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Rotina do imprevisível: cargas de trabalho e saúde de trabalhadores de enfermagem de urgência e emergência

RESUMO

Objetivo:

Conhecer as percepções dos profissionais de enfermagem de serviços de urgência e emergência quanto às cargas de trabalho e a relação com sua saúde.

Método:

Estudo qualitativo descritivo realizado em dois setores de urgência e emergência do Sul do Brasil. Foram entrevistados 16 profissionais de enfermagem. Os dados foram submetidos à análise temática de conteúdo.

Resultados:

A primeira categoria temática evidenciou as cargas de trabalho no cotidiano dos profissionais, destacando Covid-19 como elemento recentemente incorporado à percepção da carga biológica. A carga psíquica é potencializada pelo estresse e sofrimento frente aos óbitos, além das condições laborais adversas. A segunda categoria evidenciou a interface entre as cargas, a sobrecarga e a saúde dos trabalhadores, destacando a importância da carga psíquica na saúde mental.

Conclusão:

As cargas de trabalho são potencializadas pelas condições laborais e pela relação com o objeto de trabalho da profissão, gerando sobrecarga e risco de adoecimento psíquico.

Palavras-chave:
Enfermagem; Saúde do trabalhador; Serviços médicos de emergência.

ABSTRACT

Objective:

To know the perceptions of nursing professionals in urgent and emergency services regarding workloads and the relationship with their health.

Method:

Descriptive qualitative study carried out in two urgent and emergency sectors in southern Brazil. 16 nursing professionals were interviewed. The data were subjected to thematic content analysis.

Results:

The first thematic category highlighted the workloads in the daily lives of professionals, highlighting Covid-19 as an element recently incorporated into the perception of biological load. The psychic load is enhanced by stress and suffering in the face of deaths, in addition to adverse working conditions. The second category showed the interface between the loads, the overload and the workers’ health, highlighting the importance of the psychic load in mental health.

Conclusion:

Workloads are enhanced by working conditions and the relationship with the profession’s work object, generating overload and risk of mental illness.

Keywords:
Nursing; Occupational health; Emergency medical services

RESUMEN

Objetivo:

Conocer las cargas de trabajo percibidas por los profesionales de enfermería en los servicios de urgencias y emergencias y su relación con su salud.

Método:

Estudio descriptivo cualitativo realizado en dos sectores de urgencias y emergencias del sur de Brasil. Se entrevistó a 16 profesionales de enfermería. Los datos se sometieron a análisis de contenido temático.

Resultados:

La primera categoría temática destacó las cargas de trabajo en el día a día de los profesionales, destacando el Covid-19 como un elemento recientemente incorporado a la percepción de carga biológica. La carga psíquica se vio reforzada por el estrés y el sufrimiento ante las muertes, además de las condiciones laborales adversas. La segunda categoría mostró la interfaz entre las cargas, la sobrecarga y la salud de los trabajadores, destacando la importancia de la carga psíquica en la salud mental.

Conclusión:

Las cargas de trabajo se ven potenciadas por las condiciones laborales y la relación con el objeto de trabajo de la profesión, generando sobrecarga y riesgo de enfermedad mental.

Palabras clave:
Enfermería; Salud laboral; Servicios médicos de urgencia.

INTRODUÇÃO

Os serviços de urgência e emergência são ambientes complexos e dinâmicos11. Schneider A, Weigl M. Associations between psychosocial work factors and provider mental well-being in emergency departments: a systematic review. PLoS One. 2018;13(6):e0197375. doi: http://doi.org/10.1371/journal.pone.01797375.
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. Idealmente, o trabalho nesses setores é envolvente, motivador e desafiador, capaz de oferecer crescimento e excelência profissional para o trabalhador de enfermagem. No entanto, no cotidiano destes profissionais coexistem barreiras e desafios contemporâneos enfrentados diariamente na rotina da assistência em saúde nessas unidades22. Castner J. Professional flourishing: the job demands-resources model and emergency nursing. J Emerg Nurs. 2019;45(6):607-10. doi: http://doi.org/10.1016/j.jen.2019.09.008.
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.

Nos serviços de urgência e emergência, há um conjunto de demandas e responsabilidades depositadas sobre os profissionais de enfermagem, os quais necessitam gerenciá-las, muitas vezes, no contexto de situações críticas e que exigem a tomada de decisões imediatas. Existem estressores psicológicos no cotidiano destes profissionais, que incluem o manejo de pacientes graves ou potencialmente graves, superlotação dos serviços, condições laborais adversas, violência e poucos recursos para atender à demanda, o que culmina no estresse ocupacional. Em decorrência desses elementos, apesar do prazer e da identificação com o trabalho, nem sempre os profissionais de enfermagem suportam permanecer nestes setores33. Gorman VL. Future Emergency nursing workforce: what the evidence is telling us. J Emerg Nurs. 2019;45(2):132-6. doi: http://doi.org/10.1016/j.jen.2018.09.009.
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.

Estudos tem evidenciado um conjunto de vulnerabilidades dos profissionais de enfermagem atuantes nestas unidades. Os trabalhadores lidam cotidianamente com pacientes em risco eminente de morte33. Gorman VL. Future Emergency nursing workforce: what the evidence is telling us. J Emerg Nurs. 2019;45(2):132-6. doi: http://doi.org/10.1016/j.jen.2018.09.009.
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,44. Schumaker J, Taylor W, McGonigle T. The emergency, trauma, and transport nursing workforce: highlights of a benchmark 2019 survey. Nurs Manage. 2019;50(12):20-32. doi: http://doi.org/10.1097/01.NUMA.0000605152.42445.4b.
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. Há sobrecarga de trabalho e o convívio com um ambiente tóxico, em que a enfermagem experencia, muitas vezes, exaustão física, mental e emocional relacionada ao trabalho33. Gorman VL. Future Emergency nursing workforce: what the evidence is telling us. J Emerg Nurs. 2019;45(2):132-6. doi: http://doi.org/10.1016/j.jen.2018.09.009.
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. Sendo assim, os trabalhadores de enfermagem deste cenário se apresentam como uma população à qual se precisam destinar estudos que identifiquem sua percepção acerca das cargas de trabalho presentes no ambiente laboral.

Cargas de trabalho são elementos presentes no processo de trabalho que traduzem as relações entre o trabalho e o processo de desgaste do trabalhador. São elementos dinâmicos que interagem entre si e com o corpo do trabalhador, gerando uma necessidade de adaptação resistência e potencializando seus efeitos no processo saúde-doença de quem trabalha55. Laurell AC, Noriega M. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo: Hucitec; 1989.. São elementos inerentes do processo e do ambiente de trabalho que estão intimamente relacionadas à saúde do trabalhador66. Coelho APF, Beck CLC, Silva RM, Vedootto DO, Prestes FC. Workload of recyclable material collectors: a proposal for nursing care. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e2018-0006. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.2018-0006.
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.

Este estudo assume a classificação das cargas de trabalho quanto à sua materialidade interna ou externa. As cargas de materialidade interna são as psíquicas (representadas pelos elementos que provocam desgastes psíquicos) e as fisiológicas (resultado das diversas maneiras de se mobilizar o corpo para a realização das tarefas e traduzidas em esforço físico, necessidade de deslocamento e posicionamento corporal)55. Laurell AC, Noriega M. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo: Hucitec; 1989.,77. Laurell AC. A saúde-doença como processo social. In: Nunes ED, organizador. Medicina social: aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global; 1983..

Já as cargas de materialidade externas são as cargas físicas (derivadas das exigências técnicas do trabalho e intensificada por elementos físicos do ambiente); as cargas químicas (derivadas do objeto de trabalho e dos materiais auxiliares para sua transformação, incluindo substâncias químicas, poeira, fumaça, gases e líquidos); as cargas mecânicas (derivadas da tecnologia do trabalho, da operação de máquinas e equipamentos, dos objetos que compõem o ambiente e também das condições de instalação e manutenção dos meios de produção); e as biológicas (derivadas do objeto de trabalho e das condições de higiene do ambiente, às quais incluem microorganismos animais ou vegetais que possam ocasionar danos à saúde do trabalhador)55. Laurell AC, Noriega M. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo: Hucitec; 1989.,77. Laurell AC. A saúde-doença como processo social. In: Nunes ED, organizador. Medicina social: aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global; 1983..

Estudar as cargas de trabalho de profissionais de enfermagem de urgência e emergência pode contribuir para o entendimento de como estes trabalhadores percebem a natureza do seu trabalho, de como se adaptam (ou não) a ele, e se há percepção quanto ao impacto em sua saúde. Justifica-se a importância de pesquisas nessa temática, pois a enfermagem compõe parte importante da força de trabalho em saúde e seu engajamento é determinante para os resultados obtidos na assistência ao paciente grave ou potencialmente grave nos serviços de urgência e emergência.

Tendo isso em vista, o presente estudo foi realizado a partir da seguinte questão de pesquisa: Como os trabalhadores de enfermagem de serviços de urgência e emergência percebem as cargas de trabalho e a relação delas com sua saúde? A partir disso, este estudo teve como objetivo conhecer as percepções dos profissionais de enfermagem de serviços de urgência e emergência quanto às cargas de trabalho e a relação com sua saúde.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa descritiva. Os cenários do estudo foram compostos por dois setores: a unidade de urgência e emergência de um hospital filantrópico e o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), ambos lotados em uma cidade no interior do estado do Rio Grande do Sul, Brasil.

Os participantes do estudo foram os profissionais de enfermagem lotados nestes locais. A equipe de enfermagem totalizava 22 trabalhadores (enfermeiros e técnicos de enfermagem). Foram excluídos dois profissionais em exercício da função a menos de seis meses e uma profissional que estava em licença maternidade durante o período da produção de dados. Portanto, 19 profissionais foram abordados em seu local de trabalho e convidados a participar do estudo. Destes, 16 aceitaram e compuseram a amostra desta pesquisa.

Os dados foram obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas individuais, nos meses de junho e julho de 2020. Após uma entrevista piloto, houve a constituição de um roteiro elaborado pela equipe de pesquisa para o projeto matricial que abordava: as percepções e sentimentos dos profissionais em seu espaço de trabalho; percepção acerca de elementos externos e internos que interferiam no seu corpo, na sua mente e no seu trabalho; percepção das relações destes elementos com sua saúde. A entrevista incluiu também o levantamento de dados sociolaborais para a caracterização dos participantes: sexo; idade; raça; formação profissional; turno de trabalho; tempo de formação profissional; e tempo de atuação em urgência e emergência.

As entrevistas foram realizadas no local de trabalho ou fora deste, conforme solicitado por cada participante. Todos os encontros foram conduzidos pela equipe de pesquisa, em locais privativos que garantiam segurança e conforto aos envolvidos.

Os encontros iniciavam com a apresentação do projeto de pesquisa e leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, finalizada com a assinatura do termo em duas vias e esclarecimento de todas as dúvidas e questões éticas. A partir disso, foi procedido o preenchimento de um questionário sociolaboral contendo variáveis relacionadas a: sexo, idade, raça, formação acadêmica (enfermeiro ou técnico de enfermagem) e turno de trabalho. Após, conduziu-se a entrevista em profundidade propriamente dita, a partir do roteiro semiestruturado. Essa etapa teve duração média de 20 minutos.

Foram realizadas audiogravações das entrevistas semiestruturadas e transcrição na íntegra no editor de textos Microsoft Word 2010. As transcrições dos dados compuseram o corpus de análise. Os dados foram submetidos à análise temática de conteúdo, a qual se desenvolveu em três fases: pré-análise; exploração do material; e tratamento dos dados e interpretação88. Bardin L. Análise de conteúdo. 8. ed. Santo André: Geográfica Editora; 2011..

A pré-análise compreende a primeira etapa da organização dos dados. O pesquisador começa a organizar o material para que se torne útil à pesquisa. Nesta fase, sistematizam-se as ideias realizando a leitura flutuante e exaustiva, que implica em conhecer inicialmente o material e criar familiaridade com ele88. Bardin L. Análise de conteúdo. 8. ed. Santo André: Geográfica Editora; 2011.. Neste momento, a equipe de pesquisa concentrou-se na apropriação intelectual do material de pesquisa, procedendo à escolha dos elementos que contribuíam para o objetivo do estudo, e reservando o material empírico que compôs o banco de dados secundário.

Ao cumprir a exploração do material, o pesquisador deve se encaminhar à definição das categorias, classificando os elementos constitutivos de um conjunto caracterizado por diferenciação e realizando o reagrupamento por analogia, por meio de critérios definidos previamente88. Bardin L. Análise de conteúdo. 8. ed. Santo André: Geográfica Editora; 2011.. Essa fase foi realizada com o auxílio do editor de textos Microsoft Word 2010, por meio da técnica de análise cromática.

Cada depoimento foi separado por afinidade de significado e foram atribuídas cores para sua separação e melhor identificação das semelhanças. Esse movimento facilitou a classificação das unidades de registro que compreendem em palavras, frases, parágrafos comparáveis e com o mesmo conteúdo semântico de determinado conteúdo textual. Foram extraídas seis unidades de registro do material em análise: cargas de trabalho, sobrecarga de trabalho, risco de agressão, risco de acidentes, interface trabalho e saúde.

Por fim, para interpretação e realização do tratamento dos dados obtidos por meio desta pesquisa, em propriedade das categorias temáticas, com objetivo de responder à pergunta do estudo, foi realizada a leitura de artigos nacionais e internacionais, a fim de identificar aproximações ou distanciamentos em relação aos achados no estudo, fortalecendo a discussão, realizando assim inferências e interpretações dos resultados.

Essa pesquisa atendeu aos preceitos éticos e legais estabelecidos pela Resolução nº 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde. Na apresentação dos resultados, os depoentes foram identificados pela letra P, de “profissional”, seguida do número cardinal representativo da ordem da realização da entrevista e da designação da unidade à qual está lotado: PS (referente a Pronto-Socorro) ou SAMU. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa local, sob Certificado de Apresentação para Apreciação Ética nº 27545620.9.0000.5346 e Protocolo número 3.800.078.

RESULTADOS

Os participantes desta pesquisa apresentaram média de idade de 39 anos. O mais jovem possuía 23 anos e o mais velho, 57 anos. Dos 16 entrevistados, nove eram do sexo masculino e sete do sexo feminino. Em relação à raça, dez se autodeclaram brancos e seis, pardos.

Quanto à formação, nove participantes eram técnicos de enfermagem e sete eram enfermeiros. Em relação aos turnos de trabalho, 12 estavam lotados no turno misto, dois no turno da tarde e dois no turno da noite.

Em relação ao tempo de formação, houve uma média aproximada de 13 anos, sendo que o profissional que atuava a menos tempo na profissão possuía um ano e cinco meses de formado e o que atuava a mais tempo, 27 anos de formado. Quanto ao tempo de atuação na área da urgência e emergência, houve uma média de seis anos de atuação. O profissional que atuava a mais tempo possuía 11 anos na especialidade e o que atuava a menos tempo, um ano e quatro meses. E destes, sete profissionais possuíam especialização na área.

A seguir apresentam-se a categorias elencadas:

Na rotina do imprevisível: as cargas no cotidiano de trabalho em urgência e emergência

Os depoimentos dos profissionais entrevistados neste estudo evidenciaram que o trabalho de enfermagem em urgência e emergência envolve componentes como pressão a imprevisibilidade das demandas para um turno típico de trabalho. A rotina do imprevisível se evidencia como uma dinâmica característica destes serviços:

O meu trabalho não tem uma rotina [...] cada dia é diferente [...] Você nunca sabe exatamente o que vai encontrar [...] Você chega numa cena, você criou um cenário na tua cabeça e muitas vezes quando você chega, é completamente diferente [...] muitas vezes você está exposto a situações para as quais você não tem o total controle, apesar de você ter um treinamento (P1 - SAMU).

[...] a gente não sabe o que vai acontecer. [...] Tu pode conseguir descansar, como tu pode não conseguir. Tu consegue comer, como tu não consegue comer. Tu consegue ir ao banheiro, como não consegue ir ao banheiro (P12 - PS).

Ao imprevisível se interseccionam as cargas de trabalho, sejam as de materialidade externa (cargas físicas, químicas, mecânicas e biológicas), sejam as de materialidade interna (fisiológicas e psíquicas). O Quadro 1 mostra o conjunto das cargas de trabalho referidas pelos profissionais de enfermagem de urgência e emergência:

Quadro 1 -
Cargas de trabalho referidas pelos trabalhadores de enfermagem de urgência e emergência a partir dos temas emergentes da análise e dos depoimentos. Palmeira das Missões, RS, Brasil, 2020

Cabe destacar que a carga psíquica, que corresponde a uma carga de materialidade interna, foi o elemento referido com mais ênfase pelos profissionais. Trabalhar com urgência e emergência envolve um conjunto de sentimentos intensos, como, por exemplo, no cotidiano da assistência aos pacientes graves ou frente à morte, em especial quando a vítima se trata de uma criança, como ilustram os depoimentos:

[...] Eu já peguei um acidente uma vez que era com uma família e duas crianças, eu recém havia me tornado mãe, aquilo mexeu muito, a gente pegou só o gurizinho com vida, a gente foi massageando esse gurizinho até hospital, então são coisas que me estragam o dia, eu fechava os meus olhos e lembrava (P3- SAMU)

[...] A parte de ir junto dar essa notícia para a família [óbito] e segurar as pontas foi muito puxado, eu fiquei meses e meses... A gente já dorme pouco por ter uma rotina diferente, eu fiquei mais de meses sem dormir, fiquei bem debilitado (P9 - PS).

Interface entre as cargas, a sobrecarga e a saúde do trabalhador de enfermagem de urgência e emergência

Os profissionais de enfermagem de urgência e emergência referiram o efeito das cargas de trabalho em sua dinâmica laboral e em sua vida. As cargas de trabalho - em especial, a carga psíquica - promovem vivências de desgaste e sobrecarga. Seja pela rotina do imprevisível, seja pela importância de sua atuação em situações de alta complexidade, os profissionais de enfermagem de ambos os serviços referiram se sentir sobrecarregados, como pode ser observado nas enunciações:

[...] A gente se sente com uma responsabilidade além do que seria a nossa alçada. A gente se sente muitas vezes apreensivo por estar correndo o risco de tomar a decisão errada (P5- SAMU).

[...] A rotina é cansativa, muitas vezes tu não tem tempo para fazer intervalo. É bem corrido. Às vezes é meia noite e tu não conseguiu nem tomar água. Quando tu acha que vai poder sentar, tomar água e erguer as pernas um pouquinho, chegam dois, três pacientes (P9 - PS).

[...] Tem muito a questão da responsabilidade também, exige muito de ti, tanto pela coordenação de equipe quanto pela responsabilidade com o paciente, com a família, então é um trabalho cansativo [...] (P11- PS).

Os profissionais referiram a interferência da sobrecarga laboral em suas vidas particulares, destacando a dificuldade para conciliar trabalho e família:

[...] Às vezes minha mulher pergunta: “Você não vai sair hoje? Você vai ficar em casa?”. Às vezes é tudo o que você quer, às vezes tem uns plantões que você chega tão exausto, tão cansado, que você quer ficar assistindo desenho animado com teu filho na televisão (P1 - SAMU).

[...] a rotina cansa, todo dia, não tem final de semana, não tem feriado, não pode fazer um plano de viajar. [...] Não tenho filho e não pretendo ter por causa disso, porque eu vou ter que largar alguma coisa [...] (P4 - SAMU).

Por fim, ao serem questionados sobre a interface das cargas e da sobrecarga de trabalho em sua saúde e em sua vida, profissionais de ambos os setores referiram os riscos e danos relacionados à profissão, expressos sobretudo pelos acidentes laborais e, inclusive, vivências de situações de violência em seu cotidiano:

[...] Muitas vezes você é exposto a riscos biológicos, explosão, um próprio acidente. Você tá numa via pública, muitas vezes você está exposto a atropelamento, colisão, todos esses fatores (P1 - SAMU).

[...] Os profissionais que eu mais vi sofrer acidente de trabalho são os da emergência, tanto com exposição de material biológico, via percutânea, ocular, mucosa (P11 - PS).

[...] Até agressão acontece [...] Tem que registrar contra a pessoa, chamar a polícia [...] Plantão passado a gente sofreu praticamente uma tentativa ali, com o paciente bem debilitado que chegou ruim, quase em parada e o familiar do lado de fora com mais de dez pessoas ameaçando: “se for a óbito nós vamos entrar, vamos quebrar tudo, vamos fazer e acontecer” (P9 - PS).

No conjunto dos riscos e danos que são reforçados pelas cargas e pela sobrecarga de trabalho, profissionais de ambos os setores fizeram destaques aos danos psíquicos e prejuízos à sua saúde mental:

[...] Eu acho que interfere bastante na saúde mental. Eu estou aqui com você agora, nós podemos estar contando uma piada, e em segundos a gente vai [para o atendimento], tu chega num acidente que parece cena de filme de terror [...] (P8 - SAMU).

[...] Eu vou para casa e não consigo esquecer. Então eu acho que afeta minha saúde mental. Às vezes sou cobrada em casa, mas eu não consigo sair do hospital e fazer de conta que não aconteceu nada, não me estressei, não me incomodei ou não sofri com alguma coisa. A saúde mental é a mais abalada (P11 - PS).

DISCUSSÃO

Os resultados da primeira categoria temática sinalizam, primeiramente, o entendimento de que o trabalho de enfermagem em urgência e emergência é complexo e dinâmico. Estudo da revisão da literatura internacional sobre o trabalho de enfermagem em urgência e emergência corroborou que a natureza deste trabalho é pautada no imprevisível. Muitas vezes, os profissionais comparam seu cotidiano a uma “trincheira”, em que há um constante estado de alerta devido a elementos que nem sempre podem ser previstos ou controlados33. Gorman VL. Future Emergency nursing workforce: what the evidence is telling us. J Emerg Nurs. 2019;45(2):132-6. doi: http://doi.org/10.1016/j.jen.2018.09.009.
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. Sem a certeza de como será um plantão típico de trabalho, os profissionais assumem a rotina do imprevisível como uma característica de seu trabalho.

Profissionais de enfermagem que atuam em setores de urgência e emergência prestam cuidados críticos em ambientes dinâmicos, de alto risco e alto estresse11. Schneider A, Weigl M. Associations between psychosocial work factors and provider mental well-being in emergency departments: a systematic review. PLoS One. 2018;13(6):e0197375. doi: http://doi.org/10.1371/journal.pone.01797375.
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,44. Schumaker J, Taylor W, McGonigle T. The emergency, trauma, and transport nursing workforce: highlights of a benchmark 2019 survey. Nurs Manage. 2019;50(12):20-32. doi: http://doi.org/10.1097/01.NUMA.0000605152.42445.4b.
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. Estes profissionais estão na linha de frente da assistência em saúde, o que os coloca em um cotidiano de alta exigência e responsabilidade44. Schumaker J, Taylor W, McGonigle T. The emergency, trauma, and transport nursing workforce: highlights of a benchmark 2019 survey. Nurs Manage. 2019;50(12):20-32. doi: http://doi.org/10.1097/01.NUMA.0000605152.42445.4b.
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. Portanto, o imprevisível é o reflexo da complexidade do seu objeto de trabalho, que não pode ser previsto e está condicionado à demanda da comunidade.

Em decorrência disso, o trabalho em urgência e emergência é desafiador e possui elementos que potencializam as cargas de trabalho para os profissionais de enfermagem. A respeito disso, os depoentes elencaram um conjunto de elementos que, na percepção deles, aumentavam estas cargas. Estes elementos, em sua maior parte, vão ao encontro de pesquisas similares que investigaram a percepção de profissionais de enfermagem de diferentes setores acerca destas cargas99. Mendes M, Trindade LL, Pires DEP, Biff D, Martins MMFPS, Vendruscolo C. Workloads in the family health strategy: interfaces with the exhaustion of nursing professionals. Rev Esc Enferm USP. 2020;54:e03622. doi: https://doi.org/10.1590/s1980-220x2019005003622.
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-1313. Walton AL, Rogers B. Workplace hazards faced by nursing assistants in the United States: a focused literature review. Int J Environ Res Public Health. 2017;14(5):544. doi: https://doi.org/10.3390/ijerph14050544.
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No entanto, algumas particularidades em relação às cargas de trabalho deste estudo devem ser discutidas. Uma delas se refere à carga biológica. Os profissionais de saúde não citaram a exposição a material biológico (como sangue e outras secreções), fungos e bactérias, o que destoa de outras pesquisas recentes99. Mendes M, Trindade LL, Pires DEP, Biff D, Martins MMFPS, Vendruscolo C. Workloads in the family health strategy: interfaces with the exhaustion of nursing professionals. Rev Esc Enferm USP. 2020;54:e03622. doi: https://doi.org/10.1590/s1980-220x2019005003622.
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,1212. Michaello RS, Tomaschewski-Barlem JG, Carvalho DP, Rocha LP, Bordignon SS, Neutzling BRS. Perception of nursing workers about the workloads in a neonatal intensive care unit. Rev Fun Care Online. 2020;12:54-61. doi: http://doi.org/10.9789/2175-5361.rpcfo.v12.6983.
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,1313. Walton AL, Rogers B. Workplace hazards faced by nursing assistants in the United States: a focused literature review. Int J Environ Res Public Health. 2017;14(5):544. doi: https://doi.org/10.3390/ijerph14050544.
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. Mas citaram a crise sanitária causada pelo Sars-CoV-2, o que é reflexo do momento pandêmico em que os dados foram produzidos.

Os setores de urgência e emergência são considerados de alto risco para a infecção pelo Sars-CoV-2, causador da Covid-19. Estes setores costumam ser a porta de entrada para os pacientes com sintomas respiratórios no sistema público de saúde, antes que estes estejam testados ou identificados quanto ao estágio da infecção1414. Song X, Fu W, Liu X, Luo Z, Wang R, Zhou N, et al. Mental health status of medical staff in emergency departments during the coronavirus disease 2019 epidemic in China. Brain Behav Immun. 2020;88:60-5. doi: https://doi.org/10.1016/j.bbi.2020.06.002.
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. Os profissionais de enfermagem destes setores estão, portanto, na linha de frente do enfrentamento da pandemia, o que se reflete em sua percepção no que diz respeito à carga de trabalho biológica.

Observou-se também que os profissionais não identificaram elementos relacionados às cargas químicas. Isso pode estar relacionado à baixa percepção dos efeitos dos agentes químicos sobre seu organismo (como o contato com medicamentos, soluções, gases, vapores, aerossóis e partículas). Autores sugerem que os elementos envolvidos nas cargas de trabalho nem sempre são claramente percebidos pelos profissionais1515. Biff D, Pires DEP, Forte ECN, Trindade LL, Machado RR, Amadigi FR, et al. Nurses’ workload: lights and shadows in the family health strategy. Ciênc Saúde Coletiva. 2020;25(1):147-58. doi: http://doi.org/10.1590/1413-81232020251.28622019.
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. Talvez o momento pandêmico causado pela Covid-19, citado anteriormente, estivesse concentrando a atenção dos profissionais de enfermagem em outras cargas que não a química.

Cabe destacar, no entanto, que as cargas psíquicas estiveram presentes de maneira mais enfática nos depoimentos dos participantes. Isso vai ao encontro de investigações que evidenciaram as cargas de trabalho psíquicas como as principais responsáveis pelo desgaste dos profissionais de enfermagem, culminando em danos à sua saúde e bem estar, como insônia e ansiedade99. Mendes M, Trindade LL, Pires DEP, Biff D, Martins MMFPS, Vendruscolo C. Workloads in the family health strategy: interfaces with the exhaustion of nursing professionals. Rev Esc Enferm USP. 2020;54:e03622. doi: https://doi.org/10.1590/s1980-220x2019005003622.
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,1212. Michaello RS, Tomaschewski-Barlem JG, Carvalho DP, Rocha LP, Bordignon SS, Neutzling BRS. Perception of nursing workers about the workloads in a neonatal intensive care unit. Rev Fun Care Online. 2020;12:54-61. doi: http://doi.org/10.9789/2175-5361.rpcfo.v12.6983.
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O atendimento ao paciente pediátrico crítico, bem como o manejo da família no contexto do óbito de um familiar foram as situações destacadas pelos profissionais e relacionadas ao aumento da carga psíquica no trabalho. Estudo evidenciou que a experiência com a criança em situações graves e o trabalho com famílias são elementos que agravam a carga psíquica no trabalho de enfermagem1212. Michaello RS, Tomaschewski-Barlem JG, Carvalho DP, Rocha LP, Bordignon SS, Neutzling BRS. Perception of nursing workers about the workloads in a neonatal intensive care unit. Rev Fun Care Online. 2020;12:54-61. doi: http://doi.org/10.9789/2175-5361.rpcfo.v12.6983.
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, o que vai ao encontro dos resultados.

A segunda categoria temática evidencia como as cargas de trabalho culminam em processos de desgaste dos profissionais e prejudicam sua saúde. Isso vai ao encontro de investigação que evidenciou associação estatisticamente significativa entre a intensidade das cargas de trabalho percebidas por profissionais de enfermagem e sua percepção de desgaste1616. Carvalho DP, Rocha LP, Pinho EC, Tomaschewski-Barlem JG, Barlem ELD, Goulart LS. Workloads and burnout of nursing workers. Rev Bras Enferm. 2019;72(6):1435-41. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0659.
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.

A intensificação das cargas de trabalho contribui para a precarização do trabalho. Elementos químicos, físicos, biológicos, orgânicos, ergonômicos e psíquicos, combinados ou isoladamente, aumentam os esforços despendidos pelos trabalhadores e contribuem para seu processo de desgaste. Em resposta a isso, as (sobre)cargas de trabalho deflagram impactos no corpo e na mente do profissional, podendo causar adoecimento66. Coelho APF, Beck CLC, Silva RM, Vedootto DO, Prestes FC. Workload of recyclable material collectors: a proposal for nursing care. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e2018-0006. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.2018-0006.
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.

Os profissionais de enfermagem de urgência e emergência referiram a constante sensação de responsabilidade sobre o trabalho associada à sobrecarga psíquica. Sabe-se que existe uma forte pressão sobre os trabalhadores de enfermagem de urgência e emergência. Espera-se que eles respondam às diferentes situações com habilidade e confiança, sem margem para erros, em contextos em que ações imediatas possuem papel decisivo nos desfechos clínicos44. Schumaker J, Taylor W, McGonigle T. The emergency, trauma, and transport nursing workforce: highlights of a benchmark 2019 survey. Nurs Manage. 2019;50(12):20-32. doi: http://doi.org/10.1097/01.NUMA.0000605152.42445.4b.
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.

Entende-se que os profissionais de enfermagem de urgência e emergência são responsáveis por um conjunto de condutas desde a avaliação inicial, gestão do cuidado e segurança do paciente grave ou potencialmente grave1717. Curtis K, Munroe B, Van C, Elphick TL. The implementation and usability of HIRAID, a structured approach to emergency nursing assessment. Australas Emerg Care. 2020;23(1):62-70. doi: https://doi.org/10.1016/j.auec.2019.10.001.
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. Essa pressão sobre o trabalhador pode culminar em aumento da carga psíquica e, consequentemente, em sobrecarga. Indo ao encontro disso, pesquisa qualitativa realizada com enfermeiros evidenciou que as cargas de trabalho psíquicas eram potencializadas pela sensação de responsabilidade na tomada de decisões importantes. Somado a isso, cobranças por parte da chefia e da equipe multiprofissional, bem como a pressão cotidiana nas diferentes situações de trabalho, aumentavam a carga psíquica e, consequentemente, culminavam em sobrecarga1010. Biondi HS, Pinho EC, Kirchhof ALC, Rocha LP, Barlem ELD, Kerber NPC. Psychic workload in the process of work of maternity and obstetric centers nurses. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e64573. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.64573.
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É importante resgatar a natureza do trabalho em urgência e emergência, em que os profissionais de enfermagem precisam gerenciar suas responsabilidades em situações críticas. No entanto, a elevada carga que o trabalho lhes impõe pode influenciar sua tomada de decisão e, a longo prazo, promover seu esgotamento1818. Rubio-Navarro A, Garcia-Capilla DJ, Torralba-Madrid MJ, Rutty J. Ethical, legal and professional accountability in emergency nursing practice: an ethnographic observational study. Int Emerg Nurs. 2019;46:100777. doi: https://doi.org/10.1016/j.ienj.2019.05.003.
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. Portanto, apesar de reconhecer que há cargas de trabalho inerentes à natureza do trabalho, deve-se ponderar que as condições adversas, muitas vezes, as potencializam.

A literatura tem evidenciado que os elementos que potencializam de maneira mais intensa as cargas de trabalho estão adstritos à precariedade e aos déficits no ambiente de trabalho, materiais e equipamentos, além do excesso de demanda assistencial1111. Scherer MDA, Oliveira NA, Pires DEP, Trindade LL, Gonçalves ASR, Vieira M. Aumento das cargas de trabalho em técnicos de enfermagem na atenção primária à saúde no Brasil. Trab Educ Saúde. 2016;14(1 Supl.):89-104. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00030.
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,1515. Biff D, Pires DEP, Forte ECN, Trindade LL, Machado RR, Amadigi FR, et al. Nurses’ workload: lights and shadows in the family health strategy. Ciênc Saúde Coletiva. 2020;25(1):147-58. doi: http://doi.org/10.1590/1413-81232020251.28622019.
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. Isso corrobora os dados descritos na primeira e na segunda categoria temática, revelando as condições laborais e a demanda cotidiana são elementos chave no aumento das cargas e na sobrecarga de trabalho.

Evidências científicas indicam que os riscos psicossociais no trabalho de profissionais de enfermagem estão relacionados aos diferentes elementos estressores em seu cotidiano, como a carga de trabalho intensa e os altos níveis de responsabilidade. Estes elementos tendem a aumentar o estresse e promover danos psicossociais1010. Biondi HS, Pinho EC, Kirchhof ALC, Rocha LP, Barlem ELD, Kerber NPC. Psychic workload in the process of work of maternity and obstetric centers nurses. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e64573. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.64573.
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,1313. Walton AL, Rogers B. Workplace hazards faced by nursing assistants in the United States: a focused literature review. Int J Environ Res Public Health. 2017;14(5):544. doi: https://doi.org/10.3390/ijerph14050544.
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. Indo ao encontro disso, os depoimentos evidenciam que a interferência da sobrecarga na vida pessoal e familiar destes indivíduos, o que sugere a existência de danos psicossociais.

Outros riscos e danos relacionados às cargas e à sobrecarga de trabalho foram referidos pelos profissionais de enfermagem, os quais incluíram, principalmente, os riscos de adoecimento, acidentes e violência no trabalho, resultados que se aproximam de outros estudos1111. Scherer MDA, Oliveira NA, Pires DEP, Trindade LL, Gonçalves ASR, Vieira M. Aumento das cargas de trabalho em técnicos de enfermagem na atenção primária à saúde no Brasil. Trab Educ Saúde. 2016;14(1 Supl.):89-104. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00030.
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,1313. Walton AL, Rogers B. Workplace hazards faced by nursing assistants in the United States: a focused literature review. Int J Environ Res Public Health. 2017;14(5):544. doi: https://doi.org/10.3390/ijerph14050544.
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,1515. Biff D, Pires DEP, Forte ECN, Trindade LL, Machado RR, Amadigi FR, et al. Nurses’ workload: lights and shadows in the family health strategy. Ciênc Saúde Coletiva. 2020;25(1):147-58. doi: http://doi.org/10.1590/1413-81232020251.28622019.
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. Isso reforça o componente de alto risco laboral que caracteriza os serviços de urgência e emergência, cujos profissionais de saúde incorrem em acidentes laborais em elevadas taxas quando comparados a outras populações de trabalhadores em geral1919. Reichard AA, Marsh SM, Tonozzi TR, Konda S, Gormley MA. Occupational injuries and exposures among emergency medical services workers. Prehosp Emerg Care. 2017;21(4):420-31. doi: http://doi.org/10.1080/10903127.2016.1274350.
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.

A violência sofrida por parte dos usuários também foi evidenciada em outra pesquisa, em que profissionais de enfermagem consideraram os conflitos com os usuários como o principal elemento potencializador das cargas de trabalho. A violência, a cobrança e a pressão por atendimento são eventos exaustivos e desgastantes para os profissionais1111. Scherer MDA, Oliveira NA, Pires DEP, Trindade LL, Gonçalves ASR, Vieira M. Aumento das cargas de trabalho em técnicos de enfermagem na atenção primária à saúde no Brasil. Trab Educ Saúde. 2016;14(1 Supl.):89-104. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00030.
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.

Estudo transversal australiano realizado com profissionais de enfermagem de urgência e emergência evidenciou que 87% dos participantes referiram ter sofrido algum episódio de violência no trabalho nos seis meses antecedentes à pesquisa. Os autores discutem que a violência no trabalho, apesar de potencialmente danosa à saúde e integridade destes profissionais, muitas vezes é banalizada como parte do trabalho da enfermagem2020. Pich JV, Kable A, Hazelton M. Antecedents and precipitants of patient-related violence in the emergency department: results from the australian VENT study (Violence in Emergency Nursing and Triage). Australas Emerg Nurs J. 2017;20(3):107-113. doi: http://doi.org/10.1016/j.aenj.2017.05.005.
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.

Por fim, os depoentes evidenciaram a interface das cargas e da sobrecarga de trabalho em sua saúde mental. Sabe-se que o aumento das cargas de trabalho pode causar insatisfação, desgaste e, em alguns casos, adoecimento entre profissionais de enfermagem1515. Biff D, Pires DEP, Forte ECN, Trindade LL, Machado RR, Amadigi FR, et al. Nurses’ workload: lights and shadows in the family health strategy. Ciênc Saúde Coletiva. 2020;25(1):147-58. doi: http://doi.org/10.1590/1413-81232020251.28622019.
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. A organização e a precarização das condições de trabalho estão envolvidas neste processo de desgaste psíquico. A alta demanda de trabalho, o rigor inerente das atividades diárias, a violência e, às vezes, a ausência dos colegas adoecidos são elementos capazes de promover adoecimento psíquico entre trabalhadores de enfermagem1111. Scherer MDA, Oliveira NA, Pires DEP, Trindade LL, Gonçalves ASR, Vieira M. Aumento das cargas de trabalho em técnicos de enfermagem na atenção primária à saúde no Brasil. Trab Educ Saúde. 2016;14(1 Supl.):89-104. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00030.
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Deve-se ter o entendimento de que talvez sempre existirão, no trabalho de enfermagem, elementos que aumentarão as cargas de trabalho. São condições inerentes à inserção do trabalhador em situações adversas. A tradução desse sofrimento em adoecimento dependerá da subjetividade de cada indivíduo, de suas estratégias de enfrentamento e resiliência1111. Scherer MDA, Oliveira NA, Pires DEP, Trindade LL, Gonçalves ASR, Vieira M. Aumento das cargas de trabalho em técnicos de enfermagem na atenção primária à saúde no Brasil. Trab Educ Saúde. 2016;14(1 Supl.):89-104. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00030.
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol000...
. No entanto, é importante que haja investimento em melhoria na organização e nas condições laborais, a fim de que as cargas de trabalho sejam amenizadas e o adoecimento laboral, mitigado 99. Mendes M, Trindade LL, Pires DEP, Biff D, Martins MMFPS, Vendruscolo C. Workloads in the family health strategy: interfaces with the exhaustion of nursing professionals. Rev Esc Enferm USP. 2020;54:e03622. doi: https://doi.org/10.1590/s1980-220x2019005003622.
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,1111. Scherer MDA, Oliveira NA, Pires DEP, Trindade LL, Gonçalves ASR, Vieira M. Aumento das cargas de trabalho em técnicos de enfermagem na atenção primária à saúde no Brasil. Trab Educ Saúde. 2016;14(1 Supl.):89-104. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00030.
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,1212. Michaello RS, Tomaschewski-Barlem JG, Carvalho DP, Rocha LP, Bordignon SS, Neutzling BRS. Perception of nursing workers about the workloads in a neonatal intensive care unit. Rev Fun Care Online. 2020;12:54-61. doi: http://doi.org/10.9789/2175-5361.rpcfo.v12.6983.
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.

Além disso, sugere-se também que haja um movimento institucional e social de reconhecimento e valorização do trabalho da enfermagem. A importância da força de trabalho da categoria como eixo central dos cuidados em saúde deve receber visibilidade e um olhar sensível e atento por parte das instituições. Podem ser estratégias para concretização desse objetivo: fortalecimento da autonomia dos enfermeiros nos processos de tomada de decisão; respaldo institucional da enfermagem nas diferentes situações do cotidiano; dimensionamento adequado dos recursos humanos e melhorias nas condições de trabalho; fortalecimento das ações de promoção à saúde mental no trabalho, com a priorização de espaços de acolhimento e escuta dos profissionais.

Sabe-se que a escuta, a valorização da realidade dos trabalhadores e a criação de espaços dialógicos e participativos são potentes ferramentas para proporcionar aos profissionais reflexões sobre suas cargas de trabalho e para encontrar medidas que diminuam seus efeitos(6). Sendo assim, sugere-se que os próprios trabalhadores, a partir de sua experiência, podem mobilizar-se para o fortalecimento do trabalho de enfermagem, a partir de ações institucionais que lhes possibilitem espaço, oportunidade e autonomia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados deste estudo evidenciaram que os profissionais de enfermagem de urgência e emergência estão inseridos em um cotidiano de trabalho dinâmico e desafiador, em que a rotina do imprevisível se revela como uma característica marcante destes setores. As cargas de trabalho de materialidade interna e externa se evidenciaram nos depoimentos dos profissionais, destacando-se a crise sanitária da Covid-19 como elemento recentemente incorporado à percepção da carga biológica.

A carga psíquica foi destacada pelos profissionais, potencializada por elementos como o estresse e o sofrimento frente aos óbitos, além das condições adversas de realização da assistência. O aumento das cargas de trabalho se traduziu na percepção de sobrecarga laboral e de impactos à saúde mental dos profissionais. Ao término do estudo, pode-se concluir que as cargas de trabalho de enfermagem em urgência e emergência são potencializadas por elementos presentes no cotidiano assistencial adstritos às condições laborais e à relação com o objeto de trabalho da profissão, o que culmina em sobrecarga e em risco de adoecimento psíquico.

Em relação às limitações do estudo, pode-se considerar a temporalidade da obtenção dos dados, pois a percepção dos participantes em relação às cargas de trabalho diz respeito ao período específico em que os dados foram produzidos. No entanto, considera-se que estes achados são importantes a nível de gestão dos serviços de urgência e emergência, os quais tem como desafio a elaboração de ações que visem a promoção de saúde no trabalho e mitigação de fatores causadores de adoecimento.

Os resultados deste estudo podem ser aplicados: na gestão, oferecendo subsídios para ações de promoção à saúde e bem-estar no trabalho; na extensão, por meio de parcerias entre ensino e serviço para a realização de ações participativas com os trabalhadores; no ensino, para que as reflexões sobre as relações entre saúde e trabalho façam parte da formação do enfermeiro. Sugere-se que novas pesquisas sejam realizadas com profissionais de enfermagem de urgência e emergência, aplicando desenhos metodológicos experimentais que sejam capazes de mensurar o impacto das ações sugeridas neste estudo nas condições de saúde e de trabalho dos profissionais de enfermagem.

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Editado por

Editor associado:

Cecília Helena Glanzner

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Jan 2021
  • Aceito
    09 Jul 2021
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