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Experiências vivenciadas por familiares sobreviventes ao suicídio: abordagem de narrativas biográficas

RESUMO

Objetivo:

Compreender as experiências vivenciadas por familiares sobreviventes ao suicídio e descrever as tipologias de casos biográficos por meio da abordagem de entrevistas e análise de narrativas biográficas.

Método:

Pesquisa qualitativa, de abordagem reconstrutiva de casos biográficos de Rosenthal fundamentada na sociologia fenomenológica de Schutz. Foram realizadas entrevistas narrativas entre novembro/2017 e fevereiro/2018, em uma cidade no sul do Brasil, com onze familiares sobreviventes ao suicídio. A análise seguiu as etapas da reconstrução de caso biográfico de Rosenthal.

Resultados:

Apresenta-se a reconstrução de dois casos biográficos com tipologias distintas: papel materno diante do suicídio e estigmatização social; significação cultural de família como um recurso para o enfrentamento do suicídio.

Conclusão:

Considera-se relevante ouvir esses familiares, pois a compreensão de suas experiências pode subsidiar os profissionais da área na implementação de ações de cuidado.

Palavras-chave:
Família; Suicídio; Narrativa pessoal; Biografia; Saúde mental

ABSTRACT

Objective:

To understand the experiences of family members of people who committed suicide and describe the typologies of the biographical cases through the approach of biographical interviews and analysis.

Method:

Qualitative research, with a reconstructive approach to Rosenthal's biographical cases, based on Schutz's phenomenological sociology. Biographical narrative interviews were conducted between November/2017 and February/2018, in a city in southern Brazil, with eleven family members of people who survived suicide. The analysis followed the phases of Rosenthal's biographical case reconstruction.

Results:

The reconstruction of two biographical cases were presented. The results point to two distinct typologies: maternal role in the face of suicide and social stigmatization; use of the cultural meaning of family as a resource for coping with suicide.

Conclusion:

It is important to listen to these family members, as the understanding of their experiences can support health professionals in the implementation of care actions.

Keywords:
Family; Suicide; Personal narrative; Biography; Mental health

RESUMEN

Objetivo:

Comprender las vivencias de familiares sobrevivientes de suicidio y describir las tipologías de los casos biográficos a través del abordaje de entrevistas y análisis de relatos biográficos.

Método:

Investigación cualitativa, con abordaje reconstructivo de los casos biográficos de Rosenthal, a partir de la sociología fenomenológica de Schutz. Se realizaron entrevistas narrativas biográficas entre noviembre/2017 y febrero/2018, en una ciudad del sur de Brasil, con once familiares sobrevivientes de suicidio. El análisis siguió los pasos de la reconstrucción biográfica del caso de Rosenthal.

Resultados:

Se presenta la reconstrucción de dos casos biográficos con tipologías distintas: rol materno frente al suicidio y la estigmatización social; utilización del significado cultural de familia como recurso para el afrontamiento del suicidio.

Conclusión:

Se considera relevante escuchar a estos familiares, ya que la comprensión de sus experiencias puede ayudar a los profesionales de la salud en la implementación de acciones de cuidado.

Palabras clave:
Familia; Suicidio; Narrativa personal; Biografía; Salud mental

INTRODUÇÃO

O suicídio é caracterizado como um ato intencional em que a pessoa tem ciência de que sua ação poderá levá-la à morte, revelando apenas a ponta de um iceberg do comportamento que pode se manifestar em um continuum que vai desde o desejo de morte, pensamentos suicidas, com ou sem plano elaborado, tentativas até o suicídio efetivado11. Botega NJ . Mortalidade por suicídio, várias razões para prevenir [Internet]. Jornal da Unicamp. 2018 set 24 [cited 2022 Apr 14]. Available from: Available from: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/direitos-humanos/mortalidade-por-suicidio-varias-razoes-para-prevenir
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Milhares de pessoas morrem por suicídio por ano no mundo, representando uma morte a cada 40 segundos. Além disso, esta é uma das principais causas de óbito em pessoas com idade entre 15 a 44 anos, e é a segunda principal causa de morte na faixa etária de 10 a 24 anos, justificando a importância de compreendermos este fenômeno como um problema grave de saúde pública22. World Health Organization. Suicide in the world: global health estimates [Internet]. Geneva: WHO; 2019 [cited 2022 Apr 14].Available from: Available from: https://apps.who.int/iris/handle/10665/326948
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muitas vezes estigmatizado e subnotificado por profissionais da saúde33. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico. Mortalidade por suicídio e notificações de lesões autoprovocadas no Brasil [Internet]. 2021 [cited 2022 Oct 1];52(33):1-10. Available from: Available from: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/edicoes/2021/boletim_epidemiologico_svs_33_final.pdf
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Nesta perspectiva, a equipe de saúde deve estar atenta aos riscos para a tentativa de suicídio, entre eles destacam-se: aspectos sócio-culturais, familiares, de personalidade, conflitos pessoais, transtornos psiquiátricos, comportamento suicida prévio, suicídio familiares ou de pessoas próximas11. Botega NJ . Mortalidade por suicídio, várias razões para prevenir [Internet]. Jornal da Unicamp. 2018 set 24 [cited 2022 Apr 14]. Available from: Available from: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/direitos-humanos/mortalidade-por-suicidio-varias-razoes-para-prevenir
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. Em contrapartida, cabe ressaltar também os fatores de proteção que estão relacionados, como por exemplo, a rede de apoio familiar e social, habilidades sociais, resiliência, crenças culturais e religiosas e propósito de vida22. World Health Organization. Suicide in the world: global health estimates [Internet]. Geneva: WHO; 2019 [cited 2022 Apr 14].Available from: Available from: https://apps.who.int/iris/handle/10665/326948
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Quando uma pessoa comete suicídio, os familiares enlutados experimentam sentimentos de mágoa, negação, choque e raiva, ressentimento, vergonha e culpa. Essas emoções vivenciadas pelos familiares geram sofrimento e dificultam o processo de luto. Se não forem tratadas, podem gerar vulnerabilidade física e psicológica, tornando o risco de ideação suicida alto, sendo necessária a intervenção de profissional de saúde44. Lee E. Experiences of bereaved families by suicide in South Korea: a phenomenological study. Int J Environ Res Public Health. 2022;19(5):2969. doi: https://doi.org/10.3390/ijerph19052969
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Para compreender o processo de luto de pessoas impactadas pelo suicídio independente do grau de parentesco, a literatura científica adota termos como “enlutados” ou mesmo “sobreviventes”, por se tratar de uma morte violenta e repentina em que frequentemente estão presente sentimentos de culpa e autoacusação, demandando grande energia psíquica para a elaboração do luto55. Fukumitsu KO, Kovács MJ . Especificidades sobre processo de luto frente ao suicídio. Psico. 2016;47(1):3-12. doi: https://doi.org/10.15448/1980-8623.2016.1.19651
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. No presente artigo adotou-se a expressão “familiares sobreviventes” por entender que a sobrevivência neste caso, trata-se da busca pela ressignificação da própria vida66. Dantas ESO, Fukumitsu KO . Sobreviventes enlutados por suicídio: cuidados e intervenções. São Paulo: Summus; 2019. Ciênc Saúde Colet. 2022;26(02):765-6. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232021262.37472019
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Os sentimentos que emergem dessa situação traumática são variados e têm intensidades diferentes, no entanto, não é só o fato que traumatiza, mas o processo como um todo e a intensidade das emoções (culpa, choque, autoacusação, raiva, vergonha, angústia, isolamento e rejeição). Nesta perspectiva, compartilhar a experiência de ser um familiar sobrevivente do suicídio e o sentido de viver desses familiares podem ressignificar as sequelas da morte escancarada e interdita, transformando vergonha em permissão, culpa em compaixão, saudade em proximidade, dor em amor e sofrimento em altruísmo55. Fukumitsu KO, Kovács MJ . Especificidades sobre processo de luto frente ao suicídio. Psico. 2016;47(1):3-12. doi: https://doi.org/10.15448/1980-8623.2016.1.19651
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Não é incomum que as pessoas não se sintam à vontade para conversar intimamente sobre a morte por suicídio, isto porque os familiares e pessoas mais próximas, muitas vezes, se calam e se distanciam, tornando a experiência do suicídio um sofrimento silenciado77. Botega NJ. Crise suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed. 2015.. Ouvir as experiências de vida e da perda de um familiar por suicídio, seja individual ou em grupo, é uma estratégia importante para a elaboração do luto por suicídio, onde o pesar e o sofrimento são expressos e validados, possibilitando que os enlutados possam encontrar um lugar de fala e pertencimento88. Scavacini K, Cornejo ER, Cescon LF. Grupo de apoio aos enlutados pelo suicídio: uma experiência de posvenção e suporte social. Rev M. 2019;4(7):201-14.doi: https://doi.org/10.9789/2525-3050.2019.v4i7.201-214
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. Assim, o uso da abordagem de narrativas biográficas pode representar um importante meio para acessar o fenômeno em questão, a partir, não apenas da vida do narrador, como também das conexões entre o indivíduo, família e grupo social.

Para chegar a este nível de análise, a técnica utilizada para a produção de dados foi a entrevista narrativa biográfica e de reconstrução de caso biográfico, que possibilitou adquirir informações referentes ao passado dos entrevistados, seu momento atual e suas expectativas futuras99. Rosenthal G. Interpretive social research: an introduction. Göttingen: GöttingenUniversity Press; 2018.. A entrevista narrativa biográfica, enquanto método de coleta de dados qualitativos, utiliza de uma pergunta inicial que engloba toda a história de vida do entrevistado, deixando-o livre para construir sua fala de modo a trazer aquilo que entende ser relevante. Com isso, a entrevista busca abrir espaço para que o indivíduo faça ligações temáticas que lhe são únicas e que tem a ver com sua trajetória de vida, escolhas e ações que tomou, bem como a perspectiva presente que informa seu olhar sobre o passado. Na abordagem da fenomenologia, trata-se de uma configuração única em que as experiências dos sujeitos emergem no dia-a-dia e em uma situação de entrevista de sistema de relevância1010. Schutz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Vozes. 2012..

Será durante a reconstrução do caso biográfico que os passos de análise buscarão dar conta de sistematicamente separar e reintegrar estas diferentes formas temporais e interpretativas presentes no discurso do entrevistado. O objetivo, com isso, é encontrar as ligações entre o tema sendo pesquisado e outros assuntos e experiências que aparecem na biografia e que podem ser únicas ou comuns entre os casos. A ligação entre a perda de um familiar para o suicídio e experiências de depressão e sofrimento intenso, por exemplo, pode ser um vínculo comum emergente das entrevistas, configurando um tipo de experiência vinculada a ser um familiar sobrevivente. Outras ligações temáticas, por outro lado, podem trazer informações que permitem embasar novas práticas de cuidado não tão evidentes quando restringe-se às pesquisas que seguem lógicas de mensuração por frequência99. Rosenthal G. Interpretive social research: an introduction. Göttingen: GöttingenUniversity Press; 2018..

A teoria do conhecimento fenomenológica de Alfred Schütz1010. Schutz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Vozes. 2012. tem um papel fundamental na construção desta abordagem de pesquisa social interpretativa desenvolvida por Gabriele Rosenthal, justamente porque coloca a interpretação dos indivíduos como centro da análise e única forma possível de acesso à construção social da realidade. O conceito de relevância de Schütz será fundamental neste sentido, porque demarca a adoção de uma necessidade de uma série de práticas para que o pesquisador permita que os conteúdos sejam coletados com respeito àquilo que emerge espontaneamente do interlocutor, rejeitando, portanto, práticas de pesquisa em que o entrevistado é guiado por perguntas estruturadas ou semi-estruturadas, formuladas a priori a partir dos interesses da pesquisa. A pergunta de pesquisa será, de acordo com esta abordagem, pensada e respondida somente ao final de toda a coleta e análise de dados99. Rosenthal G. Interpretive social research: an introduction. Göttingen: GöttingenUniversity Press; 2018..

Nessa perspectiva, emerge a questão norteadora: “Como o suicídio é vivenciado pelos familiares de pessoas que cometeram o ato de tirar a própria vida?” Este estudo objetiva, portanto, compreender as experiências vivenciadas por familiares sobreviventes ao suicídio e descrever tipologias de casos biográficos por meio da abordagem de entrevistas narrativas e análise reconstrutiva de casos biográficos.

MÉTODO

Este artigo trata de um estudo originário da tese de doutorado intitulada “Experiências de familiares de pessoas que cometeram suicídio: abordagem de narrativas biográficas”, o qual adotou o instrumento COREQ1111. Souza VRS, Marziale MHP, Silva GTR, Nascimento PL. Translation and validation into Brazilian Portuguese and assessment of the COREQ checklist. Acta Paul Enferm. 2021;34:eAPE02631. doi: http://doi.org/10.37689/acta-ape/2021ao02631
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para organizar as informações. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com a abordagem reconstrutiva de narrativas biográficas e aporte teórico-filosófico da sociologia fenomenológica de Alfred Schütz1010. Schutz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Vozes. 2012.. A escolha deste referencial deu-se por permitir compreender as múltiplas gêneses e desenvolvimentos do fenômeno vivenciado pelos participantes: as experiências vivenciadas pelos familiares após a perda de um de seus membros por suicídio.

A sociologia fenomenológica de Schütz1010. Schutz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Vozes. 2012. tem grande influência na pesquisa biográfica desenvolvida por Gabriele Rosenthal99. Rosenthal G. Interpretive social research: an introduction. Göttingen: GöttingenUniversity Press; 2018., abordagem utilizada no presente estudo para obtenção e análise dos dados. Esta ligação teórico-metodológica embasa uma série de práticas de pesquisa que permitem que os processos de coleta e análise de dados sejam focados nos sujeitos e em suas interpretações, facilitando que o pesquisador tenha acesso às ligações temáticas e experienciais feitas pelo próprio narrador, e não impostas através de perguntas orientadas pelos conhecimentos e pré-conceitos de quem conduz as entrevistas. O caráter aberto tanto da investigação quanto das entrevistas fornece subsídio metodológico para que o sistema de relevância de cada entrevistado, portanto, emerja.

Assim, para compreender a entrevista biográfica e desenvolvimento da técnica de coleta de dados, a pesquisadora principal fez treinamento mediante participação de um grupo de pesquisa que estuda e aplica o método narrativo biográfico. Além disso, a pesquisadora cursou a disciplina “Atelier de Narrativas Biográficas” durante o doutorado, sendo realizada a aplicação prática da coleta de dados e realização dos passos da reconstrução de caso biográfico, enquanto atividades práticas da disciplina. Não foi realizado estudo piloto com os familiares participantes da pesquisa.

Este estudo foi desenvolvido em uma Estratégia Saúde da Família (ESF) de um município localizado no sul do Brasil. A escolha do local deu-se por situar-se no bairro que apresenta o maior número de óbitos por suicídio, tendo características predominantemente rurais e de origem alemã. A Unidade apresenta duas equipes de ESF e realiza atendimento de saúde mental, sendo apoiada pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Os participantes foram familiares sobreviventes ao suicídio, adultos e usuários da ESF, sendo três homens e oito mulheres. Desses, uma era irmã, três eram esposas, dois eram esposos, quatro eram filhos e uma era mãe de pessoas que cometeram suicídio. Teve como critérios de inclusão: ser integrante de família em que algum dos membros cometeu suicídio; residir no município do estudo; ter mais de 18 anos. Critérios de exclusão: não estar em condições de comunicar-se verbalmente; estar em sofrimento para falar sobre o tema. Neste caso, a própria equipe da ESF contra-indicava a entrevista com o familiar.

Os participantes foram indicados pelos profissionais da ESF, os quais faziam o primeiro contato e, após o aceite, a pesquisadora contatou cada um, por telefone, para agendar as entrevistas individuais. Não havia vínculo prévio entre pesquisador e entrevistados, entretanto, o fato da pesquisadora falar e entender a língua alemã facilitou a aceitação do convite feito pela equipe da ESF. Houve recusa de um familiar em participar da pesquisa devido à falta de disponibilidade.

A produção de dados deu-se mediante entrevista biográfica, seguindo o princípio de abertura, realizada em três etapas99. Rosenthal G. Interpretive social research: an introduction. Göttingen: GöttingenUniversity Press; 2018.: pergunta narrativa biográfica aberta (relato biográfico inicial); perguntas narrativas internas (anotações feitas na primeira fase, respeitadas a sequência delas); perguntas narrativas externas (questões não mencionadas pelo entrevistado ou que precisassem de um esclarecimento). Na realização da entrevista, foi utilizada a seguinte questão norteadora: “Me fala sobre toda sua vida, tudo o que tu lembras, desde seu nascimento até os dias atuais, a começar pela vida dos teus pais, o que te contaram e sabes”. Importante ressaltar que a validação das entrevistas junto aos entrevistados se dá durante o próprio processo de produção de dados, ou seja, ela ocorre na segunda etapa da entrevista, a etapa de aprofundamento, em que o entrevistador retoma todas as temáticas trazidas pelo entrevistado e este tem a oportunidade de esclarecer, aprofundar, retificar ou retirar algum conteúdo trazido na primeira etapa da entrevista.

As entrevistas foram realizadas no domicílio dos familiares, gravadas em gravador de voz e posteriormente transcritas pela própria pesquisadora, entre novembro/2017 e fevereiro/2018, com onze familiares sobreviventes ao suicídio, sendo quatro delas em dois encontros, com duração média de 90 minutos e realizadas pela pesquisadora principal. Neste artigo foram apresentadas duas reconstruções biográficas, mediante o uso de nomes fictícios e codificações nos recortes das falas, para garantir o anonimato dos participantes. As entrevistas foram abreviadas da seguinte forma: E1 (entrevista 1) e E2 (entrevista 2). Nos trechos destacados neste trabalho, indica-se o número de parágrafo (P) e o intervalo de linhas (L 23-37, por exemplo). A escolha dos casos deu-se por constituírem dois tipos e contemplarem as demais entrevistas, possibilitando a construção tipológica com formas diferentes para lidar com o suicídio, respondendo assim aos objetivos do presente estudo.

A análise das informações deu-se também mediante reconstrução biográfica de caso, seguindo cinco passos propostos pelo método utilizado99. Rosenthal G. Interpretive social research: an introduction. Göttingen: GöttingenUniversity Press; 2018.: análise dos dados biográficos; vida narrada (análise do campo temático e do material textual); análise da vida vivenciada; microanálise; Contraste entre história de vida vivenciada x história de vida narrada e construção tipológica.

Na análise de dados biográficos, busca-se compreender a trajetória de vida do entrevistado, colocando em ordem cronológica os acontecimentos de sua biografia e relacionando-os com os contextos históricos, sociais e econômicos de cada época. Produz-se levantamento de hipóteses a partir destes dados, buscando compreender os caminhos e escolhas percorridos pelo sujeito. Na análise da vida narrada, por outro lado, atemo-nos a uma análise de conteúdo vinculado a todo o material transcrito da entrevista, buscando compreender como o entrevistado se apresenta e enquadra no presente os conteúdos que remetem ao seu passado. No contraste, por fim, vê-se quais lógicas entre perspectiva passada presente se encontram ou divergem entre si, reconstruindo a biografia de forma textual de forma a trazer as diferentes perspectivas de forma integrada. Na construção tipológica, volta-se a pergunta de pesquisa, e se busca respondê-la a partir da estrutura geral do caso reconstruído.

A pesquisa foi aprovada por um Comitê de Ética em Pesquisa de uma Universidade local (CAAE 77568017.5.0000.5310) e seguiu os preceitos éticos do Conselho Nacional de Saúde1212. Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial União. 2013 jun 13 [cited 2022 Oct 1];150(112 Seção 1):59-62. Available from: Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=13/06/2013&jornal=1&pagina=59&totalArquivos=140
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-1313. Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 510 de 7 de abril de 2016. Diário Oficial União. 2016 maio 24 [cited 2017 Jul 15];153(98 Seção 1):44-6. Available from: Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&data=24/05/2016&pagina=44
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. As entrevistas gravadas foram guardadas por cinco anos em sigilo, sendo posteriormente descartadas.

Análise de Informações: reconstrução dos casos Marisa e Fritz

Reconstrução do caso Marisa

A entrevista de Marisa, com 39 anos à época da entrevista, precisou de dois encontros. Após a pergunta inicial aberta, ela falou sobre sua trajetória de acordo com seu sistema de relevância sem ser interrompida. Na segunda visita à sua casa, a entrevistadora retomou temas abordados na fala inicial, procurando estimular a narração. A análise dos dados obtidos na entrevista contém informações sobre experiências da biografada e a interpretação dela sobre o que vivenciou ao longo da vida.

Durante sua apresentação, Marisa busca mostrar-se como alguém cuja trajetória envolveu sofrimentos diversos, ao passo que aprendeu a enfrentar tais dificuldades através de diversas estratégias. Busca mostrar certa imagem em que precisou ser forte desde o princípio de sua vida, ainda sob os cuidados de sua família de origem, enfatizando que em seu contexto familiar primário e social mais amplo, não havia espaço para demonstração de vulnerabilidades. Assim, aponta para uma das estratégias que adotou no decorrer de sua história de vida, a de sempre se apresentar e agir com auto suficiência e liberdade para viver conforme seu desejo.

No decorrer da narração, Marisa foi elencando temas que configuraram o campo temático de sua fala: ter uma vida sofrida (sua e dos pais), o suicídio do marido, depressão, o nascimento do filho, sua infância pobre, a superação de dificuldades, ser uma mulher forte, a ajuda recebida de uma amiga, o sentimento de culpa, os conflitos com a sogra, o ter um marido frágil. Esses temas diversos, contudo, confluem em um grande eixo temático, central para a estruturação da entrevista, qual seja, o objetivo de vida da entrevistada e as estratégias que utiliza para alcançá-lo: ser independente e bem sucedida financeiramente.

Marisa dá início à sua narrativa contando que sua “vida não foi muito fácil”, fazendo ligação entre estas dificuldades e o número de filhos que seus pais tiveram, ou seja, a existência de sete irmãos. Em seguida, também correlaciona as dificuldades enfrentadas por ela e pela família no início de sua trajetória de vida ao trabalho árduo desenvolvido pelos pais para que a família tivesse condições financeiras para desenvolver-se e adquirir bens: “trabalharam muito para conseguir o que têm, foi tudo muito sofrido”. Neste trecho, Marisa também destaca que os pais passaram por dificuldades significativas para sustentar os filhos diante das limitações econômicas à época. Desse modo, a temática do sofrimento já se faz presente logo nas primeiras fases de sua narrativa, corroborando a análise posterior de que Marisa entende o sofrimento e a sobrecarga como uma espécie “herança” adquirida de seus progenitores e fortemente relacionada ao trabalho árduo e pouco rentável da “roça”.

Diante das dificuldades financeiras da família, Marisa mostra seu protagonismo quando narra ter assumido, logo cedo, um papel importante como uma das provedoras de seu domicílio. Ela passa a trabalhar formalmente “fora de casa” e, com isso, dá suporte financeiro à família, especialmente na aquisição de alimentos. Quando se refere a este período, Marisa salienta que, a fim de poder trabalhar, precisou enfrentar o pai, que era contrário à ideia de uma filha trabalhando fora de casa ou ajudando na subsistência da família. Neste sentido, Marisa rompe com uma tradição familiar importante, que era a de seguir nas atividades dos progenitores, na lavoura. Para ela, esta foi uma decisão madura, corajosa, e centrada nas necessidades familiares:

Comecei a trabalhar na fábrica de calçados porque via que conseguiria ajudar mais os pais. É realmente, eu consegui ajudar mais eles, porque eu entregava todo meu dinheiro em casa. O meu pai não quis deixar! Não!! A mãe disse: tu pode ir, mas tu vai entregar o dinheiro em casa! Eu disse ‘não tem problema’, mas eu fui! [...] E depois ele acabou aceitando, quando ele viu que o dinheiro entrava em mãos, que ele tinha o dinheiro limpinho. Ela (irmã) não trabalhou (na fábrica) mas eu sim! [...] Depois quando ele (pai) viu que eu estava entregando o dinheiro, eu fazia os ranchos ainda lá, porque era comida mais barata vindo da fábrica, daí ele nem falou mais nada depois. (E2, P5, L23-37)

O desejo de Marisa por ascender economicamente e socialmente se evidencia, portanto, logo na adolescência, quando ela decide sair do ambiente rural e trabalhar na fábrica de calçados. Ao mesmo tempo em que essa experiência possibilita que ela ajude a família financeiramente, também dá vazão à possibilidade de realização de um projeto de vida fora do meio rural, que Marisa acredita ser uma vida envolta de menos sofrimento do que aquela que seus pais tiveram. Ela acreditava que a vida fora do meio rural seria uma vida com mais recursos econômicos, e vê-se latente em sua fala uma busca pela liberdade não obtida no âmbito da família primária. Esta liberdade torna-se, portanto, parte de um projeto de vida a ser, por ela, alcançado.

Marisa permeia em sua fala os dias atuais fazendo um balanço sobre sua vida após o suicídio do marido. Sua família primária, de acordo com ela, foi quem lhe apoiou nos momentos mais difíceis após a perda do companheiro: “Eles me entendem, sabem que eu não tenho culpa de nada”. Nesse mesmo relato, Marisa enfatiza sua importância como mãe na vida do filho, sua função de protetora, alguém que não mede esforços para fortalecer seu filho para que ele não se fragilize, que não precise enfrentar uma situação de depressão devido à perda do pai. Para Marisa, desempenhar tal papel representa uma forma de enfrentar a situação do suicídio e da perda do marido. Com isso, a entrevistada, mais uma vez, enfatiza sua capacidade de agir como uma “mulher forte”, para quem a fraqueza e fragilidade não têm espaço em sua vida. Remete-nos, portanto, a mesma estratégia biográfica utilizada ao falar de si na infância.

A maternidade é um importante fator protetor contra o suicídio, especialmente quando os filhos são muito pequenos e mais dependentes1414. Qin P, Mortensen PB. The impact of parental status on the risk of completed suicide. Arch Gen Psychiatry. 2003;60(8):797-802. doi: https://doi.org/10.1001/archpsyc.60.8.797
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. Além disso, as mulheres podem se proteger melhor contra o suicídio porque estão mais dispostas a pedir e receber ajuda para problemas emocionais1515. Vijayakumar L. Suicide in women. Indian J Psychiatry. 2015;57(Suppl 2):S233-8. doi: http://doi.org/10.4103/0019-5545.161484
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. O exercício da maternidade representa uma expectativa de gênero, o qual é um recurso que pode ser usado para aprovação social. O espaço de mãe é respeitável na sociedade, mesmo que tenham havido mudanças culturais nas últimas décadas. Ainda hoje a maternidade é entendida como central na identidade da mulher1616. Reif KS. Estigma, aprendizado e reforço de estereótipo de gênero: narrativas biográficas de mulheres após o encarceramento. In: Stuker P, Celmer EG, Passos AGS, organizadores. Vidas críticas: gênero, sexualidades, violências e justiça. Porto Alegre: Mikelis; 2019. p.355-80..

No que tange à vida vivenciada de Marisa, esta pode ser dividida nas seguintes fases: a infância, que engloba sua situação de nascimento, contexto de vida, e vida dos seus antepassados (de seus pais, por exemplo); a adolescência, em que houve acontecimentos importantes, como a fratura da perna, o primeiro trabalho formal, a gravidez aos 17 anos, a fratura de costela do namorado, o futuro marido, o casamento, o nascimento do primeiro filho, a depressão pós-parto. Já a fase adulta comporta temas como a vida pós-casamento, em que luta junto com o marido para construção da casa própria; a depressão do marido que se acentua e traz problemas no relacionamento e de conflitos com a sogra; a frustração de Marisa com o marido, que ela considera frágil; o suicídio do marido; e a vida atual.

Destaca-se que a depressão, junto com outros transtornos mentais, estão associados ao comportamento suicida, chegando a ocorrer em 80% dos casos1717. Bachmann S. Epidemiology of suicide and the psychiatric perspective. Int J Environ Res Public Health. 2018;15(7):1425. doi: http://doi.org/10.3390/ijerph15071425
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. No Brasil, entre 2010-2019 houve um aumento nas taxas de mortalidade por suicídio, com destaque para o maior risco de morte em homens33. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico. Mortalidade por suicídio e notificações de lesões autoprovocadas no Brasil [Internet]. 2021 [cited 2022 Oct 1];52(33):1-10. Available from: Available from: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/edicoes/2021/boletim_epidemiologico_svs_33_final.pdf
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. Quadro depressivo em homens representa uma barreira na busca de cuidados, influenciado pela intensidade do quadro psiquiátrico, ao gênero e à estigmatização da comunidade sobre o comportamento suicida1818. Oliffe JL, Rossnagel E, Seidler ZE, Kealy D, Ogrodniczuk JS, Rice SM. Men's depression and suicide. Curr Psychiatry Rep. 2019;21(10):103. doi: http://doi.org/10.1007/s11920-019-1088-y
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, compreendida pela esposa, por exemplo, como uma “fraqueza” do seu companheiro.

O contraste entre a vida narrada e a vida vivenciada de Marisa mostra que temas como sofrimento e superação de limites amparam sua trajetória de busca por ascensão social, principalmente na adolescência, quando decide sair do trabalho no meio rural e vai em busca de autonomia e libertação, quando contraria o desejo do pai e vai trabalhar numa fábrica, seu primeiro trabalho formal aos 14 anos. Mais tarde, casa-se, vislumbrando a possibilidade de mais uma estratégia para a concretização de seu plano para a ascensão social. Contudo, a entrevistada vê seus planos frustrados, em razão da “fragilidade” que não ecoa em suas necessidades. Marisa se vê constantemente preocupada, e sente-se pressionada para que o marido “saia deste quadro”, ou seja, do quadro de depressão.

Ao analisar papéis e estereótipos de gênero na literatura, observa-se que aspectos como ambição, força, assertividade e autoconfiança são esperados dos homens1919. Nascimento CRR, Biasutti CM, Araújo ICC, Trindade ZA. Os papéis da mulher e do homem nas famílias pela óptica masculina: um estudo de duas gerações. Revista Pesquisas e Práticas Psicossociais.2021 [cited 2017 Jul 15];16(4):1-18. Available from: Available from: http://periodicos.ufsj.edu.br/revista_ppp/article/view/e3306
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. No caso de Marisa, ela se decepciona pelo marido não ter assumido essas características atribuídas ao masculino.

A biografada demonstra em sua fala o quanto as dificuldades na convivência com o cônjuge foram se ampliando com o passar do tempo, aprofundando o tema “culpabilização” em seu relato. Por vezes, culpabiliza a sogra, outras o próprio marido por não melhorar da depressão. Neste contexto, Marisa tenta justificar-se o tempo todo, passando a ideia de que estava certa por ter estimulado a marido a sair da depressão e deixar oculto seu próprio sentimento de culpa em relação ao suicídio.

A culpa e a autoacusação são comuns entre familiares sobreviventes, mesmo quando elas compreendem que a escolha pelo suicídio foi da pessoa que já manifestava estresse, despertando pensamentos de que poderia ter feito algo para prevenir a morte55. Fukumitsu KO, Kovács MJ . Especificidades sobre processo de luto frente ao suicídio. Psico. 2016;47(1):3-12. doi: https://doi.org/10.15448/1980-8623.2016.1.19651
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. Contudo, Marisa mostra-se ambivalente quando se esforça para não se culpabilizar (ser forte) e em atribuir a culpa do suicídio para outros (sogra e o marido), ressignificando em sua narrativa biográfica o seu processo de lidar com o suicídio.

No último passo da análise, foi realizada a construção tipológica, que se refere ao modo como Marisa interpreta o suicídio. A entrevistada é uma mulher criada num contexto rígido e de distanciamento afetivo em relação aos pais. Constrói seu projeto de vida apoiado na superação das dificuldades da tradição do trabalho rural a partir da mudança para o meio urbano. Projeta a esperança de realização da vida pessoal em um companheiro afetivo, num casamento, que, mais tarde, demonstra impossibilidade em atender suas expectativas. Marisa acaba por ver no suicídio do marido uma forma de libertação, até de alívio, mas também de culpa por sentir-se de tal maneira.

Enquanto familiar sobrevivente, a elaboração do luto é possível e necessária para enfrentar a dor e a desorganização no sistema familiar mediante um processo longo, árduo, gradual e de busca constante de força para continuar a viver. Isto porque, deve-se superar a ideia de que encontrar novos rumos na vida não significa desonrar a pessoa que se matou. Assim, o enlutado precisa desenvolver habilidades para lidar com a nova realidade55. Fukumitsu KO, Kovács MJ . Especificidades sobre processo de luto frente ao suicídio. Psico. 2016;47(1):3-12. doi: https://doi.org/10.15448/1980-8623.2016.1.19651
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Na narrativa biográfica de Marisa, aos poucos, a culpa dá lugar à ressignificação de seu projeto de vida, voltado agora para o filho, para o trabalho e para sua reafirmação enquanto mulher forte e determinada. Por fim, salienta-se que a análise do caso biográfico de Marisa permitiu a construção de um tipo em que se volta ao uso do papel materno como um legitimador da capacidade de superação e da força diante da experiência de suicídio, ou seja, a maternidade, consequentemente, lhe trouxe maior reconhecimento social. Além disso, seu caso também aponta para o papel da estigmatização social e a influência da comunidade na forma com que o sujeito lida com o momento do luto e na reorganização de sua vida.

Ressalta-se o papel social materno, considerado uma possibilidade de status e prestígio a partir de determinadas práticas e concepções culturais, pode ser apontado como uma forma encontrada por ela para a superação do sofrimento causado pelo processo de estigmatização.

O estigma, enquanto processo social de distinção e segregação do outro, pode alimentar no familiar sobrevivente os sentimentos de culpa e isolamento, o que agravaria o sofrimento mental e a falta de suporte social. Nesse sentido, não parece equivocado que se possa apontar a importância de práticas de prevenção que englobem não apenas o suporte psicossocial dos familiares sobreviventes pelo suicídio, mas também para a educação comunitária sobre os aspectos que perpassam a vidas das famílias que perdem um membro para o suicídio.

Para isso, no contexto das políticas públicas recomenda-se abordar o tema de maneira não alarmista e não estigmatizante, conscientizando e estimulando a prevenção do suicídio, para contribuir para o enfrentamento deste problema de saúde pública33. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico. Mortalidade por suicídio e notificações de lesões autoprovocadas no Brasil [Internet]. 2021 [cited 2022 Oct 1];52(33):1-10. Available from: Available from: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/edicoes/2021/boletim_epidemiologico_svs_33_final.pdf
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. Neste contexto, os formuladores de políticas e programas de saúde devem considerar o papel importante que a família pode desempenhar na prevenção e tratamento do risco de suicídio, inclusive com o apoio da mídia de massa, em promover o debate sobre o tema, destacando a responsabilidade e a influência da conexão familiar nesse cenário2020. Arafat SMY, Saleem T, Edwards TM, Ali SA, Khan MM. Suicide prevention in Bangladesh: the role of family. Brain Behav. 2022;12(5):e2562. doi: https://doi.org/10.1002/brb3.2562
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Reconstrução do caso Fritz

Ao analisar os fatos da trajetória de vida de Fritz, destacam-se: nascimento em 1939, infância, casamento, mudanças de cidade, mudanças para casa atual, suicídio da esposa, morte do filho mais novo, nova companheira e vida atual.

A análise do campo temático, que inclui os temas trazidos durante a entrevista e que dizem respeito à maneira como ele se apresenta, traz Fritz falando de si como tendo sido um bom filho, um bom marido e um bom pai. A partir do núcleo familiar, internaliza valores como honestidade, confiança e o poder da palavra, padrões que lhe são imprescindíveis que, de acordo com ele, perpassam gerações, fazendo-se ainda presentes em pessoas que são de sua época. Assim, tenta passar a ideia de que sua família é harmônica, na qual houve e há poucos problemas, tanto da sua família atual quanto a família que constituiu no primeiro casamento.

Ao realizar uma análise mais detalhada sobre a intenção de autoapresentação do biografado, surge o questionamento: Será que a vida com a esposa e em família era tão harmônica como o entrevistado tenta mostrar? A análise aponta que Fritz tenta ocultar o aparecimento de possíveis conflitos em seu relato, na intenção de transmitir uma imagem diferente, já que, durante sua trajetória de vida, a família aparece como um valor fundamental. Nesta perspectiva, estudo internacional que buscou evidenciar os motivos pelos quais o suicídio ocorreu no ambiente familiar apontou a existência de desavenças ou de um contexto disfuncional2121. Ratnarajah D, Maple M, Minichiello V. Understanding family member suicide narratives by investigating family history. Omega (Westport). 2014;69(1):41-57. doi: https://doi.org/10.1002/brb3.2562
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. Dessa forma, voltar a atenção para a harmonia familiar pode significar possíveis conflitos existentes e sentimento de culpa em relação ao suicídio da esposa.

Identificou-se como principal campo temático a forma como o biografado desenvolve sua fala em torno da sua interpretação referente à família em seu contexto de vida, ou seja, em meio à colonização e cultura alemã. Dessa forma, interpreta a família como uma fonte de aprendizado sobre responsabilidade, proteção e preservação dos membros, honestidade e valorização da palavra e da confiança. Também, a família é vista como apoio, que mantém a integridade dos seus membros em um lugar de segurança.

Na parte da análise sobre a vida vivenciada, foram destacados os principais eventos biográficos em ordem cronológica. Fritz nasceu em uma cidade de colonização alemã em que as crianças eram orientadas e educadas para trabalhar na agricultura, desde cedo, seguindo assim a trajetória dos pais. Assim, como seus pais, Fritz também teve como profissão futura o trabalho na lavoura agrícola.

O entrevistado auxiliava os familiares no campo, com disciplina rígida nesse e em outros aspectos da vida. Porém, ele destaca isso como um aspecto importante na sua formação: “Meus pais eram rígidos, mas eram corretos”. Para ele, a correção e a honestidade foram ensinadas como características valiosas. Da mesma forma, a sociedade local também é considerada muito significativa. De acordo com seu relato, a objetividade e a determinação de seu comportamento foram consequências do tipo de educação que recebeu. A rigidez auxiliou a lidar com frustrações e o desenvolvimento de capacidades para encarar situações difíceis no futuro, como a perda da esposa e do filho.

A juventude é pouco explorada durante a entrevista. A partir do casamento, ele menciona alguns temas, como a relação de parceria com a companheira.

Nós trabalhamos muito, nós trabalhamos juntos. Quando nós estávamos em casa, tinha trabalho. Quando eu estava em casa, ajudava ela no serviço e quando nós estávamos na roça ela ajudava. (E2, p. 8, L36-38)

Fritz e a esposa tiveram dois filhos e três filhas. Ambos tentaram reproduzir, de alguma forma, a criação que tiveram. Após dois anos de mudança para outro município, em 2011, a esposa do entrevistado se suicidou. Depois de pouco mais de dois anos do fato, Fritz passou a viver com a nova companheira, com quem permanece atualmente. Alguns anos mais tarde, o biografado sofreu uma nova perda. O caçula com quem tinha muita proximidade teve uma morte súbita. Conforme Fritz, a vivência com a nova companheira é tranquila, com divisão de atividades e apoio.Para ele, ter uma nova companheira representa um suporte para enfrentar as dificuldades e, eventualmente, alguma tristeza:

Aí estamos juntos, aguentamos nossa Elend (miséria) juntos, risos, assim se aguenta mais! (risos). (E1, p. 6, L1-7)

Coloca que se dão bem e vivem sem conflitos:

Ya, eu já falei! Nós não nos batemos, nos damos bem (risos). Ela às vezes me bate nas costas, mas ela precisa subir numa cadeira para alcançar e aí eu saio quando vejo que ela está subindo (risos). Wiertuneimlichleben! (Nós vivemos em paz - silêncio). (E1, p.17, L 44- 46)

Ao comparar a vida vivenciada e vida narrada, evidencia-se a gênese das experiências do entrevistado. De um lado observa-se as vivências de forma objetiva, sem interpretações, e por outro, nota-se como ele entende o seu passado, do ponto de vista presente, de como se apresenta.

Além de relatar conflitos entre o seu pai e a sua mãe, Fritz fala que a figura paterna representou o ensinamento da importância do trabalho, educação e honestidade. Já a figura materna é trazida como quem lhe proporcionou ensinamentos mais relacionados ao estereótipo feminino, como culinária e outros afazeres de casa. Na sua avaliação, o aprendizado trouxe vantagem no seu relacionamento com a esposa, já que outros homens, normalmente, não sabem desempenhar essas atividades domésticas.

O tema da saúde é interpretado como um risco à coesão da família e ainda exige o desprendimento de dinheiro. Seu pai, por exemplo, precisou gastar economias para tratamento de filhos. Fritz, por sua vez, teve que colocar à venda o patrimônio, pois, no caso dos trabalhadores do campo, a assistência médica era privada. Dessa forma, o entrevistado procura colocar-se no lugar de provedor e alguém que mantém a estrutura familiar.

Associado a isso, é possível observar que Fritz entende que o papel de pai tem a ver com a manutenção da família. Isso se manifesta quando ele se refere ao convívio com os filhos na fase da infância e também falando sobre o momento presente, quando afirma:

Ele tem as duas crianças pequenas lá, olha, isso não é fáááácil (estica a palavra)! Ele me falta todos os dias! Ontem, o filho dele, vai fazer 4 anos agora dia 28 de dezembro, ele (filho) já faleceu há dois anos e meio e quando ele me vê grita: “Vater, Vater”, a única palavra que ele fala em alemão é “Vater” (pai) ele chama! Então eu me sento na sombra - ele tem uma motoca e então a leva para casa, na brita ele não consegue andar, isso não dá certo, mas aqui na calçada (no pátio da sua casa) ele consegue andar, então ele vem para cá e anda. Isso ninguém pode imaginar o quanto isso dói, ter os netos na frente todos os dias e pai falta para eles, não tem mais pai! Isso não é fácil! (E1,p.5, L 25- 33)

Fritz demonstra sofrimento pela falta do filho e também pela falta que o filho faz aos seus netos. A perda, segundo sua interpretação, representa uma ausência no núcleo familiar da geração após a dele.

A fala e a interpretação de Fritz convergem para saúde e família, em que a morte da esposa representou um rompimento da integração para a qual ele lutava. Mesmo fazendo tratamento médico, não viu melhora significativa do quadro. Apesar de interpretar a depressão como um problema grave, teve dificuldade de compreender seu significado. Ora entende o suicídio como uma consequência de uma doença, ora manifesta inconformidade, não entendendo o motivo de alguém tirar a própria vida e, por vezes, expressa sentimento de culpa.

Ao realizar a análise do caso, surgem algumas reflexões sobre a busca de respostas por Fritz que remetem ao contexto em que o suicídio ocorreu: período de venda de terra. O conhecimento da pesquisadora em relação à cultura de tradição alemã possibilita levantar algumas hipóteses acerca do significado da venda da terra para essas famílias. Muitas vezes, as pessoas com essa tradição consideram que “não devem” se desfazer de um bem adquirido. Pelo contrário, é preciso agregar, validando as conquistas do trabalho. Assim, o bem material é o algo que permanece e faz a ligação com as futuras gerações onde a terra carrega valor sentimental, mantendo a história da família. Pode-se dizer que esses valores ficam latentes na entrevista de Fritz.

Um estudo brasileiro em um município de colonização alemã revelou que o papel da ética do trabalho e da cultura germânica, expressas na exigência desmensurada de desempenho e no medo onipresente da falência e da perda das terras, influenciam a ocorrência do suicídio como um recurso usado na cultura desses descendentes de alemães para enfrentar as dificuldades2222. Meneghel SN, Moura R. Suicídio, cultura e trabalho em município de colonização alemã no sul do Brasil. Interface. 2018;22(67):1135-46. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0269
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Fritz lamenta a perda de um integrante da família, associado ao peso social que o suicídio representa. Isso pode explicar o motivo de reiteradas vezes mostrar as suas relações familiares como harmônicas ao longo da vida narrada.

A resiliência foi manifestada em alguns momentos na vida do entrevistado, especialmente quando vivenciou o suicídio de um familiar. Mesmo com tristeza e culpa, Fritz, que aprendeu ao longo da vida a superar os problemas, utiliza estratégias para formar outro grupo familiar. Assim, ele pretende dar continuidade à vida que ele almeja com estrutura e harmonia, o que é considerado “normal”.

Uma pesquisa mostrou que entre os elementos de apoio para quem enfrenta o luto está a família, o tempo e outros fatores como a religião e a espiritualidade também representaram uma ajuda para o sofrimento2323. Gonçalves PC, Bittar CML. Estratégias de enfrentamento no luto. Mudanças Psic Saúde. 2016;24(1):39-44. doi: http://doi.org/10.15603/2176-1019/mud.v24n1p39-44
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. Para o biografado, o apoio social, no qual está incluída a família, mostrou ser um grande suporte para o recomeço. Nesta perspectiva, um estudo brasileiro que buscou compreender a vivência da família ao perder um familiar por suicídio evidenciou que inicialmente há dificuldades para superar a perda, no entanto, após um certo período os familiares desenvolvem mecanismos para lidar com o luto e, dentre eles, destaca-se o apoio da própria família e da rede social2424. Dutra K, Preis LC, Caetano J, Santos JLG, Lessa G. Experiencing suicide in the family: from mourning to the quest for overcoming. Rev Bras Enferm. 2018;71(Suppl 5):2146-53. doi: http://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0679
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Em última análise, destaca-se a pergunta inicial de Fritz no início da entrevista, quando pontua: “Eu gostaria de saber, por que as pessoas aqui se matam tanto? E qual será o motivo?” Fritz está questionando o motivo do suicídio da própria esposa, deixando oculto um possível sentimento de culpa mediante o uso do recurso de racionalização.

As qualidades internas de racionalização, autoconfiança e determinação, provavelmente construídas pela cultura familiar, podem fortalecer a resiliência do familiar para lidar com o luto2121. Ratnarajah D, Maple M, Minichiello V. Understanding family member suicide narratives by investigating family history. Omega (Westport). 2014;69(1):41-57. doi: https://doi.org/10.1002/brb3.2562
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. Assim, identificou-se que a análise do caso de Fritz mostra que determinados traços culturais com os quais um sujeito foi socializado podem aparecer como um recurso importante para o enfrentamento de contextos de luto. Seu vínculo com a cultura de tradição alemã mostra que o significado dado à família lhe forneceu subsídios para adotar estratégias de saída do luto e reconstrução de novos laços afetivos. Esse suporte pode ser considerado um elemento essencial sem o qual as políticas de saúde dificilmente conseguiriam promover maiores ações.

Ao mesmo tempo, salienta-se que estes mesmos traços culturais podem ser inibidores importantes de, por exemplo, práticas de expressão afetiva, como a do sofrimento e dificuldade enfrentados no processo de vivência do luto diante da perda de alguém por suicídio. Neste sentido, faz-se necessário que as ações de suporte e prevenção voltados para os familiares enlutados levem em consideração o contexto cultural no qual estas famílias estão inseridas, e de que forma este contexto pode estar influenciando em sua forma de viver e expressar a dor da perda, bem como as estratégias que elas desenvolvem no enfrentamento do luto.

Diante disso, um estudo de Bangladesh2020. Arafat SMY, Saleem T, Edwards TM, Ali SA, Khan MM. Suicide prevention in Bangladesh: the role of family. Brain Behav. 2022;12(5):e2562. doi: https://doi.org/10.1002/brb3.2562
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recomenda, enquanto estratégias de prevenção para o comportamento suicida, a promoção da resiliência familiar por meio da educação familiar sobre o comportamento suicida, os fatores de risco e de proteção nas situações identificadas, bem como realizar intervenções focadas na família para melhorar o funcionamento familiar, resolver problemas interpessoais, aumentar a integração familiar e o apoio social. Com isso, um estudo de revisão2525. Frey LM, Hunt QA, Russon JM, Diamond G. Review of family-based treatments from 2010 to 2019 for suicidal ideation and behavior. J Marital Fam Ther. 2022;48:154-77.doi: https://doi.org/10.1111/jmft.12568
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revelou que aspectos e processos familiares podem servir de fatores de risco e de proteção para o suicídio, requerendo portanto intervenções psicossociais que mobilizam os recursos familiares nos diferentes situações relacionadas ao suicídio.

Construção de tipos

O contraste entre as reconstruções biográficas apresentadas acima deu origem a construção de dois tipos biográficos que buscaram responder à pergunta de pesquisa: Como o suicídio é vivenciado pelos familiares de pessoas que cometeram o ato de tirar a própria vida? O primeiro tipo refere-se à utilização do papel materno como recurso diante da vivência intrafamiliar de suicídio e da estigmatização social diante da experiência do suicídio. O segundo tipo, por sua vez, diz respeito ao uso do significado família a partir de uma perspectiva cultural específica como um recurso para o enfrentamento do luto pela perda de um familiar por suicídio. Em relação ao primeiro tipo, representado neste artigo pelo caso biográfico de Marisa, a vivência do suicídio do marido envolve o enfrentamento e a superação do sofrimento a partir de recursos aprendidos ao longo da trajetória biográfica, como mostrar-se e afirmar-se mulher forte, capaz de lidar com a perda e seguir com sua vida. Além do mais, a percepção de sua própria importância como mãe na vida do filho, de certo modo, reafirma o lugar de mulher que se mantém inabalável diante dos obstáculos da vida.

Além disso, Marisa enfrenta diversas manifestações de preconceito e estigma social, o que nos permite refletir sobre o fenômeno social do suicídio e a forma como ele é vivenciado pelo familiar que sobreviveu. Conclui-se a partir de tal reflexão que o suicídio de um familiar por vezes implica uma carga social que pode ampliar o sofrimento de quem vivencia esse luto. Ainda que as pessoas encarem a perda de alguém por suicídio a partir de sua própria interpretação, esta interpretação está sempre imbuída de um contexto de relações, crenças, comportamentos, e regras sociais em relação a morte e ao suicídio.

O segundo tipo desenvolvido a partir da análise dos casos biográficos remete-se, por sua vez, ao exemplo do caso Fritz, e corresponde ao uso de uma determinada significação cultural de família enquanto recurso para o enfrentamento do luto da perda de um familiar por suicídio. O biografado foi criado em uma colônia de origem alemã, contexto cultural no qual ele aprendeu determinados valores vinculados ao significado de família. O entrevistado vivencia o suicídio fazendo uso desses elementos que constituem, a seu ver, a significação cultural de família germânica. Dentro disso, a família é caracterizada como sendo um espaço de apoio e segurança, exigindo, portanto, o cuidado e preservação de seus integrantes e de suas dinâmicas. Para lidar com a perda, Fritz utiliza como recurso os elementos culturais vinculados à sua interpretação de cultura e de família.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A abordagem de pesquisa utilizada possibilitou lançar um olhar compreensivo para as experiências e interpretações de pessoas que perderam familiares por suicídio, considerando não somente a biografia individual, mas a relação com o ambiente social, cultural, geográfico e histórico em que os casos de suicídio ocorreram e nos quais esses familiares estão inseridos.

Neste estudo construiu-se dois tipos de interpretação sobre a experiência suicídio na família, mostrando que cada biografado compreendeu e lidou com o fato de maneira diferente. Primeiro, a construção de um tipo em que a forma de vivenciar o suicídio demarca o uso do papel materno como um legitimador da capacidade de superação e da força diante da experiência de suicídio. Além disso, o caso também aponta de forma consistente para o papel da estigmatização social e a influência da comunidade na forma com que o sujeito conseguirá lidar com o momento do luto e na reorganização de sua vida. Já o segundo tipo traz a significação cultural de família como um recurso para o enfrentamento do suicídio, apontando que determinados traços culturais com os quais um sujeito é socializado podem aparecer como um recurso importante para o enfrentamento de contextos de luto. O vínculo com a cultura de tradição alemã mostra que o significado dado à família forneceu subsídios para adotar estratégias de saída do luto e reconstrução de novos laços afetivos e de suporte. Esse suporte pode ser considerado um elemento essencial sem o qual as políticas de saúde dificilmente conseguiriam promover maiores ações.

Ouvir e analisar as narrativas de pessoas que perderam um familiar por suicídio sobre suas experiências de vida mostrou-se uma forma importante de captar as estratégias adotadas por estas pessoas antes, durante e depois da morte do familiar. O conhecimento sobre as biografias traz inputs valiosos aos profissionais da saúde que lidam com esse público, podendo viabilizar intervenções de cuidado e prevenção pautadas em dados empíricos. Afinal, a morte também impacta a rede de apoio da vítima de suicídio, que pode precisar de suporte da rede pública, visto que é comum manifestar problemas de saúde mental após esse tipo de vivência.

Biografar esses familiares sobreviventes permitiu compreender importantes aspectos em que eles buscam superar o evento de perda traumática de seu familiar. Contudo, cabe aos profissionais de saúde e enfermagem proporcionar um espaço de cuidado individual e coletivo a esses sujeitos, sobretudo, oferecendo um espaço de escuta que acolha os sentimentos dolorosos e angustiantes para seguir adiante com suas vidas e projetos, fortalecendo assim a resiliência individual e familiar. Por mais desafiador que a temática do suicídio possa se mostrar no trabalho em saúde, incorporar a aprendizagem de competências sobre o comportamento suicida e a abordagem dos familiares sobreviventes, tanto nos currículos de graduação e quanto nos programas de educação permanente dos serviços de saúde, podem ser estratégias fundamentais para transversalizar esse tema no contexto de formação e cuidado.

Este estudo tem como limitação o fato de biografar apenas um único membro do núcleo familiar do indivíduo que cometeu suicídio. Faz-se necessário, portanto, aprofundar esse espectro de compreensão ao biografar outros familiares sobreviventes, capturando mais nuances de impacto do evento na família e comunidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2022
  • Aceito
    17 Out 2022
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