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Adesão terapêutica sob o olhar foucaultiano: saberes/poderes nos Manuais de Controle da Tuberculose no Brasil

RESUMO

Objetivo

Investigar quais saberes emergem nos Manuais de Controle da Tuberculose e como as relações de poder são instituídas para adesão terapêutica.

Método

Pesquisa documental, qualitativa, que analisou cinco manuais publicados entre 2002 e 2019, disponíveis no Website do Ministério da Saúde, a partir do referencial teórico metodológico de Michel Foucault.

Resultados

1. Saberes: a capacitação de recursos humanos; ações de vigilância em saúde; medicalização; e multifuncionalidade dos enfermeiros no enfrentamento dos determinantes sociais da tuberculose. 2. Relações de poder: se articulam entre diferentes sujeitos e instituem disciplinas sobre o corpo e o comportamento da pessoa em tratamento.

Conclusões

Determinados saberes/poderes constituem as ações de adesão terapêutica ao tratamento da tuberculose e normalizam a forma “correta/verdadeira” de se conduzir o controle da doença. Tais condutas remetem à autorresponsabilização, autonomia e empoderamento do sujeito, mas não levam em consideração as inúmeras condições de vulnerabilidade existentes no histórico das pessoas com tuberculose.

Palavras-chave
Tuberculose; Cooperação e adesão ao tratamento; Promoção da saúde; Discurso; Política

ABSTRACT

Objective

Investigate which knowledge emerges in the Tuberculosis Control Manuals and how power relations are established for treatment adherence.

Method

Documentary and qualitative research on five Manuals published between 2002 and 2019, available on the Ministry of Health’s Website, based on Michel Foucault’s theoretical and methodological framework.

Results

1. Knowledge: emerges as human resource training; health surveillance actions; medicalization; and multifunctionality of nurses in addressing the social determinants of tuberculosis. 2. Power relations: occur through articulation between different subjects and establish disciplines on the body and the behavior of the person undergoing treatment.

Conclusions

Certain knowledge/powers constitute the actions of treatment adherence to tuberculosis treatment and normalize the “correct/true” way of conducting disease control. Such behaviors refer to self-responsibility, autonomy and empowerment of the subject and do not consider the countless conditions of vulnerability existing in the history of people with tuberculosis.

Keywords
Tuberculosis; Treatment adherence and compliance; Health promotion; Address; Politics

RESUMEN

Objetivo

Investigar qué conocimientos surgen en los Manuales de Control de la Tuberculosis y qué relaciones de poder se instituyen para la adherencia terapéutica.

Método

Investigación documental, cualitativa, que analizó cinco Manuales publicados entre 2002 y 2019, disponible en el sitio web del Ministerio de Salud, desde el marco teórico y metodológico de Michel Foucault.

Resultados

1. Conocimiento: la formación de recursos humanos; acciones de vigilancia de la salud; medicalización; y multifuncionalidad de las enfermeras para abordar los determinantes sociales de la tuberculosis. 2. Relaciones de poder se dan a través de la articulación entre diferentes sujetos y disciplinas del instituto sobre el cuerpo y el comportamiento de la persona a tratar.

Conclusiones

Ciertos conocimientos/poderes constituyen las acciones de adherencia terapéutica al tratamiento de la tuberculosis y normalizan la forma “correcta/verdadera” de realizar el control de la enfermedad. Tales comportamientos responden a la autorresponsabilidad, autonomía y empoderamiento del sujeto y no toman en cuenta las innumerables situaciones de vulnerabilidad existentes en la historia de las personas con tuberculosis.

Palabras-clave
Tuberculosis; Cumplimiento y adherencia al tratamiento; Promoción de la salud; Discurso; Política

INTRODUÇÃO

No mais recente Manual de Recomendações para o Controle da Tuberculose no Brasil, a Adesão Terapêutica é definida como - “processo colaborativo que facilita a aceitação e a integração de um determinado regime terapêutico no cotidiano das pessoas em tratamento, pressupondo sua participação nas decisões sobre o mesmo”11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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. Esse mesmo documento reforça que a adesão prescinde de articulações para o enfrentamento dos Determinantes Sociais em Saúde (DSS) - aspectos sociais, econômicos, culturais, étnico-raciais, psicológicos e comportamentais - que estão relacionados com a ocorrência de doenças na população22. Buss PM, Hartz ZMA, Pinto LF, Rocha CMF. Health promotion and quality of life: a historical perspective of the last two 40 years (1980-2020). Ciênc Saúde Colet. 2020;25(12):4723-35. doi: https://doi.org/10.1590/1413-812320202512.15902020
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. Isso porque a maior parte dos casos da doença, bem como o maior risco de adoecimento, tanto no no cenário internacional33. World Health Organization. Global tuberculosis report 2020 [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240013131
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, quanto no Brasil44. Barreto FM, Silva MBP, Rodrigues BS, Silva Neto AG. Avaliação das condições socioeconômicas e epidemiológicas dos pacientes com tuberculose no brasil entre 2012 a 2016. J Interdiscip Biociênc. 2018 [cited 2020 Dec 10];3(2):35-8. Available from: https://revistas.ufpi.br/index.php/jibi/article/view/7336/4985
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concentram-se nas pessoas em situações de vulnerabilidade decorrentes e/ou agravadas pelas iniquidades sociais11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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,33. World Health Organization. Global tuberculosis report 2020 [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240013131
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-44. Barreto FM, Silva MBP, Rodrigues BS, Silva Neto AG. Avaliação das condições socioeconômicas e epidemiológicas dos pacientes com tuberculose no brasil entre 2012 a 2016. J Interdiscip Biociênc. 2018 [cited 2020 Dec 10];3(2):35-8. Available from: https://revistas.ufpi.br/index.php/jibi/article/view/7336/4985
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). . Esses são aspectos que justificam a importância de análises como a aqui apresentada, pois nos permitem problematizar o quão intensamente o êxito da adesão terapêutica pode ser relacionado à capacidade ou empenho dessas pessoas que convivem em contextos de pobreza em “colaborar” com o tratamento proposto. E o quanto parece ser estreita a possibilidade de que “as decisões do doente (sejam elas quais forem)” sejam respeitadas, visto que se trata de uma doença infectocontagiosa de transmissão aérea.

A partir dessa compreensão, tratar a adesão como um comportamento colaborativo vai ao encontro dos pressupostos da vertente neoliberal da Promoção da Saúde. Por esta vertente, proliferam-se discursos a partir dos quais novas estratégias de autorresponsabilização seriam capazes, mesmo que isoladamente, de melhorias nas condições de saúde da população55. Moraes DR, Castiel LD. O salutarismo de Robert Crawford e as atualizações do autoritarismo sanitário nosso de cada dia. RECIIS. 2019;13(1):122-33. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.1731
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). Da mesma forma que intervenções do setor saúde nos DSS seriam suficientemente capazes de evitar uma doença de base social33. World Health Organization. Global tuberculosis report 2020 [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240013131
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-44. Barreto FM, Silva MBP, Rodrigues BS, Silva Neto AG. Avaliação das condições socioeconômicas e epidemiológicas dos pacientes com tuberculose no brasil entre 2012 a 2016. J Interdiscip Biociênc. 2018 [cited 2020 Dec 10];3(2):35-8. Available from: https://revistas.ufpi.br/index.php/jibi/article/view/7336/4985
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. A partir disso, o enfrentamento às doenças passa a convergir para uma suposta autonomia e empoderamento dos indivíduos em reduzir vulnerabilidades por ações individuais como conscientização do risco da doença e mudanças de comportamentos55. Moraes DR, Castiel LD. O salutarismo de Robert Crawford e as atualizações do autoritarismo sanitário nosso de cada dia. RECIIS. 2019;13(1):122-33. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.1731
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.

A partir do exposto, e em conformidade com o referencial foucaultiano explorado nesta pesquisa, entendemos que determinada forma de definir a Adesão Terapêutica se constitui (ao mesmo tempo em que é constituída) por discursos emergentes de determinado período histórico e político66. Mattioni FC, Nakata PT, Dresch LC, Rollo R, Brochier LSB, Rocha CF. Health promotion practices and Michel Foucault: a scoping review. Am J Health Promot. 2021;35(6):845-52. doi: https://doi.org/10.1177/0890117121989222
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. Nessa perspectiva, os diferentes conhecimentos (saberes) recomendados para a adesão, emergentes a partir de relações de poder de uns sobre os outros, se tornam produtos das condições de possibilidade de nossa época. Uma época em que, apesar de se afirmar que a promoção da saúde deve caminhar em direção a assegurar igualdade de oportunidade para que todas as pessoas tenham acesso a melhores condições de vida e saúde22. Buss PM, Hartz ZMA, Pinto LF, Rocha CMF. Health promotion and quality of life: a historical perspective of the last two 40 years (1980-2020). Ciênc Saúde Colet. 2020;25(12):4723-35. doi: https://doi.org/10.1590/1413-812320202512.15902020
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, são as recomendações a partir da exaltação da autorresponsabilização e do paradigma do comportamento de risco55. Moraes DR, Castiel LD. O salutarismo de Robert Crawford e as atualizações do autoritarismo sanitário nosso de cada dia. RECIIS. 2019;13(1):122-33. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.1731
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que ganham legitimidade hoje.

Nessa pesquisa, as recomendações dos manuais de controle da TB, construídas por saberes específicos, e em relações de poder, foram analisadas como práticas discursivas sob o olhar foucaultiano77. Foucault M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola; 2014.) . O que incorre na compreensão de que práticas de normatização do corpo e da vida, ao enfatizarem condutas prescritivas, advindas de bons hábitos de saúde definidos cientificamente55. Moraes DR, Castiel LD. O salutarismo de Robert Crawford e as atualizações do autoritarismo sanitário nosso de cada dia. RECIIS. 2019;13(1):122-33. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.1731
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-66. Mattioni FC, Nakata PT, Dresch LC, Rollo R, Brochier LSB, Rocha CF. Health promotion practices and Michel Foucault: a scoping review. Am J Health Promot. 2021;35(6):845-52. doi: https://doi.org/10.1177/0890117121989222
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,88. Silveira RP, Rocha CMF. Verdades em (des)construção: uma análise sobre as práticas integrativas e complementares em saúde. Saúde Soc. 2020;29(1):e180906. doi: https://doi.org/10.1590/s0104-12902020180906
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passam a delimitar, constituir e legitimar os “melhores/adequados/desejados” modos pelos quais o enfermeiro deve conduzir o atendimento à TB.

Nessa perspectiva, torna-se relevante pensarmos o quanto determinada forma de “dizer e entender” a Adesão Terapêutica, construída a partir de poderes e saberes locais, em conformidade com os valores da ciência atual e de acordo com prioridades governamentais66. Mattioni FC, Nakata PT, Dresch LC, Rollo R, Brochier LSB, Rocha CF. Health promotion practices and Michel Foucault: a scoping review. Am J Health Promot. 2021;35(6):845-52. doi: https://doi.org/10.1177/0890117121989222
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, parece esbarrar no pouco destaque dado às causas que impedem as pessoas de “colaborar”: contextos sociais desfavoráveis, desigualdades de renda, dentre outras33. World Health Organization. Global tuberculosis report 2020 [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240013131
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-44. Barreto FM, Silva MBP, Rodrigues BS, Silva Neto AG. Avaliação das condições socioeconômicas e epidemiológicas dos pacientes com tuberculose no brasil entre 2012 a 2016. J Interdiscip Biociênc. 2018 [cited 2020 Dec 10];3(2):35-8. Available from: https://revistas.ufpi.br/index.php/jibi/article/view/7336/4985
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. Adesão a partir de um comportamento colaborativo, portanto, pode ser entendida, a partir do referencial foucaultiano, como um discurso possível em nosso atual contexto político e histórico para que a cura da TB passe a depender do quanto o indivíduo é capaz de se planejar; de conquistar autonomia para realizar boas escolhas; de se empoderar frente à prevenção de doenças e de se autorresponsabilizar pelas suas condições de saúde e riscos assumidos. Tal prerrogativa alicerça-se na cultura da valorização da saúde produzida por uma racionalidade neoliberal pela qual a adoção de boas práticas relaciona-se com o quão bem-sucedido é o indivíduo na sociedade.

Convém salientar que, em uma revisão de escopo66. Mattioni FC, Nakata PT, Dresch LC, Rollo R, Brochier LSB, Rocha CF. Health promotion practices and Michel Foucault: a scoping review. Am J Health Promot. 2021;35(6):845-52. doi: https://doi.org/10.1177/0890117121989222
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sobre a ocorrência de práticas de promoção da saúde no cenário nacional e internacional a partir do referencial foucaultiano, foram detectadas oito pesquisas, publicadas no Brasil e em países da Europa e Oceania, que apesar de abordarem como objeto de estudo a adesão terapêutica nenhuma analisou os manuais de controle da TB.

A partir de tal problemática surgiram os seguintes questionamentos: Quais saberes emergem nos Manuais de Controle da Tuberculose? E como são instituídas as relações de poder para a adesão terapêutica? Portanto, este estudo objetivou investigar quais saberes emergem nos Manuais de Controle da Tuberculose e quais as relações de poder são instituídas, entre usuários e profissionais de saúde, para a adesão terapêutica.

METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa documental de abordagem qualitativa inspirada nas metodologias pós-críticas em educação e em saúde99. Meyer DE; Paraíso MA. Metodologias de pesquisa pós-crítica em educação. Belo Horizonte: Mazza Edições; 2012., na perspectiva do referencial teórico-metodológico de Michel Foucault66. Mattioni FC, Nakata PT, Dresch LC, Rollo R, Brochier LSB, Rocha CF. Health promotion practices and Michel Foucault: a scoping review. Am J Health Promot. 2021;35(6):845-52. doi: https://doi.org/10.1177/0890117121989222
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,77. Foucault M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola; 2014.. Os manuais são documentos com recomendações aos profissionais de saúde que visam a auxiliar na tomada de decisão no atendimento de um agravo de saúde. Destaca-se que, apesar da inexistência da obrigatoriedade de que os profissionais devam seguir as recomendações dos Manuais, esses documentos são considerados como importantes ferramentas de assistência e de gestão, na perspectiva da capacitação de recursos humanos na área da saúde11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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. Tais ferramentas, enquanto práticas discursivas66. Mattioni FC, Nakata PT, Dresch LC, Rollo R, Brochier LSB, Rocha CF. Health promotion practices and Michel Foucault: a scoping review. Am J Health Promot. 2021;35(6):845-52. doi: https://doi.org/10.1177/0890117121989222
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-88. Silveira RP, Rocha CMF. Verdades em (des)construção: uma análise sobre as práticas integrativas e complementares em saúde. Saúde Soc. 2020;29(1):e180906. doi: https://doi.org/10.1590/s0104-12902020180906
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, ao serem utilizadas e replicadas, passam a legitimar a forma como os profissionais conduzem, hoje, o atendimento de determinado agravo de saúde.

O corpus de análise constituiu-se por cinco Manuais de Recomendações para o Controle da Tuberculose no Brasil publicados nos anos de 2002, 2008, 2011 e 201911. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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,1010. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual técnico para o controle da tuberculose: cadernos de atenção básica [Internet]. 6. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2002 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_tecnico_controle_tuberculose_cab6.pdf
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-1313. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Tratamento diretamente observado (TDO) da tuberculose na atenção básica: protocolo de enfermagem [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2011 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/tratamento_diretamente_observado_tuberculose.pdf
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. Como critério de inclusão utilizou-se serem manuais direcionados aos profissionais de saúde e que fossem de fácil acesso pela internet. O processo de busca e seleção dos Manuais analisados ocorreu mediante consulta ao Website do Ministério da Saúde (MS). Primeiramente, foram incluídos três Manuais, dois publicados no ano de 20111212. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2011 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/manual_recomenda%C3%A7oes_controle_tuberculose.pdf
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-1313. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Tratamento diretamente observado (TDO) da tuberculose na atenção básica: protocolo de enfermagem [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2011 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/tratamento_diretamente_observado_tuberculose.pdf
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e um publicado em 201911. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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. Esses três documentos foram elaborados pelo Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT) do MS, responsável pela formulação das diretrizes e recomendações de controle da TB em território nacional. Com a intenção de ampliar a busca para Manuais anteriores à criação do PNTC, foram incluídas as publicações a partir de 1993 - ano em que a TB passou a ser reconhecida como um problema de saúde pública pela Organização Mundial da Saúde - até 2019 - ano de realização da pesquisa. Assim, foram incluídos também os dois manuais elaborados pela Secretaria de Atenção à Saúde (SAS/MS), da coletânea “Cadernos de Atenção Básica”: um publicado em 20021010. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual técnico para o controle da tuberculose: cadernos de atenção básica [Internet]. 6. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2002 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_tecnico_controle_tuberculose_cab6.pdf
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e o outro publicado no ano de 20081111. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Vigilância em saúde: dengue, esquistossomose, hanseníase, malária, tracoma e tuberculose [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2008[cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cab_n21_vigilancia_saude_2ed_p1.pdf
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. A extração e obtenção das informações nesses Manuais foram realizadas pela pesquisadora principal no primeiro semestre do ano de 2019. Destacamos que, por vezes, utilizam-se os termos Adesão Terapêutica e controle da TB como sinônimos, pois corrobora-se a ideia de que o fortalecimento da Adesão ao tratamento é a principal estratégia para o controle da doença11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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.

A análise dos dados foi baseada na obra de Michel Foucault77. Foucault M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola; 2014., sendo elaboradas estratégias teórico-metodológicas que envolvem: 1. composição do objeto de análise a partir problematização; 2. formulação de um modo de interrogar o material empírico a fim de obter as informações; 3. organização das análises em dois eixos analíticos pré-estabelecidos: a) os saberes capazes de adesão e b) as relações de poder instituídas. A escolha desse referencial e, em especial desse autor, justifica-se pela inexistência de pesquisas66. Mattioni FC, Nakata PT, Dresch LC, Rollo R, Brochier LSB, Rocha CF. Health promotion practices and Michel Foucault: a scoping review. Am J Health Promot. 2021;35(6):845-52. doi: https://doi.org/10.1177/0890117121989222
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sobre os manuais de controle da TB, a partir do referencial teórico metodológico foucaultiano. Além disso, a originalidade do pensamento de Foucault, não apenas no campo da saúde, possibilita que façamos uso de ferramentas e conceitos únicos que nos permitam compreender criticamente tais temas. Além disso, as estratégias propostas para análise das práticas discursivas77. Foucault M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola; 2014. permitem-nos desconstruir certezas e fazer novas perguntas para produzir outros conhecimentos possíveis em relação à TB.

Destaca-se que a composição do objeto de pesquisa a partir da problematização, bem como a formulação de um modo de interrogar o material empírico como práticas discursivas77. Foucault M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola; 2014.) no referencial foucaultiano, tornou visível a dimensão política da constituição dos saberes e das relações de poder instituídas na determinação do que é tomado como verdadeiro em determinado período histórico66. Mattioni FC, Nakata PT, Dresch LC, Rollo R, Brochier LSB, Rocha CF. Health promotion practices and Michel Foucault: a scoping review. Am J Health Promot. 2021;35(6):845-52. doi: https://doi.org/10.1177/0890117121989222
https://doi.org/10.1177/0890117121989222...
,88. Silveira RP, Rocha CMF. Verdades em (des)construção: uma análise sobre as práticas integrativas e complementares em saúde. Saúde Soc. 2020;29(1):e180906. doi: https://doi.org/10.1590/s0104-12902020180906
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. Para tal, elaborou-se uma questão principal para cada um dos eixos analíticos e questões auxiliares com objetivo de identificar as respostas possíveis (outras verdades). Para o primeiro eixo analítico - a formação dos saberes capazes de Adesão - questionou-se: O que se diz sobre adesão? As perguntas auxiliares foram: Quais os saberes que emergem nos manuais para controlar a TB? Quais saberes estão na ordem do discurso como capazes de controle da TB? Quais acontecimentos emergem como fatos dos discursos para o fortalecimento da Adesão por meio do controle da TB? Tais questionamentos visam identificar fatos ou acontecimentos que emergiam nos manuais como condição indispensável para o controle da doença, a partir de discursos tomados como verdadeiros (validados pela ciência) em nosso momento histórico e político.

As relações de poder exercidas na Adesão (segundo eixo analítico) foram investigadas por meio da questão: de que forma ocorre a Adesão? As perguntas auxiliaram foram: que relações estão envolvidas no controle da TB? Como se dão essas relações/ações de uns sobre os outros?

A organização das estratégias de análise se deu a partir da descrição das informações obtidas de forma articulada aos questionamentos anteriormente mencionados. Esse recurso metodológico oportunizou visibilizar o “mais do discurso”77. Foucault M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola; 2014., abrindo possibilidades para a construção e organização de outras verdades acerca da adesão ao tratamento da TB. Isso porque se entende que as recomendações sobre adesão, nos documentos analisados, emergem de discursos possíveis e originários de nosso atual contexto histórico e político. Contexto no qual o que se diz sobre a saúde nunca se refere tão-somente a dimensões da saúde, pois se relaciona com a produção e legitimação de interesses econômicos, políticos e sociais, que devem ser sustentados e replicados55. Moraes DR, Castiel LD. O salutarismo de Robert Crawford e as atualizações do autoritarismo sanitário nosso de cada dia. RECIIS. 2019;13(1):122-33. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.1731
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,88. Silveira RP, Rocha CMF. Verdades em (des)construção: uma análise sobre as práticas integrativas e complementares em saúde. Saúde Soc. 2020;29(1):e180906. doi: https://doi.org/10.1590/s0104-12902020180906
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.

Quanto aos aspectos éticos, não foi necessário a submissão do estudo à apreciação Comitê de Ética em Pesquisa por se tratar de documentos de domínio público. Contudo, todos os documentos pesquisados foram citados de modo a preservar os direitos autorais dos responsáveis pelas obras.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Sobre os saberes capazes de adesão

No Quadro 1, são apresentados “os saberes capazes de adesão” em dois subeixos. O primeiro refere-se à emergência dos diversos elementos que se constituem como saberes capazes de adesão. O segundo refere-se ao modo como essas recomendações visam à formação de determinada forma de conhecer, classificar e sistematizar as ações de controle da TB.

Quadro 1-
Primeiro eixo analítico: os saberes capazes de adesão

Em relação à emergência dos diferentes saberes capazes de adesão, a capacitação de recursos humanos na área da saúde emerge como única condição necessária ainda não alcançada para o controle da TB conforme o Manual de 20021010. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual técnico para o controle da tuberculose: cadernos de atenção básica [Internet]. 6. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2002 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_tecnico_controle_tuberculose_cab6.pdf
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. Tal afirmação relaciona-se à implementação da Política de Educação Permanente em Saúde no ano de 2004, cujos objetivos enfatizavam a necessidade de reorientação da formação dos profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS)1414. Ferreira L, Barbosa JSA, Esposti CDD, Cruz MM. Permanent health education in primary care: an integrative review of literature. Saúde Debate. 2019;43(120):223-39. doi: https://doi.org/10.1590/0103-1104201912017
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. Apesar de a proposta da Educação Permanente em Saúde configurar-se como estratégia político-pedagógica capaz de melhorar o acesso e a qualidade dos serviços, a sua efetividade no enfrentamento da TB encontra limitações44. Barreto FM, Silva MBP, Rodrigues BS, Silva Neto AG. Avaliação das condições socioeconômicas e epidemiológicas dos pacientes com tuberculose no brasil entre 2012 a 2016. J Interdiscip Biociênc. 2018 [cited 2020 Dec 10];3(2):35-8. Available from: https://revistas.ufpi.br/index.php/jibi/article/view/7336/4985
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. Isso porque delegar o controle desta doença à capacitação de profissionais tende a reduzir a complexidade do desafio de controlar um problema de saúde intimamente relacionado a contextos de pobreza.

Além disso, tratar de questões sanitárias de caráter multidimensional, como a TB, sem considerar reflexões críticas junto a outros campos do conhecimento, reforça a falsa ideia de que a Educação Permanente seja potencialmente capaz de controlar doenças apenas pelas habilidades técnicas dos profissionais na realização de procedimentos fins55. Moraes DR, Castiel LD. O salutarismo de Robert Crawford e as atualizações do autoritarismo sanitário nosso de cada dia. RECIIS. 2019;13(1):122-33. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.1731
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. Além disso, a problematização/aprendizagem a que se propunha a Educação Permanente não encontra espaço dentro dos pressupostos da vertente neoliberal da promoção da saúde, pois mesmo que ela tenha emergido de um contexto de necessidade de fortalecer o modelo da integralidade do cuidado, o “educar em saúde” continua articulando-se a partir da ideia de transmissão de conhecimentos1414. Ferreira L, Barbosa JSA, Esposti CDD, Cruz MM. Permanent health education in primary care: an integrative review of literature. Saúde Debate. 2019;43(120):223-39. doi: https://doi.org/10.1590/0103-1104201912017
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. Isso cria as condições para pensarmos que a ênfase na suficiência da capacitação dos profissionais para o controle da TB configura-se mais como um discurso possível e desejado a partir das prioridades governamentais do início dos anos 200066. Mattioni FC, Nakata PT, Dresch LC, Rollo R, Brochier LSB, Rocha CF. Health promotion practices and Michel Foucault: a scoping review. Am J Health Promot. 2021;35(6):845-52. doi: https://doi.org/10.1177/0890117121989222
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do que uma recomendação pela qual se poderia conquistar grandes benefícios no enfrentamento da doença.

No Manual de 20021010. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual técnico para o controle da tuberculose: cadernos de atenção básica [Internet]. 6. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2002 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_tecnico_controle_tuberculose_cab6.pdf
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, destaca-se a importância da vigilância em saúde de base territorial, o que se relaciona com formas organizadas de execução de ações no âmbito do SUS enquanto política pública. Por essa perspectiva, o controle da TB não dependeria somente do quanto o profissional é capacitado para tratar uma doença, mas sim do quanto ele exerce as suas atividades de acordo com um “modelo de trabalho” específico. Nessa situação, podemos ver o quanto o discurso jurídico-político associa-se ao discurso biomédico (enquanto saber científico) para agregar legitimidade e somar forças no reconhecimento de uma verdade77. Foucault M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola; 2014.. O destaque dado à vigilância em saúde, a partir da busca de casos de TB no território adscrito, relaciona-se com a expansão do modelo Saúde da Família no Brasil no ano de 2008. Apesar de este modelo ser a porta de entrada aos serviços de saúde do SUS, entende-se que a recomendação de atividades extramuros para o controle da TB não foram um processo “natural”, pois se relacionaram com o objetivo de fortalecer a implantação de determinado modelo de saúde no Brasil1010. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual técnico para o controle da tuberculose: cadernos de atenção básica [Internet]. 6. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2002 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_tecnico_controle_tuberculose_cab6.pdf
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.

No manual publicado em 20111212. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2011 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/manual_recomenda%C3%A7oes_controle_tuberculose.pdf
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, emerge a necessidade de desenvolvimento de novos medicamentos para a eliminação da TB. Situar o controle da TB na dependência de “novos” medicamentos é corroborar o discurso medicalizante exaltado por uma lógica simplista de que, para combater uma doença de base social basta tomar os medicamentos. Essa exaltação da medicação acaba por desconsiderar que as situações de vulnerabilidades decorrentes de iniquidades22. Buss PM, Hartz ZMA, Pinto LF, Rocha CMF. Health promotion and quality of life: a historical perspective of the last two 40 years (1980-2020). Ciênc Saúde Colet. 2020;25(12):4723-35. doi: https://doi.org/10.1590/1413-812320202512.15902020
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-44. Barreto FM, Silva MBP, Rodrigues BS, Silva Neto AG. Avaliação das condições socioeconômicas e epidemiológicas dos pacientes com tuberculose no brasil entre 2012 a 2016. J Interdiscip Biociênc. 2018 [cited 2020 Dec 10];3(2):35-8. Available from: https://revistas.ufpi.br/index.php/jibi/article/view/7336/4985
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existentes no contexto de vida das pessoas com TB é que são os obstáculos ao tão preconizado uso ininterrupto da medicação.

Somado a isso, o mesmo manual1212. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2011 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/manual_recomenda%C3%A7oes_controle_tuberculose.pdf
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reforça que os medicamentos já existentes e disponíveis, apesar dos efeitos adversos que se constituem como uma dificuldade na adesão ao tratamento, têm 100% de chance de curar a TB, desde que tomados regularmente. O que ocorre aqui, portanto, não é a necessidade de novos medicamentos, mas sim de articulação de “novas possibilidades” para que as pessoas - com dificuldades de lidar com a doença - estejam providas de recursos para tal1515. Rossetto M, Maffacciolli R, Rocha CMF, Oliveira DLLC, Serrant L. Tuberculosis/HIV/AIDS coinfection in Porto Alegre, RS/Brazil - invisibility and silencing of the most affected groups. Rev Gaúcha Enferm. 2019;40:e20180033. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2019.20180033
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. Como outra possibilidade, podemos citar pesquisa que comprovou o efeito positivo na cura da TB a partir de medicamentos já existentes, por meio de intervenções de proteção social, como programas de transferência de renda realizadas pelo governo1616. Oliosi JGN, Reis-Santos B, Locatelli RL, Sales CMM, Silva Filho WG, Silva KC, et al. Effect the Bolsa Familia Programme on the outcome of tuberculosis treatment: a prospective cohort study. Lancet Glob Health. 2019;7(2):e219-e226. doi: https://doi.org/10.1016/S2214-109X(18)30478-9
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. Por isso, talvez apostar na necessidade de novos medicamentos, senão contraditório, consiste na possibilidade de certos discursos circularem em detrimento de outros66. Mattioni FC, Nakata PT, Dresch LC, Rollo R, Brochier LSB, Rocha CF. Health promotion practices and Michel Foucault: a scoping review. Am J Health Promot. 2021;35(6):845-52. doi: https://doi.org/10.1177/0890117121989222
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,88. Silveira RP, Rocha CMF. Verdades em (des)construção: uma análise sobre as práticas integrativas e complementares em saúde. Saúde Soc. 2020;29(1):e180906. doi: https://doi.org/10.1590/s0104-12902020180906
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.

Ainda no ano de 2011, no Protocolo de Enfermagem1313. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Tratamento diretamente observado (TDO) da tuberculose na atenção básica: protocolo de enfermagem [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2011 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/tratamento_diretamente_observado_tuberculose.pdf
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observamos a emergência de discursos que exaltam o protagonismo do enfermeiro no fortalecimento da Adesão, a partir da necessidade de esse profissional colocar em prática uma forma sistematizada de supervisionar e controlar o tratamento: administrar e observar a tomada da medicação, realizar os registros em carteira de tratamento, dentre outros. Tais recomendações configuram-se como práticas discursivas que buscam homogeneizar as ações da enfermagem a partir de procedimentos e técnicas considerados normais/corretos/adequados. Apesar de essa homogeneização ir ao encontro do fortalecimento da Sistematização da Assistência de Enfermagem como método que organiza e possibilita a implementação do Processo de Enfermagem, é preciso considerar que tais aspectos visam a destacar o exercício da enfermagem a partir da valoração do caráter científico e metodológico dado a esses processos1717. Oliveira MR, Almeida PC, Moreira TMM, Torres RAM. Nursing care systematization: perceptions and knowledge of the Brazilian nursing. Rev Bras Enferm. 2019;72(6):1547-53. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0606
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.

Importante considerar ainda que, por mais que o documento aborde o “protagonismo da enfermagem” no controle da TB1313. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Tratamento diretamente observado (TDO) da tuberculose na atenção básica: protocolo de enfermagem [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2011 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/tratamento_diretamente_observado_tuberculose.pdf
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, a construção/determinação/normalização88. Silveira RP, Rocha CMF. Verdades em (des)construção: uma análise sobre as práticas integrativas e complementares em saúde. Saúde Soc. 2020;29(1):e180906. doi: https://doi.org/10.1590/s0104-12902020180906
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,1818. Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 1991.) das recomendações é organizada por um saber biomédico. Tal saber preconiza um cuidado com ênfase em protocolos como parte de um modelo de gestão gerencialista baseado em delimitar metas de saúde55. Moraes DR, Castiel LD. O salutarismo de Robert Crawford e as atualizações do autoritarismo sanitário nosso de cada dia. RECIIS. 2019;13(1):122-33. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.1731
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. Apesar de tal modelo não se mostrar eficaz nos países afetados pela extrema pobreza e pela alta carga de TB, como o Brasil11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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-22. Buss PM, Hartz ZMA, Pinto LF, Rocha CMF. Health promotion and quality of life: a historical perspective of the last two 40 years (1980-2020). Ciênc Saúde Colet. 2020;25(12):4723-35. doi: https://doi.org/10.1590/1413-812320202512.15902020
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,44. Barreto FM, Silva MBP, Rodrigues BS, Silva Neto AG. Avaliação das condições socioeconômicas e epidemiológicas dos pacientes com tuberculose no brasil entre 2012 a 2016. J Interdiscip Biociênc. 2018 [cited 2020 Dec 10];3(2):35-8. Available from: https://revistas.ufpi.br/index.php/jibi/article/view/7336/4985
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, é ele que continua sendo enfatizado nesses manuais, operacionalizado e replicado pelos profissionais e serviços de saúde. Isto é, a partir do momento em que o discurso clínico do saber biomédico coloca em funcionamento uma determinada racionalidade (normas gerais de saúde) sobre o tratamento da TB, a construção de um Protocolo de Enfermagem1313. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Tratamento diretamente observado (TDO) da tuberculose na atenção básica: protocolo de enfermagem [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2011 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/tratamento_diretamente_observado_tuberculose.pdf
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) vem no sentido de fortalecer as recomendações que, exaltam os aspectos individuais da promoção da saúde, instituem disciplinas sobre o corpo doente e modulam comportamentos desejados pelo modo de viver neoliberal55. Moraes DR, Castiel LD. O salutarismo de Robert Crawford e as atualizações do autoritarismo sanitário nosso de cada dia. RECIIS. 2019;13(1):122-33. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.1731
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No manual publicado em 201911. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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, emerge a necessidade de enfrentamento dos DSS como um fato novo a ser considerado do ponto de vista das ações para a adesão ao tratamento da TB. Emerge como um fato novo porque, apesar de já haver o reconhecimento desta doença como um problema social de longa data, é a primeira vez que isto é formalizado em um manual direcionado aos profissionais de saúde. Esse fato cria as condições para que a potencialidade da intersetorialidade como principal ferramenta para o enfrentamento dos DSS e das condições de pobreza da população esteja na ordem do discurso77. Foucault M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola; 2014., isto é, o momento em que a intersetorialidade emerge como discurso possível e necessário. Ocorre que atribuir à intersetorialidade o potencial de reduzir esses determinantes é pressupor que as estratégias e recursos de cada setor estejam alinhados e operantes com os objetivos dos demais setores22. Buss PM, Hartz ZMA, Pinto LF, Rocha CMF. Health promotion and quality of life: a historical perspective of the last two 40 years (1980-2020). Ciênc Saúde Colet. 2020;25(12):4723-35. doi: https://doi.org/10.1590/1413-812320202512.15902020
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, o que não se operacionaliza na prática. Entende-se que o cuidado que temos que ter aqui é, justamente, o de destacar que a redução das desigualdades envolve mais do que a conjunção de ações de diferentes setores que, infelizmente ainda permanecem isolados1919. Meyer DE, Alvarenga LFC, Andrade SS, Félix J, Damico JGS. Quem aprende o que e com quem? educação permanente em saúde e intersetorialidade como desafios políticos-pedagógicos. Saberes Plur. 2018 [cited 2020 Dec 10];2(3):104-19. Available from: https://seer.ufrgs.br/saberesplurais/article/view/86577/51299
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. Isso porque tal redução implicaria em alterações nas relações de poder e saber1818. Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 1991. que instituem as atuais normas que regem o cuidado em saúde, como o fortalecimento de políticas de proteção social, a partir de uma nova institucionalidade política e social22. Buss PM, Hartz ZMA, Pinto LF, Rocha CMF. Health promotion and quality of life: a historical perspective of the last two 40 years (1980-2020). Ciênc Saúde Colet. 2020;25(12):4723-35. doi: https://doi.org/10.1590/1413-812320202512.15902020
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.

Por fim, destaca-se que em relação à classificação e sistematização de uma determinada forma de saber sobre a TB, todos os manuais analisados destacam a importância da elaboração de critérios que permitissem definir uma forma de denominar os tipos da doença, de classificar o risco do adoecimento, de categorizar os casos quanto à transmissão, dentre outros. É notável nessas recomendações a preocupação em homogeneizar1818. Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 1991.) as práticas daqueles que atuam no controle da TB, a partir da normatização das ações em saúde. Também se observa que tais classificações se inserem numa forma de controle e governo do corpo como objeto de investimento político, por meio da ordenação de uma série de critérios constituídos a partir de saberes validados88. Silveira RP, Rocha CMF. Verdades em (des)construção: uma análise sobre as práticas integrativas e complementares em saúde. Saúde Soc. 2020;29(1):e180906. doi: https://doi.org/10.1590/s0104-12902020180906
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) que visam a identificar, categorizar, diagnosticar, tratar, monitorar e registrar tudo o que é feito ao tempo todo. Essas recomendações, portanto, tomam materialidade como práticas discursivas que constituem não apenas um modo de atuar como enfermeiro no atendimento da TB, mas principalmente o modo “correto/validado cientificamente”11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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,1010. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual técnico para o controle da tuberculose: cadernos de atenção básica [Internet]. 6. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2002 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_tecnico_controle_tuberculose_cab6.pdf
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-1313. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Tratamento diretamente observado (TDO) da tuberculose na atenção básica: protocolo de enfermagem [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2011 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/tratamento_diretamente_observado_tuberculose.pdf
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.

Sobre os poderes instituídos na adesão

Em relação ao segundo eixo analítico (os poderes instituídos na Adesão), no Quadro 2 são apresentadas as relações de poder enquanto ações dos diferentes atores das três instâncias governamentais em saúde - municipal, estadual e federal - e enquanto ação do profissional, que se dão mediante atribuições específicas e determinadas disciplinas sobre o corpo e comportamento da pessoa em tratamento.

Quadro 2-
Segundo eixo analítico: os poderes exercidos na Adesão ao tratamento da TB

No que se refere ao poder enquanto ação das instâncias governamentais instituída para o fortalecimento da adesão ao tratamento da TB, os manuais apresentam atribuições à esfera federal, responsável por elaborar políticas e diretrizes e à esfera estadual e municipal que devem implementar e executar as ações propostas. Tais recomendações passam a organizar uma prática social construída historicamente, sem a necessidade de um Estado centralizador, mas por articulações e relações dos diferentes atores envolvidos. Isso relaciona-se à forma como se organizou, a partir do século XX, uma política de saúde higienista para enfrentamento de doenças que se configuravam (e ainda hoje se configuram) como problemas de saúde pública66. Mattioni FC, Nakata PT, Dresch LC, Rollo R, Brochier LSB, Rocha CF. Health promotion practices and Michel Foucault: a scoping review. Am J Health Promot. 2021;35(6):845-52. doi: https://doi.org/10.1177/0890117121989222
https://doi.org/10.1177/0890117121989222...
. O estabelecimento dessa política de saúde, que se deu pela construção de normas e regras, somente foi possível devido à legitimação de uma medicina clinicamente forte, centrada no diagnóstico e com terapêuticas específicas, de forma a determinar decisões a respeito da saúde das coletividades. Nesse contexto, as próprias recomendações da Estratégia pelo Fim da TB (End TB Strategy)11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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) emergem como um potente discurso de inclusão do enfrentamento dos DSS no plano de controle da TB. No entanto, é preciso considerar que tal estratégia, apesar de contribuir para romper o caráter verticalizado das políticas de saúde, fica condicionada a diferentes políticas e ações governamentais de acordo com o contexto social e histórico vigente.

Apesar de os manuais não apresentarem as recomendações como uma obrigatoriedade e, sim, como ferramentas de qualificação e instrumentalização dos profissionais para o controle da TB, por vezes elas surgem como dever e competência da categoria profissional1212. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2011 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/manual_recomenda%C3%A7oes_controle_tuberculose.pdf
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-1313. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Tratamento diretamente observado (TDO) da tuberculose na atenção básica: protocolo de enfermagem [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2011 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/tratamento_diretamente_observado_tuberculose.pdf
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. Esse fato incute a ideia de que a garantia da segurança da população em relação ao risco de contaminação pela TB dependerá do quão comprometidos sejam os profissionais que atuam no controle desta doença. Tal discurso associa as recomendações dos manuais ao desenvolvimento de uma moralidade sanitária55. Moraes DR, Castiel LD. O salutarismo de Robert Crawford e as atualizações do autoritarismo sanitário nosso de cada dia. RECIIS. 2019;13(1):122-33. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.1731
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, na qual a realização de ações de saúde fora dessas recomendações poderia ser vista como um perigo moral à manutenção da saúde da coletividade. Em relação a isso, tanto no cenário brasileiro44. Barreto FM, Silva MBP, Rodrigues BS, Silva Neto AG. Avaliação das condições socioeconômicas e epidemiológicas dos pacientes com tuberculose no brasil entre 2012 a 2016. J Interdiscip Biociênc. 2018 [cited 2020 Dec 10];3(2):35-8. Available from: https://revistas.ufpi.br/index.php/jibi/article/view/7336/4985
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quanto em outros países com alta carga de TB33. World Health Organization. Global tuberculosis report 2020 [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240013131
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por exemplo, mesmo que as condições associadas ao adoecimento de populações em situações de vulnerabilidades sejam amplamente conhecidas, não se percebem mudanças no paradigma de cuidado às doenças negligenciadas1515. Rossetto M, Maffacciolli R, Rocha CMF, Oliveira DLLC, Serrant L. Tuberculosis/HIV/AIDS coinfection in Porto Alegre, RS/Brazil - invisibility and silencing of the most affected groups. Rev Gaúcha Enferm. 2019;40:e20180033. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2019.20180033
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. Isto é, mesmo diante do atual cenário de iniquidades, o controle da TB continua sendo atribuído mais à potencialidade do modo de trabalho do enfermeiro no enfrentamento dos DSS11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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,1313. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Tratamento diretamente observado (TDO) da tuberculose na atenção básica: protocolo de enfermagem [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2011 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/tratamento_diretamente_observado_tuberculose.pdf
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) do que na implementação de políticas de proteção social1616. Oliosi JGN, Reis-Santos B, Locatelli RL, Sales CMM, Silva Filho WG, Silva KC, et al. Effect the Bolsa Familia Programme on the outcome of tuberculosis treatment: a prospective cohort study. Lancet Glob Health. 2019;7(2):e219-e226. doi: https://doi.org/10.1016/S2214-109X(18)30478-9
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. Agir de acordo com as recomendações dos manuais, portanto, emerge como atitude de responsabilidade e comprometimento daqueles que, governados, subjetivam-se aos discursos55. Moraes DR, Castiel LD. O salutarismo de Robert Crawford e as atualizações do autoritarismo sanitário nosso de cada dia. RECIIS. 2019;13(1):122-33. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.1731
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-66. Mattioni FC, Nakata PT, Dresch LC, Rollo R, Brochier LSB, Rocha CF. Health promotion practices and Michel Foucault: a scoping review. Am J Health Promot. 2021;35(6):845-52. doi: https://doi.org/10.1177/0890117121989222
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,88. Silveira RP, Rocha CMF. Verdades em (des)construção: uma análise sobre as práticas integrativas e complementares em saúde. Saúde Soc. 2020;29(1):e180906. doi: https://doi.org/10.1590/s0104-12902020180906
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) que enfatizam mudanças de estilos de vida e adoção de comportamentos saudáveis. Eis o efeito da moralidade sanitária, se profissionais se mostrassem “capazes/competentes/resolutivos” seriam protagonistas na formação de sujeitos “disciplinados/comportados/colaborativos”.

É preciso considerar também que a autorresponsabilização, a autonomia e o empoderamento do sujeito55. Moraes DR, Castiel LD. O salutarismo de Robert Crawford e as atualizações do autoritarismo sanitário nosso de cada dia. RECIIS. 2019;13(1):122-33. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.1731
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emergem de um contexto neoliberal no qual o aprimoramento de habilidades técnicas e multifuncionalidade dos trabalhadores são hipervalorizados, Tal valoração, se dá a partir da proposta da Educação Permanente em Saúde1414. Ferreira L, Barbosa JSA, Esposti CDD, Cruz MM. Permanent health education in primary care: an integrative review of literature. Saúde Debate. 2019;43(120):223-39. doi: https://doi.org/10.1590/0103-1104201912017
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, mesmo em se tratando de doenças de base social. Isso leva-nos a pensar que a aparente neutralidade dos manuais pode ser compreendida a partir da noção de poder relacional, pelo qual o correto a ser dito e a ser executado inscreve-se em uma ordem discursiva como sendo algo necessário e decisivo, já que as verdades neles contidas são aceitas, reproduzidas e reiteradas sem que alguém precise continuamente repeti-las77. Foucault M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola; 2014..

Quanto às relações de poder e disciplinas instituídas entre profissional e pessoa em tratamento, surge uma extensa lista de recomendações aos profissionais de saúde de como conduzir o controle da TB. Observa-se que, apesar de algumas orientações incidirem sobre o corpo da pessoa em tratamento, como a submissão a exames e realização de procedimentos11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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,1010. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual técnico para o controle da tuberculose: cadernos de atenção básica [Internet]. 6. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2002 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_tecnico_controle_tuberculose_cab6.pdf
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-1313. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Tratamento diretamente observado (TDO) da tuberculose na atenção básica: protocolo de enfermagem [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2011 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/tratamento_diretamente_observado_tuberculose.pdf
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, outras se voltam à modulação dos seus comportamentos. Dentre essas, reforça-se a necessidade de se abster de hábitos nocivos à saúde, como a cessação do tabagismo e a adoção de estilos de vida saudáveis. Nesse contexto, a analítica do poder realizada por Foucault66. Mattioni FC, Nakata PT, Dresch LC, Rollo R, Brochier LSB, Rocha CF. Health promotion practices and Michel Foucault: a scoping review. Am J Health Promot. 2021;35(6):845-52. doi: https://doi.org/10.1177/0890117121989222
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,1818. Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 1991.) permite-nos entender que diversos mecanismos inscrevem o corpo numa tecnologia política, num processo pelo qual certo saber sobre ele constitui-se de acordo com a ciência de seu tempo.

Entretanto, ressalta-se que certas disciplinas “impostas” são por vezes desejadas, pois colocam em operação uma série de técnicas de vigilância e de controle que vão ao encontro da cultura da valoração da saúde. Isto é, a exaltação do desejo de manutenção da vida e da segurança da população, poderoso discurso de promoção da saúde na sua vertente neoliberal, por vezes, mostra-se suficientemente capaz de individualizar a multiplicidade de doentes, a fim de que cada sujeito aceite e se submeta ao tratamento estabelecido55. Moraes DR, Castiel LD. O salutarismo de Robert Crawford e as atualizações do autoritarismo sanitário nosso de cada dia. RECIIS. 2019;13(1):122-33. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.1731
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,88. Silveira RP, Rocha CMF. Verdades em (des)construção: uma análise sobre as práticas integrativas e complementares em saúde. Saúde Soc. 2020;29(1):e180906. doi: https://doi.org/10.1590/s0104-12902020180906
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. A partir dessa compreensão, não seria possível localizar o poder em um sujeito específico, ou em uma instituição, mas sim compreendê-lo por meio de estratégias, cujos efeitos não se dão por dominação, apropriação, mas por disposições, desejos e subjetivações1818. Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 1991..

Cabe destacar que, dentre todas as ações do enfermeiro, a organização, a implantação e a operacionalização do Tratamento Diretamente Observado (TDO) é exaltada como principal estratégia de controle da TB por meio de um discurso ancorado na importância da vigilância epidemiológica11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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,1010. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual técnico para o controle da tuberculose: cadernos de atenção básica [Internet]. 6. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2002 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_tecnico_controle_tuberculose_cab6.pdf
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-1313. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Tratamento diretamente observado (TDO) da tuberculose na atenção básica: protocolo de enfermagem [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2011 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/tratamento_diretamente_observado_tuberculose.pdf
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. O TDO consiste na observação, supervisão e registro da tomada dos medicamentos pelo profissional de saúde, preferencialmente de segunda a sexta na Unidade de Saúde11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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. A supervisão do tratamento neste processo configura-se como um importante mecanismo de observação e controle do corpo, que é vigiado hierarquicamente pelo enfermeiro; que é regulado por uma normatividade (as recomendações do “Protocolo de Enfermagem”); e que é examinado constantemente, por meio da observação da tomada da medicação. A vigilância, a normalização e o exame permitem inscrever disciplinas de controle do corpo, ao mesmo tempo em que colocam em funcionamento uma rede de relações estabelecidas entre discursos, leis e verdades de determinada racionalidade científica instituída55. Moraes DR, Castiel LD. O salutarismo de Robert Crawford e as atualizações do autoritarismo sanitário nosso de cada dia. RECIIS. 2019;13(1):122-33. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.1731
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,77. Foucault M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola; 2014.-88. Silveira RP, Rocha CMF. Verdades em (des)construção: uma análise sobre as práticas integrativas e complementares em saúde. Saúde Soc. 2020;29(1):e180906. doi: https://doi.org/10.1590/s0104-12902020180906
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.

Importante considerar, no entanto, que o TDO como um mecanismo disciplinar também não opera pela sujeição do corpo à obrigatoriedade em obedecer, mas pela produção de subjetividades do indivíduo em tomar um discurso como uma verdade77. Foucault M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola; 2014.-88. Silveira RP, Rocha CMF. Verdades em (des)construção: uma análise sobre as práticas integrativas e complementares em saúde. Saúde Soc. 2020;29(1):e180906. doi: https://doi.org/10.1590/s0104-12902020180906
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. Isto é, quando o doente compartilha da ideia que a obediência a determinadas normas lhe trará como recompensa a sua saúde, não hesita em concordar em fazê-las, mesmo não tendo recursos para tal. E sem recursos para mudar estilo de vida, o sujeito doente deveria ser capaz de acionar (a partir da conscientização e de um melhor “planejamento de vida”) mecanismos para reduzir vulnerabilidades55. Moraes DR, Castiel LD. O salutarismo de Robert Crawford e as atualizações do autoritarismo sanitário nosso de cada dia. RECIIS. 2019;13(1):122-33. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.1731
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. O que vemos, no entanto, dados os números crescentes de casos de TB, é que nem um - disciplinas instituídas - nem outro - desejo individual - tem conseguido mudar práticas e o quadro epidemiológico da TB11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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,33. World Health Organization. Global tuberculosis report 2020 [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [cited 2020 Dec 10]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240013131
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-44. Barreto FM, Silva MBP, Rodrigues BS, Silva Neto AG. Avaliação das condições socioeconômicas e epidemiológicas dos pacientes com tuberculose no brasil entre 2012 a 2016. J Interdiscip Biociênc. 2018 [cited 2020 Dec 10];3(2):35-8. Available from: https://revistas.ufpi.br/index.php/jibi/article/view/7336/4985
https://revistas.ufpi.br/index.php/jibi/...
.

Por fim, cabe destacar que a potencialidade do enfermeiro1313. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Tratamento diretamente observado (TDO) da tuberculose na atenção básica: protocolo de enfermagem [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde ; 2011 [cited 2020 Dec 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/tratamento_diretamente_observado_tuberculose.pdf
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como acionador das disciplinas e dos comportamentos adequados desejados88. Silveira RP, Rocha CMF. Verdades em (des)construção: uma análise sobre as práticas integrativas e complementares em saúde. Saúde Soc. 2020;29(1):e180906. doi: https://doi.org/10.1590/s0104-12902020180906
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) está relacionada ao papel historicamente construído do enfermeiro como educador em saúde1414. Ferreira L, Barbosa JSA, Esposti CDD, Cruz MM. Permanent health education in primary care: an integrative review of literature. Saúde Debate. 2019;43(120):223-39. doi: https://doi.org/10.1590/0103-1104201912017
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,1919. Meyer DE, Alvarenga LFC, Andrade SS, Félix J, Damico JGS. Quem aprende o que e com quem? educação permanente em saúde e intersetorialidade como desafios políticos-pedagógicos. Saberes Plur. 2018 [cited 2020 Dec 10];2(3):104-19. Available from: https://seer.ufrgs.br/saberesplurais/article/view/86577/51299
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). Isto é, tenciona-se considerar neste ponto que o próprio papel de educador em saúde, tão presente na enfermagem, não é algo a priori ou natural da profissão, mas é igualmente produzido por discursos que o inscrevem a partir da conscientização do indivíduo quanto ao risco do adoecimento55. Moraes DR, Castiel LD. O salutarismo de Robert Crawford e as atualizações do autoritarismo sanitário nosso de cada dia. RECIIS. 2019;13(1):122-33. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.1731
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,2020. Waring J, Latif A, Boyd M, Barber N, Elliott R. Pastoral power in the community pharmacy: a Foucauldian analysis of services to promote patient adherence to new medicine use. Soc Sci Med. 2016;148:123-30. doi: https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2015.11.049
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. Isso torna visível o fato de que certas condutas profissionais possam estar a serviço de um determinado fim, “guiadas” por diferentes crenças, constituídas por diversos saberes e interesses específicos da racionalidade neoliberal de nosso tempo presente.

A atuação dos profissionais de saúde que, mais imediatamente, conduzem a forma como as pessoas enfrentam a TB, em que se destaca a enfermagem, pode ser um importante aspecto a ser explorado em pesquisas e debates futuros. Especialmente, tais pesquisas poderiam explorar as condições de possibilidade de outras verdades acerca da adesão terapêutica, de forma a tornar visíveis os saberes e as relações de poder que poderiam acionar mecanismos de controle da doença mais condizentes com o que de fato se coloca como urgente no controle da TB. Como limitação do estudo, destaca-se a não inclusão de documentos oficiais editados por secretarias de saúde dos estados e municípios brasileiros, o que poderia ampliar as análises realizadas aqui apresentadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa identificou elementos que se constituíram como saberes capazes de fortalecer a adesão ao tratamento da TB emergentes nos manuais de recomendação do controle da doença no Brasil: capacitação de recursos humanos; ações de vigilância em saúde; medicalização; e multifuncionalidade dos enfermeiros no enfrentamento dos determinantes sociais da TB. Também foi possível identificar que as recomendações dos Manuais constituem determinada prática social, a partir das relações de poder que se instituem por articulação entre diferentes instâncias governamentais e entre os profissionais de saúde e a pessoa em tratamento. As atribuições e deveres de tais atores institucionais buscam normalizar/conduzir/convergir as ações de adesão ao tratamento da TB à atual racionalidade neoliberal da promoção da saúde: autorresponsabilização, autonomia e empoderamento do sujeito.

Sendo assim, destaca-se que a problematização das recomendações dos manuais de controle da TB, vigentes no Brasil em diferentes momentos, tencionou desconstruir verdades que possam ser vistas como um conhecimento universal, fixo e seguro. O que está em jogo, portanto, não é apenas o controle da TB, por meio da habilidade técnica dos profissionais envolvidos, mas sim a valorização dada à cultura da saúde a partir da exaltação dos preceitos neoliberais da promoção da saúde que enfatizam a autorresponsabilização individual. Destaca-se a importância de reforçar que, mais do que buscar soluções à luz do saber científico, esta pesquisa tornou visíveis outras verdades acerca de problemas urgentes de nosso tempo atual.

Por fim, ressalta-se e reitera-se que os manuais aqui analisados - assim como outros documentos produzidos no âmbito das políticas públicas governamentais - são documentos datados - publicados e divulgados em um determinado espaço e tempo. Por isso, as análises produzidas sobre eles, em particular a realizada nesta pesquisa, não têm a intenção de se constituírem enquanto verdade para todo o sempre, pois tais documentos foram construídos de acordo com as orientações técnicas vigentes. Espera-se que as questões aqui abordadas sejam (sobretudo) férteis e úteis à produção de outras análises, com vistas à revisão ou ao fortalecimento do que aqui foi postulado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2021
  • Aceito
    10 Ago 2021
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