Acessibilidade / Reportar erro

Identidade profissional da enfermeira no campo da saúde mental: estudo fenomenológico em merleau-ponty

RESUMO

Objetivo:

Compreender a identidade profissional da Enfermeira no campo da Saúde Mental.

Método:

Pesquisa qualitativa, fundamentada na fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty, realizada entre outubro de 2019 e abril de 2020, com dezesseis Enfermeiras atuantes no campo de Saúde Mental, localizados em dois municípios do Estado da Bahia, Brasil. Para a produção dos dados utilizou-se a Entrevista Fenomenológica, que, após transcrição,submeteu-se a análise por meio da Analítica da Ambiguidade.

Resultados:

Delineamos as categorias: Da Psiquiatria Clássica à Atenção Psicossocial; Salto identitário mediado pela vivência do corpo próprio. Compreendemos que o saber-fazer da Enfermagem na Saúde Mental vem sendo construído na intersubjetividade com os usuários e equipe multiprofissional.

Considerações finais:

Embora a atuação da Enfermagem revele ambiguidades que evidenciam o transitar entre a Psiquiatria Clássica e a Atenção Psicossocial, mostrou-se potente para dar o “salto identitário”, transcendência que evidencia o quanto essa vivência a torna capaz para atuar na Saúde Mental.

Palavras-chave:
Papel do profissional de enfermagem; Cuidados de enfermagem; Saúde mental

ABSTRACT

Objective:

To understand the professional identity of Mental Health Nurses.

Method:

Qualitative research, based on Maurice Merleau-Ponty’s phenomenology, conducted between October 2019 and April 2020, with sixteen Nurses working in the field of Mental Health, located in two municipalities of the State of Bahia, Brazil. The Phenomenological Interviewwas used to produce the data, which, after transcription, was submitted to analysis using the Analytics of Ambiguity.

Results:

We outlined the categories: From Classical Psychiatry to Psychosocial Care;Identity leap mediated by the experience of the body itself. We understand that the know-how of Mental Health Nursing is being built in the intersubjectivity with users and the multiprofessional team.

Final considerations:

Although the Nursing performance reveals ambiguities that show the transition between Classical Psychiatry and Psychosocial Care, it proved to be powerful to make the “identity leap”, a transcendence that shows how much this experience enables acting in Mental Health.

Keywords:
Nurse’s role; Nursing care; Mental health

RESUMEN

Objetivo:

Conocer la identidad profesional de la Enfermera en el ámbito de la Salud Mental.

Método:

Investigación cualitativa, basada en la fenomenología de Maurice Merleau-Ponty, realizada entre octubre de 2019 y abril de 2020, con dieciséis Enfermeras que trabajan en el campo de la Salud Mental, ubicadas en dos municipios del Estado de Bahía, Brasil. Para la producción de datos, se utilizó la Entrevista Fenomenológica, que, tras su transcripción, fue sometida a análisis mediante la Analítica de la Ambigüedad.

Resultados:

Delineamos las categorías: De la psiquiatría clásica a la atención psicosocial; Salto de identidad mediado por la experiencia del propio cuerpo. Comprendemos que el saber hacer de la Enfermería en la Salud Mental se está construyendo en la intersubjetividad con los usuarios y el equipo multiprofesional.

Consideraciones finales:

Aunque la actuación de la Enfermería revela ambigüedades que muestran la transición entre la Psiquiatría Clásica y los Cuidados Psicosociales, se mostró poderosa para dar el “salto de identidad”, una trascendencia que muestra cómo esta experiencia la hace capaz de actuar en Salud Mental.

Palabras clave:
Rol de la enfermera; Atención de enfermería; Salud mental

INTRODUÇÃO

A identidade profissional, há muitas décadas, tem constituído tema de pesquisa em diversas áreas. Neste estudo, em especial, buscamos compreender a questão identitária da Enfermagem no campo da Saúde Mental, à luz da abordagem fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty, a qual permite reaprender a ver o mundo11. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018.-22. Queiroz Subrinho LQ, Sena ELS, Santos VTC, Carvalho PAL. Cuidado ao consumidor de drogas: percepção de enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família. Saude Soc. 2018 Sep;27(3):834-44. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018180079
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201818...
. Para tanto, partimos de experiências vivenciais como Enfermeiras docentes na área da Saúde Mental, na perspectiva de produzirmos conhecimento envolvendo a percepção de Enfermeiras sobre o tema, uma vez que a percepção corresponde ao campo de revelação do mundo sensível e do sociocultural do ser humano.

Na concepção fenomenológica da percepção a apreensão dos sentidos acontece a partir de uma atitude corpórea, da intercorporalidade. A experiência perceptiva seria, portanto, esse corpo próprio, que nos permite vivenciar sensações ambíguas e constitui experiências de campo, ou seja, as vivências do corpo próprio acontecem em um campo fenomenal, e se refere a nossa inserção no mundo da vida, uma vez que toda percepção, para Merleau-Ponty, é sempre a percepção do ponto de vista de quem a vive33. Sena ELS, Gonçalves LHT, Granzotto MJM, Carvalho PAL, Reis HFT . Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Rev Gaúcha Enferm. 2010;31(4):769-75. doi: https://doi.org/10.1590/S1983-14472010000400022
https://doi.org/10.1590/S1983-1447201000...
.

A compreensão do termo identidade perpassa por várias perspectivas, mas todas comungam do mesmo pensamento de um construto amplo e múltiplo, de caráter dinâmico, relacional e situacional44. Vozniak L, Mesquita I, Batista PF. . A identidade profissional em análise: um estudo de revisão sistemática da literatura. Educ. 2016;41(2):281. doi: https://doi.org/10.5902/1984644417131
https://doi.org/10.5902/1984644417131...
. Logo, podemos dizer que, durante toda a trajetória existencial em que as pessoas vivenciam os diversos processos de socialização com os outros e consigo mesmas, numa determinada realidade sociocultural, são construídas as várias concepções de identidade55. Teodosio SSC, Padilha MI. “To be a nurse”: a professional choice and the construction of identity processes in the 1970s. Rev Bras Enferm. 2016;69(3):401-7. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167.2016690303i
https://doi.org/10.1590/0034-7167.201669...
.

Na literatura científica, observamos que publicações nacionais e internacionais abordam sobre a construção identitária de profissionais da Enfermagem, tendo como foco de fundamental importância a formação universitária. Tais publicações enfatizam que é na vivência acadêmica, sob o ponto de vista das Instituições, dos modelos, dos currículos, das escolhas e perfis profissionais, das biografias e de quanto esses aspectos são essenciais na própria condução da vida profissional de cada pessoa, que a identidade profissional da Enfermeira vai se delineando44. Vozniak L, Mesquita I, Batista PF. . A identidade profissional em análise: um estudo de revisão sistemática da literatura. Educ. 2016;41(2):281. doi: https://doi.org/10.5902/1984644417131
https://doi.org/10.5902/1984644417131...
-1212. Fernandes CNS, Souza MCBM. Docência no ensino superior em Enfermagem e constituição identitária: ingresso, trajetória e permanência. Rev Gaúcha Enferm. 2017;38(1):e64495. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.01.64495
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.0...
.

Os discursos acerca do saber-fazer da Enfermeira no campo da Saúde Mental assentam-se na necessidade de definição da sua identidade nessa esfera de atuação, com vistas a tornar visível o seu cuidado na Atenção Psicossocial. Isto mostra ser possível, em um campo que valoriza múltiplos saberes e a interdisciplinaridade, o fazer ver aquilo que lhe é próprio, o núcleo do saber profissional da Enfermagem.

Desse modo, coadunamos com a compreensão de que ao delinearmos a identidade, o saber-fazer da Enfermeira, clarificamos o seu núcleo do saber; e quando falamos de um espaço de limites, não tão demarcados, em que cada disciplina e/ou profissão busca em outras o apoio necessário para desempenhar suas tarefas teóricas e práticas, estamos falando do grande campo da Saúde Mental1313. Campos GWS. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. CienSaude Colet. 2000;5(2):219-30. doi: https://doi.org/10.1590/S1413-81232000000200002
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200000...
.

Essa necessidade de clareza identitária não desconfigura a lógica de cuidado na Atenção Psicossocial, mas corrobora a visibilidade e a importância que cada área profissional possui nesse campo de atuação, ao exercer aquilo que lhe é próprio, é plural e interdisciplinar.

O diálogo com a filosofia merleau-pontyana conduziu-nos a uma percepção bem mais ampla e profunda sobre a identidade profissional da Enfermeira no campo da saúde mental, pois a fenomenologia busca como tarefa primordial “retornar às coisas mesmas”, o que significa reconhecer naquilo que fazemos algo que nos seja próprio, isto é, ter uma identidade, uma identificação com aquilo que realizamos em nosso cotidiano11. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018.. Logo, se sabemos reconhecer naquilo que fazemos o que nos é próprio, significa dizer que nos identificamos com o que fazemos.

Nessa perspectiva, o estudo emergiu da seguinte questão de pesquisa: como se mostra a identidade da Enfermeira no campo da Saúde Mental?

OBJETIVO

Compreender a identidade da Enfermeira no campo da Saúde Mental.

MÉTODO

Tipo de estudo

Por se tratar de um estudo que visa à descrição de vivências tal como se mostram à percepção humana, sem a preocupação em explicar os fatos, consideramos ser pertinente fundamentá-lo no referencial teórico-filosófico da fenomenologia da experiência de Maurice Merleau-Ponty, que admite a ideia de que a produção do conhecimento ocorre a partir da relação dialógica e intersubjetiva11. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018..

A fenomenologia, como modalidade de pesquisa qualitativa, constitui a percepção como um dos elementos fundamentais da sua proposta, pois é por meio dela que se pode suspender teses naturalistas referentes ao conhecimento das coisas, do espaço, do tempo e da liberdade, mediante a qual temos acesso ao outro e ao mundo. No entanto, a percepção mostra-se como uma vivência ambígua, porque deixa transparecer a ambiguidade do mundo, desvelando possibilidades de transcendência11. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018.,1414. Peixoto LCP, Santos EKA, Andrade LM, Carvalho PAL, Sena ELS. Victim and villain: ambiguous experience of nursing students in the university context. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42:e20200365. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200365
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.2...
.

Ressaltamos que o estudo atendeu aos domínios de verificação do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ), instrumento guia para a promoção de redação científica de relatos transparentes e precisos de pesquisas.

Cenário do estudo

O cenário foi constituído pelos seguintes dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Sistema Único de Saúde (SUS): (1) Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): dois CAPS II, um CAPS AD e um CAPS AD III, localizados nos municípios de Vitória da Conquista e de Jequié, ambos no estado da Bahia, Brasil. (2) Estratégias de Saúde da Família (ESF): quatro serviços localizados no município Vitória da Conquista, nos quais se dão os processos de matriciamento e ações de Saúde Mental.

Referencial teórico-metodológico

Adotou-se o referencial teórico-metodológico da fenomenologia da experiência de Maurice Merleau-Ponty.Para o autor, o acesso ao outro e ao mundo se dá pela percepção, esta, ocorre enquanto experiência do corpo próprio, uma vivência ambígua, pois toda percepção envolve um horizonte de passado e outro de futuro, que se atualizam em um presente, e cada vivência dessa síntese perceptiva é dinâmica, a cada momento corresponde a uma nova vivência, em que acontece a experiência de transcendência, a possibilidade de ressignificar sua pessoalidade e tornar-se um outro eu mesmo a partir da vivência da temporalidade11. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018.,1414. Peixoto LCP, Santos EKA, Andrade LM, Carvalho PAL, Sena ELS. Victim and villain: ambiguous experience of nursing students in the university context. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42:e20200365. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200365
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.2...
-1515. Soares CJ, Malhado SCB, Ribeiro BS, Carvalho PAL, Santos VTC, Sena ELS. Inclusão da família na reabilitação psicossocial de consumidores de drogas : cuidar e ser cuidada. Enfermagem em Foco. 2021;12(1):7-12. doi: https://doi.org/10.21675/2357-707X.2021.v12.n1.3298
https://doi.org/10.21675/2357-707X.2021....
.

Participantes do estudo

Participaram do estudo quatorze Enfermeiras e dois enfermeiros, inseridos cenário supracitado. Em função dessa proporcionalidade, referir-se-á às participantes desse estudo pelo pronome de tratamento feminino. Critérios de inclusão adotados: Enfermeiras em efetivo exercício nos dispositivos do cenário da pesquisa por, no mínimo, seis meses. Os critérios de exclusão foram: estar afastada do serviço por férias, transferência, greve e de licenças, no momento da coleta de dados. A fim de preservar o anonimato das participantes, as participantes foram identificadas por nomes fictícios.

Definição da amostra

Para seleção amostral seguimos sugestão de Bauer e Gaskell (2019), em que o número de participantes em pesquisas qualitativas, no que se refere a entrevistas individuais, pode estar entre 15 a 25, pois, em síntese, o objetivo da pesquisa é apresentar uma amostra do espectro dos pontos de vista1616. Gaskell G. Entrevistas individuais e grupais. In: Bauer MW, Gaskel G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Rio de Janeiro: Petrópolis: Vozes; 2015. p. 64-9..E, considerando o estudo de natureza fenomenológica, o essencial da pesquisa é a compreensão aprofundada do que se desvela à percepção, a partir da intersubjetividade, e não a quantidade de participantes e de informações produzidas.

Período e estratégia de coleta de dados

As descrições vivenciais (dados da pesquisa) foram coletadas no período compreendido entre outubro de 2019 a abril de 2020. Para a etapa de campo, realizou-se contatos prévios com os coordenadores de Saúde Mental e da Atenção Básica dos municípios selecionados como cenários, para autorização para a sua execução. Os coordenadores indicaram possíveis participantes mediante os critérios pré-estabelecidos. Foram assim identificadas vinte e uma Enfermeiras, das quais dezesseis aceitaram participar do estudo.

Para coleta das descrições vivenciais foi utilizada a Entrevista Fenomenológica, que favoreceu o desvelamento de vividos por meio de um movimento de compreensão1717. Paula CC, Padoin SMM, Terra MG, Souza IEO, Cabral IE. Driving modes of the interview in phenomenological research: experience report. RevBrasEnferm. 2014;67(3):468-72. doi: https://doi.org/10.5935/0034-7167.20140063
https://doi.org/10.5935/0034-7167.201400...
. Esta modalidade de entrevista é reconhecida como uma abordagem existencial entre duas pessoas, isto é, um encontro, singularmente estabelecido entre o pesquisador e cada participante, para poder apreender um fenômeno da perspectiva daquele que o está a experimentar e a significar, nesse caso as Enfermeiras inseridas no campo da saúde mental1818. Guerrero-Castañeda RF, Menezes TMO, Ojeda-Vargas MG. Características de la entrevista fenomenológica en investigación en enfermería. Rev Gaúcha Enferm. 2017;38(2):e67458. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.02.67458
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.0...
. Todas as entrevistas foram conduzidas pela pesquisadora responsável, a qual estuda a abordagem fenomenológica desde o mestrado, aprofundando, no doutorado, sua compreensão, por meio de estudos e cursos, sobre a Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty, método e entrevista fenomenológica em pesquisas qualitativas, debruçando-se na Analítica da Ambiguidade, técnica de análise criada por sua orientadora33. Sena ELS, Gonçalves LHT, Granzotto MJM, Carvalho PAL, Reis HFT . Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Rev Gaúcha Enferm. 2010;31(4):769-75. doi: https://doi.org/10.1590/S1983-14472010000400022
https://doi.org/10.1590/S1983-1447201000...
.

Antes de iniciar as entrevistas, propriamente ditas, houve um momento para sensibilização das participantes e reflexão sobre seu ser-pessoa-profissional, estimulando-as a observarem o próprio reflexo em um espelho fazendo a seguinte pergunta: “o que vejo no espelho?”.Esse momento configurou-se em uma oportunidade para que as participantes percebessem outras perspectivas em relação ao campo de atuação profissional, permitindo-lhes ampliar os horizontes de si mesmas e do mundo que as cercam.

Nesse sentido, conseguimos chegar aos temas que mobilizaram as entrevistas: Cotidiano da prática da enfermeira no cuidado à Saúde Mental; significados atribuídos pela enfermeira no contexto do cuidado em Saúde Mental; identidade da enfermeira em Saúde Mental. Cada tema foi seguido de questões orientadoras, a exemplo da questão: “O que você considera como identitário da enfermeira, no que refere ao cuidado em Saúde Mental no contexto da Atenção Psicossocial?”. As questões serviram para mobilizar o diálogo, elaboradas a partir das falas das próprias participantes e emergiram do exercício de escuta do pesquisador1717. Paula CC, Padoin SMM, Terra MG, Souza IEO, Cabral IE. Driving modes of the interview in phenomenological research: experience report. RevBrasEnferm. 2014;67(3):468-72. doi: https://doi.org/10.5935/0034-7167.20140063
https://doi.org/10.5935/0034-7167.201400...
, a fim de chegar à compreensão do objeto de estudo. O tempo destinado às consecuções das entrevistas ficou entre 30 e 90 minutos.

Visando a garantir a confidencialidade, as entrevistas foram gravadas integralmente, e, logo após a realização de cada uma delas, foram transferidas para um arquivo no computador.

Análise dos dados

Utilizamos a Analítica da Ambiguidade, estratégia metodológica baseada na noção merleau-pontyana de que o diálogo produz e revela o sentido mais amplo de vivências que se mostraram à percepção como ambiguidades22. Queiroz Subrinho LQ, Sena ELS, Santos VTC, Carvalho PAL. Cuidado ao consumidor de drogas: percepção de enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família. Saude Soc. 2018 Sep;27(3):834-44. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018180079
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201818...
-33. Sena ELS, Gonçalves LHT, Granzotto MJM, Carvalho PAL, Reis HFT . Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Rev Gaúcha Enferm. 2010;31(4):769-75. doi: https://doi.org/10.1590/S1983-14472010000400022
https://doi.org/10.1590/S1983-1447201000...
. Essa estratégia assemelha-se à experiência de apreciação de uma paisagem, pois, a percepção de uma “figura” requer a abstração das demais figuras. Esse processo pertence ao domínio reflexivo33. Sena ELS, Gonçalves LHT, Granzotto MJM, Carvalho PAL, Reis HFT . Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Rev Gaúcha Enferm. 2010;31(4):769-75. doi: https://doi.org/10.1590/S1983-14472010000400022
https://doi.org/10.1590/S1983-1447201000...
. Desse modo ocorreu a análise das descrições vivenciais das Enfermeiras, sendo seus relatos considerados figuras abstraídas que emergiram de um fundo.

Dessa forma, seguimos todos os passos recomendados pela técnica, a saber: organização das descrições vivenciais (falas) em forma de texto; leituras exaustivas do material; e objetivação das categorias teóricas. Nesse universo de noções, que, por meio da compreensão das descrições vivenciais das enfermeiras, encontrávamo-nos em regime de redução fenomenológica. Assim, na intersubjetividade com o texto, emergiram inúmeras ambiguidades inerentes à experiência dialógica e, visto tratar-se de campo fenomenal, foram efetuadas certas objetivações -categorias33. Sena ELS, Gonçalves LHT, Granzotto MJM, Carvalho PAL, Reis HFT . Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Rev Gaúcha Enferm. 2010;31(4):769-75. doi: https://doi.org/10.1590/S1983-14472010000400022
https://doi.org/10.1590/S1983-1447201000...
. Tais ambiguidades, concebidas na experiência perceptiva, envolveram dois pólos: o pré-reflexivo (sensível) e o reflexivo, em um movimento de “transmutação11. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018.”.

A leitura do material fluiu livremente, permitindo que os fenômenos se mostrassem em si mesmos, a partir de si mesmos, o que significa dizer que vivenciamos a experiência perceptiva durante a leitura e nos reconhecemos como coexistência1414. Peixoto LCP, Santos EKA, Andrade LM, Carvalho PAL, Sena ELS. Victim and villain: ambiguous experience of nursing students in the university context. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42:e20200365. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200365
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.2...
-1515. Soares CJ, Malhado SCB, Ribeiro BS, Carvalho PAL, Santos VTC, Sena ELS. Inclusão da família na reabilitação psicossocial de consumidores de drogas : cuidar e ser cuidada. Enfermagem em Foco. 2021;12(1):7-12. doi: https://doi.org/10.21675/2357-707X.2021.v12.n1.3298
https://doi.org/10.21675/2357-707X.2021....
. De tal modo, o fenômeno da identidade da Enfermeira na Saúde Mental revelou-se como uma experiência ambígua, arrastando consigo diferentes perfis numa experiência intersubjetiva.

Aspectos éticos

A pesquisa foi desenvolvida em conformidade com os aspectos éticos de pesquisa com seres humanos, conforme a Resolução nº 466 de 2012 do Conselho Nacional de Saúde1919. Ministério da Saúde (BR) . Conselho Nacional de Saúde . Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Diário Oficial União. 2013 jun 13 [cited 2022 Jun 22];150(112 Seção 1):59-62. Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=13/06/2013&jornal=1&pagina=59&totalArquivos=140
https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/...
. O projeto de pesquisa foi submetido à Plataforma Brasil, sob o CAAE Nº: 17741019.8.0000.0055, sendo aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (CEP/UESB), sob o Parecer Nº 3.560.186/2019. Salienta-se que as participantes entrevistadas assinaram, voluntariamente, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

RESULTADOS

Buscando alcançar o objetivo do presente estudo, à luz da Analítica da Ambiguidade, emergiram categorias temáticas que constituíram a base empírica sobre a qual procedemos a sustentação teórico-filosófica do estudo.

Da Psiquiatria Clássica à Atenção Psicossocial

As Enfermeiras participantes da pesquisa, atuantes em dispositivos da RAPS, entendem que necessitam estabelecer sua identidade profissional sob o ponto de vista da Atenção Psicossocial. Todavia, muitas vezes impulsionadas pelo ser sociocultural, ainda mostram saberes e fazeres que se respaldam ainda na Psiquiatria Clássica, modelo médico-centrado e hospitalocêntrico:

Precisamos potencializar o protagonismo do usuário, com a participação dele, que às vezes é difícil, porque, inclusive, mesmo nesse ambiente (CAPS), percebemos interferências da nossa cultura, dos colegas, mas minha também, que esperam que ele faça de maneira normatizada, pré-estabelecida, mas ele vai ter outros caminhos, inclusive pela vivência dele, que é totalmente “fora da caixa”. (Fala firme) (Isabel)

Observamos que, por mais que as profissionais enfatizaram a satisfação em estarem inseridas numa nova ótica de cuidado, que visa à reabilitação psicossocial dos usuários, trazem de maneira enfática a valorização de princípios que realçam a internação hospitalar, a medicalização do corpo (da vida), além de ressaltarem questões biológicas e clínicas, através de atitudes técnicas em si:

[...] não me disporia a trabalhar naquele modelo hospitalocêntrico. [...] me sinto bem em colaborar com o fazer na Atenção Psicossocial, no sentido de empoderar a pessoa, responsabilizar o usuário pelo próprio cuidado [...] sinto melhor do que se estivesse no hospital com a pessoa dopada, amarrada ou tomando choque. [...], mas tenho uma identificação profissional maior com o hospital, também trabalho em um hospital (risos). Então, aqui no CAPS não deixa de ter conflito porque é muito diferente do hospital. (José)

Outras Enfermeiras mostraram-se ansiosas em relação a um “não saber” da própria política do serviço (Redução de danos) no qual se encontram inseridas, o que possivelmente gera dúvidas acerca do saber-fazer da Enfermagem:

[...] minha ansiedade é que, embora os usuários estejam aqui, eles não aderem totalmente ao CAPS, ao tratamento. Eles ficam aqui um período e já acham que está bom e pronto! Parou de usar (droga) só aquele período no final de semana usa abusivamente e volta para o CAPS. Até que ponto eles estão realmente se tratando? Ou até que ponto estou desenvolvendo meu papel, ou estou cuidando? [...]. (Chateada) (Marta)

[...] essa angústia amplia quando a gente fala da questão da Atenção Psicossocial, não vejo ela acontecer! O que posso oferecer para eles? O que temos feito para o usuário? [...] é prazeroso o trabalho, mas, ao mesmo tempo, me angustia, por não ver a rede acontecer, os usuários ficarem “presos” dentro do serviço, o serviço não “abrir” para o território. (Chateada) (Maria)

Por outro lado, a necessidade de clareza identitária mostrou-se evidente quando as profissionais relataram, em vários momentos, a função da Enfermeira como o “faz tudo” na Saúde Mental, o que reforça a importância do reconhecimento daquilo que lhe é próprio, que tem a ver com o núcleo do saber profissional da Enfermagem:

[...] brinco que esqueço da minha função de Enfermeira por não ter essa identidade específica na Saúde Mental (risos), exceto as partes técnicas da Enfermagem, a consulta, que entra o histórico, a avaliação, o exame físico [...]. Mas, quando está fora disso, até me esqueço, sou mais um técnico da Saúde Mental, a gente faz de tudo aqui. (Laura)

A gente faz um pouco de tudo, às vezes me considero mais técnica em Saúde Mental, porque me envolvo em tudo [...], mas o que vejo de mais específico é a questão da avaliação clínica mesmo, a consulta de Enfermagem, anamnese, sinais vitais, administração de medicamentos, o cuidado continuado no acolhimento intensivo. (Ana)

Salto identitário mediado pela vivência do corpo próprio

No processo das falas, desvelou-se um extraordinário perfil do corpo próprio - o corpo do outro ou a experiência do “outro eu mesmo”. E essa noção de outro para Merleau-Ponty não se refere ao semelhante, mas a essa vivência de transcendência.

Nessa categoria delineamos a identidade da Enfermagem no campo da Saúde Mental, na intenção de apontar estratégias possíveis para a vivência da transcendência do cuidado. Cuidado que pressupõe uma relação que está atravessada pela permissão, pelo desejo até a participação efetiva do usuário no cuidado, no tempo em que ele se sentir à vontade para fazê-lo:

[...] levei dois anos para o usuário entender que ele estava se autossabotando, para ele permitir ser cuidado, fora o tempo que ele teve aqui com outros profissionais. Entendi que eu preciso fazer o meu trabalho todos os dias levando em consideração o direito desse usuário a todos os serviços que ele necessita, mas sem criar expectativas que são minhas (sorria e apontava para si).

[...] são várias variáveis que interferem no desejo, na decisão dele, e isso interfere no resultado.

[...] Isso para mim é o que clarifica todos os dias o que tenho de fazer aqui dentro, porque é muito fluído esse trabalho aqui, por ser multidisciplinar, interdisciplinar, e com essas bordas meio frouxas da interdisciplinaridade(Sorrisos espontâneos). (Isabel)

É nesse momento das entrevistas que ocorre o que chamamos de “salto identitário”, esse “insight” que as Enfermeiras deram no instante em que estávamos falando do saber-fazer da Enfermagem no dispositivo de Saúde Mental (CAPS), que tem a ver com a dinâmica vivencial e com a potência que tem a fala, de fazer ver, de clarificar, ou seja, de nos mostrar que identidade é essa da Enfermeira, que ganha lugar, ganha corpo no serviço, desvelando a transcendência, o “eu posso”, tornando possível perceber as mudanças no modo de ser e ver o mundo das Enfermeiras. O que se mostrou evidente a seguir:

[...] quando vim para assistência do CAPS, eu vi que a gente não tem uma função determinada do enfermeiro no consciente do paciente e, às vezes, para alguns membros da equipe, também percebo que não entendem o nosso papel. Mas, agora analisando melhor, quando estou fazendo atendimento tenho essa consciência [...]. O atendimento de referência que eu, Enfermeira, faço é diferente do atendimento de referência que a pedagoga ou outro profissional faz, porque tenho a visão daquele usuário que é do meu saber profissional (apontava para si). (Eva)

[...] qualquer ação que eu faço no CAPS já estou fazendo reabilitação psicossocial. Tudo que fazemos aqui é no sentido de socializar o usuário, com essa finalidade. Se é uma medicação, uma conversa, uma visita, atividades manuais, acompanhamento terapêutico, enfim, qualquer intervenção, é na intenção de melhorar sua qualidade de vida. (João)

[...] depois que eu fui especificamente para a Saúde Mental, convivi com a equipe biopsicossocial e vi o potencial que a Enfermeira tem de desenvolver ações que são do cotidiano, que realizamos e têm resultados significativos, que não necessariamente perpassa por um cuidado tecnicista, [...], e de fato, esse olhar ampliado faz toda a diferença (risos).(Rebeca)

As Enfermeiras desvelam o que as diferenciam de outros profissionais, mas sempre fazendo ver que a atuação da Enfermagem na Saúde Mental se dá no cuidado compartilhado, sem anular as especificidades de cada profissional. Dessa maneira, foram descritos conhecimentos que geram inúmeras possibilidades relacionadas ao saber-fazer da Enfermagem na Saúde Mental. Conforme vemos nas falas:

[...] acho interessante a Saúde Mental que utiliza essa visão ampliada, trabalho em equipe, cuidado compartilhado com outros serviços [...]. Hoje tem um significado que vai muito mais além, [...] possibilita a melhoria da qualidade de vida, a forma como o usuário vai se sentir, até o ambiente a gente precisa considerar. (Esther)

[...] na minha graduação foi bastante enfatizada a questão da relação interpessoal com o usuário, a comunicação terapêutica e a escuta qualificada. [...] isso faz parte da nossa identidade enquanto Enfermeira. [...] fazemos atendimentos de referência para elaborar, reelaborar e avaliar o Projeto Terapêutico Singular (PTS) junto ao usuário. Acompanhamento terapêutico, pois acompanhamos o usuário em algumas necessidades extra CAPS, mas sempre incentivando a autonomia, para que ele possa ir sozinho, mas dizendo: “Estou aqui se precisar!” (olho lacrimejou). (Isabel)

Acolhimento; atendimento de referência, manejo de crise, PTS, grupo de família; atendimento familiar; reuniões intersetoriais; reuniões de equipe; estudos de casos; visita domiciliar; mediação domiciliar; faço a contratualidade, ou seja, quando empresto para ele minha credibilidade profissional, como um contrato, eu vou com ele resolver, saber como é o processo, e com o tempo ele vai caminhando sozinho; faço tudo que tem relação com a reabilitação psicossocial. (Mirian)

[...] a gente aprende desde faculdade e traz para cá, aquele cuidado integral e compartilhado, vê a Saúde Mental não apenas o aspecto físico, mas algo mais que tem a ver com aquela queixa [...], perpassa pelo olhar ampliado de toda equipe. (Noemí)

DISCUSSÃO

A discussão dos resultados do estudo consistiu no entrelaçamento de nosso olhar, como pesquisadoras, com as categorias teóricas de Maurice Merleau-Ponty, os estudos científicos que tratam da temática e o material empírico da pesquisa. Nessa experiência dialógica, que se traduz como intersubjetividade, a abordagem merleau-pontyana conduziu-nos à vivência ampla e profunda da percepção sobre a identidade da Enfermeira na Saúde Mental, considerando a noção de percepção do filósofo como corpo próprio.

O autor trata do tema a partir da discussão que faz sobre temporalidade, em que o corpo é compreendido como tempo, e consiste na síntese do “aqui e agora” vivenciado na experiência do perceber; a pessoa atualiza, no presente, um horizonte de passado e outro de futuro, sempre de forma criativa; o termo “próprio” significa o potencial de transcendência do ser humano no fluxo temporal, na perspectiva de mudança do self11. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018.. Assim, Merleau-Ponty descreve o corpo próprio como intercorporalidade, que corresponde ao exercício da percepção, mediada pela relação intersubjetiva, a qual é sempre ambígua.

A vivência do corpo próprio envolve as cinco dimensões,descritas por Merleau-Ponty, a saber: corpo habitual, perceptivo, sexual, falante e corpo do outro11. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018.. Nesse estudo, para melhor discutir os resultados, decidimos fundamentá-los, principalmente, a partir das dimensões do corpo habitual, corpo sexual e corpo do outro.

As descrições vivenciais das Enfermeiras participantes do estudo corroboram o fato de estarem inseridas em um mundo que se caracteriza pela ambiguidade, em um campo fenomenal, ao mesmo tempo em que se reconhecem como pessoas, como profissionais, imersas no contexto de um dispositivo da Saúde Mental, trazem consigo a impessoalidade, uma dimensão sensível, o que repercute no modo de perceber e agir enquanto profissionais. Logo, a identidade vai sendo construída e reconstruída de maneira dinâmica, em um movimento entre os universos do sentir (sentimentos) e do pensar (racionalidade, sociocultural)11. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018.-22. Queiroz Subrinho LQ, Sena ELS, Santos VTC, Carvalho PAL. Cuidado ao consumidor de drogas: percepção de enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família. Saude Soc. 2018 Sep;27(3):834-44. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018180079
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201818...
,1414. Peixoto LCP, Santos EKA, Andrade LM, Carvalho PAL, Sena ELS. Victim and villain: ambiguous experience of nursing students in the university context. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42:e20200365. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200365
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.2...
,2020. Braga FS, Olschowsky A. Pleasure and suffering in the work of mental health nurses in the context of the psychiatric reform. J Nurs UFPE on line. 2015[cited 2022 Jun 22];9(2):7086-94. Available from: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/10438/11241
https://periodicos.ufpe.br/revistas/revi...
.

A transição paradigmática do campo da Psiquiatria Clássica para o campo da Atenção Psicossocial tem se mostrado de maneira parcial no saber-fazer das profissionais nos dispositivos de Saúde Mental, pois, embora tenham ocorrido avanços no que se refere aos fundamentos epistemológicos do cuidar nessa área, na prática, o avanço não parece ter sido tão significativo, especialmente na área da Enfermagem; e o fato nos sinaliza para uma possível repercussão na identidade da Enfermeira, pois evidencia a dificuldade em tornar claro o papel da Enfermagem no campo da Saúde Mental.

No estudo ficou evidente a dificuldade de as Enfermeiras tornarem a ótica da Atenção Psicossocial em ato, não obstante demonstrarem a existência de mudanças do ponto de vista teórico. Assim, paradoxalmente, o estudo revela que a produção do cuidado de Enfermagem nos dispositivos de Saúde Mental ainda se mostra com ênfase na Psiquiatria Clássica, como abordagem.

No contexto dos CAPS, encontramos alguns exemplos de tal abordagem em práticas que reforçam a valorização do saber do médico-psiquiatra e da medicalização do corpo2121. Magalhães VP, Santos VN. (Des)patologização da vida: perspectiva de assistentes sociais no Recôncavo baiano. Argum. 2020 [cited 2022 Jun 22];12(2):185-201. Available from: https://periodicos.ufes.br/argumentum/article/view/28842
https://periodicos.ufes.br/argumentum/ar...
-2222. Amarante P, Pitta AMF, Oliveira WF, organizadores. Patologização e medicalização da vida: epistemologia e política. Zagodoni. São Paulo; 2018.. Percebemos uma importante identificação com o saber-fazer biologicista, apesar de encontrarem-se inseridas em um dispositivo que preconiza a abordagem psicossocial.

Estudos correlacionam essa identificação com o conhecimento limitado da profissional acerca dos princípios e objetivos da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), levando-a a adotar uma prática sem estímulo à reinserção no território e à recuperação da vida social77. Cairo JVF, Freitas THD, Francisco MTR, Lima ALR, Silva LA, Marta CB. Mental health nursing: assistance in a changing scenario. Glob AcadNurs. 2020;1(3):e56. doi: https://doi.org/10.5935/2675-5602.20200056.
https://doi.org/10.5935/2675-5602.202000...
,2323. Brandão TM, Brêda ZM, Nascimento YCML, Albuquerque MCS, Albuquerque RS. The practices of the nurse in psychosocial care: vulnerabilities and present potentialities. J Nurs UFPE. 2016;10(Suppl 6):4766-77. doi: https://doi.org/10.5205/reuol.8200-71830-3-SM.1006sup201608
https://doi.org/10.5205/reuol.8200-71830...
-2525. Andrade JNB, Siqueira FM. A atuação do enfermeiro nos Centros de Atenção Psicossocial. R Enferm UFJF. 2018;4(1):83-92. doi: https://doi.org/10.34019/2446-5739.2018.v4.14020
https://doi.org/10.34019/2446-5739.2018....
. Esses autores corroboram nossos achados, uma vez que acrescentam que tais aspectos também refletem na falta de clareza identitária da Enfermagem no campo da Saúde Mental.

A falta de clareza identitária, quanto à função da Enfermeira no dispositivo de Atenção Psicossocial, pareceu-nos evidente quando solicitamos às participantes da pesquisa que falassem a respeito de seu fazer cotidiano nos serviços, e elas descreviam a Enfermeira como a profissional “faz tudo” no campo da Saúde Mental. Estudos apontam que essa realidade não é diferente em outros países do mundo. Autores que discutem a questão identitária da Enfermagem na Saúde Mental pontuam que um dos principais problemas para a construção da identidade seria o fato de a Enfermeira desempenhar uma variedade de papéis sem status profissional situando a sua função pelo termo coloquial “Jack of all trades” ou “pau para toda obra”77. Cairo JVF, Freitas THD, Francisco MTR, Lima ALR, Silva LA, Marta CB. Mental health nursing: assistance in a changing scenario. Glob AcadNurs. 2020;1(3):e56. doi: https://doi.org/10.5935/2675-5602.20200056.
https://doi.org/10.5935/2675-5602.202000...
,2020. Braga FS, Olschowsky A. Pleasure and suffering in the work of mental health nurses in the context of the psychiatric reform. J Nurs UFPE on line. 2015[cited 2022 Jun 22];9(2):7086-94. Available from: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/10438/11241
https://periodicos.ufpe.br/revistas/revi...
,2424. Pinho ES, Souza ACS, Esperidião E. Working processes of professionals at Psychosocial Care Centers (CAPS): an integrative review. CienSaude Colet. 2018;23(1):141-51. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018231.08332015
https://doi.org/10.1590/1413-81232018231...
.

Todavia, outros estudiosos da área contestam essa ideia de desqualificação e reforçam o pensamento de que a Enfermeira na Saúde Mental mostra-se como uma profissional multiqualificada, que considera todas as necessidades dos sujeitos de maneira integral e desempenha sua função com base na flexibilidade e criatividade66. Hurley J, Lakeman R, Linsley P, Ramsay M, Mckenna‐Lawson S. Utilizing the mental health nursing workforce: a scoping review of mental health nursing clinical roles and identities. Int J Ment Health Nurs. 2022;31(4):796-822. doi: https://doi.org/10.1111/inm.12983
https://doi.org/10.1111/inm.12983...
,2626. Santangelo P, Procter N, Fassett D. Mental health nursing: daring to be different, special and leading recovery-focused care? Int J Ment Health Nurs. 2018;27(1):258-66. doi: http://doi.wiley.com/10.1111/inm.12316
http://doi.wiley.com/10.1111/inm.12316...
.Os achados de nosso estudo nos levam a concordar com esse pensamento, uma vez que a Enfermeira no campo da Saúde Mental desenvolve o seu do saber-fazer na perspectiva da integralidade do cuidado, pois abrange o sujeito em suas multiversas necessidades, numa abordagem biopsicosociocultural e espiritual2727. Chaves LDP, Mininel VA, Silva JAM, Alves LR, Silva MF, Camelo SHH. Nursing supervision for care comprehensiveness. Rev Bras Enferm. 2017[cited 2022 Jun 22];70(5):1106-11. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672017000501106&lng=en&tlng=em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
.

A integralidade na Saúde Mental diz respeito a uma ação comprometida em romper barreiras, permitindo o acolhimento da pessoa com sofrimento mental, desmistificando a ideologia da hospitalização/institucionalização e medicalização, como formas de isolamento/repressão social, desqualificação e perda de autonomia dos sujeitos66. Hurley J, Lakeman R, Linsley P, Ramsay M, Mckenna‐Lawson S. Utilizing the mental health nursing workforce: a scoping review of mental health nursing clinical roles and identities. Int J Ment Health Nurs. 2022;31(4):796-822. doi: https://doi.org/10.1111/inm.12983
https://doi.org/10.1111/inm.12983...
,2828. Nasi C, Cardoso ASF, Schneider JF, Olschowsky A, Wetzel C. Conceito de integralidade na atenção em saúde mental no contexto da reforma psiquiátrica. Rev Min Enferm. 2009 [cited 2022 Jun 22];13(1):147-52. Available from: http://www.revenf.bvs.br/pdf/reme/v13n1/v13n1a20.pdf
http://www.revenf.bvs.br/pdf/reme/v13n1/...
.

De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem, a formação em Enfermagem tem um caráter generalista, humanista, crítico e reflexivo; que possibilita à Enfermeira atuar com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania e integralidade do ser humano2929. Ministério da Educação (BR). Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 3 de 7 de novembro de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem.Diário Oficial União. 2001 nov 9 [cited 2022 Jun 22];135(215 Seção 1):37-8. Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=09/11/2001&jornal=1&pagina=37&totalArquivos=160
https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/...
. Desse modo, durante o processo formativo, a Enfermeira aprende a desempenhar um cuidado abrangente aos sujeitos, atentando-se para todas as dimensões que envolvem o modo de ser e viver humano e pautado na integralidade. Assim, além do conhecimento científico e técnico, adota em sua prática conhecimentos filosóficos, éticos e socioculturais.

Esse estilo de atuar da Enfermeira não deve ser diferente na Saúde Mental, pois a formação generalista lhe garante uma base para agir nos diversos cenários e, durante a sua graduação, desenvolve competências e habilidades que vão sendo aperfeiçoadas ao longo de sua carreira profissional. Portanto, entendemos que a identidade profissional da Enfermeira condiz com a proposta de atuação da Atenção Psicossocial, ora desempenhando suas funções com foco no seu núcleo do saber profissional (disciplinar), ora no campo da Saúde Mental (multi e interdisciplinar).

Para melhor situar o saber fazer da Enfermeira na Saúde Mental, as noções de campo e núcleo de saber são importantes. A compreensão do núcleo do saber de uma determinada profissão diz respeito à junção de conhecimentos1313. Campos GWS. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. CienSaude Colet. 2000;5(2):219-30. doi: https://doi.org/10.1590/S1413-81232000000200002
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200000...
, que, nesse caso em especial, relaciona-se os conhecimentos específicos da área da Enfermagem que delineiam suas ações e funções nos serviços de saúde. Portanto, o núcleo delimitaria a identidade de uma área do saber e da prática profissional. Já a ideia do campo refere-se a ações e práticas em um espaço de limites não tão bem delimitados entre uma profissão e outras, onde cada uma buscaria o apoio mútuo para cumprir suas tarefas teóricas e práticas1313. Campos GWS. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. CienSaude Colet. 2000;5(2):219-30. doi: https://doi.org/10.1590/S1413-81232000000200002
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200000...
.

Nas descrições vivenciais do estudo, evidenciamos a divisão do saber-fazer da Enfermeira em duas situações: as ações que são características do núcleo da Enfermagem ou específicas da profissão; e as ações reconhecidas como campo da Saúde Mental, isto é, não exclusivas da Enfermagem.

As Enfermeiras desse estudo descreveram algumas ações que realizam no CAPS, as quais consideramos núcleo profissional da Enfermagem: elaboração, realização e supervisão da Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE); consultas de Enfermagem; manejo de crises; gestão da equipe de Enfermagem, insumos e medicamentos; administração de medicação no serviço ou em domicilio; oferta de cuidados relacionados às necessidades básicas, como higiene, alimentação e sono; visitas domiciliares de Enfermagem; coleta de exames laboratoriais e encaminhamentos para exames ou outros serviços que abordem cuidados específicos de saúde de ordem geral44. Vozniak L, Mesquita I, Batista PF. . A identidade profissional em análise: um estudo de revisão sistemática da literatura. Educ. 2016;41(2):281. doi: https://doi.org/10.5902/1984644417131
https://doi.org/10.5902/1984644417131...
-55. Teodosio SSC, Padilha MI. “To be a nurse”: a professional choice and the construction of identity processes in the 1970s. Rev Bras Enferm. 2016;69(3):401-7. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167.2016690303i
https://doi.org/10.1590/0034-7167.201669...
,99. Lima RS, Silva MAI, Andrade LS, Góes FSN, Mello MA, Gonçalves MFC. Construction of professional identity in nursing students: qualitative research from the historical-cultural perspective. Rev Latino Am Enfermagem. 2020;28:e3284. doi: https://doi.org/10.1590/1518-8345.3820.3284
https://doi.org/10.1590/1518-8345.3820.3...
-1111. Gutiérrez MGR, Morais SCRV . Systematization of nursing care and the formation of professional identity. RevBrasEnferm. 2017;70(2):436-41. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0515
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0...
.

Em relação às atividades campo da Saúde Mental, realizadas de maneira compartilhada entre a equipe multiprofissional do CAPS, as Enfermeiras destacaram ações que também corroboram a literatura77. Cairo JVF, Freitas THD, Francisco MTR, Lima ALR, Silva LA, Marta CB. Mental health nursing: assistance in a changing scenario. Glob AcadNurs. 2020;1(3):e56. doi: https://doi.org/10.5935/2675-5602.20200056.
https://doi.org/10.5935/2675-5602.202000...
,2424. Pinho ES, Souza ACS, Esperidião E. Working processes of professionals at Psychosocial Care Centers (CAPS): an integrative review. CienSaude Colet. 2018;23(1):141-51. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018231.08332015
https://doi.org/10.1590/1413-81232018231...
: acolhimento; participação em reuniões de equipe e miniequipes; condução de grupos e oficinas terapêuticas; participação/representação em espaços do controle social (Conselho Municipal de Saúde, Conselho local); reuniões intersetoriais; grupos de referência; atuando como profissional de referência dos usuários do serviço; visitas domiciliares não específicas; contratualidade ou acompanhamento terapêutico; atendimento de referência; atendimento familiar; estudos de casos em equipe; participação em elaboração e execução do Projeto Terapêutico Singular.

Para compreendermos melhor a temporalidade das Enfermeiras que se apresentou a nós no momento de análise, tomamos por base o pensamento de Merleau-Ponty11. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018., segundo o qual, cada ato perceptivo traz consigo o anúncio de algo que é muito mais do que se mostra e não depende da volição; sempre se revela em perfil, embora carregue consigo um fundo, um hábito, que se arquiteta espontaneamente como uma história, desvelando as ambiguidades do mundo da vida11. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018..

O hábito, então, constrói-se enquanto experiência de nosso corpo no mundo, de modo que o corpo habitual aparece na atuação das Enfermeiras ao exercerem a Enfermagem no CAPS. Em nosso estudo percebemos que, no dia a dia do trabalho, as Enfermeiras retomam, de maneira involuntária (habitual), saberes e práticas impregnados de vivências relacionadas ao processo histórico de construção do saber-fazer da Enfermagem Psiquiátrica. Assim, foi possível perceber que o modelo psiquiátrico continua repercutindo no delineamento identitário da profissão no campo da Saúde Mental. Todavia, à luz de Merleau-Ponty, entendemos que as vivências atuais das Enfermeiras na área sempre abrem possibilidades de projeção de futuro, como algo que acontece de modo criativo, com perspectiva de transcendência, mudando paradigmas, pois as vivências do corpo habitual permitem o tornar-se outro.

Assim, não obstante a influência da tradição da Psiquiatria Clássica, a vivência do corpo próprio, mediante a dimensão corpo habitual, possibilita as Enfermeiras que atuam nos dispositivos de Atenção Psicossocial ressignificarem seu saber-fazer em consonância à ótica desse campo. Trata-se, portanto, nos termos de Merleau-Ponty, de uma vivência temporal, pois é no cotidiano da prática profissional, vivenciada nos diversos pontos da atenção em Saúde Mental, onde a Enfermeira pode sintetizar horizontes de passado e de futuro e, graças ao seu potencial criativo, consegue dar o salto de ruptura com os resquícios do modelo institucionalizante e se apropriar do saber-fazer em Saúde Mental.

Na experiência dialógica com as participantes do estudo, tivemos a oportunidade de tornar visível o real contexto das práticas de Enfermagem nos dispositivos de Saúde Mental. As Enfermeiras foram mobilizadas à reflexão, de maneira que se sentiram afetadas e impulsionadas à mudança não só de olhar, mas, também, de práticas, trazendo à tona a necessidade de identidade da Enfermagem naquele modo de atenção.

Desse modo, as descrições vivenciais das participantes do estudo permitiram-nos compreender que o saber-fazer da Enfermagem em Saúde Mental pode ser construído na vivência prática dos serviços, na interação com os usuários e equipe multiprofissional. Esse aspecto tem sido reiterado por outros estudos, que confirmam ser as situações cotidianas experienciadas em reuniões de equipe, por exemplo, recursos importantes para que Enfermeiras fundamentem suas práticas77. Cairo JVF, Freitas THD, Francisco MTR, Lima ALR, Silva LA, Marta CB. Mental health nursing: assistance in a changing scenario. Glob AcadNurs. 2020;1(3):e56. doi: https://doi.org/10.5935/2675-5602.20200056.
https://doi.org/10.5935/2675-5602.202000...
,3030. Cardoso AC, Santos DS, Mishima SM, Anjos DSC, Jorge JS, Santana HP. Challenges and potentialities of nursing work in street medical offices. Rev Latino Am Enfermagem. 2018;26:e3045. doi: https://doi.org/10.1590/1518-8345.2323.3045
https://doi.org/10.1590/1518-8345.2323.3...
.

Nessa perspectiva é que se desvelaram sentimentos de satisfação/prazer em atuar como Enfermeiras de um dispositivo da Atenção Psicossocial, mesmo que, paradoxalmente, apareceram vivências de práticas/atitudes hospitalocêntricas no cotidiano do trabalho de Enfermagem nos serviços que geram sentimentos de angústia nas Enfermeiras. Essa ambiguidade que entrelaça o sentir e o fazer de Enfermeiras é inerente à natureza humana, à percepção, e ocorre na intersubjetividade com o semelhante11. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018..

A intersubjetividade, que consiste na abertura ao outro, Merleau-Ponty caracteriza como sexualidade ou corpo sexuado. Trata-se de uma vivência de prazer e gozo, na qual a pessoa volta-se para sua dimensão sensível, para a experiência narcísica, descrita pelo autor como coexistência, nesse caso, coexistência sexual, que não tem a ver com o genital11. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018.. Consiste em experimentar sensações de afeto, satisfação, aprendizagem, entre outras, que mobilizam, por exemplo, as Enfermeiras envolvidas na relação dialógica visualizarem perspectivas de futuro, com possibilidades de superar práticas não condizentes à Atenção Psicossocial.

A partir da experiência dialógica entre o universo do sentir e o universo da reflexão, as Enfermeiras parecem entender que o cuidado em Saúde Mental se opõe a todas as formas de patologização e institucionalização do sujeito. Assim, ocorre a transcendência do paradigma de cuidado de Enfermagem, do olhar institucionalizante e manicomial para a ótica da Atenção Psicossocial.

À luz do pensamento de Merleau-Ponty, compreendemos que toda vivência transcendental corresponde a uma mudança de percepção, portanto, a operação do corpo próprio. No que se refere à construção da identidade da Enfermeira na Atenção Psicossocial, o corpo próprio se revela como corpo do outro, isto é, como experiência de tornar-se um “outro eu mesmo”,o que acontece mediante a apropriação do conhecimento teórico-prático que norteia as ações de Saúde Mental, preconizadas pelo movimento de RPB, princípios e diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental e modelo assistencial.

Todo esse processo de construção e transcendência paradigmática em Saúde Mental emerge da mobilização coletiva, que envolve diversos atores sociais como militantes da luta antimanicomial, da sociedade civil organizada, trabalhadores da Saúde Mental, familiares e usuários. Essa ideia de produção do saber-fazer vai ao encontro da perspectiva merleau-pontyana, cuja compreensão primordial é a de que todo conhecimento é construído na relação intersubjetiva, fenômeno que o autor descreve como sendo um mistério, no qual a mudança acontece mediante o entrelaçamento do privado com o social, fazendo ver o criativo, o novo e a possibilidade de tornar-se outro11. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018..

Ademais, compreendemos que o “salto identitário” da Enfermagem do modelo psiquiátrico para a Atenção Psicossocial, segundo as participantes da pesquisa, extrapola o domínio do conhecimento dos aparatos técnico-científico, ideológico e ético relativos ao cuidado de Enfermagem em Saúde Mental. Trata-se de uma vivência ambígua da profissional diante do sofrimento do outro, na qual, ao mesmo tempo em que se reconhece no semelhante aquilo que lhe é próprio - a humanidade -, considera-o como estranho, diferente, quando se remete ao histórico social da loucura e às diversas formas como lidou com ela ao longo dos séculos.

Portanto, a pesquisa permitiu a desconstrução da tese de que a identidade da Enfermeira no campo da Saúde Mental está vinculada a um construto definido em si, seja polarizando-se em aspectos da assistência técnica, seja na comunicação e no relacionamento interpessoal. A transcendência, traduzida, neste estudo, como salto identitário, desvela-se na singularidade do exercício da Enfermagem, baseado em seu campo científico específico, que envolve teorias e tecnologias de cuidado ao sujeito em suas dimensões biopsicossociais e espirituais, sustentado por um conhecimento amplo e interdisciplinar - a Saúde Mental, considerada um campo de saber, uma política de saúde pública e um modelo de Atenção Psicossocial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência de desenvolvimento da pesquisa nos permitiu ver a Enfermagem na Saúde Mental em sua potência. Ainda que transite entre a ambiguidade do saber-fazer da Psiquiatria Clássica e a construção do conhecimento na Atenção Psicossocial, mostra-se potente para dar o “salto identitário”, transcendência, evidenciando o quanto sua vivência a torna capaz para atuar na Saúde Mental.

Na fenomenologia de Merleau-Ponty, compreendemos que a experiência perceptiva e, por conseguinte, a vivência do corpo próprio, permitem que discorramos sobre a questão identitária da Enfermagem na Saúde Mental sob uma visão mais flexível e criativa, uma vez que passamos a considerar o conhecimento como uma ocorrência de campo. Isto significa que não a encontramos nos atos físicos do fazer em si das Enfermeiras, em atuação nos diversos dispositivos da área, nem tão pouco em seu intelecto, mas nas relações que estabelecem com o outro como intercorporalidade, no cotidiano do trabalho com outros profissionais, usuários, família e comunidade.

Embora reconheçamos a máxima da abordagem fenomenológica de que o conhecimento é sempre inacabado, destacamos como limitação do estudo o fato dele apresentar a experiência de profissionais inseridos em dispositivos de Saúde Mental de apenas dois municípios baianos. Assim, evidencia-se a necessidade de abrangência do estudo para outros contextos do país.

Por se tratar de uma pesquisa fenomenológica, entendemos que o estudo abre possibilidade à produção de conhecimento sobre como o cuidado de Enfermagem vem sendo desenvolvido no processo de RPB, considerando a necessidade de consonância com as diretrizes da Atenção Psicossocial. No cenário acadêmico, ambicionamos que as questões desveladas possam subsidiar discussões crítica-reflexivas relacionadas ao exercício profissional da Enfermeira que atua no contexto da Atenção Psicossocial e contribua para a estruturação e veiculação de referências, conduzidas por evidências científicas para a clarificação identitária da Enfermagem na Saúde Mental.

REFERENCES

  • 1. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018.
  • 2. Queiroz Subrinho LQ, Sena ELS, Santos VTC, Carvalho PAL. Cuidado ao consumidor de drogas: percepção de enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família. Saude Soc. 2018 Sep;27(3):834-44. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018180079
    » https://doi.org/10.1590/S0104-12902018180079
  • 3. Sena ELS, Gonçalves LHT, Granzotto MJM, Carvalho PAL, Reis HFT . Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Rev Gaúcha Enferm. 2010;31(4):769-75. doi: https://doi.org/10.1590/S1983-14472010000400022
    » https://doi.org/10.1590/S1983-14472010000400022
  • 4. Vozniak L, Mesquita I, Batista PF. . A identidade profissional em análise: um estudo de revisão sistemática da literatura. Educ. 2016;41(2):281. doi: https://doi.org/10.5902/1984644417131
    » https://doi.org/10.5902/1984644417131
  • 5. Teodosio SSC, Padilha MI. “To be a nurse”: a professional choice and the construction of identity processes in the 1970s. Rev Bras Enferm. 2016;69(3):401-7. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167.2016690303i
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167.2016690303i
  • 6. Hurley J, Lakeman R, Linsley P, Ramsay M, Mckenna‐Lawson S. Utilizing the mental health nursing workforce: a scoping review of mental health nursing clinical roles and identities. Int J Ment Health Nurs. 2022;31(4):796-822. doi: https://doi.org/10.1111/inm.12983
    » https://doi.org/10.1111/inm.12983
  • 7. Cairo JVF, Freitas THD, Francisco MTR, Lima ALR, Silva LA, Marta CB. Mental health nursing: assistance in a changing scenario. Glob AcadNurs. 2020;1(3):e56. doi: https://doi.org/10.5935/2675-5602.20200056
    » https://doi.org/10.5935/2675-5602.20200056
  • 8. Pinheiro CW, Araújo MAM, Rolim KMC, Oliveira CM, Alencar AB. Teoria das relações interpessoais: reflexões acerca da função terapêutica do enfermeiro em saúde mental. Enferm Foco. 2019;10(3):64-9. doi: https://doi.org/10.21675/2357-707X.2019.v10.n3.2291
    » https://doi.org/10.21675/2357-707X.2019.v10.n3.2291
  • 9. Lima RS, Silva MAI, Andrade LS, Góes FSN, Mello MA, Gonçalves MFC. Construction of professional identity in nursing students: qualitative research from the historical-cultural perspective. Rev Latino Am Enfermagem. 2020;28:e3284. doi: https://doi.org/10.1590/1518-8345.3820.3284
    » https://doi.org/10.1590/1518-8345.3820.3284
  • 10. Santos SC, Almeida DB, Silva GTR, Santana GC, Silva HS, Santana LS. The professional identity of female nurses: an integrative review. Rev Baiana Enfermagem‏. 2019;33:e29003. doi: https://doi.org/10.18471/rbe.v33.29003
    » https://doi.org/10.18471/rbe.v33.29003
  • 11. Gutiérrez MGR, Morais SCRV . Systematization of nursing care and the formation of professional identity. RevBrasEnferm. 2017;70(2):436-41. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0515
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0515
  • 12. Fernandes CNS, Souza MCBM. Docência no ensino superior em Enfermagem e constituição identitária: ingresso, trajetória e permanência. Rev Gaúcha Enferm. 2017;38(1):e64495. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.01.64495
    » https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.01.64495
  • 13. Campos GWS. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. CienSaude Colet. 2000;5(2):219-30. doi: https://doi.org/10.1590/S1413-81232000000200002
    » https://doi.org/10.1590/S1413-81232000000200002
  • 14. Peixoto LCP, Santos EKA, Andrade LM, Carvalho PAL, Sena ELS. Victim and villain: ambiguous experience of nursing students in the university context. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42:e20200365. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200365
    » https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200365
  • 15. Soares CJ, Malhado SCB, Ribeiro BS, Carvalho PAL, Santos VTC, Sena ELS. Inclusão da família na reabilitação psicossocial de consumidores de drogas : cuidar e ser cuidada. Enfermagem em Foco. 2021;12(1):7-12. doi: https://doi.org/10.21675/2357-707X.2021.v12.n1.3298
    » https://doi.org/10.21675/2357-707X.2021.v12.n1.3298
  • 16. Gaskell G. Entrevistas individuais e grupais. In: Bauer MW, Gaskel G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Rio de Janeiro: Petrópolis: Vozes; 2015. p. 64-9.
  • 17. Paula CC, Padoin SMM, Terra MG, Souza IEO, Cabral IE. Driving modes of the interview in phenomenological research: experience report. RevBrasEnferm. 2014;67(3):468-72. doi: https://doi.org/10.5935/0034-7167.20140063
    » https://doi.org/10.5935/0034-7167.20140063
  • 18. Guerrero-Castañeda RF, Menezes TMO, Ojeda-Vargas MG. Características de la entrevista fenomenológica en investigación en enfermería. Rev Gaúcha Enferm. 2017;38(2):e67458. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.02.67458
    » https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.02.67458
  • 19. Ministério da Saúde (BR) . Conselho Nacional de Saúde . Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Diário Oficial União. 2013 jun 13 [cited 2022 Jun 22];150(112 Seção 1):59-62. Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=13/06/2013&jornal=1&pagina=59&totalArquivos=140
    » https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=13/06/2013&jornal=1&pagina=59&totalArquivos=140
  • 20. Braga FS, Olschowsky A. Pleasure and suffering in the work of mental health nurses in the context of the psychiatric reform. J Nurs UFPE on line. 2015[cited 2022 Jun 22];9(2):7086-94. Available from: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/10438/11241
    » https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/10438/11241
  • 21. Magalhães VP, Santos VN. (Des)patologização da vida: perspectiva de assistentes sociais no Recôncavo baiano. Argum. 2020 [cited 2022 Jun 22];12(2):185-201. Available from: https://periodicos.ufes.br/argumentum/article/view/28842
    » https://periodicos.ufes.br/argumentum/article/view/28842
  • 22. Amarante P, Pitta AMF, Oliveira WF, organizadores. Patologização e medicalização da vida: epistemologia e política. Zagodoni. São Paulo; 2018.
  • 23. Brandão TM, Brêda ZM, Nascimento YCML, Albuquerque MCS, Albuquerque RS. The practices of the nurse in psychosocial care: vulnerabilities and present potentialities. J Nurs UFPE. 2016;10(Suppl 6):4766-77. doi: https://doi.org/10.5205/reuol.8200-71830-3-SM.1006sup201608
    » https://doi.org/10.5205/reuol.8200-71830-3-SM.1006sup201608
  • 24. Pinho ES, Souza ACS, Esperidião E. Working processes of professionals at Psychosocial Care Centers (CAPS): an integrative review. CienSaude Colet. 2018;23(1):141-51. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018231.08332015
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232018231.08332015
  • 25. Andrade JNB, Siqueira FM. A atuação do enfermeiro nos Centros de Atenção Psicossocial. R Enferm UFJF. 2018;4(1):83-92. doi: https://doi.org/10.34019/2446-5739.2018.v4.14020
    » https://doi.org/10.34019/2446-5739.2018.v4.14020
  • 26. Santangelo P, Procter N, Fassett D. Mental health nursing: daring to be different, special and leading recovery-focused care? Int J Ment Health Nurs. 2018;27(1):258-66. doi: http://doi.wiley.com/10.1111/inm.12316
    » http://doi.wiley.com/10.1111/inm.12316
  • 27. Chaves LDP, Mininel VA, Silva JAM, Alves LR, Silva MF, Camelo SHH. Nursing supervision for care comprehensiveness. Rev Bras Enferm. 2017[cited 2022 Jun 22];70(5):1106-11. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672017000501106&lng=en&tlng=em
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672017000501106&lng=en&tlng=em
  • 28. Nasi C, Cardoso ASF, Schneider JF, Olschowsky A, Wetzel C. Conceito de integralidade na atenção em saúde mental no contexto da reforma psiquiátrica. Rev Min Enferm. 2009 [cited 2022 Jun 22];13(1):147-52. Available from: http://www.revenf.bvs.br/pdf/reme/v13n1/v13n1a20.pdf
    » http://www.revenf.bvs.br/pdf/reme/v13n1/v13n1a20.pdf
  • 29. Ministério da Educação (BR). Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 3 de 7 de novembro de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem.Diário Oficial União. 2001 nov 9 [cited 2022 Jun 22];135(215 Seção 1):37-8. Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=09/11/2001&jornal=1&pagina=37&totalArquivos=160
    » https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=09/11/2001&jornal=1&pagina=37&totalArquivos=160
  • 30. Cardoso AC, Santos DS, Mishima SM, Anjos DSC, Jorge JS, Santana HP. Challenges and potentialities of nursing work in street medical offices. Rev Latino Am Enfermagem. 2018;26:e3045. doi: https://doi.org/10.1590/1518-8345.2323.3045
    » https://doi.org/10.1590/1518-8345.2323.3045

Editado por

Editor associado:

Helena Becker Issi

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2022
  • Aceito
    17 Out 2022
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escola de Enfermagem Rua São Manoel, 963 -Campus da Saúde , 90.620-110 - Porto Alegre - RS - Brasil, Fone: (55 51) 3308-5242 / Fax: (55 51) 3308-5436 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: revista@enf.ufrgs.br