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Atenção às mulheres em situação de violência: construção de modelo de educação permanente em saúde

RESUMO

Objetivo:

Propor um Modelo de Educação Permanente em Saúde com estratégias vinculadas ao referencial das Cinco Disciplinas para o desenvolvimento de competências dos profissionais que atuam na atenção direta às mulheres em situação de violência.

Método:

Pesquisa qualitativa realizada pela técnica de grupo focal, com 16 profissionais que integram uma rede intersetorial em Curitiba-PR, de agosto a outubro de 2019. Dados analisados por análise de conteúdo na modalidade temática, à luz do referencial teórico das Cinco Disciplinas: domínio pessoal; modelo mental; visão compartilhada; aprendizagem em equipe; e, pensamento sistêmico.

Resultados:

As Cinco Disciplinas foram evidenciadas nas categorias, bem como estratégias a serem utilizadas para desenvolvimento de competências. Utilizou-se uma representação diagramática a ser percorrida durante processo de aprendizagem.

Conclusão:

As estratégias sugeridas pelos profissionais que atuam na atenção às mulheres em situação de violência apoiaram a proposição de um Modelo de Educação Permanente em Saúde baseado no referencial teórico adotado.

Palavras-chave:
Sistema de aprendizagem em saúde; Educação baseada em competências; Educação continuada; Educação interprofissional; Violência contra a mulher

ABSTRACT

Objective:

To propose a Permanent Health Education Model with strategies linked to the Five Disciplines framework for the development of competencies of professionals who work in direct care for women in situations of violence.

Method:

A qualitative research carried out by the focus group technique, with professionals who are part of an intersectoral network in Curitiba-PR, from August to October 2019. Data analyzed by content analysis in the thematic modality, in the light of the theoretical framework of the Five Disciplines: personal mastery; mental model; shared vision; team learning and systems thinking.

Results:

The Five Disciplines were evidenced in the categories, as well as strategies to be used for competence development. A diagrammatic representation was used to be covered during the learning process.

Conclusion:

The strategies suggested by professionals who work in the care for women in situations of violence supported the proposition of a Permanent Health Education Model based on the adopted theoretical framework.

Keywords:
Learning health system; Competency-based education; Education, continuing; Interprofessional education; Violence against women

RESUMEN

Objetivo:

Proponer un Modelo Permanente de Educación en Salud para el desarrollo de competencias de los profesionales que trabajan en la atención directa a mujeres en situación de violencia.

Método:

Investigación cualitativa realizada por la técnica de grupo focal, con profesionales que forman parte de una red intersectorial en Curitiba-PR, de agosto a octubre de 2019. Datos analizados por análisis de contenido en la modalidad temática, a la luz del marco teórico de las Cinco Disciplinas: dominio personal; modelo mental; visión compartida; aprendizaje en equipo y pensamiento sistémico.

Resultados:

Las Cinco Disciplinas fueron evidenciadas en las categorías, así como las estrategias a ser utilizadas en el desarrollo de competencias. Una representación diagramática fue utilizada para ser cubierta durante el proceso de aprendizaje.

Conclusión:

Las estrategias sugeridas por los profesionales que actúan en el cuidado de la mujer en situaciones de violencia sustentaron la proposición de un Modelo de Educación Permanente en Salud a partir del referencial teórico adoptado.

Palabras clave:
Aprendizaje del sistema de salud; Educación basada en competencias; Educación continua; Educación interprofesional; Violencia contra la mujer

INTRODUÇÃO

Violência de gênero é uma temática abordada mundialmente, por ser considerada um fenômeno presente em diversos lugares e classes sociais, atendido em diferentes níveis de atenção na saúde. Entre os tipos de violência, tem-se a violência contra mulheres, pautada em diversas relações sociais tais como sexo/gênero e construída por modelos em que a violência é reproduzida pela sobreposição do homem à mulher11. Barroso MF. Violência estrutural contra mulheres em Belo Monte: o que os dados oficiais (não) revelam. Em Pauta. 2019;(17):140-54. doi: https://doi.org/10.12957/rep.2019.42509
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Em alguns países, a violência contra mulheres cresce de forma consecutiva, a exemplo de Singapura e Chipre, com aumento constatado em mais de 30% nas chamadas telefônicas para pedidos de ajuda. No Brasil, o crescimento foi de 30,7% de mortes em mulheres entre os anos de 2007 a 2017, em relação aos anos anteriores, divulgado nas estatísticas do Atlas da Violência22. Fórum de Segurança Pública; Instituto Datafolha. Visível e invisível: vitimização de mulheres no Brasil - 2ª edição [Internet]. 2019 [cited 2022 Mar 3]. Available from: https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/proc-publicacoes/Incografico%20-vitimizacao-de-mulheres-no-brasil-2deg-edicao-1
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-33. Mlambo-Ngcuka P. Violência contra mulheres e meninas é pandemia das sombras [Internet]. Brasília: Nações Unidas; 2020 [cited 2022 Mar 3]. Available from: https://brasil.un.org/pt-br/85477-artigo-violencia-contra-mulheres-e-meninas-e-pandemia-das-sombras#:~:text=Vemos%20uma%20pandemia%20crescente%20nas,mundo%20est%C3%A3o%20relatando%20pedidos%20crescentes
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Para o enfrentamento da violência contra mulheres algumas iniciativas foram tomadas no País, entre elas a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) em 2004 e a Lei Maria da Penha (LMP) em 2006, com destaque à organização de redes interligadas, juntamente com a articulação das ações realizadas entre os serviços que as constituem44. Aguiar JM, D’Oliveira AFPL, Schraiber LB. Mudanças históricas na rede intersetorial de serviços voltados à violência contra a mulher - São Paulo, Brasil. Interface. 2020;24:e190486. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.190486
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. A organização de uma rede intersetorial não pode ser relacionada a uma trama em que as ações se articulam apenas em alguns aspectos, mas ser provedora de uma atenção em comum, na qual os profissionais reconhecem a existência de ações dos outros serviços e desenvolvem de forma efetiva a comunicação e a articulação, para garantia dos direitos e autonomia dessas mulheres44. Aguiar JM, D’Oliveira AFPL, Schraiber LB. Mudanças históricas na rede intersetorial de serviços voltados à violência contra a mulher - São Paulo, Brasil. Interface. 2020;24:e190486. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.190486
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-55. Mendonça CS, Machado DF, Almeida MAS, Castanheira ERL. Violence and primary health care in Brazil: an integrative literature review. Ciênc Saúde Coletiva. 2020;25(6):2247-57. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020256.19332018
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A organização em rede deve buscar ações que promovam a atenção integral às mulheres em situação de violência e a identificação de suas peculiaridades. Deste modo, e para que ela aconteça de forma multidimensional, são necessárias a formação e a interligação dos serviços, e igualmente evidenciadas suas lacunas que possam comprometer essa atenção55. Mendonça CS, Machado DF, Almeida MAS, Castanheira ERL. Violence and primary health care in Brazil: an integrative literature review. Ciênc Saúde Coletiva. 2020;25(6):2247-57. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020256.19332018
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A articulação entre os serviços, além de fortalecer e quebrar barreiras na comunicação, gera confiança e segurança pelo compartilhamento de informações entre os profissionais, tendo em vista que o conhecimento sobre o fenômeno violência e os vários fatores que o envolvem não são conhecidos de todos. Consequentemente, o preparo desses profissionais deve ocorrer de maneira a integrar formas de acolher as mulheres e promover o enfrentamento à violência articulado e com resolutividade na atuação diária66. Dheensa S, Halliwell G, Daw J, Jones SK, Feder G. “From taboo to routine”: a qualitative evaluation of a hospital-based advocacy intervention for domestic violence and abuse. BMC Health Serv Res. 2020;20(1):129. doi: https://doi.org/10.1186/s12913-020-4924-1
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. A Educação Permanente em Saúde (EPS) destaca-se como modelo utilizado na qualificação profissional nos diversos níveis de atenção. Porém, evidencia-se que os profissionais apresentam pouco preparo sobre as concepções teóricas e práticas necessárias na atenção às mulheres em situação de violência, o que faz da EPS uma estratégia indispensável a ser inserida na atuação profissional de forma contínua77. Moreira GAR, Freitas KM, Cavalcanti LF, Vieira LJES, Silva RM. Qualificação de profissionais da saúde para a atenção às mulheres em situação de violência sexual. Trab Educ Saúde. 2018;16(3):1039-55. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00156
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A elaboração e estruturação de um modelo de EPS têm como cerne a identificação do problema e a criação de meios planejados para aproximação dos serviços, na perspectiva de promover uma assistência integral e efetiva. A utilização do conceito de EPS enquanto estratégia, refere-se a incorporar o ensino e o aprendizado à vida cotidiana das organizações nas práticas sociais e laborais, bem como suscitar e qualificar potencialidades pessoais no desenvolvimento de competências éticas e humanísticas para que além do conhecimento promova atitudes efetivas perante a população, conforme apontado na Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS)88. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Departamento de Gestão da Educação em Saúde. Política nacional de educação permanente em saúde. Ministério da Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2009 [cited 2021 Mar 22]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_educacao_permanente_saude.pdf
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. Um processo de aprendizagem é realizado com o desenvolvimento de competências em um modelo no qual o profissional é considerado aprendiz e a aprendizagem é compartilhada. A construção de novos conhecimentos, habilidades, experiências e principalmente o conhecimento de si, vinculados a técnicas de aprendizagem organizacional, alinham-se à problemática descrita e podem ser consideradas práticas que modificam o indivíduo ao perceber-se do individual para o coletivo99. Senge PM. A quinta disciplina: arte e prática da organização que aprende. 35. ed. Rio de Janeiro: Best Seller; 2018.. Neste estudo, o termo competência foi utilizado a partir de um agir ligado às funções que integram conhecimento em ação, sendo elas: o saber, aprender, dispor de si, situar-se, posicionar-se e realizar/transformar algo em sua realidade ou avaliar a necessidade de mudança em um dado momento1010. Masciotra D. La compétence: entre le savoir agir et l’agir réel. Perspective de l’énaction. Éthique Publique. 2017;19(1). doi: https://doi.org/10.4000/ethiquepublique.2888
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Dentre estas técnicas, destaca-se a utilização das Cinco Disciplinas: domínio pessoal, modelo mental, visão compartilhada, aprendizagem em equipe e o pensamento sistêmico99. Senge PM. A quinta disciplina: arte e prática da organização que aprende. 35. ed. Rio de Janeiro: Best Seller; 2018.. Tais disciplinas têm como foco organizações caracterizadas como de aprendizagem, e em seus componentes o aprimoramento de suas capacidades, o que permite pensar no futuro de forma a recriá-lo por meio de ações tomadas em conjunto. Destarte, propõem como meta a conscientização da equipe, em um ato que permite questionamentos pessoais e a criação de um ambiente em que outros possam fazer o mesmo99. Senge PM. A quinta disciplina: arte e prática da organização que aprende. 35. ed. Rio de Janeiro: Best Seller; 2018..

Concernente às redes intersetoriais já implantadas e entre elas, as que enfocam o atendimento à mulher em situação de violência, a literatura descreve que os profissionais que delas fazem parte, sentem-se despreparados. Tal fragilidade é justificada pela ausência de abordagens durante as capacitações de temáticas específicas relacionadas aos diversos tipos de violência contra mulheres, como forma de provocar reflexões sobre as dimensões do cuidar e transformação profissional, ainda vistas como frágeis e não contínuas77. Moreira GAR, Freitas KM, Cavalcanti LF, Vieira LJES, Silva RM. Qualificação de profissionais da saúde para a atenção às mulheres em situação de violência sexual. Trab Educ Saúde. 2018;16(3):1039-55. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00156
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A EPS como um modelo de atenção, vincula as necessidades de aprendizado e de formação profissional com as da população, não para ajustar processos, mas na reflexão sobre as necessidades da população, em busca de alternativas sobre a realidade posta e a ser adaptada a cada nível de atenção e especificidade88. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Departamento de Gestão da Educação em Saúde. Política nacional de educação permanente em saúde. Ministério da Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2009 [cited 2021 Mar 22]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_educacao_permanente_saude.pdf
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. Isto posto, a presente pesquisa tem como objetivo propor um Modelo de Educação Permanente em Saúde com estratégias vinculadas ao referencial das Cinco Disciplinas para o desenvolvimento de competências dos profissionais que atuam na atenção direta às mulheres em situação de violência.

MÉTODO

Optou-se por um estudo qualitativo para a elaboração de uma proposta que considerasse percepções, opiniões e os produtos das interpretações construídas, pensadas e vivenciadas pelos participantes. Assim, esta abordagem foi relacionada aos conceitos presentes, ao aprofundamento das ações e relações, em um lado não tão explícito ou visível1111. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec-Abrasco; 2014., e ancorada pelo referencial teórico das Cinco de Disciplinas: domínio pessoal, modelo mental, visão compartilhada, aprendizagem em equipe, e pensamento sistêmico99. Senge PM. A quinta disciplina: arte e prática da organização que aprende. 35. ed. Rio de Janeiro: Best Seller; 2018..

A pesquisa foi realizada no município de Curitiba-PR, nos meses de agosto e outubro de 2019, com profissionais que atuam nos serviços da Rede de Atenção às Mulheres em Situação de Violência de Curitiba (RAMSVC). A RAMSVC foi implantada em 2002, e em sua dinamicidade, tem incorporado a instalação de diversos serviços, como ocorreu em 2016, com a inauguração da Casa da Mulher Brasileira (CMB), espaço destinado a atendimentos às mulheres que sofrem violências e necessitam de apoio social, psicológico e jurídico1212. Presidência da República (BR). Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Programa Mulher Viver sem Violência. Diretrizes gerais e protocolos de atendimento [Internet]. Brasília, DF: Presidência da República; 2016 [cited 2022 Mar 2]. Available from: http://www.mulheres.ba.gov.br/arquivos/File/Publicacoes/CasadaMulherBrasileira_DiretrizesGeraiseProtocolosdeAtendimento.pdf
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Na coleta de dados utilizou-se a técnica de Grupo Focal (GF), por possibilitar aos participantes a exploração e reflexão sobre algum fenômeno social, por meio de formulação de perguntas e busca de respostas em sua realidade de inserção1313. Colomé JS, Backes DS, Ferreira CLL, Pereira ADA, Ilha S, Dias MV. Grupo focal como técnica de coleta e análise de dados: questões teórico-práticas. In: Lacerda MR, Costenaro RGS, organizador. Metodologias da pesquisa para a enfermagem e saúde: da teoria à prática. Porto Alegre: Moriá; 2016. p. 433-50.. Buscou-se na realização do GF, convidar um representante de cada serviço que participa da RAMSVC, para conhecer o querer e o repensar nas discussões, e permitir propostas e sugestões dos(as) participantes, no desenvolvimento de ações a serem implantadas nos processos educativos já existentes.

Neste contexto, e inseridos na Casa da Mulher Brasileira, local escolhido para realização da pesquisa, os profissionais compõem serviços como: Acolhimento, Triagem e apoio psicossocial, Delegacia da Mulher, Patrulha Maria da Penha, Polícia Militar, Ministério Público, Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher e Defensoria Pública. Além disso, o convite foi estendido a outros serviços que compõe a rede, como Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e o Centro de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), Saúde, Educação e para as Organizações não Governamentais (ONGs) que estão vinculadas a ela.

Os critérios de inclusão foram: profissionais das organizações não governamentais que atuam na RAMSVC e profissionais lotados nos serviços que compõem a RAMSVC, independente de sua categoria profissional e nível de formação, com atuação no atendimento direto às mulheres em situação de violência no mínimo há seis meses. E, como critérios de exclusão: não disponibilidade em participar em pelos menos um dos encontros, ser estagiário ou residente em curso de formação profissional ou em afastamento independente do motivo, ou menor de 18 anos.

Realizaram-se dois encontros com intervalo de 45 dias, conduzidos pela pesquisadora principal, que foi auxiliada por duas pesquisadoras para a realização das anotações durante os encontros e apoio nas gravações. Os encontros tiveram duração de 1h30min e foram realizados na CMB, com autorização e agendamento prévio. A CMB foi escolhida por ser um espaço em que já acontecem mensalmente reuniões entre os diversos serviços que compõem a rede intersetorial. No primeiro encontro participaram 16 profissionais e 11 no segundo, identificados (as) como “PR” (participantes da rede).

Inicialmente, proporcionou-se um momento de descontração, com esclarecimento de dúvidas sobre a pesquisa e seus objetivos, no intuito de melhorar o nível de contribuições nas discussões. Após, os participantes eram convidados (as) a sentar nas cadeiras dispostas em U, para que pudessem ter uma visão dos outros (as) participantes, bem como das pesquisadoras. As perguntas foram conduzidas pela pesquisadora principal, que retomava o centro das discussões quando as falas se dispersavam para temas paralelos, sem, no entanto, causar constrangimentos ou desestimular as contribuições, mas no intuito de otimizar o tempo acordado com os participantes.

O primeiro encontro focou nas fragilidades existentes na rede sob o olhar dos participantes. No segundo, as fragilidades apontadas no encontro anterior foram validadas pelos participantes e, a partir daí, as discussões detiveram-se nas sugestões de implementações nos processos educativos e nas formas de potencializá-las.

Após as transcrições das gravações pela pesquisadora principal, a análise dos dados foi realizada por meio da análise de conteúdo, que parte da leitura em um primeiro plano de falas ou depoimentos, para posteriormente seguir a um plano mais profundo e superar o nível do senso comum1111. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec-Abrasco; 2014.. Optou-se por essa técnica, na busca de ultrapassar a comunicação realizada nas entrevistas, a uma profundidade interpretativa em relação ao referencial teórico utilizado.

Entre as modalidades de análise de conteúdo, a escolhida foi a temática, por voltar-se a descobrir os núcleos de sentido que compõem a comunicação. Por conseguinte, a análise temática teve desdobramento em três etapas: pré-análise, exploração do material, tratamento e interpretação dos dados1111. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec-Abrasco; 2014.. A pré-análise, realizada na leitura flutuante do material transcrito, caracterizou-se como etapa em que o referencial teórico das Cinco Disciplinas permitiu a definição das pré-categorias temáticas domínio pessoal, modelo mental, visão compartilhada, aprendizagem em equipe e pensamento sistêmico99. Senge PM. A quinta disciplina: arte e prática da organização que aprende. 35. ed. Rio de Janeiro: Best Seller; 2018.. A categorização temática das falas dos participantes, advindas dos dois encontros, foi alinhada às pré-categorias trazidas pelo referencial teórico. Seguiu-se a esta etapa, a exploração do material, descrita na composição das cinco categorias. Posteriormente, fez-se o tratamento dos resultados obtidos pela etapa de interpretação, que avançou seguindo as proposições e inferências de abordagem qualitativa.

Nesta etapa, para sintetizar as propostas expostas nas outras quatro disciplinas, utilizou-se dos conceitos que regem a quinta disciplina, o pensamento sistêmico, integrando as sugestões dos participantes com as estratégias propostas pelo referencial teórico, resultando na elaboração de um Modelo de Educação Permanente em Saúde (MEPS), subsidiado pelas estratégias sugeridas pelos participantes e mediadas para sua execução, no referencial teórico das Cinco Disciplinas.

As Cinco Disciplinas foram escolhidas porque consideram primeiro o pensamento individual, seguido pela interação e aprendizado coletivo, enfocando a transformação necessária ao processo de aprendizagem. Processo que ocorre quando as pessoas passam a ver como suas ações contribuem para a realidade em que se encontram, percebem suas atitudes e buscam mudanças para favorecer o todo, recriando sua realidade99. Senge PM. A quinta disciplina: arte e prática da organização que aprende. 35. ed. Rio de Janeiro: Best Seller; 2018..

Neste contexto, o domínio pessoal que reflete sobre a realidade virtual é visto como um aliado na organização que aprende, e na qual, o conhecimento das ações executadas e o impacto no(a) outro(a), torna-se a essência ao promover comprometimento, senso de abrangência e responsabilidade sobre o serviço executado. O modelo mental é a disciplina que sinaliza a necessidade de trabalhar a habilidade de reflexão e indagação de forma conjunta. A aprendizagem cooperativa é favorecida quando o indivíduo vai em busca da melhor alternativa em determinada situação e desta forma, amplia seu campo de conhecimento99. Senge PM. A quinta disciplina: arte e prática da organização que aprende. 35. ed. Rio de Janeiro: Best Seller; 2018..

A visão compartilhada desenvolve exposição de ideias, debates, com oportunidades de reconhecimento e reestruturação do que está arraigado nas pessoas. Ela não ignora a visão pessoal ou gera imposição, mas é desenvolvida em um clima favorável à sua estimulação. Na aprendizagem em equipe o “eu” não reflete sua complexidade, o olhar coletivo não pode ser gerenciado por frases em que o profissional age de forma correta, mas o serviço não. Isto propicia ao indivíduo defender as ações praticadas e impedir sua visão dos problemas sistêmicos. O diálogo nesta disciplina é sugerido na promoção dessa aprendizagem99. Senge PM. A quinta disciplina: arte e prática da organização que aprende. 35. ed. Rio de Janeiro: Best Seller; 2018..

A quinta disciplina é definida como a base para as outras, por mediar que o todo extrapole a soma das partes. Deste modo, conecta-se à visão compartilhada porque estimula o compromisso no longo prazo; aos modelos mentais, por permitir abertura em revelar as formas limitadas de olhar o mundo; à aprendizagem em equipe, por desenvolver habilidades na equipe para ver o todo da organização; e ao domínio pessoal, por permitir o aprendizado contínuo na observação das ações praticadas e o impacto no coletivo.

A pesquisa foi realizada em consonância com a Resolução nº 466 de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, submetida e aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e ao Comitê de Ética da Secretaria Municipal de Curitiba, CAAE 476401500000031.

RESULTADOS

As categorias temáticas foram definidas conforme as disciplinas compostas pelo referencial teórico, em conexão com as falas e sugestões nos dois encontros. Os (As) participantes faziam parte de uma rede composta por diversos serviços, que foram representados por profissionais como: enfermeira, delegadas, policiais da guarda municipal, técnicas de enfermagem, psicólogas, assistentes sociais, educadora social, socióloga, professoras, assessora da promotoria de justiça.

Categoria 1 - Domínio pessoal

As falas demonstraram a importância do olhar nas deficiências cotidianas, entre elas, a preocupação de que a experiência diária não é o todo nessa atuação. Bem como, fragilidade no conhecimento sobre as ações dos serviços que compõe a rede e na comunicação.

Porque eles imaginam que nós somos muito capacitados, então no dia a dia da prática a gente aprende muita coisa, mas a gente não sabe tudo […]. (PR3)

[…] nós tínhamos uma informação que a delegacia cita o agressor […] a delegacia não cita, quem vai citar vai ser o Juiz, o oficial. (PR3)

Na verdade, é falta de comunicação. (PR14)

Nos questionamentos quanto à participação nas capacitações em rede, foi identificada a ausência de convite a todos os serviços que a compõe, bem como a participação de todos os profissionais que dela fazem parte, o que gerou sugestões de estratégias nesta potencialização.

Não temos capacitação nessa área, a gente recebe convite de instituições, enfim, não da prefeitura, não recebemos capacitação periódica […] promovemos as capacitações internas, mas de forma organizada não existe. A gente também não vê os profissionais de saúde envolvidos nestas discussões. (PR7)

Eu acho que a gente tem que fazer algumas diferenças, quando você vai planejar a capacitação, por exemplo, o médico é muito difícil de vir […] de que jeito a gente chega nesse profissional, não tem um jeito só de chegar, mas tem equipes de saúde […] tem como você trabalhar caso a caso, discutir casos […] às vezes tem que ter coisa prática […]. (PR1)

Categoria 2 - Modelos mentais

Os profissionais, ao contextualizarem os problemas existentes nos serviços e na atuação de alguns profissionais, destacaram que, mesmo após os processos educativos já realizados, algumas situações permanecem:

E aí a gente enxuga gelo, porque na verdade é o tal dos problemas mal-ditos que a gente acaba falando, vai mudando a nomenclatura, a gente vai falando diferente, mas vai falando a mesma coisa! (PR3)

[…] a questão da própria atuação médica da interdisciplinaridade e que só agora a gente vem galgando, questões que a gente vem trabalhando isso há quanto tempo? […] E essas dificuldades eram as mesmas […] elas não mudaram, é impressionante, a gente tem uma dificuldade impressionante com isso! (PR6)

Outro ponto relevante foi a reflexão sobre a importância da inclusão nos processos educativos, da abordagem teórica em relação à cultura vivenciada por essas mulheres. Igualmente, a historicidade do tema violência, com foco em gerar subsídios na atuação diária, para que os profissionais entendam as necessidades das mulheres, suas limitações e como direcioná-las:

É importante perceber o quanto essa pessoa pode alcançar e ir, porque muitas vezes, os profissionais querem que ela vá além do que elas podem, ou do que elas conseguem, e aí eu acho que acaba sendo uma outra violência querer que a pessoa vá, força! Vá! E ela não dá conta daquilo! (PR18)

Às vezes a pessoa é capaz de ir mais longe, mas ela precisa de mais tempo e as vezes a gente quer fazer os atalhos, porque já sabe onde vai chegar […] então a gente tem que tentar olhar pelos olhos dela, não dá para a gente dar a nossa solução, uma porque a solução pode ser inadequada […]. (PR8)

Destarte, os participantes refletiram também sobre a inclusão de metodologias em que os profissionais exponham como se sentem em sua atuação. Para eles (as), a não percepção de si, dos que atuam junto a estas mulheres, e não reflexão sobre o modelo estrutural presente na sociedade, impacta no atendimento individual e/ou coletivo:

Eu acho que proposta de capacitação tem que mesclar entre estudos de textos e aspectos mais teóricos, mas também a emoção de cada um, porque os profissionais de saúde estão dentro dessa sociedade, eles refletem e são microcosmos dessa sociedade e que muitas vezes não se enxergam dessa forma, então quando vão atender reproduzem coisas da sua própria história […]. (PR1)

Eu sinto um pouco de culpabilização do porquê a mulher permite, porque ela deixa, porque não faz, muito mais de querer julgar a pessoa do que realmente compreender isso como um problema social […]. (PR18)

Categoria 3 - Visão compartilhada

As falas revelaram as percepções sobre os atendimentos realizados por profissionais que estão atuando nos serviços em que não gostariam de estar, bem como a vivência de procedimentos realizados em alguns serviços e que foram positivos:

Exatamente, do próprio profissional, dificuldade enorme […]. (PR6)

Uma coisa que acho que foi legal […] montaram uma lista com quem queria […] foi bem-sucedida, o pessoal gostou e se adaptaram bem com o serviço […] porque daí a pessoa não vem obrigada. (PR2)

[…] Então a gente começou, antes de falar qualquer coisa deu um papelzinho para cada um escrever […] qual era a memória antiga que ela tinha mais agradável na sua infância e qual era a pior […] fui analisar depois […] então foi uma ferramenta interessante porque entraram na capacitação já se perguntando, se percebendo […]. (PR1)

Ao debaterem sobre a notificação, evidenciou-se que os processos de trabalho existentes nos serviços são vivenciados de forma setorial e não intersetorial:

Mas daí é um caso específico […] a gente quando recebe os casos […] relatos de violência doméstica são todos notificados […] nós fazemos a notificação […] a notificação é feita de qualquer forma […] é específico de cada equipamento né, mas a gente não vê essa dificuldade mais! (PR14)

Não sei nos demais locais […] tivemos um aumento expressivo […] sim uma dificuldade técnica grande para que a gente notifique […] nós acabamos não fazendo essa ficha de notificação, então chega subnotificação! (PR6)

Categoria 4 - Aprendizagem em equipe

Quando os questionamentos foram ligados às fragilidades dos serviços, buscaram ressaltar seu serviço, porém, existiram questionamentos sobre a atuação do coletivo na rede.

[…] eu não reclamo da minha […] a gente consegue dialogar muito! (PR16)

Cada um faz o seu, mas não se comunica com a outra! (PR4)

Entretanto, ao falarem sobre implantação de estratégias, foi possível considerar que sentem falta da participação de alguns profissionais nos processos educativos e do impacto das ausências enquanto rede:

[…] a gente não vê o profissional médico nestas reuniões, eles são convidados, não são convidados, ou não participam […] até porque a gente vê bastante enfermeiro! (P7)

[…] a gente está sentindo um distanciamento um pouco da equipe médica, porque acaba sendo voltada mais para a parte de prescrição dos exames e da medicação […] e a gente sempre pede a inserção deles nesse atendimento, então nessa parte a gente está sendo falho! (PR16)

Ao serem questionados(as) sobre a frequência com que discutem multidisciplinarmente os casos, as respostas foram unânimes sobre a não ocorrência, assim como surgiram sugestões acerca da implantação na rede de uma determinação para isso.

Não, não é feito. (PR13)

[…] eu acho que se acontecesse de uma maneira informal essa comunicação entre os órgãos, mas não há periodicidade, não é marcado, isso não é oficial […] se houvesse uma necessidade de cumprir um cronograma ajudaria muito! (PR6)

Destacado também, o interesse na aprendizagem em equipe, incluindo feedbacks da atuação profissional como forma de melhorar a comunicação em rede:

Como as pessoas percebem o atendimento? Então relatar casos é a forma como o profissional vai perceber e seria uma fonte muito rica para abordar falhas e situações de acolhidas […]. (PR7)

Para ver onde a gente acertou, ou a gente errou, o que dá para melhorar, né? […] é isso mesmo que a gente está falando, a falta de comunicação entre as áreas, daí chega lá no final, o juiz não entende […] você vê que em algum lugar aconteceu alguma coisa, mas você não sabe identificar onde foi ou o que fazer! (PR4)

Categoria 5 - A quinta disciplina: o pensamento sistêmico

Esta categoria foi representada no quadro 1 e elaborada com a síntese das falas dos (as) participantes, por ser considerada a de conexão entre as quatro anteriores. Em vista disso, as sugestões foram conectadas às descritas no referencial teórico, o que possibilitou estabelecer as competências requeridas na proposição do Modelo de EPS.

Quadro 1 -
Estratégias de implantação do MEPS no desenvolvimento de competências profissionais aos que atuam na atenção às mulheres em situação de violência. Curitiba, Paraná, Brasil, 2021

No quadro 2 foi apresentado o MEPS, composto em sua estrutura por: pressupostos, teoria, quatro conceitos centrais e um diagrama que direciona sua aplicabilidade.

Quadro 2 -
Apresentação do Modelo de Educação Permanente em Saúde (MEPS). Curitiba, Paraná, Brasil, 2021

Na Figura 1, tem-se como sugestão para a aplicabilidade do MEPS o diagrama representado e designado “O Processo em U”, como parte do referencial teórico já utilizado por organizações que implantaram as Cinco Disciplinas em seus processos de aprendizagem, porém sem evidências na área da saúde. Ele representa as quatro disciplinas na subida e descida da perna do U, e tem em seu centro como forma de potencializá-las, o pensamento sistêmico na transformação do individual para o coletivo.

Figura 1 -
O processo em “U” e as Cinco Disciplinas. Curitiba, Paraná, Brasil, 2021

DISCUSSÃO

Nesta pesquisa, considera-se que o processo de aprendizado é contínuo, pois as pessoas mudam de lugares e serviços, bem como conhecimentos, protocolos e fluxos. Portanto, ao criar uma estratégia que mesmo com a chegada de novos membros ela se mantenha, os novos conhecimentos são apreendidos, o que condiz com a EPS, na qual os conhecimentos não são prontos, mas gerados e as soluções construídas no cotidiano da prática1414. Lemos FM, Silva GGA. Educação permanente em saúde: o estado da arte. Rev Interdisciplin Promoç Saúde. 2018;1(3):207-13. doi: http://doi.org/10.17058/rips.v1i3.12867
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Dentre as sugestões dos (as) participantes, a de implantar meios em que os que atuam na atenção às mulheres em situação de violência possam falar sobre como se sentem, vem ao encontro do descrito sobre a temática competências, em que o indivíduo ao confrontar seus valores em seu meio de inserção, promove reflexão e sentido às suas ações, entendidas como passíveis de mudança e de adaptação frente as situações adversas1515. Faria MGG, Varela AV, Freire IM. Competência em informação para comunidades: empoderamento e protagonismo social. Perspect Ciênc Inf. 2019 [cited 2022 Mar 2];24(1):4-24. Available from: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/112234
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Ao referirem a necessidade de maior conhecimento sobre as ações executadas entre os serviços, remete a um contexto sobre fragmentação das informações, o que prejudica o trabalho no coletivo e não segue o conceito de intersetorialidade como instrumento de promoção à saúde. O trabalho em equipe promove troca de conhecimentos, pois cada profissão tem o seu saber e, ao pensar o cuidado articulado, estes são compartilhados, o que facilita o trabalho em rede1616. Souza AAC, Cintra RB. Ethical conflicts and limitations of medical care for women victims of gender violence. Rev Bioét. 2018;26(1):77-86. doi: https://doi.org/10.1590/1983-80422018261228
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. Deste modo, torna-se um dos desafios para a gestão implantar ações que promovam efetividade no trabalho intersetorial.

O trabalho intersetorial envolve processos que se atualizam frequentemente, tendo em vista a complexidade que envolve a temática violência contra mulheres. Desta forma, o item rotatividade refletido entre os participantes impacta diretamente na atuação diária entre os serviços que fazem parte da rede de atenção. O que gerou a sugestão de que, com a chegada de novos profissionais, estes sejam envolvidos nos processos educativos de forma efetiva com foco nas diretrizes do PMV e da RAMSVC. Tal sugestão é reforçada pelo referencial teórico das Cinco Disciplinas, no qual um processo de aprendizagem não se encerra, mas sempre recomeça99. Senge PM. A quinta disciplina: arte e prática da organização que aprende. 35. ed. Rio de Janeiro: Best Seller; 2018..

Ao citarem a importância da participação dos profissionais nos processos educativos, os (as) participantes sugeriram que os (as) designados (as) para representarem os serviços, ao retornarem aos seus respectivos locais de atuação, promovam ações para o compartilhamento do apreendido para quem não esteve presente. Tal estratégia vai ao encontro da disciplina do domínio pessoal, que objetiva gerar o desenvolvimento das atividades em conexão com outros, além de si, para que as mudanças aconteçam do individual para o coletivo99. Senge PM. A quinta disciplina: arte e prática da organização que aprende. 35. ed. Rio de Janeiro: Best Seller; 2018..

Na formação médica, ainda acompanhada do paradigma que enfatiza a doença e classificado de modelo biomédico, há um desafio em construção para que as diretrizes curriculares desta profissão incluam metodologias que promovam a humanização na atenção1717. Mega MN, Bueno BC, Menegaço EC, Guilhen MP, Pio DAM, Vernasque JRS. Students’ experience with literature in medical education. Rev Bras Educ Med. 2021;45(2):e059. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.2-20200226.ing
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. Esta fragilidade na formação dificulta o diagnóstico da violência com a identificação das necessidades reais destas mulheres, não somente biológicas e nem sempre manifestadas de imediato, acarretando a invisibilidade da violência.

Logo, prioriza-se a vigilância pela equipe de saúde nos atendimentos, tendo em vista que, mesmo nos casos de visível lesão física, a mulher não revela o ocorrido. Desta forma processos educativos que foquem o aprimoramento da equipe na identificação dos casos incluem a discussão multiprofissional incorporada na prática clínica, no intuito de mediar o processo de identificação da mulher em situação de violência1818. Hinsliff-Smith K, McGarry J. Understanding management and support for domestic violence and abuse within emergency departments: a systematic literature review from 2000-2015. J Clin Nurs. 2017;26(23-24):4013-27. doi: https://doi.org/10.1111/jocn.13849
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O conhecimento sobre a população atendida promove a reflexão sobre formas de mudanças nas situações apresentadas. Porém, não basta que o profissional tenha essa ou outras competências se não souber aplicá-las, mas é preciso “saber agir” com pertinência, ir além da execução prática, ter iniciativa e buscar compreender a situação apresentada, antecipando-a1010. Masciotra D. La compétence: entre le savoir agir et l’agir réel. Perspective de l’énaction. Éthique Publique. 2017;19(1). doi: https://doi.org/10.4000/ethiquepublique.2888
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A cultura patriarcal está presente na sociedade, principalmente no fato de que os papéis femininos e masculinos são aceitos como certos, nos quais o papel da mulher está no espaço doméstico e o do homem no espaço público1919. Balbinotti I. A violência contra a mulher como expressão do patriarcado e do machismo. Rev Esmesc. 2018;25(31):239-64. doi: http://doi.org/10.14295/revistadaesmesc.v25i31.p239
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. Conjuntura esta, diretamente ligada aos questionamentos dos (as) participantes ao citarem a importância da inclusão nos processos educativos de temas relacionados ao contexto histórico da violência, para que o olhar profissional não gere culpabilização, mas busque os motivos que não deixam estas mulheres saírem do ciclo de violência em que estão inseridas.

As formações das redes intersetoriais foram vinculadas a estratégias de promoção e integração de profissionais e serviços, com ênfase na melhoria da atenção a essas mulheres44. Aguiar JM, D’Oliveira AFPL, Schraiber LB. Mudanças históricas na rede intersetorial de serviços voltados à violência contra a mulher - São Paulo, Brasil. Interface. 2020;24:e190486. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.190486
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. Porém, elas não geram por si um processo de atendimento com foco em integralidade, e sim, a implantação de processos educativos vinculada à EPS, que conduzam uma transformação profissional. Ao evidenciarem essa fragilidade, os participantes compreendem um caminho a ser trilhado enquanto integrantes de uma rede com ênfase em intersetorialidade, o que demonstra o interesse em promover a visão compartilhada.

Mesmo em países em que as leis são punitivas para profissionais que não realizam a notificação ou cumprimento de protocolos institucionalizados a subnotificação prevalece. Logo, a capacitação aprimora o conhecimento sobre a temática, as formas de identificação da violência, segurança nos locais de trabalho e direcionamentos adequados, que irão subsidiar e favorecer estes (as) profissionais em uma atuação com foco em resolutividade2020. Kerman KT, Betrus P. Violence Against Women in Turkey: A social ecological framework of determinants and prevention strategies. Trauma Violence Abuse. 2020;21(3):510-26. doi: http://doi.org/10.1177/1524838018781104
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. A circunstância citada vai ao encontro desta pesquisa, em que os (as) participantes refletiram sobre o desconhecimento de alguns profissionais durante os atendimentos, o impacto na atuação diária e a importância de implementar os processos existentes.

Eles também apresentaram estratégias para a construção de um processo educativo a partir de suas experiências e conhecimentos, com foco em melhorar o todo enquanto rede intersetorial. Na disciplina da aprendizagem em equipe, tal evento é considerado importante, na busca de uma aprendizagem do individual para o coletivo99. Senge PM. A quinta disciplina: arte e prática da organização que aprende. 35. ed. Rio de Janeiro: Best Seller; 2018. - fato evidenciado nas discussões desenvolvidas sobre potencialidades e fragilidades presentes na rede e na proposição de uma atenção direcionada.

O pensamento sistêmico é considerado como a pedra fundamental entre as outras disciplinas; à visão compartilhada por estimular o compromisso à longo prazo; aos modelos mentais por permitir abertura em revelar as formas limitadas de olhar o mundo; à aprendizagem em equipe por desenvolver habilidades na equipe em ver o todo da organização; e ao domínio pessoal por permitir o aprendizado contínuo, na observação das ações praticadas e o impacto que elas têm no todo99. Senge PM. A quinta disciplina: arte e prática da organização que aprende. 35. ed. Rio de Janeiro: Best Seller; 2018..

Destarte, ao vincular a proposta da aplicabilidade do MEPS utilizando o processo em “U”, esta pesquisa tem a proposição de que a descida da perna do “U”, deve ter como foco, conhecer a realidade de cada serviço ou a interação na atenção às mulheres em situação de violência. Desta forma, considera-se que cada serviço tem uma visão e assim, a descida é composta pela exposição dos modelos mentais existentes e, a partir daí, a sua amplitude. O uso de estratégias com foco em compartilhamento, irá desencadear estas ações, igualmente a utilização da aprendizagem em equipe nas situações vivenciadas enquanto rede, como forma de conhecimento que gere diálogo, discussão e reflexão.

Como provável limitação, cita-se que, apesar de uma representatividade de mais de 80% dos serviços e categorias profissionais representantes da rede intersetorial, não havia a totalidade dos serviços que a compõe. Como potencialidade, tem-se a elaboração do MEPS, alcançada com base nas sugestões dos(as) profissionais que realizam a atenção direta às mulheres em situação de violência. Fato este, que permitiu importantes reflexões por intermédio do conhecimento em suas vivências e das fragilidades que desencadeiam processos não resolutivos.

CONCLUSÃO

As estratégias sugeridas pelos profissionais que atuam na atenção às mulheres em situação de violência promoveram a elaboração de um MEPS que concomitante à utilização do referencial teórico das Cinco Disciplinas, permitiu propor estratégias a serem implantadas nas organizações que aprendem, para desencadear um processo de aprendizagem, com foco no desenvolvimento de competências dos profissionais que atuam nesta rede intersetorial.

Entre estas estratégias, destacou-se como sugestão dos(as) participantes, o conhecimento sobre a cultura pessoal dos profissionais e como se sentem em relação ao atendimento às mulheres em situação de violência. Desta forma, sugere-se aos gestores dos serviços que fazem parte da rede um olhar em busca de conhecer as perspectivas pessoais dos profissionais que nela atuam, em prol da uma atenção com integralidade, caso contrário a ação poderá ser influenciada pelo julgamento da cultura pessoal do profissional e não das necessidades da mulher.

Neste contexto, a EPS foi considerada recurso e ferramenta estratégica que permeia os processos educativos, com foco na qualificação profissional para transformação do local de atuação, em articulação às necessidades da população, por meio de uma atenção às mulheres em situação de violência que resultem em ações efetivas. Para tanto, entre as competências sugeridas, destacam-se: organizar o cuidado; promover cuidado centrado na pessoa; comunicação assertiva; trabalhar de forma intersetorial; trabalhar com colaboração; planejar ações resolutivas; tomada de decisão; conhecimento; habilidade e atitude.

Considera-se que, mesmo não sendo competências específicas dos profissionais que atuam no contexto da atenção às mulheres em situação de violência, elas são prioritárias para a aprendizagem em equipe. Como contribuição deste estudo, o MEPS elaborado com estratégias vinculadas ao fenômeno violência, com temas específicos sobre esta temática, preenche uma lacuna da literatura e evidenciada pelos (as) participantes.

Como inovação, destaca-se a utilização do referencial teórico da arte e prática da organização que aprende, permeadas pelas Cinco Disciplinas que o compõe, como fatores indispensáveis no processo contínuo de aprendizagem. Sugere-se que o MEPS, possa ser implementado não somente na rede pesquisada, mas também por outras redes que possuem serviços vinculados na atenção às mulheres em situação de violência.

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Editado por

Editor associado:

Helena Becker Issi

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2021
  • Aceito
    11 Abr 2022
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