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Experiências e desafios de uma equipe de rua em Portugal com populações vulneráveis: estudo fenomenológico

RESUMO

Objetivo:

Compreender as experiências e desafios dos profissionais de uma equipe de rua de Portugal no cuidado à população vulnerável na perspectiva fenomenológica de Alfred Schutz.

Método:

Abordagem qualitativa à luz do referencial Teórico da Sociologia fenomenológica desenvolvido em uma Equipe de rua localizada na região centro de Portugal a partir de entrevistas fenomenológicas com cinco profissionais nos meses de junho e julho de 2021. Os dados foram interpretados por meio da análise compreensiva conforme a sociologia fenomenológica de Alfred Schutz e de literatura correlata.

Resultados:

Emergiram três categorias: conflitos vivenciados pela equipe de rua; Frustração no cotidiano do cuidar pela equipe de rua; e, Limites na relação social com a população vulnerável.

Conclusão:

A equipe de rua de Portugal enfrenta desafios no cuidado a população vulnerável atendida sendo necessário habilidades da equipe para mediação de conflitos aliada a compreensão das influências das relações, no agir social.

Palavras-chave:
Populações vulneráveis; Pessoal de saúde; Serviços de saúde mental

ABSTRACT

Objective:

To understand the experiences and challenges faced by professionals working on a street team in Portugal in caring for the vulnerable population from the phenomenological perspective of Alfred Schutz.

Method:

Qualitative approach in the light of the theoretical framework of phenomenological Sociology, developed in a street team in the central region of Portugal from phenomenological interviews with five professionals in the months of June and July 2021. The interpretation of the results was analyzed through theoretical conceptions of Alfred Schutz’s phenomenological sociology and related literature.

Results:

Three categories emerged: Conflicts experienced by the street team; Frustration in the daily care provided by the street team; and, Limits in the social relationship with the vulnerable population.

Conclusion:

The street team in Portugal faces challenges in caring for the vulnerable population served,requiring team skills for conflict mediation combined with an understanding of the influences of relationships, in social action.

Keywords:
Vulnerable populations; Health personnel; Mental health services

RESUMEN

Objetivo:

Comprender las experiencias y desafíos de dos profesionales de un equipo de calle en Portugal que no atienden poblaciones vulnerables en la perspectiva fenomenológica de Alfred Schutz.

Método:

Enfoque cualitativo a la luz del marco teórico de la sociología fenomenológica desarrollado en un equipo de calle ubicado en la región central de Portugal a partir de entrevistas fenomenológicas con cinco profesionales durante los meses de junio y julio de 2021. Los datos fueron analizados a través de la sociología fenomenológica por Alfred Schutz y literatura relacionada.

Resultados:

Surgieron tres categorías: conflictos vividos por el equipo de calle; Frustración no diaria de cuidar al equipo de calle; y, Límites a las relaciones sociales con poblaciones vulnerables.

Conclusión:

El equipo de calle en Portugal enfrenta desafíos en la atención de las poblaciones vulnerables atendidas, lo que requiere habilidades de equipo para la mediación de conflictos y las relaciones sociales.

Palabras clave:
Poblaciones vulnerables; Personal de salud; Servicios de salud mental

INTRODUÇÃO

Em Portugal, a partir da década de1990, concomitante à descriminalização do uso de drogas, ocorreu a expansão da rede de serviços públicos para prevenção, tratamento e reinserção de pessoas que fazem abuso de substâncias psicoativas. Além disso, foram criados serviços na área da redução de riscos e minimização de danos, especificamente, as equipes itinerantes de saúde como as Equipes de Rua (ER)11. Instituto da Droga e Toxicodependência. Departamento de Intervenção na Comunidade. Núcleo de Redução de Danos. Guia de apoio para a intervenção em redução de riscos e minimização de danos [Internet]. Lisboa: IDT; 2009 [cited 2022 May 2]. Available from: https://www.sicad.pt/BK/Intervencao/Documents/2014/guia_apoio_intervencao_RRMD.pdf .
https://www.sicad.pt/BK/Intervencao/Docu...
,22. Mendes RO, Pacheco PG, Nunes JPCOV, Crespo PS, Cruz MS. Literature review on the implications of decriminalization for the care of drug users in Portugal and Brazil. Cien Saude Colet. 2019;24(9):3395-406. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018249.27472017.
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As ER tornaram-se o principal meio de aproximação, acompanhamento e encaminhamento de pessoas em situação de vulnerabilidades, entre elas: pessoas em uso abusivo de substâncias psicoativas que se encontram sem apoio familiar, em situação de rua e também profissionais do sexo. Essas equipes, articuladas com demais serviços da rede, oferecerem cuidados de saúde e sociais a essas populações. As ações das equipes incluem fornecer informações, distribuir utensílios e materiais para o uso de drogas seguro como cachimbos de vidro e kits de redução de danos, compostos por seringas com agulhas, água destilada, filtro, ácido cítrico, preservativo masculino, toalhetes embebidos em álcool 70% e carica, que se configura como uma tampa metálica e redonda sem rosca, disponibilizada para diluição da droga. Além disso, as ações também estão relacionadas a demais cuidados subjetivos e encaminhamentos no território conforme as necessidades33. Presidência do Conselho de Ministros (PT). Decreto-Lei no 183 de 21 de junho de 2001. Aprova o regime geral das políticas de prevenção e redução de riscos e minimização de danos individuais e sociais provocados pela toxicodependência. Diário da República. 2001 jun 21 [cited 2022 Apr 15]I-A(142):3594-601. Available from: https://files.dre.pt/1s/2001/06/142a00/35943601.pdf .
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Cerca de metade das pessoas em tratamento em Portugal, que já consumiram substâncias por via injetável na sua vida, partilharam seringas e/ou agulhas e também tiveram relações sexuais desprotegidas, por vezes, com parceiro com infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH) pelo menos uma vez na vida44. Guerreiro C, Calado V. Padrões de consumo e problemas ligados uso de drogas: uma análise regional [Internet]. Portugal: SICAD; 2018 [cited 2022 Apr 12]. Available from: https://www.researchgate.net/publication/340298141_Padroes_de_Consumo_e_Problemas_Ligados_ao_Uso_de_Drogas_Uma_analise_regional .
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. Para isso, Portugal conta com uma política alinhada à proposta da redução de danos com ampliação de acesso a diferentes cuidados, promovendo a reintegração social para pessoas usuárias de drogas55. Fraga P, Carvalho MC, organizadores. Drogas e sociedade: estudos comparados Brasil e Portugal. Rio de Janeiro: Letra Capital; 2019.,66. Boska GA, Seabra PRC, Oliveira MAF, Fernandes IFAL, Claro HG, Sequeira RMR. Consequences of psychoactive substance use: a comparative study of two services in Brazil and Portugal. Rev Esc Enferm USP. 2021;55:e20210138. doi: https://doi.org/10.1590/1980-220X-REEUSP-2021-0138.
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A construção do conhecimento acerca das experiências e possíveis desafios no cuidado à população vulnerável, pode possibilitar às equipes de rua promover estratégias conforme o real contexto. Desse modo, esse estudo contribui para a reflexão sobre o fazer e implementar novas ações de cuidado no sentido de melhorar a relação social entre a ER e a população atendida, bem como, promover melhor qualidade de vida das pessoas dentro das perspectivas subjetivas de cada um no mundo da vida.

Nesse sentido, a Sociologia Fenomenológica fundamenta-se na pessoa que vivencia a experiência, considerando suas expectativas e significando suas ações no mundo social77. Schutz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis, RJ: Vozes; 2012.. A utilização desse referencial teórico se faz relevante, tendo em vista que permite dar voz aos profissionais da ER, participantes da pesquisa. Assim, o presente estudo tem como questão de pesquisa: Quais as experiências e desafios de uma ER de Portugal diante do cuidado a populações vulneráveis? E como objetivo compreender as experiências e desafios dos profissionais de uma ER de Portugal no cuidado à população vulnerável na perspectiva fenomenológica de Alfred Schutz.

MÉTODO

Estudo de abordagem qualitativa procedente do doutoramento sanduíche intitulado “A equipe de rua como ferramenta de cuidado as pessoas em situação de rua”. Pesquisa construída a luz do referencial Teórico da Sociologia fenomenológica de Alfred Schutz. A Sociologia fenomenológica permite a compreensão do significado das ações, das interações e das experiências que o ser humano experimenta no mundo da vida, aliada a percepção sobre suas vivências77. Schutz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis, RJ: Vozes; 2012.. O estudo foi desenvolvido com uma ER de Portugal, localizada na região centro de Portugal que atua na Redução de Riscos e Minimização de Danos junto às pessoas que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas, a pessoas com vínculos familiares inexistentes, profissionais do sexo e pessoas em situação de rua.

A equipe multiprofissional é constituída por seis profissionais, sendo uma enfermeira, dois assistentes sociais, duas animadoras culturais e uma psicóloga. Os critérios de inclusão para esse estudo foram: ser profissional vinculado à ER com no mínimo seis meses de atuação e ter realizado ações junto as pessoas em atendimento com a equipe. Como critérios de exclusão, profissionais que estivessem em licença ou atestado de saúde no período da coleta de dados. Entre os seis profissionais da ER, participaram desta pesquisa cinco profissionais devido uma profissional estar afastada por restrições pandêmicas impostas pelo Coronavirus Disease (COVID-19).

A ambientação e a coleta de dados ocorreram, sequencialmente, nos meses de junho e julho de 2021. A ambientação teve como objetivo a proximidade da pesquisadora com os (as) participantes, a fim de construir um ambiente favorável, principalmente de vínculos para a concretização da pesquisa. Nesse período foi possível acompanhar as atividades realizadas pela equipe e reforçar os objetivos do projeto de pesquisa. A ambientação é um caminho para que a pesquisadora se torne conhecida e familiarizada com os participantes88. Guerrero-Castañeda RF, Menezes TMO, Ojeda-Vargas MG. Characteristics of the phenomenological interview in nursing research. Rev Gaúcha Enferm. 2017:38(2):e67458. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.02.67458.
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A coleta dos dados ocorreu por meio de entrevistas fenomenológicas, as quais oportunizam apreender a maneira como as pessoas manifestam suas experiências vividas em um contexto objetivo de significações na busca pela essência do fenômeno por meio da experiência vivida pelos profissionais de saúde da ER. Nesse sentido, a entrevista não se consistiu na visão da pesquisadora, mas no mundo perceptivo e vivido da pessoa entrevistada99. Paula CC, Padoin SMM, Terra MG, Souza IEO, Cabral IE. Modos de condução da entrevista em pesquisa fenomenológica: relato de experiência. Rev Bras Enferm. 2014;67(3):468-72. doi: https://doi.org/10.5935/0034-7167.20140063.
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Desse modo, as entrevistas foram realizadas pela autora principal, mestra e doutoranda na época, que se encontrava no período de doutoramento Sanduíche em Portugal. A pesquisadora possui experiências em estudos fenomenológicos, especificadamente com a condução de entrevistas fenomenológicas junto a equipes de rua e pessoas em situação de rua.

As entrevistas seguiram um roteiro pré-definido com a caracterização dos participantes do estudo aliada a seguinte questão norteadora “Fale como é para ti cuidar da população atendida pela ER?” As entrevistas foram agendadas previamente, mediante convite a ER no decorrer do período de aproximação. Estas foram realizadas de forma individual em uma sala reservada na sede da ER em Portugal, sendo gravadas por meio de um gravador digital, com tempo de duração em média de 40 minutos.

Após a coleta de dados, os depoimentos foram transcritos na íntegra e validadas com os entrevistados sendo assegurada a veracidade dos dados. Para a análise das informações, foi utilizado caminhos elaborados por pesquisadores da sociologia fenomenológica1010. Schneider JF, Nasi C, Camatta MW, Oliveira GCD, Mello RM, Guimarães AN. The schutzian reference: contributions to the field of nursing and mental health. J Nurs UFPE on line. 2017;11(Suppl 12):5439-47. doi: https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i12a22321p5439-5447-2017.
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, onde foram realizadas leituras e releituras das falas em forma de texto a fim de distinguir nos depoimentos as experiências e os desafios dos profissionais da ER no cuidado às pessoas. Logo, foram identificados trechos por meio de codificação cromática e selecionadas falas referente ao objetivo do estudo proposto. Após a seleção desses dados, identificou-se as unidades de significados as quais foram agrupadas conforme a sua similaridade, o que permitiu construir as categorias concretas do vivido: conflitos vivenciados pela ER; Frustração no cotidiano do cuidar pela ER; e, Limites na relação social com à população vulnerável.

A interpretação dos resultados foi analisada por meio das concepções teóricas da Sociologia fenomenológica de Alfred Schutz e de literatura correlata. Em todas as fases da elaboração desse estudo foram seguidos os princípios éticos, conforme preveem a Resolução Nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde e da Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde/ Ministério da Saúde (CNS/MS) direcionadas às pesquisas com seres humanos.

Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Informado. O projeto foi aceito pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unidade de Investigação em Ciências da Saúde da Escola Superior de Enfermagem sobre o parecer número 775/04-2021 no dia 12 de maio de 2021. Para a construção desse manuscrito, foram seguidos os itens identificados no guia Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ).

RESULTADOS

Situação biográfica

Dos participantes, dois são formados em serviço social, uma em enfermagem, uma é licenciada em animação socioeducativa e uma possui graduação em Ciências da Educação. O tempo de formação dos entrevistados varia de quatro a 21 anos, com tempo de atuação na ER, entre dois e 11 anos. Quatro participantes eram mulheres e um homem, com idades entre 31 e 45 anos.

Conflitos vivenciados pela equipe de rua

Os profissionais da ER trazem desafios no processo de cuidar das pessoas atendidas ao visualizar momentos difíceis na relação social entre eles. Esses momentos são percebidos por meio de características típicas do grupo social das pessoas atendidas, que demonstram a maneira como se colocam frente às situações do dia a dia. A equipe menciona as instabilidades emocionais oriundas do meio social que vivem, as quais são geradoras de conflitos que, por vezes, refletem na relação com a ER. Os conflitos do cotidiano estão relacionados a incapacidades de a população atendida aceitar as regras do serviço, pelo imediatismo em resolver suas demandas e por se apresentarem manipuladores e ameaçadores com os profissionais:

[...] o fato de termos regras aqui isso tem que ser sempre trabalhado porque eles estão sempre a tentar, a não ter paciência e às vezes basta isso para ser gerador de conflito [...]. Para eles disputar um conflito com um euro é o suficiente para dar uma facada, para bater, para espancar, entre eles têm um relacionamento muito conflituoso, relativamente as questões do tráfico e do consumo, dos ambientes e de formas estranhas, as negociatas deles, eles não tem capacidade de digerir tudo isso na vida deles e se refletem em nós [...]. Eles são muito perspicazes, onde ir, onde conseguir as coisas deles, são utentes [usuários] muito manipuladores, muito sedutores, muito de esquemas [...]. São muitos dissimulados, querem o que querem a hora que querem e querem que tu participe, eles não percebem que tu enquanto profissional essa linha que separa que eu não sou teu amigo. Aqui é muito difícil, eles tentam transpor muito isso por ser um trabalho muito informal, muito próximo, de situações de vida muito íntima (P2).

[...] os utentes [usuários], às vezes de rua, acham que podem vencer as pessoas pelo medo basta chegar e dizer eu quero isso, mas eu faço e aconteço e não tenho medo, sabe, eles puxam muito para esses tipos de galões [conversas] sabe porque eu sou mau, sou cigano [...](P3).

Os profissionais mencionam desafios importantes relacionados a necessidade de os profissionais da ER conseguirem envolver a população atendida para a mudança de comportamento a qual exige uma aproximação e também aceitação do profissional pelas pessoas acompanhadas. Ainda, relatam que é fundamental a ER possuir habilidades para mediar conflitos do dia a dia que podem surgir devido as instabilidades das pessoas cuidadas no serviço, seja por estar sobre efeito do uso de substâncias psicoativas ou relacionado a suas angústias decorrentes da baixa tolerância a frustração ou as oscilações que ocorrem em sua vida de forma muito intensa:

[...] é uma população muito difícil de trabalhar, muito difícil de moldar muito difícil de reeducar, no sentido da mudança do comportamento, temos que captar muito bem atenção deles para conseguir com que eles também nos aceitem nas suas vidas se assim não for, torna-se um bocadinho mais complicado (P1).

[...] às vezes existem momentos em que as coisas podem complicar em termos de conflitos qualquer coisa que pode surgir as pessoas estarem com estado mental alterado de certa forma pode ser complexo e tem que estar preparado [...]. Às vezes temos as nossas discussões, fazem parte do dia a dia, eles revoltam-se muito, eles vão descarregar em ti, como tu és a referência para qualquer coisa que se passa mal no dia deles, vão descarregar em ti as frustrações que ocorrem com eles [...] (P4).

[...] são pessoas que têm pouca tolerância à frustração, qualquer coisa que tu diz, já é suficiente para causar um dano[...]. Saber gerir essas situações às vezes não é fácil, depois tem a ver também com essas questões dos altos e baixos desses utentes [usuários] que são muito flutuantes nas suas coisas que querem e que não querem, nos recuos e avanços, que tu tens que lidar a toda hora na tua prática profissional (P5).

Os depoimentos da ER revelam desafios no cotidiano do cuidar das pessoas atendidas, em que as dificuldades na relação social, se mostram atreladas, principalmente, às experiências de vida dessas pessoas no espaço da rua e da maneira como, habitualmente, utilizam desses comportamentos como forma de proteção. Os desafios são percebidos devidos a facilidade para desencadear conflitos, nas formas manipuladoras de resolver suas demandas e na baixa tolerância as questões do dia a dia. Aliado a isso, o desafio constante dos profissionais na mediação de conflitos internos e externos percebidos nas pessoas atendidas na ER.

Frustração no cotidiano do cuidar pela equipe de rua

Um dos desafios da ER ao cuidar das pessoas atendidas está relacionado às frustrações mediante as negativas das pessoas. Os profissionais mencionam a dificuldade de lidar com as escolhas das pessoas relacionadas à busca pela droga, impulsionada pelo desejo intenso após período de estabilidade. Nesse sentido, a abstinência é percebida pela ER como um recurso importante e a recaída como algo difícil de trabalhar:

Resistência à frustração é a principal e a que custa mais, tínhamos casos de utentes [usuários] que vão para a comunidade terapêutica estão lá seis meses, um ano e é uma frustração quando o passar de uns dias deles chegarem nós vimos que ele já estão a consumir, isso sim é o mais negativo é o mais pesado nesse trabalho, nós lidamos com essa frustração (P1).

[...] saber lidar com a frustração porque sabemos que muitas vezes andamos a trabalhar com indivíduos durante muito tempo e o indivíduo consegue recompor-se conseguem fazer suas conquistas pessoais e que em alguns minutos [ao usar droga] as conquistas que demoraram tanto ter para conseguir eles conseguem perder tudo em uma semana então é importante saber lidar com a frustração (P3).

Os profissionais da ER se colocam como principal suporte e apoio social às demandas das pessoas acompanhadas pelo serviço trabalham na perspectiva de ofertar todos os recursos disponíveis da rede. Entretanto, percebem que há uma resistência por parte das pessoas atendidas na adesão ao cuidado, gerando frustração na relação com a equipe.

[...] conseguimos encaminhar um utente [usuário], ele está a fazer tudo direitinho, mas daqui a pouco vai um colega já quer ir consumir e ele esquece tudo que tinha para fazer e o que tem agendado para fazer e vai perde-se no caminho [...](P1).

[...] por mais que tu tens as ferramentas para eles usarem tu percebes várias vezes no teu cotidiano que tu tens que sempre estar na base para os levantar porque senão, não vai, se tu tens uma consulta médica terás que andar à procura dele em todo lado para ver se ele não falha [...]. Tu é que tem que agarrar e por dentro da carrinha [carro] e estar lá sentado porque se ele não estiver lá sentado passa a hora e eles já não tem paciência para estar (P2).

O difícil é eles comparecerem para irem as consultas ou para irem fazer um tratamento para ir para irem ao hospital ou em um centro de saúde, isso sim é difícil eles terem esse compromisso para conosco. Agora o nosso compromisso para com eles das estruturas de saúde é sempre impecável nunca por um utente [usuário] ter faltado as 5 consultas seguidas, nunca foi dito não podemos marcar a partir de hoje, os serviços são impecáveis facilitam sempre, eles muitas vezes que não facilitam a nossa, por que não comparecem (P5).

A ER revela expectativas relacionadas ao cuidado oferecido as pessoas. No entanto, mencionam a presença constante de frustrações relacionadas ao tratamento. Nesse sentido os profissionais da ER preferem não criar expectativas na relação social construída com as pessoas que cuidam:

Eu espero sempre uma melhoria de comportamento de estilo de vida, mas nada disso nunca está ao nosso alcance, depende sempre deles, da motivação deles eu tento não criar expectativas, porque depois a frustração pode ser maior [...]. É um dia de cada vez, fazer o possível para tentar pelo utente [usuário], tentando sempre pensar que vamos conseguir o nosso objetivo, mas sem expectativas (P1).

Eu espero que eles modificam em comportamentos que aproveitem a nossa ajuda para tocar a vida deles porque a maioria deles estão a viver na Rua são tóxico dependentes. Eu sinto um pouco de frustração quando isso não acontece, porque eu acabo de perceber que é um ciclo vicioso, parece aquilo que nós fazemos em ajudar não vale nada. Eles não tentam modificar as opções de vida deles para ficar melhor, às vezes até conseguem, mas voltam a recair tem muitos casos que não são de sucesso que já fizeram tratamento e estão agarradas novamente as drogas (P5).

Percebe-se que o desafio da ER está em gerenciar os sentimentos de frustrações relacionados ao comportamento das pessoas. Essas estão relacionadas a incapacidade em se manter abstinentes e a resistência em se comprometer com os acordos junto aos serviços de saúde. Contudo, há expectativas na construção do cuidado, mesmo diante das frustrações vivenciadas pelos profissionais no atendimento às pessoas.

Limites na relação social com à população vulnerável

Ao cuidar, a ER traz em seus depoimentos os desafios diários na construção de afastamentos necessários na relação social. O profissional percebe a importância de separar as relações profissionais e pessoais, no sentido de impor limites as pessoas atendidas referente a sua vida pessoal e também na maneira de cuidar. Os limites relacionados ao cuidado são relatados no sentido de promover uma relação de reciprocidade de perspectivas mediante aos objetivos comuns entre eles:

[...] temos que criar uma barreira entre utente [usuário]no sentido que não pode permitir que ultrapasse limites na relação profissional, como se fosse um amigo, tu podes ter uma boa relação com ele, portanto tem que haver um grau de distanciamento, a pessoa não pode saber de tudo sobre mim [...] não tem a ver com uma hierarquia. Há limites que se tem que colocar no serviço, o utente [usuário] não pode saber sobre mim, minha vida, sobre o que eu faço, nem onde que eu moro, nem sobre meus filhos, meus vizinhos, a minha rede familiar (P2).

[...] eu estabeleci limites com eles, eles também sabem que essa relação tem um intuito e o meu intuito é ajudá-los mas para que eu posso a ajudar eles também tem que ajudar a mim e ajudar a mim ir de encontro ao que eu procuro neles [...]. Ser assertivo, dizer o que realmente interessa naquela situação, porque só assim que as pessoas crescem, fui amadurecendo com os anos e esses limites que eu fui estabelecendo também são frutos da experiência com essas pessoas (P4).

O profissional traz as limitações no seu agir com a população, o qual percebe até onde pode avançar na relação de ajuda sem ser invasivo na vida do outro. A relação construída deve evitar julgamento moral diante das escolhas das pessoas. A ideia da ER é cuidar dentro de uma lógica que aborde questões relacionadas a educação e ao tempo de cada pessoa na compreensão de suas ações.

Há limites e barreiras, o profissional ajuda dentro dos limites que a pessoa permite e quer para sua vida qualquer profissional que trabalha aqui só pode fazer aquilo que a pessoa permitir para sua vida [...]. Eu não mando na vida da pessoa eu lhe dou várias hipóteses que a pessoa tem e instrumentos que pode adotar para se para ajudar a fazer alterações na sua vida agora (P3).

[...] educação para a saúde no sentido da mudança do comportamento do comportamento seja no consumo, na partilha de material, mas também na informação que lhe nos transmitimos, não é dar na cabeça, porque não somos ninguém para dar na cabeça deles, mas sim dar aquilo que eles necessitam. Estamos aqui para dar conselhos sempre de uma forma educativa para que eles tenham uma vida mais digna do que aquela infelizmente de que muitas vezes tem (P1).

Nós enquanto profissionais da ER não podemos julgar dentro daquilo que eles vão fazer, dentro dos consumos [...] (P3).

[...] tens que ter tolerância, não podes fazer julgamentos de valores e aí é que está a dificuldade de trabalhar com essas pessoas [...] Cada pessoa tem o seu tempo, portanto isso depende de muita coisa depende dos imprevistos [...]. Cada pessoa tem a sua meta, tem seus objetivos nós temos que compreender a pessoa acima de tudo, mas não podemos fazer exigências, nem julgamentos, o que interessa é traçar caminhos com essa pessoa para ela modifique sua situação, se motiva e que consiga de fato ter algum ganho, é esse o nosso objetivo (P4).

Nos depoimentos, os profissionais da ER identificam desafios relativos à construção de limites para o cuidado. Apesar das dificuldades, essas limitações são vistas como essenciais na relação social com à população vulnerável, tanto no que tange ao afastamento de questões pessoais quanto dos benefícios do cuidado.

DISCUSSÃO

As experiências do mundo da vida não se dão de forma individual, mas sim permeadas pelas relações sociais, expressas pela intersubjetividade. A tipificação surge das experiências vividas, oriunda das ações, motivações e pelos padrões de comportamento que são construídos pelo estoque de conhecimento de estoque ou de experiência, característico de um grupo, sobre o mundo. O típico vivido ou o típico da ação define se a pessoa é pertencente a um grupo social ao ter características comuns1111. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis, RJ: Vozes ; 2018..

Pessoas que vivenciam um episódio da “vida de rua” tendem a ter comportamentos de enfrentamento específicos relacionados a necessidade de autopreservação, os quais se mantêm internalizadas e auxiliam as pessoas em situação de rua na sobrevivência e no manejo de fatores de estresse do dia a dia. Esses comportamentos podem levar essas pessoas a recorrer de estratégias pessoais em ambientes que se mostrem hostis, ameaçadores e incertos como a rua e/ou abrigo. Essas pessoas tendem apresentar características de evitação como hiper vigilância e distanciamento social, assim como estratégias de enfrentamento orientadas no ato de ocultar suas vulnerabilidades demonstrando a força como comportamentos de sobrevivência1212. Karadzhov D, Yuan Y, Bond L. Coping amidst na assem blage of disadvantage: a qualitative metasynthesis of first-person accounts of managing severe mental illnes while homelles. J Psychiatr Ment Health Nurs. 2020;27(1):4-24. doi: https://doi.org/10.1111/jpm.12524.
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O estigma e o preconceito são geradores de comportamentos de enfrentamento dentro das experiências de vida das pessoas em situação de rua, visto que vivenciam de forma muito intensa essas vivências desestabilizadoras e ameaçadoras. Essas barreiras contribuem para a dificuldades de se relacionar e também de confiar nos profissionais1313. Paul S, Corneau S, Boozary T, Stergiopoulos V. Coping and resilience among ethnoracial individuals experiencing homelessness and mental illness. Int J Soc Psychiatry. 2018;64(2):189-97. doi: https://doi.org/10.1177/0020764017748986.
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Os profissionais da ER deste estudo vivenciam um padrão de comportamento no dia a dia das pessoas que acompanham, expressos pela falta de paciência resultado do imediatismo em suas demandas, baixa tolerância a frustração e instabilidade nas emoções. Essas características comuns estão relacionadas as experiências trazidas no mundo da vida, nesse contexto, seu agir é motivado por acontecimentos do passado, que refletem no seu modo de agir hoje com a ER.

O trabalho de equipes com pessoas em situação de rua pode se caracterizar como um desafio ligado ao relacionamento social, pois está associado ao cuidado com pessoas que possuem inúmeras demandas e necessidades complexas que se mostram de difícil resolutividade, as quais exigem disponibilidade, tempo, paciência e empatia1414. Wirth T, Mette J, Prill J, Harth V, Nienhaus A. Working conditions, mental health and coping of staff in social work with refugees and homeless individuals: a scoping review. Health Soc Care Community. 2019;27(4):e257-e269. doi: https://doi.org/10.1111/hsc.12730.30821875.
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. Devido à complexidade desafiadora do cuidado junto à população vulnerável, exige apoio emocional aos profissionais e suporte orientado por profissionais externos em atividades de formação de equipe1515. Garcia-Jorda D, Fabreau GE, Li QKW, Polachek A, Milaney K McLane P, et al. Being a member of a novel transitional case management team for patients with unstable housing: an ethnographic study. BMC Health Serv Res. 2022;22(1):232. doi: https://doi.org/10.1186/s12913-022-07590-6.
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A partir das experiências de conflito entre a ER e as pessoas atendidas, foi possível perceber os desafios postos no dia a dia da equipe, sendo fundamental a necessidade dos profissionais desenvolverem habilidades de mediação e estratégias de enfrentamento diante das situações imprevisíveis e desafiadoras. Pois a população coloca os profissionais da ER como referência de apoio as suas oscilações na vida, desejos, revoltas, dificuldades, anseios e frustrações diárias. Essas características típicas da população atendida são trazidas pela equipe como desafios na relação social e exige dos profissionais proximidade e aceitação para com as pessoas, especialmente com as pessoas que vivem ou já viveram na rua.

Ao se aproximar de um novo grupo social, a pessoa é vista como um estrangeiro que começará a interpretar esse novo ambiente social por meio de seu pensamento usual que ele trouxe de seu próprio grupo. Como um recém-chegado, se mostra disposto a tomar parte do presente e do futuro dessas pessoas por intermédio do interesse na construção de vínculos em uma experiência vivida e imediata77. Schutz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis, RJ: Vozes; 2012..

A ER se aproxima com o objetivo de construir vínculos, a fim de promover ações de cuidado junto às populações vulneráveis, expressas pelo desejo, apesar de difícil, de reeducar e envolver a população atendida para a mudança. Essa dificuldade pode estar associada à diferença entre os grupos sociais composto pela ER e à pela população acompanhada.

Os membros de um mesmo grupo partilham de uma herança social em comum, que é transmitida por seus ancestrais, professores e autoridades como algo inquestionável que lhes permite interagir com os semelhantes dentro de um grupo existencial em um sistema comum de relevâncias que leva a autotipificação homogênea1111. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis, RJ: Vozes ; 2018.. Quando o profissional da ER adere a um novo grupo, chamados de grupos voluntários, ou seja, o grupo da população acompanhada, ele não partilha de uma herança social, esse sistema não é experienciado pelo profissional como algo pronto e acabado, por isso a dificuldade em envolver o outro no cuidado que é intencionado pelo profissional da ER dentro dos costumes internos do seu grupo social, fato que gera frustrações.

A frustração do profissional de saúde mental está relacionada à cobrança do serviço de saúde, das políticas públicas, da sociedade e de si em conseguir bons resultados a partir de suas ações1616. Salgado RRSP. População em situação de rua: desafios dos profissionais nos serviços de saúde mental [dissertação]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2018. doi: https://doi.org/10.47749/T/UNICAMP.2018.1014485.
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. Um dos maiores desafios da ER é a frustração diante dos comportamentos das pessoas relacionado a falha nos acordos com a equipe caracterizado pela omissão de compromissos que fazem parte de um acompanhamento já planejado ou, ainda, a recaídas ao uso de drogas em algum momento de sua vida, após um período abstinente.

Em vista disso, para minimizar os níveis de frustrações os profissionais buscam não construir grandes expectativas nessa relação social. No entanto, se sentem responsabilizados pelo cuidado e buscam construir metas e alternativas para a solução das questões que envolvem a população atendida na condução de um plano terapêutico ideal dentro dos interesses das pessoas.

A redução de danos se mostra como fundamental nesse processo como uma ferramenta de cuidado que envolve escuta, planejamento, autonomia, acolhimento, participação e responsabilização do usuário por suas atitudes e escolhas na vida e no tratamento condizente com seus interesses1717. Santos JM, Baptista JA, Nasi C, Camatta MW. Accountability and participation: how to overcome the tutelary character in the psychosocial care center for alcohol and drug users? Rev Gaúcha Enferm.2018;39:e20180078. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.20180078.
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. As zonas de relevância são o interesse à mão que motiva todo o pensar, projetar e agir na resolução de problemas por meio do pensamento e na construção das ações a fim de atingir objetivos. O interesse à mão não se configura como algo isolado, ele não é constante e nem homogêneo, ele pode assumir importâncias diferentes ao longo da vida cotidiana, misturados a diversos interesses, suscetível a modificações77. Schutz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis, RJ: Vozes; 2012..

As pessoas acompanhadas pela ER possuem seus próprios interesses à mão estabelecidos referentes a expectativas de mudanças na vida cotidiana. No entanto, esses interesses assumem importâncias diferentes, onde em certos momentos são trazidos em destaque, em outros, deixados em segundo plano por se tornarem menos significativo.

São grandes os desafios enfrentados pela equipe que acompanha populações vulneráveis em manter as pessoas engajadas e motivadas dentro de seus interesses pessoais1515. Garcia-Jorda D, Fabreau GE, Li QKW, Polachek A, Milaney K McLane P, et al. Being a member of a novel transitional case management team for patients with unstable housing: an ethnographic study. BMC Health Serv Res. 2022;22(1):232. doi: https://doi.org/10.1186/s12913-022-07590-6.
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. Na observação social, o observador procura interpretar as motivações relacionadas aos “motivos a fim de” e os motivos por que” do outro ao lembrar ações similares ocorridas para justificar a ação atual77. Schutz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis, RJ: Vozes; 2012..

Nesse intuito, o profissional da ER busca conhecer a reciprocidade de perspectivas das pessoas acompanhadas para a construção do cuidado, onde limita seu agir, ou seja, a intencionalidade de seu cuidado, frente a reciprocidade de uma ação, que poderá ser preenchida ou não. Os agentes sociais no mundo dos contemporâneos estão reciprocamente orientados, e ao vivenciarem diretamente o seu próximo se encontram na pura relação-nós1010. Schneider JF, Nasi C, Camatta MW, Oliveira GCD, Mello RM, Guimarães AN. The schutzian reference: contributions to the field of nursing and mental health. J Nurs UFPE on line. 2017;11(Suppl 12):5439-47. doi: https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i12a22321p5439-5447-2017.
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. “O agente, na relação social no mundo dos contemporâneos, espera um mero ser-reciprocamente-referido no mútuo agir”77. Schutz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis, RJ: Vozes; 2012. no entanto, essa expectativa é unilateral e será percebida pelo agente posteriormente, se ela será ou não preenchida1010. Schneider JF, Nasi C, Camatta MW, Oliveira GCD, Mello RM, Guimarães AN. The schutzian reference: contributions to the field of nursing and mental health. J Nurs UFPE on line. 2017;11(Suppl 12):5439-47. doi: https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i12a22321p5439-5447-2017.
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.

Pesquisa realizada em Porto Alegre, Brasil, analisa as intenções das ações de profissionais de uma equipe de consultório na rua com as expectativas das pessoas em situação de rua e é possível perceber que há reciprocidade de perspectivas na relação social. Essa compreensão é primordial para a construção de um cuidado com sentido, onde os profissionais do consultório na rua e as pessoas atendidas possuem perspectivas semelhantes, o que potencializa e direciona a construção do cuidado1818. Tisott ZL. Relações sociais entre profissionais do consultório na rua e pessoas em situação de rua: um estudo fenomenológico[tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2022..

A população em situação de rua tem um histórico documentado de necessidades de saúde não atendidas e sociais1919. Omerov P, Craftman A, Mattsson E, Klarare A. Homeless persons’ experiences of health- and social care: a systematic integrative review. Health Soc Care Community. 2020;28(1):1-11. doi: https://doi.org/10.1111/hsc.12857.
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que requerem atenção de profissionais com abordagem não julgadora e que se utilizem da empatia e justiça na relação com essa população2020. Zeien J, Hanna J, Puracan J, Yee S, Castro A, Ervin B, et al. Improving health professionals’ and learners’ attitudes towards homeless individuals through street-based outreach.Health Educ J. 2021;80(8):961-73. doi:https://doi.org/10.1177/00178969211037362.
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. A presença das equipes de consultório na rua nos territórios se mostra como uma ferramenta organizada em políticas intersetoriais que visam impactar em condições mais humanas dessa população vulnerável.

Este estudo fornece informações sobre as experiências de profissionais da ER de Portugal frente aos desafios cotidianos no cuidado à população vulnerável. Apesar de conseguir entrevistar apenas cinco dos seis profissionais da ER, a equipe buscou, por meio da entrevista fenomenológica, imergir nas suas experiências cotidianas e trazer, por meio do encontro social com a pesquisadora, a compreensão dos desafios vivenciados nas relações sociais com a população atendida. Assim, destaca-se as contribuições desse estudo a nível de ensino e pesquisa ao realizar aprofundamento da temática sob o olhar dos profissionais de uma ER. Além disso, a contribuição na gestão e assistência para os serviços e profissionais que atendem essas populações ao propor reflexões e compartilhamento de experiências sobre essa temática. Para a enfermagem também se destaca a importância do estudo, já que essa categoria profissional possui papel fundamental nas equipes de rua.

Embora as descobertas sejam congruentes com estudos anteriores e provavelmente relevantes para vários cenários, elas estão limitadas a uma ER que está restrita a contextos particulares e específicos de um único meio social. É relevante salientar que todas as entrevistas referem a experiências e sentimentos oriundas de um determinado momento, em que as respostas podem ter sido influenciadas por situações específicas do dia de cada entrevistado. É necessário pesquisas adicionais a fim de atentar para os desafios de outras equipes de rua inseridas em diferentes contextos. Avançar com demais pesquisas, nesse objetivo, implica em desvelar sobre os sentimentos dos profissionais diante da complexidade do cuidado às populações vulneráveis a fim de contribuir para a equipe e no cuidado as essas pessoas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse estudo permitiu desvelar as experiências e desafios da ER de Portugal ao cuidar de populações vulneráveis e compreendê-las por meio da fenomenologia sociológica de Alfred Schutz.

O padrão de comportamento da população atendida, oriunda das experiências no mundo social, principalmente relacionada à vivência nas ruas, reflete na ER como um importante desafio e exige desempenho de habilidades para mediação de conflitos e compreensão das influências das relações no agir social. O sentimento de frustração e as relações de limites desafiam a ER no sentido de tentar promover melhorias no cuidado às populações vulneráveis.

O estudo vem a contribuir na percepção compreensiva das vivências e desafios enfrentados, logo no agir das equipes de rua perante à população atendida. A compreensão aprofundada desses aspectos é essencial para a sensibilização e proposições de políticas de cuidado a esses grupos populacionais muitas vezes invisibilizado na sociedade. A enfermagem como núcleo que compõem as ER necessita construir um ensino voltado para o cuidado as populações vulneráveis no desenvolvimento de habilidades para atuar em ER. Pois, diante dos desafios diários e da complexidade do cuidado que esse cenário impõe é fundamental dar visibilidade ao trabalho do enfermeiro dentro das ER durante o processo de formação do curso de graduação em enfermagem.

Agradecimento:

A Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) pelo apoio a bolsa de fomento modalidade Doutorado Sanduíche realizado na Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, Coimbra, Portugal.

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Editado por

Editor associado:

Helena Becker Issi

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2022
  • Aceito
    12 Set 2022
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