notificar e resolver problemas de segurança; promove-se o aprendizado organizacional a partir da ocorrência de um incidente; e quando disponibilizam-se recursos, estrutura e responsabilização para manutenção efetiva da segurança66. Ministério da Saúde (BR), Fundação Oswaldo Cruz, Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Documento de referência para o Programa Nacional de Segurança do Paciente. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014 [cited 2018 Aug 30]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/documento_referencia_programa_nacional_seguranca.pdf
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Analisar a CSP nas instituições de saúde tem sido uma proposta globalmente estimulada pela comunidade científica e pelas organizações internacionais de acreditação hospitalar. A partir da percepção dos profissionais acerca da cultura partilhada na organização, têm-se acesso aos comportamentos relacionados à segurança, bem como às áreas e dimensões mais frágeis, contribuindo para o planejamento e a implementação de intervenções assertivas para segurança do paciente55. Nieva VF, Sorra J. Safety culture assessment: a tool for improving patient safety in healthcare organizations. Qual Saf Health Care. 2003;12(Suppl. 2):ii17-ii23. doi: https://doi.org/10.1136/qhc.12.suppl_2.ii17
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-66. Ministério da Saúde (BR), Fundação Oswaldo Cruz, Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Documento de referência para o Programa Nacional de Segurança do Paciente. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014 [cited 2018 Aug 30]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/documento_referencia_programa_nacional_seguranca.pdf
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No Brasil, pesquisas com enfoque na mensuração da CSP, em maioria, restringem-se aos métodos quantitativos, para avaliar uma unidade hospitalar ou setor específico, com amostra composta por profissionais assistenciais, especialmente médicos e enfermeiros77. Batalha EMSS, Melleiro MM. Cultura de segurança do paciente: percepções da equipe de enfermagem. HU Rev. 2016 [cited 2018 Aug 31];42(2):133-42. Available from: https://periodicos.ufjf.br/index.php/hurevista/article/view/2518
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-99. Andrade LEL, Lopes JM, Souza Filho MCM, Vieira Júnior RF, Farias LPC, Santos CCM, et al. Cultura de segurança do paciente em três hospitais brasileiros com diferentes tipos de gestão. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(1):161-72. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018231.24392015
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A necessidade de compreensão dos aspectos culturais para tornar a segurança do paciente uma prioridade no sistema de saúde, somada às lacunas apontadas na literatura acerca desta temática, resultaram na seguinte questão de pesquisa: qual a percepção dos profissionais atuantes em hospital sobre a cultura de segurança do paciente e quais os elementos que influenciam essa percepção? Desta, estabeleceu-se como objetivo, analisar a cultura de segurança do paciente percebida pelos profissionais de saúde de um hospital e compreender os elementos que a influenciam.

MÉTODOS

Pesquisa de método misto do tipo sequencial explanatório1010. Guetterman TC, Fetters MD, Creswell JW. Integrating quantitative and qualitative results in health science mixed methods research through joint displays. Ann Fam Med. 2015;13(6):554-61. doi: https://doi.org/10.1370/afm.1865
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, conduzida em duas etapas conectadas, sendo a primeira quantitativa, com delineamento de estudo observacional transversal, em que se utilizou do Hospital Survey on Patient Safety Culture (HSOPSC), na versão brasileira1111. Reis CT. A cultura de segurança do paciente: validação de um instrumento de mensuração para o contexto hospitalar brasileiro [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2013 [cited 2021 Jan 22]. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/14358
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, para identificar a percepção da CSP; e a segunda, qualitativa, realizada por meio da técnica de grupo focal, para explorar os resultados da etapa anterior e os elementos que influenciam a percepção dos profissionais.

O estudo foi realizado em hospital geral de grande porte, privado, localizado na Região Sul do Brasil, com capacidade para 320 leitos, incluindo unidades de internação clínica-cirúrgica e de terapia intensiva. A coleta de dados da etapa quantitativa ocorreu em todos os turnos de trabalho, nos meses de abril e maio de 2017, enquanto a realização da etapa qualitativa aconteceu em duas sessões de grupo focal, no mês de outubro de 2017, com duração de duas horas em cada encontro.

A população foi constituída por profissionais das áreas assistenciais (enfermagem, medicina, fisioterapia, psicologia, farmácia, nutrição e serviço social) e de apoio técnico administrativo (financeiro, faturamento, higienização, vigilância, engenharia e administração), totalizando 1.714 profissionais. Para esta população, a amostra mínima para a etapa quantitativa foi calculada em 432 participantes, considerando percentual estimado do desfecho de 60%1212. Famolaro T, Yount N, Burns W, Flashner E, Liu H, Sorra J. Hospital survey on patient safety culture: 2016 user comparative database report. Rockville, MD: AHRQ, 2016 [cited 2018 Sep 03]. Available from: https://www.ahrq.gov/sites/default/files/wysiwyg/professionals/quality-patient-safety/patientsafetyculture/hospital/2016/2016_hospitalsops_report_pt1.pdf
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, nível de confiança de 95% e margem de erro de 4%. Na etapa quantitativa, o critério de inclusão foi ser profissional contratado ou preceptor da residência há mais de seis meses. A amostra foi composta por 618 profissionais, superior a mínima estabelecida, em função da adesão dos profissionais ao estudo, selecionados de forma aleatória (sorteio manual, no momento da aplicação do questionário, após identificação dos profissionais elegíveis), considerando as proporções de cada categoria profissional, garantindo representatividade.

A coleta de dados quantitativos foi realizada pela equipe de pesquisa, em todos os turnos de trabalho, pelo preenchimento do instrumento de coleta de dados, pelo próprio participante. O instrumento continha as variáveis relacionadas ao HSOPSC1111. Reis CT. A cultura de segurança do paciente: validação de um instrumento de mensuração para o contexto hospitalar brasileiro [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2013 [cited 2021 Jan 22]. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/14358
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, variáveis sociodemográficas e laborais dos participantes e duas perguntas sobre a percepção dos profissionais sobre o ambiente de trabalho e número de eventos notificados no último ano. O HSOPSC1111. Reis CT. A cultura de segurança do paciente: validação de um instrumento de mensuração para o contexto hospitalar brasileiro [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2013 [cited 2021 Jan 22]. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/14358
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, cuja versão validada no Brasil apresentou alpha de Cronbach de 0,91, avalia 12 dimensões de cultura de segurança do paciente, contendo 50 itens no total e a maioria respondidos em uma escala do tipo Likert, com variação em 5 graus de percepção, de “Discordo totalmente” a “Concordo totalmente” e de “Nunca” a “Sempre”.

Na etapa qualitativa, a definição dos participantes para compor o grupo focal foi realizada após análise preliminar dos dados quantitativos. Para evitar o viés que poderia surgir em função das hierarquias profissionais (grau de instrução e cargos de gestão), profissionais assistenciais graduados e/ou pós-graduados e que não ocupassem cargo de gestão ou supervisão foram convidados para esta etapa, sendo o critério de inclusão ter preenchido o questionário da etapa anterior. Assim, para compor a amostra do grupo focal, enviou-se um convite via sistema informatizado (ferramenta de comunicação institucional), apresentando os objetivos e a metodologia a ser empregada. Aceitaram participar do estudo 10 profissionais, sendo cinco enfermeiros (representantes da unidade de internação, terapia intensiva e cuidados intermediários, centro cirúrgico e sala de recuperação, emergência e Serviços de Apoio Diagnósticos e Terapêutico), um médico da terapia intensiva, um fisioterapeuta, um farmacêutico, um assistente social e um nutricionista. Realizaram-se duas sessões de grupo focal, no mês de outubro de 2017, com cada encontro tendo a duração de duas horas.

O primeiro encontro teve como objetivo principal apresentar e discutir os resultados da etapa quantitativa, explorando os elementos que influenciam a percepção dos profissionais acerca da cultura de segurança do paciente. No segundo encontro, o objetivo foi discutir sobre a Política interna de Segurança do Paciente e elencar oportunidades de melhorias para a instituição. As sessões foram gravadas em áudio e a transcrição literal dos diálogos foi enviada por e-mail aos participantes para validação da fidedignidade da transcrição.

Realizou-se dupla digitação, independentemente dos dados quantitativos, após análise e correção de incongruências. Seguidamente, procedeu-se à análise estatística descritiva, por meio de frequências simples (n) e relativas (%), para variáveis categóricas; e média e desvio padrão ou mediana e intervalo interquartil, para variáveis contínuas, conforme análise de simetria da distribuição (teste Shapiro Wilk ou Kolmogorov-Smirnov). A análise da consistência interna foi mensurada pelo coeficiente Alpha de Cronbach e apontou resultado de 0,876 para o instrumento completo e variações entre 0,490 e 0,873 nas dimensões (Trabalho em equipe dentro das unidades: 0,788; Expectativas sobre o seu líder imediato e ações promotoras da segurança do paciente: 0,698; Aprendizado organizacional - melhoria contínua: 0,621; Apoio da gestão para a segurança do paciente: 0,671; Percepção geral da segurança do paciente: 0,493; Retorno da informação e comunicação sobre erro: 0,653; Abertura da comunicação: 0,560; Frequência de relato de eventos: 0,873; Trabalho em equipe entre as unidades: 0,530; Adequação de profissionais: 0,490; Passagem de plantão ou de turno/ transferências: 0,646; Respostas não punitivas aos erros: 0,492). O desfecho principal foi a percepção da cultura de segurança do paciente mediante a análise do percentual de respostas positivas de cada dimensão do HSOPSC, utilizando a fórmula: [nº de respostas positivas ao item da dimensão avaliada / nº total de respostas válidas aos itens da dimensão avaliada (positivas, neutras e negativas, excluindo-se os dados ausentes)] x 1001111. Reis CT. A cultura de segurança do paciente: validação de um instrumento de mensuração para o contexto hospitalar brasileiro [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2013 [cited 2021 Jan 22]. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/14358
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Respostas positivas se referem àquelas em que foram assinaladas a opção concordo/concordo totalmente ou quase sempre/sempre para as sentenças formuladas de forma positiva ou discordo/discordo totalmente ou nunca/raramente, nas perguntas formuladas negativamente. O percentual de respostas positivas representa uma reação positiva em relação à cultura de segurança do paciente e permite identificar áreas fortes e frágeis para segurança do paciente. Conceitualmente, “áreas fortes da segurança do paciente” são aquelas cujos itens escritos positivamente obtiverem 75% de respostas positivas ou aquelas cujos itens escritos negativamente atingiram 75% das respostas negativas. De modo semelhante, “áreas frágeis da segurança do paciente” e que necessitam melhoria são consideras aquelas cujos itens adquiriram 50% ou menos de respostas positivas1111. Reis CT. A cultura de segurança do paciente: validação de um instrumento de mensuração para o contexto hospitalar brasileiro [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2013 [cited 2021 Jan 22]. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/14358
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O método de análise de conteúdo proposto por Minayo1313. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014. foi utilizado para analisar as informações geradas pelo grupo focal, com base nas categorias temáticas emergidas. Assim, as transcrições passaram por pré-análise, mediante leitura flutuante que buscou constituir o corpus do conteúdo, respeitando os critérios de validade qualitativa. Então, seguiu-se a etapa de codificação, na qual as unidades de significado consideradas mais relevantes na etapa anterior foram categorizadas por meio de redução do texto às palavras e expressões significativas. Por fim, no tratamento dos resultados, realizaram-se inferências e interpretações, inter-relacionando-as com os objetivos da pesquisa. Enfatiza-se que na apresentação dos resultados qualitativos, corrigiram-se vícios de linguagem, sem, no entanto, alterar o conteúdo essencial.

Com vistas a atender aos pressupostos metodológicos da pesquisa de métodos mistos do protótipo sequencial explanatório, o processo de integração dos resultados quantitativos e qualitativos foi marcado pelo movimento de “ir e vir” entre os dados, objetivando melhor compreensão do fenômeno, os quais estão apresentados na forma de joint displays1010. Guetterman TC, Fetters MD, Creswell JW. Integrating quantitative and qualitative results in health science mixed methods research through joint displays. Ann Fam Med. 2015;13(6):554-61. doi: https://doi.org/10.1370/afm.1865
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Os preceitos éticos foram seguidos e a pesquisa aprovada conforme Certificado de Apresentação para Apreciação Ética n 63334616.4.0000.5347. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi apresentado e entregue aos participantes nas duas etapas da pesquisa.

RESULTADOS

Etapa 1 - Abordagem Quantitativa

Dos 618 participantes incluídos na etapa quantitativa, 315 eram de áreas assistenciais e 303, de apoio técnico-administrativo. A amostra foi predominantemente feminina (69,1%), a média de idade dos profissionais foi de 38,1 anos (+10,4) e a mediana do tempo de profissão, 7 anos (3-17). A Tabela 1 mostra o perfil sociodemográfico e laboral dos participantes.

Tabela 1 -
Variáveis sociodemográficas e laborais dos profissionais que participaram da etapa quantitativa (n=618). Rio Grande do Sul, Brasil, 2017

A análise da distribuição dos profissionais quanto à categoria profissional mostrou que, dentre o componente laboral assistencial, técnicos em enfermagem compuseram a maior parte da amostra (35,4%), seguidos por médicos (9,9%) e enfermeiros (6,8%). Entre profissionais não assistenciais, a categoria formada por outros profissionais de apoio técnico administrativo foi a mais frequente (22,2%), seguida pela formada por técnicos administrativos (7,1%).

A percepção dos profissionais acerca da CSP, mensurada a partir do percentual médio de respostas positivas das dimensões do HSOPSC, está apresentada na Tabela 2. Nenhuma das 12 dimensões foi considerada fortalecida para segurança do paciente e sete (58,3%) foram julgadas como áreas frágeis para CSP. A dimensão mais crítica foi “resposta não punitiva aos erros”, com percentual de 28,5% de resposta positiva, seguida da “passagem de plantão ou turno e transferências”, com 32,3%.

Tabela 2 -
Percentual médio de respostas positivas das dimensões de cultura de segurança do paciente, conforme o HSOPSC (n=618). Rio Grande do Sul, Brasil, 2017

Os participantes da pesquisa avaliaram, também, a área/unidade de trabalho de atuação, concedendo uma nota (excelente, muito boa, regular, ruim ou muito ruim). Dos 573 profissionais que responderam a esta questão, a maioria (58,7%) avaliou como regular, 33,2% excelente ou muito boa e 8,1% consideraram o setor ruim ou muito ruim.

No item sobre o número de eventos notificados ao longo de um ano, 592 profissionais responderam e a maioria (51,5%) referiu que não realizou nenhuma notificação, 37,7% notificaram de um a cinco eventos e 10,8% registraram mais de seis eventos nos últimos 12 meses da data do preenchimento do instrumento.

Etapa 2 - Abordagem Qualitativa

Na etapa qualitativa, a partir do grupo focal, buscou-se compreender os resultados encontrados na etapa anterior e identificar os elementos que explicassem a percepção dos profissionais sobre a CSP. O material produzido a partir dos diálogos compartilhados no grupo focal foi organizado e agrupado na categoria “Elementos que explicam o nosso status quo” e na subcategoria “Fragilidades para a cultura de segurança do paciente”.

Processos mal desenhados, descoordenados e burocratizados, associados à sobrecarga de trabalho, às falhas de comunicação, às decisões regionais, aos gradientes de hierarquia e ao risco de judicialização, foram apontados pelos profissionais, durante as discussões no grupo focal, como contribuintes para a percepção de cultura fragilizada. A existência de cultura punitiva, por vezes velada, somada à dificuldade de implementação de uma cultura justa, também foram apontadas, no decorrer das discussões, como elementos presentes nesse contexto. As falas dos participantes, conforme categoria de análise, estão apresentadas na Figura 1.

Interpretação dos dados quantitativos e qualitativos fundidos

Na integração dos resultados e em atendimento aos pressupostos da pesquisa de métodos mistos do protótipo sequencial explanatório, a exibição conjunta dos principais resultados, que se referem às dimensões fragilizadas para cultura de segurança do paciente e aos elementos que influenciam essa percepção, encontra-se na Figura 1.

Figura 1 -
Dimensões fragilizadas para cultura de segurança do paciente e elementos que contribuem para esta percepção. Rio Grande do Sul, Brasil, 2017

DISCUSSÃO

A abordagem do método misto deste estudo permitiu avançar para além do diagnóstico quantitativo fornecido unicamente pela aplicação do HSOPSC e evidenciar que os profissionais perceberam como frágil a cultura de segurança do paciente. Identificaram-se convergências de percepções, principalmente no tocante à existência de cultura punitiva no ambiente de trabalho e a processos mal desenhados para passagem de plantão e comunicação na unidade de trabalho. A avaliação geral da segurança do paciente também foi apontada como dimensão fragilizada em ambas as abordagens.

Apesar de nenhuma das dimensões do HSOPSC ter sido considerada fortalecida para segurança do paciente, a etapa quantitativa mostrou percentual médio de respostas mais elevado nos itens concernentes à expectativa sobre o líder, aprendizado organizacional e apoio da gestão para segurança do paciente. Em contrapartida, a abordagem qualitativa destacou decisões regionais e gradientes de hierarquia como dimensões fragilizadas.

Em geral, a percepção dos profissionais foi de uma cultura fragilizada para a segurança do paciente, conforme as dimensões do HSOPSC, não diferindo da literatura que aponta a predominância de estudos que revelam culturas fragilizadas para segurança do paciente77. Batalha EMSS, Melleiro MM. Cultura de segurança do paciente: percepções da equipe de enfermagem. HU Rev. 2016 [cited 2018 Aug 31];42(2):133-42. Available from: https://periodicos.ufjf.br/index.php/hurevista/article/view/2518
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-99. Andrade LEL, Lopes JM, Souza Filho MCM, Vieira Júnior RF, Farias LPC, Santos CCM, et al. Cultura de segurança do paciente em três hospitais brasileiros com diferentes tipos de gestão. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(1):161-72. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018231.24392015
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,1414. Reis CT, Paiva SG, Sousa P. The patient safety culture: a systematic review by characteristics of hospital survey on patient safety culture dimensions. Int J Qual Health Care. 2018;30(9):660-77. doi: https://doi.org/10.1093/intqhc/mzy080
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R sistemática que analisou 33 estudos publicados ao redor do mundo, com a utilização do HSOPSC, demonstrou que “trabalho em equipe dentro da unidade”, “aprendizado organizacional e melhoria contínua”, “abertura da comunicação” e “expectativas e ações promotoras de segurança dos supervisores e gerentes” foram as únicas dimensões que se demonstraram fortalecidas para cultura de segurança do paciente. As demais foram identificadas como fragilizadas, sendo as mais críticas: “respostas não punitivas aos erros”, com índices variando de 3,5% a 47% de respostas positivas, “adequação de profissionais” (14% - 45%), “passagem de plantão ou turno e transferências” (24,6% - 49,7%) e “trabalho em equipe entre unidades” (24,6% - 44%)1414. Reis CT, Paiva SG, Sousa P. The patient safety culture: a systematic review by characteristics of hospital survey on patient safety culture dimensions. Int J Qual Health Care. 2018;30(9):660-77. doi: https://doi.org/10.1093/intqhc/mzy080
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A “adequação dos profissionais” foi percebida como uma dimensão frágil para segurança do paciente em 60% dos estudos incluídos nessa revisão sistemática1414. Reis CT, Paiva SG, Sousa P. The patient safety culture: a systematic review by characteristics of hospital survey on patient safety culture dimensions. Int J Qual Health Care. 2018;30(9):660-77. doi: https://doi.org/10.1093/intqhc/mzy080
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, sugerindo que os profissionais se sentem sobrecarregados pelo dimensionamento inadequado, podendo prejudicar a qualidade do cuidado prestado. O “trabalho em equipe entre unidades” foi considerado fragilizado em 30% dos estudos e “passagens de plantão / turnos e transferências” em 36%, sendo este último considerado ponto crítico pelo alto risco para ocorrência de incidentes, perda de informações e fragmentação da assistência nos momentos de transição do cuidado1414. Reis CT, Paiva SG, Sousa P. The patient safety culture: a systematic review by characteristics of hospital survey on patient safety culture dimensions. Int J Qual Health Care. 2018;30(9):660-77. doi: https://doi.org/10.1093/intqhc/mzy080
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. Por fim, uma cultura punitiva parece existir nos hospitais em geral, “respostas não punitivas aos erros” foi considerada dimensão fragilizada em 70% dos estudos1414. Reis CT, Paiva SG, Sousa P. The patient safety culture: a systematic review by characteristics of hospital survey on patient safety culture dimensions. Int J Qual Health Care. 2018;30(9):660-77. doi: https://doi.org/10.1093/intqhc/mzy080
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, o que desencoraja o relato dos incidentes pelas equipes, dificultando, assim, a análise das causas e impedindo a aprendizagem a partir dos erros.

Corroborando os resultados desta revisão sistemática1414. Reis CT, Paiva SG, Sousa P. The patient safety culture: a systematic review by characteristics of hospital survey on patient safety culture dimensions. Int J Qual Health Care. 2018;30(9):660-77. doi: https://doi.org/10.1093/intqhc/mzy080
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, as quatro dimensões mencionadas foram as mais fragilizadas para CSP nesta pesquisa, o que denota que estes aspectos são realmente paradigmas na área da saúde e desafios a serem superados.

Na comparação dos resultados desta pesquisa com o banco de dados da Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ)1212. Famolaro T, Yount N, Burns W, Flashner E, Liu H, Sorra J. Hospital survey on patient safety culture: 2016 user comparative database report. Rockville, MD: AHRQ, 2016 [cited 2018 Sep 03]. Available from: https://www.ahrq.gov/sites/default/files/wysiwyg/professionals/quality-patient-safety/patientsafetyculture/hospital/2016/2016_hospitalsops_report_pt1.pdf
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, observou-se que nos hospitais americanos, a percepção de uma cultura de segurança do paciente é mais fortalecida. A maior diferença observada entre o banco de dados da AHRQ e esta pesquisa foi na dimensão “trabalho em equipe entre unidades”, em que nesta, o percentual de respostas positivas foi de 36,8% e naquele, 61%, demonstrando que o apoio entre os profissionais, o respeito mútuo e o trabalho em equipe estão mais desenvolvidos entre os americanos. Destaca-se, ainda, que apenas as dimensões “respostas não punitivas aos erros” e “passagem de plantão ou turno e transferências” demonstraram-se fragilizadas para segurança do paciente nos hospitais dos EUA.

No Brasil, estudo que analisou a percepção de 215 profissionais assistenciais (médicos, enfermeiros, farmacêuticos e outros) em três hospitais, com diferentes tipos de gestão (federal, estadual e privado), demonstrou que: a) no hospital privado, cinco dimensões foram consideradas fortalecidas para segurança do paciente: “apoio da gestão hospitalar para segurança do paciente” (90,2%); “aprendizagem organizacional e melhoria contínua” (87,6%); “expectativa e ações promotoras de segurança dos supervisores e gerentes” (86,4%); “trabalho em equipe entre unidades” (77,3%); e “trabalho em equipe na unidade” (76,8%); b) no estadual, todas as dimensões foram consideradas fragilizadas, com índices de respostas positivas variando de 19,7% para a dimensão “passagens de plantão ou turnos e transferências internas” e 50,0% para “expectativa e ações promotoras de segurança dos supervisores e gerentes”; c) no hospital federal, metade das dimensões foram consideradas frágeis99. Andrade LEL, Lopes JM, Souza Filho MCM, Vieira Júnior RF, Farias LPC, Santos CCM, et al. Cultura de segurança do paciente em três hospitais brasileiros com diferentes tipos de gestão. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(1):161-72. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018231.24392015
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A pesquisa de métodos mistos recentemente foi utilizada para avaliar a cultura de segurança do paciente em uma instituição europeia com acreditação hospitalar1515. Gleeson LL, Tobin L, O’Brien GL, Crowley EK, Delaney A, O’Mahony D, et al. Safety culture in a major accredited Irish university teaching hospital: a mixed methods study using the safety attitudes questionnaire. Ir J Med Sci. 2020;189(4):1171-8. doi: https://doi.org/10.1007/s11845-020-02228-0
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e apontou divergências nos achados de cada abordagem, diferentemente dos resultados desta pesquisa, em que em ambas as abordagens, uma cultura fragilizada foi evidenciada. Enquanto a etapa quantitativa evidenciou escores satisfatórios em cinco dos seis domínios avaliados, a análise qualitativa elucidou fragilidades na segurança do paciente, no que tange ao relacionamento interpessoal, ambiente de trabalho e treinamento para evitar erros1515. Gleeson LL, Tobin L, O’Brien GL, Crowley EK, Delaney A, O’Mahony D, et al. Safety culture in a major accredited Irish university teaching hospital: a mixed methods study using the safety attitudes questionnaire. Ir J Med Sci. 2020;189(4):1171-8. doi: https://doi.org/10.1007/s11845-020-02228-0
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A cultura de segurança do paciente é tema conhecido da enfermagem e estudada previamente no Brasil. Deste modo, outro estudo evidenciou associação significativa entre carga de trabalho e segurança do paciente em unidades de internação clínica e cirúrgica de um hospital universitário da Região Sul do Brasil1616. Magalhães AMM, Costa DG, Riboldi CO, Mergen T, Barbosa AS, Moura GMSS. Association between workload of the nursing staff and patient safety outcomes. Rev Esc Enferm USP. 2017;51:e03255. doi: https://doi.org/10.1590/s1980-220x2016021203255
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. No referido estudo, o aumento do número de pacientes atribuído à equipe de enfermagem por dia foi associado, de forma significativa, ao aumento da incidência de quedas, infecção relacionada ao acesso central, absenteísmo, rotatividade dos profissionais e redução da satisfação dos pacientes com a equipe de enfermagem.

Além do dimensionamento adequado de profissionais, a comunicação é reconhecidamente fundamental para o fortalecimento da segurança do paciente, ademais de ações para promover comunicação aberta, sistematizar o retorno da informação mediante a comunicação do erro e estimular a notificação dos incidentes1717. Batista J, Cruz EDA, Alpendre FT, Paixão DPSS, Gaspari AP, Mauricio AB. Safety culture and communication about surgical errors from the perspective of the health team. Rev Gaúcha Enferm. 2019;40(esp):e20180192. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2019.20180192
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Falhas de comunicação acarretam sérias implicações nas passagens de plantão e transferências internas. Vulnerabilidades neste processo, como inexistência de padronização, interrupções, conversas paralelas, entradas e saídas antecipadas, qualidade das informações passadas e qualificação da equipe interferem diretamente na qualidade da passagem de plantão e, consequentemente, na continuidade da assistência1818. Gonçalves MI, Rocha PK, Anders JC, Kusahara DM, Tomazoni A. Communication and patient safety in the change-of-shift nursing report in neonatal intensive care units. Texto Contexto Enferm. 2016;25(1):e2310014. doi: https://doi.org/10.1590/0104-07072016002310014
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A subnotificação dos incidentes de segurança, reportado em vários estudos, inclusive nesta pesquisa, tem sua raiz na cultura punitiva, ainda predominante nos serviços de saúde1414. Reis CT, Paiva SG, Sousa P. The patient safety culture: a systematic review by characteristics of hospital survey on patient safety culture dimensions. Int J Qual Health Care. 2018;30(9):660-77. doi: https://doi.org/10.1093/intqhc/mzy080
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,1717. Batista J, Cruz EDA, Alpendre FT, Paixão DPSS, Gaspari AP, Mauricio AB. Safety culture and communication about surgical errors from the perspective of the health team. Rev Gaúcha Enferm. 2019;40(esp):e20180192. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2019.20180192
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. Falar de erro é um tabu tanto entre os profissionais quanto na sociedade, em virtude dos erros estarem associados a sentimentos de vergonha, culpa e medo1919. Duarte SCM, Stipp MAC, Cardoso MMVN, Bücher A. Patient safety: understanding human error in intensive nursing care. Rev Esc Enferm USP. 2018;52:e03406. doi: https://doi.org/10.1590/s1980-220x2017042203406
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e serem vistos como algo que merece punição, quando, na verdade, é um ato não intencional. A abordagem do erro, sob o ponto de vista sistêmico, tem como premissa que humanos são falhos e, assim, os erros são esperados, mesmo nas melhores organizações2020. Gomes ATDL, Silva MDF, Morais SHMD, Chiavone FBT, Medeiros SMD, Santos VEP. Human error and safety culture in approach of the "swiss cheese's" theory: a reflective analysis. J Nurs UFPE on line. 2016 [cited 2021 Jan 22];10(Suppl. 4):3646-52. Available from: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/11139/12638
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. Erros são vistos como consequências e não causas e, quando ocorrem, a questão primordial não é encontrar quem errou, mas como e porque as barreiras falharam. O movimento pela segurança do paciente aponta para as deficiências do sistema, em concepção, organização e funcionamento, como as principais responsáveis diante da ocorrência de um incidente, ao contrário de culpar o profissional isoladamente, afinal, não se pode mudar a condição humana, mas é possível modificar as condições de trabalho, criando defesas no sistema2020. Gomes ATDL, Silva MDF, Morais SHMD, Chiavone FBT, Medeiros SMD, Santos VEP. Human error and safety culture in approach of the "swiss cheese's" theory: a reflective analysis. J Nurs UFPE on line. 2016 [cited 2021 Jan 22];10(Suppl. 4):3646-52. Available from: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/11139/12638
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O risco jurídico foi um fator apontado pelos participantes do grupo focal como contribuinte para uma percepção mais negativa, acerca das questões relacionadas à segurança do paciente. O fenômeno da judicialização da saúde vem crescendo de forma vertiginosa e, a cada ano, há incremento no número de ações com decisões. O temor de um processo judicial e a intimidação percebida pelos profissionais fazem com que estes adotem posturas e condutas defensivas, tenham dificuldades em falar e assumir os próprios erros, além de estabelecerem relação de desconfiança na prestação do cuidado. O risco jurídico não foi, até o presente momento, evidenciado na literatura como um elemento associado à percepção de cultura de segurança do paciente.

A análise da CSP, sob a perspectiva de uma abordagem mista, permitiu que as reflexões do grupo focal elucidassem os resultados quantitativos e emergissem os elementos, por vezes velados, que explicam a percepção dos profissionais. Vislumbrou-se, nesta pesquisa, a possibilidade de contribuir para construção e consolidação da cultura segurança do paciente nas instituições de saúde, aprofundando o conhecimento sobre as dimensões que compõem esta cultura e compreendendo os elementos que influenciam a percepção dos profissionais.

Os achados apontam, por meio de duas abordagens complementares, os pontos críticos da cultura de segurança, no contexto da instituição pesquisada e, conforme os resultados de estudos similares, podem ser utilizados como norteadores importantes para análise da cultura de segurança dos pacientes em outras organizações hospitalares. A disseminação desses aspectos aos profissionais assistenciais e de apoio, bem como aos gestores, possui grande potencial para fomentar o estabelecimento de áreas prioritárias para implementação de ações de mudança, em uma perspectiva interprofissional, colaborativa que reverta em mudanças efetivas, no cenário de atenção de qualidade em saúde.

CONCLUSÃO

Os resultados evidenciaram uma cultura fragilizada para a segurança do paciente, conforme as dimensões do HSOPSC. Na percepção dos profissionais, a cultura punitiva ainda é predominante na organização e há problemas de segurança durante as passagens de plantão, turno e transferências, no trabalho em equipe entre as áreas, na abertura da comunicação e na adequação de profissionais.

Elementos relacionados à organização do trabalho (processos burocratizados, mal desenhados e descoordenados, decisões regionais, falhas de comunicação), somados aos elementos da gestão de pessoas (liderança, gradientes de hierarquia, sobrecarga, alta rotatividade, pressão por produção punição, respeito e empatia), e a judicialização contribuem e explicam a percepção dos profissionais acerca da cultura de segurança do paciente presente nesta organização.

Consideram-se como limitações do estudo a realização da pesquisa em um determinado período de tempo e único centro hospitalar, evidenciando diagnóstico local e temporal, e a compreensão dos elementos que influenciam a percepção dos profissionais acerca da cultura de segurança ter sido obtida a partir do olhar e das vivências das equipes assistenciais do nível tático operacional, que podem ser diferentes daqueles que atuam no âmbito gerencial.

Não obstante a essas limitações, os resultados encontrados mostram inovações e contribuições para o entendimento da complexa cultura de segurança do paciente, principalmente no que tange à análise do contexto de segurança em instituição privada, envolvendo profissionais não somente assistenciais, como também os administrativos, e a mixagem de métodos para aprofundamento da compreensão dos fatores envolvidos na segurança percebida pelos participantes.

A constatação de uma limitação é, também, uma oportunidade para futuras pesquisas. Assim, novas investigações poderão explorar o tema sob diferentes contextos, na mesma ou em outras instituições, na replicação do grupo focal com outros grupos de profissionais, na definição de outro método de pesquisa, afinal, a complexidade do fenômeno permite múltiplas formas de abordagens de estudo para compreensão do tema e avanço do conhecimento.

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Editado por

Editor associado:

Wiliam Wegner

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2020
  • Aceito
    27 Jan 2021
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