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Itinerário terapêutico de crianças com necessidades especiais de saúde: análise guiada por sistemas de cuidado

RESUMO

Objetivo:

Compreender o itinerário terapêutico percorrido pelas famílias em busca de atenção às necessidades especiais de saúde do filho em um município brasileiro de fronteira.

Método:

Pesquisa qualitativa fundamentada na hermenêutica dialética e no modelo de Sistemas de Cuidado à Saúde. Foram realizadas entrevistas e Mapas Falantes (Dinâmica de Criatividade e Sensibilidade) com 19 cuidadores de crianças com necessidades especiais, atendidas em instituições assistenciais em Foz do Iguaçu, Paraná, em 2020. Para análise dos dados, utilizou-se análise temática.

Resultados:

Destacou-se a fragilidade do Sistema de Cuidados à Saúde, permeada por: dificuldades para acesso ao diagnóstico e consultas; sobrecarga para o cuidado; (des)organização do itinerário de cuidado; e desconstrução do vínculo, por falhas na comunicação e acolhimento.

Conclusão:

A desconstrução do itinerário terapêutico de crianças com necessidades especiais envolveu, sobretudo, o contexto profissional no Sistema de Cuidado à Saúde, levando à busca por atenção em serviços privados e em instituições assistenciais.

Palavras-chave:
Saúde da criança; Cuidado da criança; Saúde na fronteira; Acesso aos serviços de saúde; Criança com deficiência

ABSTRACT

Objective:

To understand the therapeutic itinerary taken by families in search of attention to their child’s special health care needs in a Brazilian border town.

Method:

Qualitative research based on dialectical hermeneutics and on the Health Care Systems model. Interviews and Talking Maps (Dynamics of Creativity and Sensitivity) were carried out with 19 caregivers of children with special health care needs, attended at care institutions in Foz do Iguaçu, Paraná, in 2020. For data analysis, thematic analysis was used.

Results:

The fragilities of the Health Care System were highlighted, permeated by: difficulties in accessing the diagnosis and consultations; overload for care; (dis)organization of the care itinerary; and deconstruction of the bond, due to failures in communication and reception. Conclusion: The deconstruction of the therapeutic itinerary of children with special health care needs involved, above all, the professional context in the Health Care System, leading to the search for care in private services and in care institutions.

Keywords:
Child health; Child care; Border health; Health services accessibility; Disabled children

RESUMEN

Objetivo:

Comprender el itinerario terapéutico que recorren las familias en busca de atención a las necesidades especiales de salud de sus hijos en una ciudad fronteriza brasileña.

Método:

Investigación cualitativa basada en la hermenéutica dialéctica y el modelo de sistemas de salud. Se realizaron entrevistas y Talking Maps (Dinámicas de Creatividad y Sensibilidad) con 19 cuidadores de niños con necesidades especiales, atendidos en instituciones de cuidado en Foz do Iguaçu, Paraná, en 2020. Para el análisis de datos se utilizó análisis temático. Resultados: Se destacó la fragilidad del Sistema de Salud, permeado por: dificultades para acceder al diagnóstico y consultas; sobrecarga de cuidados; (des)organización del itinerario asistencial; y deconstrucción del vínculo, por fallas en la comunicación y recepción. Conclusión: La deconstrucción del itinerario terapéutico de los niños con necesidades especiales involucró, sobre todo, el contexto profesional en el Sistema de Salud, conduciendo a la búsqueda de atención en los servicios privados y en las instituciones de atención.

Palabras clave:
Salud del niño; Cuidado del niño; Salud fronteriza; Accesibilidad a los servicios de salud; Niños con discapacidad

INTRODUÇÃO

Melhores condições de vida e de saúde motivadas por avanços tecnológicos, boas condições ambientais e nutricionais e implementação de programas de Atenção Primária à Saúde (APS) reduzem consideravelmente a mortalidade infantil, mas, por outro lado, podem provocar modificações no perfil epidemiológico da população, com aumento de condições crônicas de saúde, inclusive na população infantil11. Barreiros CFC, Gomes MASM, Mendes Júnior SCS. Children with special needs in health: challenges of the single health system in the 21st century. Rev Bras Enferm. 2020;73(4):e20190037. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0037
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Crianças com Necessidades Especiais de Saúde (CRIANES) exigem cuidados complexos por apresentarem demandas de atenção para além de crianças da mesma idade, quais sejam: de desenvolvimento, tecnológicas, medicamentosas e habituais modificadas22. Huang L, Freed GL, Danziel K. Children with special health care needs: how special are their health care needs? Acad Pediatr. 2020;20(8):1109-15. doi: https://doi.org/10.1016/j.acap.2020.01.007
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. São crianças que necessitam de cuidados intensivos, temporários ou permanentes e que acabam percorrendo um longo caminho na tentativa de conseguir diagnóstico e solução para seus problemas de saúde33. Pedrosa RKB, Guedes ATA, Soares AR, Vaz EMC, Collet N, Reichert APS. Itinerary of children with microcephaly in the health care network. Esc Anna Nery. 2020;24(3):e20190263. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2019-0263
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.

Essa trajetória, denominada Itinerário Terapêutico (IT), inclui não só o planejamento de ações para lidar com a enfermidade e para promover saúde44. Luz RO, Pieszak GM, Arrué AM, Gomes GC, Neves ET, Rodrigues AP. Therapeutic itinerary of families of children with special health needs. Rev Rene. 2019;20(1):e33937. doi: https://doi.org/10.15253/2175-6783.20192033937
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, mas também procura explicações socialmente significativas e de tratamentos psicossociais para alcançar o bem-estar e/ou a cura55. Demétrio F, Santana ER, Pereira-Santos M. O itinerário terapêutico no Brasil: revisão sistemática e metassíntese a partir das concepções negativa e positiva de saúde. Saúde Debate. 2019;43(spe 7):204-21. doi: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S716
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O processo saúde-doença exige interações multifatoriais relacionadas aos níveis biológico, psicológico e social como no modelo de Sistemas de Cuidado à Saúde66. Kleinman A. Concepts and model for the comparison of medical systems as cultural systems. Soc Sci Med. 1978;12:85-93. doi: https://doi.org/10.1016/0160-7987(78)90014-5
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, representado pelo método cultural e regido pelos sistemas: folclórico (especialistas não profissionais de cura, grupos religiosos), popular (contexto familiar de cuidado e doença, redes sociais e comunitárias) e profissional (profissional de medicina e curas indígenas).

Portanto, a decisão de onde e quando procurar ajuda é caracterizada pelo sistema popular e envolve expectativas, funções, relacionamentos e processos de cura66. Kleinman A. Concepts and model for the comparison of medical systems as cultural systems. Soc Sci Med. 1978;12:85-93. doi: https://doi.org/10.1016/0160-7987(78)90014-5
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, tendo em vista que as relações dos projetos no modo de ser dos humanos, com os modos de compreender a si e a seu mundo, além de suas formas de agir e interagir são constantemente experimentadas na área da saúde para referir-se ao cuidado55. Demétrio F, Santana ER, Pereira-Santos M. O itinerário terapêutico no Brasil: revisão sistemática e metassíntese a partir das concepções negativa e positiva de saúde. Saúde Debate. 2019;43(spe 7):204-21. doi: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S716
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Dados consolidados nacionais e internacionais apontam que a APS tem sido reconhecida como estratégia central para melhorar a saúde da criança, em especial para as CRIANES11. Barreiros CFC, Gomes MASM, Mendes Júnior SCS. Children with special needs in health: challenges of the single health system in the 21st century. Rev Bras Enferm. 2020;73(4):e20190037. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0037
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-22. Huang L, Freed GL, Danziel K. Children with special health care needs: how special are their health care needs? Acad Pediatr. 2020;20(8):1109-15. doi: https://doi.org/10.1016/j.acap.2020.01.007
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,77. Lindly OJ, Martin AJ, Lally K. A profile of care coordination, missed school days, and unmet needs among Oregon children with special health care needs with behavioral and mental health conditions. Community Ment Health J. 2020;56:1571-80. doi: https://doi.org/10.1007/s10597-020-00609-4
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, contudo ainda são observadas lacunas relacionadas às ações oferecidas pelas Redes de Atenção à Saúde (RAS)88. Neves ET, Okido ACC, Buboltz FL, Santos RP, Lima RAG. Accessibility of children with special health needs to the health care network. Rev Bras Enferm. 2019;72(Suppl 3):65-71. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0899
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, sobretudo em regiões vulneráveis, como as áreas fronteiriças. Um estudo mostrou que a atenção nessas regiões encontra-se desarticulada e desordenada99. Berres R, Baggio MA. (Dis)continuation of care of the pre-term newborn at the border. Rev Bras Enferm. 2020;73(3):e20180827. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0827
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, gerando insegurança para comunidade e para os profissionais de saúde. Assim, torna-se fundamental investir em um fluxo mais efetivo e com práticas preventivas que amenizem a sobrecarga no sistema de saúde e ampliem o acesso aos serviços, alcançando resolutividade e redução das iniquidades88. Neves ET, Okido ACC, Buboltz FL, Santos RP, Lima RAG. Accessibility of children with special health needs to the health care network. Rev Bras Enferm. 2019;72(Suppl 3):65-71. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0899
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,1010. Araújo Filho ACA, Silva AN, Ribeiro MGC, Rocha SS, Andrade EMLR, Nogueira LT. Evaluation of primary healthcare from the perspective of child caregivers: an integrative review. Rev Esc Enferm USP. 2019;53:e03527. doi: https://doi.org/10.1590/S1980-220X2018030003527
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A vulnerabilidade proferida em áreas de fronteira, cenário do presente estudo, refere-se a uma situação de interdependência entre países, com espaços compartilhados entre a população transfronteiriça e com uma dinâmica populacional e sanitária complexas, transcultural e que predispõe as pessoas ao adoecimento, agravando ainda mais sua condição de saúde1111. Lima LTP, Toso BRGO. Therapeutic itinerary of Brazilians in primary health care at triple border. Semina Cienc Biol Saude. 2019;40(1):37-46. doi: https://doi.org/10.5433/1679-0367.2019v40n1p37
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. Além disso, a falta de comunicação interpaíses e as dificuldades no sistema de referência e contrarreferência, geram morosidade e desassistência1111. Lima LTP, Toso BRGO. Therapeutic itinerary of Brazilians in primary health care at triple border. Semina Cienc Biol Saude. 2019;40(1):37-46. doi: https://doi.org/10.5433/1679-0367.2019v40n1p37
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Por considerar que CRIANES demandam cuidados complexos, individualizados, direcionados às suas necessidades especiais e em quantidade superior aos exigidos pelas crianças em geral, uma APS desarticulada pode intensificar suas fragilidades e demandas de cuidados77. Lindly OJ, Martin AJ, Lally K. A profile of care coordination, missed school days, and unmet needs among Oregon children with special health care needs with behavioral and mental health conditions. Community Ment Health J. 2020;56:1571-80. doi: https://doi.org/10.1007/s10597-020-00609-4
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Nesse contexto, destacou-se a seguinte questão para nortear este estudo: qual o IT percorrido pelas famílias em busca de cuidado e cura para as CRIANES em região de fronteira? A compreensão da trajetória realizada pelas famílias para cuidar de seus filhos permite avaliar a efetividade do serviço e identificar as necessidades de programas educativos em saúde, capacitação de profissionais e adequação de fluxos de cuidado.

Este artigo teve por objetivo compreender o IT percorrido pelas famílias em busca de atenção às necessidades especiais de saúde do filho em um município brasileiro de fronteira.

MÉTODOS

Pesquisa qualitativa com análise exploratória, conduzida pelo referencial teórico-metodológico da hermenêutica-dialética. A hermenêutica busca interpretar e compreender o contexto do adoecer na procura cotidiana do bem-viver. Esse compreender incessante age por meio da dialética de pergunta e resposta, não na tentativa de buscar o ponto fraco do que foi dito, mas em encontrar sua verdadeira força e discutir perspectivas do itinerário de busca para a atenção às CRIANES sob a ótica de seus cuidadores1212. Gadamer HG. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 15. ed. Petrópolis: Vozes; 2015..

Esta investigação iniciou-se em três instituições assistenciais filantrópicas de cuidado às CRIANES no município de Foz do Iguaçu, Paraná (PR), região Sul do Brasil, que faz fronteira com Cidade do Leste (Paraguai) e Porto Iguaçu (Argentina). São entidades que proporcionam atendimento para pessoas com múltiplas deficiências, nas áreas da educação especial, saúde e assistência social. Dentre as cinco instituições existentes no município, apenas as três selecionadas acolhem crianças menores de seis anos, objeto desse estudo.

Para a seleção dos participantes, as entidades disponibilizaram uma relação de todas as crianças assistidas e de seus horários de atendimento. Sendo assim, a busca deu-se pela reunião de casos ricos em informações que contribuíssem para o aprofundamento do fenômeno estudado, considerando-se as crianças com idade inferior a seis anos e com pelo menos duas demandas de cuidados (uso contínuo de medicamentos, habituais modificadas, de desenvolvimento e/ou comportamento, utilização de dispositivo tecnológico e/ou mista)88. Neves ET, Okido ACC, Buboltz FL, Santos RP, Lima RAG. Accessibility of children with special health needs to the health care network. Rev Bras Enferm. 2019;72(Suppl 3):65-71. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0899
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. Deste modo, participaram da pesquisa 19 cuidadores de CRIANES, maiores de 18 anos.

Devido à pandemia da COVID-19, as entrevistas aconteceram nas próprias entidades filantrópicas, sem a possibilidade de realizá-las no domicílio, como proposto inicialmente no projeto de pesquisa. Os participantes foram abordados pessoalmente, conforme chegavam para o atendimento de seus filhos, e convidados a participar do estudo. Não houve recusa diante das abordagens. Foram excluídos os cuidadores que não compareceram nas instituições nos horários agendados para os atendimentos de seus filhos.

A busca pelos dados ocorreu no período de outubro/2020 a fevereiro/2021, conduzida pela primeira autora, que tem experiência profissional na área da saúde da criança. A pesquisadora também recebeu treinamento prévio, com realização de duas entrevistas piloto, desconsideradas para a organização deste estudo.

As instituições providenciaram uma sala privativa para a coleta de dados, na qual encontrava-se apenas pesquisador e pesquisado. Todos foram informados quanto aos objetivos da pesquisa e, ao aceitarem, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) em duas vias, assegurando-lhes confidencialidade e anonimato.

Os encontros foram realizados individualmente, iniciados com a Dinâmica de Criatividade e Sensibilidade (DCS) - Mapa Falante (MF), desenvolvida com base no Método Criativo Sensível1313. Soratto J, Pires DEP, Cabral IE, Lazzari DD, Witt RR, Sipriano CAS. A maneira criativa e sensível de pesquisar. Rev Bras Enferm. 2014;67(6):994-9. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167.2014670619
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, e seguida por entrevista em profundidade. Utilizou-se como questão geradora do debate: Conte-me como tem sido os caminhos percorridos com a criança para atender suas necessidades de saúde?

Salienta-se que a DCS é baseada epistemologicamente na crítica-reflexiva da pesquisa participante, nas dinâmicas grupais da psicologia social e na criação artística da pesquisa1313. Soratto J, Pires DEP, Cabral IE, Lazzari DD, Witt RR, Sipriano CAS. A maneira criativa e sensível de pesquisar. Rev Bras Enferm. 2014;67(6):994-9. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167.2014670619
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. A ferramenta MF permite leitura aprofundada da realidade a partir de suas múltiplas dimensões, aproximando a relação entre o pesquisador e o pesquisado88. Neves ET, Okido ACC, Buboltz FL, Santos RP, Lima RAG. Accessibility of children with special health needs to the health care network. Rev Bras Enferm. 2019;72(Suppl 3):65-71. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0899
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.

A pesquisadora disponibilizou papel em branco e lápis coloridos para a produção dos MF e estes foram construídos individualmente pelos participantes, no momento reservado para a entrevista. Após a construção do MF, os cuidadores foram incentivados a explicar o percurso representado e, assim, iniciou-se a entrevista em profundidade, tendo como instrumento um roteiro norteador, que abordou: o acesso aos serviços de saúde; acolhimento e escuta oferecidos na APS; a continuidade do cuidado; a oferta de profissionais especializados e de exames de média complexidade; o seguimento na assistência dos filhos e a resolutividade dos serviços.

Optou-se por realizar o MF seguido de entrevista para oferecer um espaço dialógico ao participante, para que ele pudesse refletir e aprofundar-se na questão abordada. Os encontros foram audiogravados, com duração entre cinco a nove minutos para a produção e explicação dos MF e 11 a 35 minutos para as entrevistas. As gravações foram disponibilizadas ao final para que os participantes pudessem dar anuência de seu conteúdo.

Para a análise dos dados, elegeu-se a análise temática1414. Minayo MCS. Qualitative analysis: theory, steps and reliability. Ciênc Saúde Coletiva. 2012;17(3):621-6. doi: https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000300007
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. Inicialmente foi realizada a transcrição das entrevistas gravadas e a organização do material coletado. Para contemplar a fase de exploração dos dados, foram realizadas leituras aprofundadas e repetidas do material, fazendo uma relação interrogativa entre o referencial teórico e os objetivos propostos.

As falas foram divididas, a priori, em pré-categorias, organizadas no modelo de Sistemas de Cuidado à Saúde66. Kleinman A. Concepts and model for the comparison of medical systems as cultural systems. Soc Sci Med. 1978;12:85-93. doi: https://doi.org/10.1016/0160-7987(78)90014-5
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. Esse modelo é fundamentado no impacto da cultura na doença e na cura, que envolve fatores externos (social, político, econômico, histórico, epidemiológico e tecnológico) e internos (psicofisiológico, comportamental e comunicacional), estruturando-se em três domínios: folclórico, popular e profissional. A etapa final possibilitou a obtenção de categorias temáticas.

Com a finalidade de manter o anonimato dos participantes, esses foram identificados por códigos alfanuméricos, utilizando as letras CC - Cuidador de CRIANES, seguidas por números conforme a ordem das entrevistas, ou seja, CC1, CC2 e assim, sucessivamente. O desenvolvimento do estudo atendeu às normas do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da NN [eliminado para efeitos da revisão por pares], sendo aprovado pelo Parecer nº 4.300.226, conforme a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e Pesquisa envolvendo seres humanos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Participaram da pesquisa 14 mães, duas avós e três pais, totalizando 19 cuidadores, entre 22 e 54 anos. As crianças tinham idade entre dois e cinco anos e contou-se com um casal de gêmeos. As 20 crianças envolvidas apresentavam ao menos duas demandas de cuidado, quais sejam: de desenvolvimento e/ou comportamento e de cuidados habituais modificados. Dentre elas, 11 crianças possuíam adicionalmente a demanda medicamentosa e quatro necessitavam de cuidados tecnológicos (gastrostomia e/ou cadeira de rodas).

A análise dos dados centrou-se na Fragilidade do sistema de cuidados à saúde, doença e cura na atenção às CRIANES, ancorada por quatro eixos temáticos, a saber: Barreiras funcionais: desafios para o acesso de crianças com necessidades especiais aos serviços de saúde; Sobrecarga física, social e emocional gerando fragilidades na busca por cuidados; (Des)organização do Itinerário Terapêutico como reflexo de um serviço fragmentado; (Des)construindo o vínculo entre as redes profissional, comunitária e familiar.

Barreiras funcionais: desafios para o acesso de crianças com necessidades especiais aos serviços de saúde

A prática do cuidar pode ser apreendida a partir da reflexão da linguagem e da compreensão da realidade humana1212. Gadamer HG. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 15. ed. Petrópolis: Vozes; 2015. e possui como desafio os (des)encontros entre usuários, serviços e profissionais. Dentro do contexto do sistema profissional, os relatos dos participantes versaram sobre a existência de obstáculos para o acesso aos serviços de saúde, somado à falta de acolhimento e despreparo dos profissionais frente às demandas de cuidado apresentadas pelas CRIANES.

Tinha uns [profissionais] que você chegava, procurava conversar sobre alguma situação, mas desconversava e saía. (CC7)

Eu levei no pediatra que me encaminhou ao neuropediatra. Eu fiquei numa fila gigante, estava em quinhentos e pouco, fui no Ministério Público [MP], me deram um papel para levar na Secretaria da Saúde. A moça que me atendeu ligou no celular da [gerente da Unidade Básica de Saúde - UBS] e ela adiantou a minha consulta, me mandou no [centro de especialidades do município] e já iniciou as terapias, mesmo sem o laudo médico. Logo eu passei no neuropediatra, em uma semana. (CC17)

Todavia, pesquisa internacional mostrou que ao garantir e ampliar o acesso, independentemente do número de vezes ou do serviço que o usuário necessite, as respostas às necessidades de saúde de CRIANES e de suas famílias podem ser otimizadas22. Huang L, Freed GL, Danziel K. Children with special health care needs: how special are their health care needs? Acad Pediatr. 2020;20(8):1109-15. doi: https://doi.org/10.1016/j.acap.2020.01.007
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As barreiras relatadas nessa trajetória suscitaram os familiares a procurar os órgãos públicos para exigirem os direitos da CRIANES, como representado no MF da Figura 1.

Figura 1 -
Mapa falante produzido por CC18; Foz do Iguaçu, PR, 2020

Como coordenadora do cuidado e ordenadora da rede de serviços à população, a APS deveria oferecer serviços sem restrição de acesso, abordando uma amplitude de necessidades de saúde da população através de prevenção de doenças e agravos, promoção, assistência e reabilitação11. Barreiros CFC, Gomes MASM, Mendes Júnior SCS. Children with special needs in health: challenges of the single health system in the 21st century. Rev Bras Enferm. 2020;73(4):e20190037. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0037
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. No entanto, a falta de acolhimento e escuta qualificada referida pelos cuidadores e o descaso no atendimento às famílias de CRIANES, presente durante todo o processo de busca pelo diagnóstico, caracterizaram-se como barreiras funcionais e interferiram na oferta dos serviços em tempo oportuno e, consequentemente, no progresso das habilidades neuropsicomotoras das CRIANES88. Neves ET, Okido ACC, Buboltz FL, Santos RP, Lima RAG. Accessibility of children with special health needs to the health care network. Rev Bras Enferm. 2019;72(Suppl 3):65-71. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0899
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O laudo eu consegui no Instituto Nacional do Seguro Social [INSS] com cinco [anos], pouco tempo agora. (CC5)

O médico [da UBS] encaminhou ao neurologista que mandou fazer a ressonância. Quando veio o resultado, ele falou: “mãe, você é muito neurótica” e eu falei: “não doutor, ele tem alguma coisa diferente, isso ele estava com um ano e seis”. [...] Eu achei outro pediatra e ele falou: “mãe, o [filho] não interage, não tem contato visual, nada? Ele tinha que ser investigado” [suspiro aliviada e lágrima nos olhos]. Ele me encaminhou para outro neurologista que também falou que ele não tem nada. O pediatra perguntou se eu poderia ir no particular [...], eu consegui consulta no particular e descobri o diagnóstico dele, foi aí que tudo resolveu. (CC12)

As demandas de cuidados das crianças, bem como suas necessidades para prevenção de agravos devem ser reconhecidas ainda nas atividades básicas de saúde, seguidas pelas orientações e acompanhamento da criança e de seus familiares, assim como demonstrado em estudo recente1515. Góes FGB, Cabral IE. Discourses on discharge care for children with special healthcare needs. Rev Bras Enferm. 2017;70(1):154-61. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0248
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-1616. Lima BC, Silva LF, Góes FGB, Ribeiro MTS, Alves LL. The therapeutic pathway of families of children with cancer: difficulties faced in this journey. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e20180004. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.20180004
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. Mas segundo os participantes, a precariedade no atendimento dificultou a tomada de decisões e impulsionou a procura por outros serviços que atendessem às demandas de cuidados exigidas por CRIANES, dentre eles, os níveis de atenção à saúde secundários e terciários.

Quando ele começou a tremer, ficou virando os olhos, eu levei ele pra Unidade de Pronto Atendimento (UPA), daí começou a fazer tratamento com remédio. (CC5)

Nem vou no posto, eu só uso o 24 horas [UPA], aí eles encaminham direto para o hospital fazer os exames. (CC14)

No trajeto em busca de resolutividade e de atenção às necessidades dos filhos, as famílias de CRIANES precisaram recorrer aos serviços de saúde privados, convergindo com pesquisa recente44. Luz RO, Pieszak GM, Arrué AM, Gomes GC, Neves ET, Rodrigues AP. Therapeutic itinerary of families of children with special health needs. Rev Rene. 2019;20(1):e33937. doi: https://doi.org/10.15253/2175-6783.20192033937
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.

A gente precisou de um laudo de um médico do Sistema Único de Saúde - SUS, mas não é muito fácil de conseguir, porque o SUS não oferece os exames e a gente teve que pagar tudo, para o médico do SUS poder dar o laudo. (CC1)

[...] era muito complicado ficar dependendo só do SUS pra conseguir exames, terapias, tratamento, então nós fomos praticamente obrigados a fazer o [plano de saúde] pra que ela pudesse ter atendimento o mais rápido possível. (CC8)

Se você não paga um plano de saúde, você perde tempo de fazer as terapias, o teu filho não consegue fazer o tratamento que ele precisa no tempo certo, fundamentais no desenvolvimento de pessoas com necessidades especiais. (CC8)

Eu fiz um plano de saúde pra ele, [...] no SUS faz mais de um ano que eu não faço nada, porque nem pediatra tem. (CC15)

Na perspectiva hermenêutica, esse movimento corresponde à busca de soluções para a superação do processo de adoecimento, simbolizado pela procura cotidiana do bem viver1212. Gadamer HG. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 15. ed. Petrópolis: Vozes; 2015.. E para exemplificar esta trajetória, o MF apresentado pela Figura 2 mostra que após ser desassistida pela unidade de saúde, a mãe dirigiu-se ao setor privado e que, segundo ela, “não existiram flores nesse caminho”.

Figura 2 -
Mapa falante produzido por CC1; Foz do Iguaçu, PR, 2020

A expressão ora proferida pela participante, reforça que essa busca pelos planos de saúde e por atendimentos privados acontece mesmo frente às dificuldades financeiras, intensificando os obstáculos encontrados pelos familiares.

O despreparo dos profissionais, a falta de acolhimento e a precariedade dos serviços de saúde constituem uma barreira para o acesso, o que fragiliza as famílias de CRIANES e prejudica a construção do IT.

Sobrecarga física, social e emocional gerando fragilidades na busca por cuidados

A alta demanda de cuidados exigidos pelas CRIANES está associada aos diversos desafios relatados por seus familiares, dentre eles a busca constante por serviços resolutivos. Estudos nacionais e internacionais apontam que a dedicação exclusiva ao cuidado do filho faz com que os cuidadores não encontrem espaço para o cuidado de si, de sua saúde e de sua vida social dentro da comunidade, o que segundo os participantes gera sobrecarga física, social e emocional33. Pedrosa RKB, Guedes ATA, Soares AR, Vaz EMC, Collet N, Reichert APS. Itinerary of children with microcephaly in the health care network. Esc Anna Nery. 2020;24(3):e20190263. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2019-0263
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,1717. Bird M, Li L, Ouellette C, Hopkins K, McGillion MH, Carter N. Use of synchronous digital health technologies for the care of children with special health care needs and their families: scoping review. JMIR Pediatr Parent. 2019;2(2):e15106. doi: https://doi.org/10.2196/15106
https://doi.org/10.2196/15106...
-1818. Bradshaw S, Bem D, Shaw K, Taylor B, Chiswell C, Salama M, et al. Improving health, wellbeing and parenting skills in parents of children with specia health care needs and medical complexity - a scoping review. BMC Pediatr. 2019;19:301. doi: https://doi.org/10.1186/s12887-019-1648-7
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.

Eu não consigo contar com ninguém, me sobrecarrega pra caramba [...]. Esses dias eu só queria chorar, aí eu fui no posto de saúde e falei que eu precisava de uma consulta, ela [enfermeira] falou pra voltar em 15 dias pra gente marcar. Eu fiquei louca, [...] eu estou com um problema hoje e quero uma consulta hoje, [...] ela me encaixou na consulta e o médico me deu um antidepressivo. (CC15)

[...] eu queria psicólogo pra mim, eu coloquei meu nome lá na fila em 2019 e até agora não chamaram. (CC17)

[...] a minha família não aceita [a criança], o psicológico da mãe fica a mil. Quando você chega na consulta, você espera um abraço dos profissionais, dos terapeutas, mas se você não tem nada, você só enxerga uma escuridão, parece que nunca vai melhorar. Espero que os médicos tenham mais empatia. (CC17)

Importante destacar que a decisão de onde e quando procurar ajuda está inserida no sistema familiar, conforme o modelo de Sistemas de Cuidado à Saúde, e é composto pelas redes sociais e comunitárias66. Kleinman A. Concepts and model for the comparison of medical systems as cultural systems. Soc Sci Med. 1978;12:85-93. doi: https://doi.org/10.1016/0160-7987(78)90014-5
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.

A literatura científica destaca que ações direcionadas ao fortalecimento das redes de apoio reduzem o desgaste enfrentado pelos familiares durante a procura por cuidados para o filho com necessidades especiais de saúde e viabiliza a atenção à criança, melhorando o contexto comunitário em que vivem33. Pedrosa RKB, Guedes ATA, Soares AR, Vaz EMC, Collet N, Reichert APS. Itinerary of children with microcephaly in the health care network. Esc Anna Nery. 2020;24(3):e20190263. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2019-0263
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,1919. Ferreira FY, Xavier MC, Baldini PR, Ferreira LTL, Lima RAG, Okido ACC. Influence of health care practices in the burden of caregivers mothers. Rev Bras Enferm. 2020;73(Suppl 4):e20190154. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0154
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Nestas circunstâncias, a empatia, a convivência e a interação são reconhecidamente importantes para o cuidado de si1212. Gadamer HG. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 15. ed. Petrópolis: Vozes; 2015., visto que o envolvimento da comunidade no processo de cuidar de CRIANES levou as famílias a sentirem-se mais acolhidas e capazes de acompanhar a intensa rotina de cuidados que seus filhos exigem1717. Bird M, Li L, Ouellette C, Hopkins K, McGillion MH, Carter N. Use of synchronous digital health technologies for the care of children with special health care needs and their families: scoping review. JMIR Pediatr Parent. 2019;2(2):e15106. doi: https://doi.org/10.2196/15106
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,1919. Ferreira FY, Xavier MC, Baldini PR, Ferreira LTL, Lima RAG, Okido ACC. Influence of health care practices in the burden of caregivers mothers. Rev Bras Enferm. 2020;73(Suppl 4):e20190154. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0154
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Tem um grupo em Curitiba, que qualquer criança que nasce com Síndrome de Down, eles vão na casa fazer o acolhimento. Lá ele ia numa escola que dava todo acompanhamento que precisa [...], mas aqui tem as dificuldades, aqui em Foz estão anos luz atrasados, aqui você não consegue nada. (CC15)

Ademais, a interação entre os sujeitos (profissionais e cuidadores), promovida pelo compartilhamento de saberes técnico-científicos-práticos, amplia o espaço do indivíduo como sujeito ativo de sua saúde, possibilitando a superação das adversidades e a construção de outras visões sobre a realidade33. Pedrosa RKB, Guedes ATA, Soares AR, Vaz EMC, Collet N, Reichert APS. Itinerary of children with microcephaly in the health care network. Esc Anna Nery. 2020;24(3):e20190263. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2019-0263
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,1212. Gadamer HG. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 15. ed. Petrópolis: Vozes; 2015..

Relações dialógicas envolvidas no encontro profissional-usuário, mediante a fusão dos horizontes e praticadas pela escuta, interesse e construção de vínculos de confiança deveriam ser estimuladas, mas essa não foi a realidade encontrada neste estudo.

Seria interessante uma psicóloga para os pais, seria muito bom se eles oferecessem, porque a gente não precisaria se deslocar para outros lugares, como no Centro de Atenção Psicossocial - CAPS. (CC18)

[...] grupos de pais ajudam bastante, eu aprendi bastante coisa, tem grupos que é mais para desabafo mesmo. (CC18)

Segundo os discursos, o cuidado intensivo da criança com demandas complexas de saúde sobrecarrega o principal cuidador, geralmente a mãe, e desestrutura as relações familiares. Nesse cenário, estudos reforçam a necessidade de produzir rearranjos familiares para enfrentar essa nova realidade44. Luz RO, Pieszak GM, Arrué AM, Gomes GC, Neves ET, Rodrigues AP. Therapeutic itinerary of families of children with special health needs. Rev Rene. 2019;20(1):e33937. doi: https://doi.org/10.15253/2175-6783.20192033937
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,2020. Baldini PR, Lima BJ, Pina JC, Okido ACC. Mothers of children that need continuous and complex care: Factors associated with social support. Esc Anna Nery. 2021;25(3):e20200254. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2020-0254
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Não temos ajuda porque a gente não tem financeiramente como pagar. Minha esposa trabalha, eu trabalho. Mas como eu trabalho em casa, eu fico com ele. (CC4)

Meu filho mais velho de 12 anos me ajuda. Eu trabalhava antes, agora eu precisei parar porque todos os dias ela tem atendimento, então eu tenho que sair com ela direto e dei prioridade à minha filha. (CC13)

A ausência da figura paterna foi outro fator relatado pelas participantes e que converge com as pesquisas no que diz respeito à sua pouca participação na vida e no tratamento de crianças com doenças crônicas de saúde33. Pedrosa RKB, Guedes ATA, Soares AR, Vaz EMC, Collet N, Reichert APS. Itinerary of children with microcephaly in the health care network. Esc Anna Nery. 2020;24(3):e20190263. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2019-0263
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,88. Neves ET, Okido ACC, Buboltz FL, Santos RP, Lima RAG. Accessibility of children with special health needs to the health care network. Rev Bras Enferm. 2019;72(Suppl 3):65-71. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0899
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[Quando perguntado se possui ajuda para cuidar do filho] Não, só eu. (CC5)

Sou sozinha, o pai deles não viu nem nascer. (CC17)

Logo, a escassez de redes de apoio e a falta de atenção direcionada às famílias gera sobrecarga dos cuidadores, prejudicando a construção do cuidado e o enfrentamento das adversidades.

(Des)organização do Itinerário Terapêutico como reflexo de um serviço fragmentado

Os obstáculos encontrados para o acesso às consultas, exames e atendimentos especializados, somados à falta de estrutura e de profissionais habilitados resultaram em um cuidado desconexo, refletindo em longos períodos de espera e aumento das vulnerabilidades de CRIANES. A exemplo disso, o atraso no diagnóstico prejudicou o planejamento do IT e o acesso precoce aos tratamentos, como mostra os relatos dos participantes.

Ele saiu do centro de nutrição quando tinha sete meses [...] a gente já sabia que ele tinha um atraso. Como já estava encaminhado pra neurologista, ele ficou seis meses na fila [...], quando ele completou um ano e um mês, ele passou pela primeira vez no neurologista. (CC2)

[Ficou] dois meses no hospital [...] e foi pra casa com uma sonda gastro [gástrica]. Me deram um monte de papel, que eu tinha que começar tudo do postinho. Fiquei na fila três meses pra conseguir uma vaga com neurologista. Volta pro postinho de novo, dá o que a doutora pediu e volta de novo na fila. Demora, às vezes nem chama. (CC10)

A visão individual de mundo delimita sua escolha e o modo com que o itinerário de cuidado e cura é construído. Sendo assim, não se deve esperar que os pais, com pouca ou nenhuma orientação, enfrentem de forma solitária uma variedade de aspectos e empecilhos que limitam o acesso dos filhos aos serviços de saúde1111. Lima LTP, Toso BRGO. Therapeutic itinerary of Brazilians in primary health care at triple border. Semina Cienc Biol Saude. 2019;40(1):37-46. doi: https://doi.org/10.5433/1679-0367.2019v40n1p37
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,1616. Lima BC, Silva LF, Góes FGB, Ribeiro MTS, Alves LL. The therapeutic pathway of families of children with cancer: difficulties faced in this journey. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e20180004. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.20180004
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. É preciso estar ao lado das famílias, oferecer uma fonte regular de atenção a partir de uma relação de confiança mútua1212. Gadamer HG. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 15. ed. Petrópolis: Vozes; 2015..

Pesquisa realizada em Foz do Iguaçu, PR, mostrou que as redes de apoio às crianças encontram-se frágeis e fragmentadas99. Berres R, Baggio MA. (Dis)continuation of care of the pre-term newborn at the border. Rev Bras Enferm. 2020;73(3):e20180827. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0827
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, e que para garantir o cuidado integral é imprescindível que os fluxos de atendimentos estejam bem definidos e planejados, oferecendo um serviço resolutivo e em tempo oportuno33. Pedrosa RKB, Guedes ATA, Soares AR, Vaz EMC, Collet N, Reichert APS. Itinerary of children with microcephaly in the health care network. Esc Anna Nery. 2020;24(3):e20190263. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2019-0263
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. Essa fragilidade foi evidenciada no MF da Figura 3 e reforçada pela fala da participante.

Figura 3 -
Mapa falante produzido por CC6; Foz do Iguaçu, PR, 2020

No posto mesmo a gente não conseguiu. Até na época, pra gente conseguir fazer aquele exame do pezinho, era muito, ainda é, mas era pior antes, era muito bagunçado. Você não conseguia atendimento, então a gente acabava sempre desistindo. (CC6)

Outro estudo realizado no mesmo município1111. Lima LTP, Toso BRGO. Therapeutic itinerary of Brazilians in primary health care at triple border. Semina Cienc Biol Saude. 2019;40(1):37-46. doi: https://doi.org/10.5433/1679-0367.2019v40n1p37
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encontrou uma trajetória marcada pela desarticulação e morosidade, onde seus usuários são encaminhados sem rigor, ou seja, de um lado para o outro, não só durante o primeiro acesso, mas também na continuidade do cuidado, corroborando com os relatos dos cuidadores.

Meu filho não falava, fui no posto de saúde e depois de três meses saiu a consulta da fonoaudióloga. [...] o mesmo médico que mandou pro posto, me mandou pra neurologista [demorou quatro meses] e a neurologista me encaminhou pra fonoaudióloga, terapeuta ocupacional (TO) e psicólogo. Foi quando eu comecei a procurar, fui na [segunda UBS] não tinha, fui na [terceira UBS] não tinha, fui no [centro de especialidades do município], também não tinha. Aí eu voltei no meu posto e também não tinha. Aí eu entrei na fila do [nome da instituição] e fiquei dois anos esperando a vaga. (CC6)

Ele [médico] mandou ao centro de nutrição para ganhar peso e eu estou esperando uma cirurgia dele, [...] faz uns três anos. Tem um exame que não faz aqui na cidade e eu tenho que ir a Pato Branco. Você tem que correr atrás por si próprio, ninguém te ajuda pra ir atrás da cirurgia. (CC7)

O [exame] do coração eu tenho que fazer em Cascavel ou em Curitiba, então isso fica a desejar porque é um transtorno sair com a criança, a gente vê as mãezinhas saindo sempre pra levar em Curitiba, todo mês ou a cada seis meses. (CC13)

Cabe ressaltar que regiões de fronteira internacional possuem espaços compartilhados pela população transfronteiriça e que a sobrecarga gerada pela alta procura de estrangeiros aos serviços de saúde brasileiros dificulta o acesso à assistência especializada e exames de média e alta complexidade, como observado nos depoimentos e corroborado pela literatura1111. Lima LTP, Toso BRGO. Therapeutic itinerary of Brazilians in primary health care at triple border. Semina Cienc Biol Saude. 2019;40(1):37-46. doi: https://doi.org/10.5433/1679-0367.2019v40n1p37
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Além disso, a distância de grandes centros de referência e a escassez de profissionais especializados, características bastante comuns em regiões de fronteira, foram apontadas pelas famílias como responsáveis pela busca por atendimento em municípios distantes de seus domicílios, convergindo com pesquisa local1111. Lima LTP, Toso BRGO. Therapeutic itinerary of Brazilians in primary health care at triple border. Semina Cienc Biol Saude. 2019;40(1):37-46. doi: https://doi.org/10.5433/1679-0367.2019v40n1p37
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Foz do Iguaçu tem uma falha muito grande com profissionais, ela precisa por exemplo fazer acompanhamento com um oftalmologista pediátrico, nós temos que ir até Cascavel porque aqui não tem. Já tivemos que ir a Curitiba, porque em Cascavel não tinha horário. (CC8)

Eu consegui [laudo] em Curitiba, quando ela nasceu não tinha neurologista, aí ela ficou doente de novo, eu fui pro Hospital [...] e falei: “doutor, eu ainda não consegui o diagnóstico da [filha] porque não tá tendo neurologista, só tinha a pediatra e ela não está mais na rede”. Aí ele me deu um encaminhamento e mandou pra Curitiba, aí foi fácil. (CC10)

Embora os encaminhamentos necessários sejam realizados pelos profissionais, as falas versaram sobre a falta de orientação adequada para o direcionamento dessas crianças e de suas famílias.

A gente foi lá [UBS], consultou ele [filho] e o enfermeiro falou que tinha que ir fazer a matrícula nas outras entidades e também no [centro de especialidades do município], [...] daí a gente esperou. Como aqui [instituição] tem as cinco coisas que ele tem que fazer e lá não tinha, eu comecei lá [centro de especialidades] aí quando surgiu aqui, eu saí de lá e matriculei aqui. (CC4)

Esse ir e vir das famílias em busca de atenção remete mais uma vez ao sistema profissional, tendo em vista que a desarticulação entre os serviços do município fragiliza o IT e torna os cuidados de CRIANES ainda mais complexos1717. Bird M, Li L, Ouellette C, Hopkins K, McGillion MH, Carter N. Use of synchronous digital health technologies for the care of children with special health care needs and their families: scoping review. JMIR Pediatr Parent. 2019;2(2):e15106. doi: https://doi.org/10.2196/15106
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. Isto posto, estudos confirmam que serviços desorganizados repercutem nas dinâmicas, identidades e papéis familiares e levam a um itinerário desordenado, com baixa cobertura, dificuldade no acesso e descontinuidade do atendimento33. Pedrosa RKB, Guedes ATA, Soares AR, Vaz EMC, Collet N, Reichert APS. Itinerary of children with microcephaly in the health care network. Esc Anna Nery. 2020;24(3):e20190263. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2019-0263
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,2020. Baldini PR, Lima BJ, Pina JC, Okido ACC. Mothers of children that need continuous and complex care: Factors associated with social support. Esc Anna Nery. 2021;25(3):e20200254. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2020-0254
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A pediatra do centro de nutrição me encaminhou pra neurologista e teve só duas consultas. Aí ela parou de atender no SUS. (CC2)

Não obstante, os serviços especializados para o tratamento a longo prazo mostraram-se incipientes nessa região, com sobrecarga dos mesmos, morosidade e desassistência da população.

A doutora que cuidou dele desde o primeiro dia, não precisei nem de lista de espera. Já os outros tratamentos, estou até hoje. Tem tratamento que o [filho] precisa e que ele nem se consultou. Todo ano eu tenho que atualizar os laudos pra entrar na fila e eu nunca sou chamada. (CC2)

Demorou pra conseguir [na instituição], eu tive que ficar cobrando, cobrando, porque não tinha vaga, é uma procura muito grande, lista de espera, porque não tem pra todo mundo. Teve até pessoas que disseram que foram dispensadas porque não tinha como atender todo mundo. (CC15)

Por esse motivo, as famílias percorreram diversas instituições na esperança de conseguir uma vaga para seus filhos (Figura 4).

Figura 4 -
Mapa falante produzido por CC17; Foz do Iguaçu, PR, 2020

Ela [médica particular] passou o laudo e nos instruiu como fazer, fomos parar na [instituição A]. Eu vim aqui no [instituição B] que era considerada a que mais tinha atendimento, mas tem uma longa fila de espera, então eu deixei o nome dela aqui e fui procurar por outros atendimentos. Encontrei na [instituição A] atendimentos com fonoaudiólogo e aula de música, até ser chamada no [centro de especialidades do município], onde ela teve atendimento só com a psicóloga, o que é muito chato porque a gente tem que escolher. (CC3)

A professora do CMEI (Centro Municipal de Educação Infantil) me encaminhou pra psicopedagoga da Secretaria da Educação que encaminhou para o neurologista e já me encaminhou para as terapias, [...] demorou uns três meses ou mais, só que não tinha tudo. Pra eu conseguir as terapias dela tive que ir no MP, depois fui encaminhada pro [centro de especialidades do município] e pra chegar aqui ela ficou um ano aguardando na fila. (CC18)

Pesquisas afirmam que esse constante movimento relatado pelas famílias em busca de resolutividade e continuidade do cuidado prejudica a relação entre profissionais e familiares e compromete o vínculo - elemento fundamental para a qualidade do cuidado1919. Ferreira FY, Xavier MC, Baldini PR, Ferreira LTL, Lima RAG, Okido ACC. Influence of health care practices in the burden of caregivers mothers. Rev Bras Enferm. 2020;73(Suppl 4):e20190154. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0154
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-2020. Baldini PR, Lima BJ, Pina JC, Okido ACC. Mothers of children that need continuous and complex care: Factors associated with social support. Esc Anna Nery. 2021;25(3):e20200254. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2020-0254
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Portanto, um serviço fragmentado e desorganizado dificulta a interação das famílias com os profissionais, prejudica a organização do IT e leva à descontinuidade da assistência.

(Des)construindo o vínculo entre as redes profissional, comunitária e familiar

A comunicação e escuta são elementos fundamentais para estabelecer uma relação dialógica, com confiança mútua entre as famílias e os profissionais de saúde1212. Gadamer HG. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 15. ed. Petrópolis: Vozes; 2015.,1818. Bradshaw S, Bem D, Shaw K, Taylor B, Chiswell C, Salama M, et al. Improving health, wellbeing and parenting skills in parents of children with specia health care needs and medical complexity - a scoping review. BMC Pediatr. 2019;19:301. doi: https://doi.org/10.1186/s12887-019-1648-7
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, contudo, os discursos versaram a falta de escuta qualificada e dificuldade para criar vínculo com os profissionais das unidades de APS, divergindo da literatura científica.

[...] fora daqui [instituição], no posto e no [centro de especialidades do município] é bem precário, no conversar com você, no falar, no te explicar. Elas não têm paciência, elas são ignorantes, não sabem falar com as pessoas. (CC12)

O vínculo estabelecido com a equipe de saúde poderia facilitar a articulação entre os sistemas de referência e contrarreferência44. Luz RO, Pieszak GM, Arrué AM, Gomes GC, Neves ET, Rodrigues AP. Therapeutic itinerary of families of children with special health needs. Rev Rene. 2019;20(1):e33937. doi: https://doi.org/10.15253/2175-6783.20192033937
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,1616. Lima BC, Silva LF, Góes FGB, Ribeiro MTS, Alves LL. The therapeutic pathway of families of children with cancer: difficulties faced in this journey. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e20180004. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.20180004
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, mas as falas dos cuidadores emergiram no sentido oposto, uma vez que as crianças que migraram para os serviços privados voltaram à unidade de saúde apenas em busca de vacinas; e as crianças encaminhadas às instituições filantrópicas e ao centro de especialidades utilizaram ocasionalmente as unidades de saúde (Figura 5).

Figura 5 -
Mapa falante produzido por CC2; Foz do Iguaçu, PR, 2020

Eu levo no centro de nutrição, mas às vezes no posto de saúde. (CC13)

[Questionada se utiliza a UBS] Não, parte pelo plano, parte aqui na instituição, porque meu plano não cobre tudo né. (CC16)

Importante apontar que no pensamento hermenêutico, a fusão de horizontes estabelecida entre profissionais e usuários, a partir da troca de diferentes saberes, com respeito às identidades, valores e experiências, bem como o diálogo centrado no cuidado, contribuem sobremaneira para a transformação das práticas em saúde e para a construção dos projetos de felicidade1212. Gadamer HG. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 15. ed. Petrópolis: Vozes; 2015..

Essa interação esteve presente em crianças mais vulneráveis socioeconomicamente, dado que os relatos apontaram para um acompanhamento contínuo realizado pelos agentes comunitários de saúde, facilitando o cuidado e o vínculo com as famílias.

Tem a mulher que faz visita nas casas [agente comunitário de saúde], ela sempre vai lá ver, fazer visita e perguntar se ela está bem. (CC9)

A agente de saúde vai em casa, marca exames pra eu não ter que ir até o posto. (CC10)

Cabe destacar que serviços coordenados e longitudinais são fundamentais para garantir o cuidado adequado às condições crônicas11. Barreiros CFC, Gomes MASM, Mendes Júnior SCS. Children with special needs in health: challenges of the single health system in the 21st century. Rev Bras Enferm. 2020;73(4):e20190037. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0037
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,33. Pedrosa RKB, Guedes ATA, Soares AR, Vaz EMC, Collet N, Reichert APS. Itinerary of children with microcephaly in the health care network. Esc Anna Nery. 2020;24(3):e20190263. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2019-0263
https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-20...
, além de fortalecer a construção do IT.

O sistema folclórico66. Kleinman A. Concepts and model for the comparison of medical systems as cultural systems. Soc Sci Med. 1978;12:85-93. doi: https://doi.org/10.1016/0160-7987(78)90014-5
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, que integra o modelo de Sistemas de Cuidado à Saúde, é outro elemento fundamental para o cuidado, porém não foi relatado pelos participantes desse estudo. Esse resultado convergiu com recente metanálise, que observou poucas citações sobre esse sistema na literatura55. Demétrio F, Santana ER, Pereira-Santos M. O itinerário terapêutico no Brasil: revisão sistemática e metassíntese a partir das concepções negativa e positiva de saúde. Saúde Debate. 2019;43(spe 7):204-21. doi: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S716
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S71...
. Todavia, uma pesquisa realizada em Foz do Iguaçu, PR, cenário do presente estudo, afirmou existir procura por grupos sociais e religiosos durante o processo de cura1111. Lima LTP, Toso BRGO. Therapeutic itinerary of Brazilians in primary health care at triple border. Semina Cienc Biol Saude. 2019;40(1):37-46. doi: https://doi.org/10.5433/1679-0367.2019v40n1p37
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.

E por fim, outras ações têm se mostrado benéficas para o cuidado de complexidades apresentadas pelas crianças, mas as famílias relataram o desconhecimento de terapias complementares para estabelecer esse cuidado integral do filho.

O SUS não oferece, mas deveria ter terapias complementares, [...] hidroterapia, musicoterapia, em casa eu faço umas coisas assim e ela gosta muito. (CC18)

A utilização de terapias complementares associadas ao tratamento clínico permite maior interação entre profissionais, crianças e famílias, o que poderia trazer alívio dos sintomas, facilitar os demais tratamentos e fortalecer o vínculo entre as redes familiar e profissional.

Desse modo, as barreiras funcionais encontradas pelas famílias de CRIANES para o acesso aos serviços de saúde ficaram evidentes no contexto fronteiriço, o que levou ao aumento da sobrecarga parental e desarticulação do IT, tornando-o moroso e pouco resolutivo. Além disso, a falta de escuta e acolhimento dificultou a construção do vínculo, elemento essencial para garantir a continuidade do cuidado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para as famílias de CRIANES, os serviços de saúde apresentam-se frágeis, descoordenados e pouco resolutivos. O IT apresentado evidenciou que os cuidadores de CRIANES enfrentaram dificuldades relacionadas à procura pelo diagnóstico, consultas com profissionais especializados, falhas na comunicação, no acolhimento e no cuidado prestado às crianças e às próprias famílias nas unidades de APS.

A busca por atenção à saúde foi constituída predominantemente pelos cuidadores, além de ser per meada por idas e vindas a diversas instituições de saúde, mostrando a insipiência do contexto profissional no Sistema de Cuidados às CRIANES. Situações encontradas em regiões de fronteira, como incompatibilidade demográfica e tecnológica, problemas diplomáticos e de saúde pública e a distância de grandes centros de referência intensificam os problemas, levando essas famílias a procurar assistência em serviços privados, instituições filantrópicas e municípios distantes de sua residência.

O instrumento MF foi um importante aliado para a compreensão dos caminhos percorridos em busca de atenção à saúde, pois instigou os participantes a refletir sobre o percurso vivido por eles desde a descoberta do diagnóstico de seus filhos. Processo este marcado pela insegurança, com medos e anseios sobre quando e onde procurar assistência.

Para estabelecer um IT bem definido e resolutivo é necessário que as demandas contínuas das crianças e de suas famílias sejam atendidas, com relevância ao aprimoramento das ha bilidades da enfermagem para atuar assertivamente no acompanhamento de CRIANES, bem como na implantação de políticas voltadas a elas. Torna-se indispensável respeitar e integrar os sistemas culturais e familiares, para que os direitos das crianças sejam alcançados e, sobretudo, com empatia pelo intenso trajeto que essas famílias percorrem todos os dias em busca de uma vida digna e de qualidade para seus filhos.

O estudo apresenta como limitação a realização das entrevistas nas instituições assistenciais, sendo que, adentrar no ambiente domiciliar poderia mostrar com maior profundidade as vulnerabilidades das CRIANES e de suas famílias para atenção às demandas de cuidado. Para ampliar a compreensão dos resultados encontrados, são necessários mais estudos voltados às RAS e ao centro de especialidades do município.

Agradecimentos:

À Coordenação de aperfeiçoamento de pessoal de nível superior (Capes).

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Editado por

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2021
  • Aceito
    25 Ago 2021
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