Entrevista narrativa e reconstrução de caso biográfico: alternativa metodológica nas pesquisas em enfermagem

RESUMO

Objetivo:

Apresentar a Entrevista Narrativa Biográfica e Reconstrução de Caso Biográfico como alternativas metodológicas nas pesquisas em Enfermagem.

Métodos:

Estudo teórico-reflexivo que apresenta aspectos do método narrativo biográfico e de reconstrução de caso biográfico segundo o referencial de pesquisa social interpretativa alemã desenvolvido pela socióloga Gabriele Rosenthal.

Resultados e discussão:

A reflexão foi organizada em três tópicos: aspectos conceituais interpretativos de pesquisas biográficas; entrevista narrativa biográfica na produção dos dados; reconstrução biográfica de caso. Esse referencial mostrou-se adequado para acessar e compreender a perspectiva dos agentes sociais diante de práticas e fenômenos na área de Enfermagem.

Conclusão:

Abordagem de narrativas biográficas é uma ferramenta importante para a pesquisa em Enfermagem, uma vez que possibilita compreender a vida dos indivíduos a partir de suas próprias ações e interpretações.

Palavras-chave:
Biografia; Pesquisa qualitativa; Sociologia; Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

To present the biographical narrative interviews and biographical case reconstruction as methodological alternatives in nursing research.

Methods:

Theoretical-reflective study that presents the aspects of the biographical narrative method and of reconstruction of biographical cases according to the German interpretive social research framework developed by the sociologist Gabriele Rosenthal.

Results and discussion:

The reflection was organized into three topics: conceptual interpretative aspects of biographical research; biographical narrative interview in the production of data; reconstruction of biographical case. This framework proved to be adequate to access and understand the perspective of the social agents in the face of practices and phenomena in the field of Nursing.

Conclusion:

Approach of biographical narratives is an important tool for research in Nursing, since it makes it possible to understand the lives of individuals based on their own actions and interpretations.

Keywords:
Biography; Qualitative research; Sociology; Nursing

RESUMEN

Objetivo:

Presentar la entrevista narrativa biográfica y la reconstrucción de caso biográfico como alternativas metodológicas en investigación en Enfermería.

Métodos:

Estudio teórico-reflexivo sobre la presentación de los aspectos del método narrativo biográfico y la reconstrucción de un caso biográfico según el marco de investigación social interpretativo alemán desarrollado por la socióloga Gabriele Rosenthal.

Resultados y discusión:

La reflexión se organiza entresejes: aspectos conceptuales interpretativos de investigaciones biográficas; entrevista narrativa biográfica en la producción de datos; reconstrucción biográfica de caso y tipología. Este marco se mostro adecuado para acceder y comprenderla perspectiva de los agentes sociales frente a las prácticas y fenómenos en el campo de la Enfermería.

Conclusión:

Abordaje de las narrativas biográficas es una herramienta importante para la investigación en Enfermería, ya que posibilita comprenderla vida de los individuos a partir de sus propias acciones e interpretaciones.

Palabras clave:
Biografía; Investigación cualitativa; Sociología; Enfermería

INTRODUÇÃO

A complexidade do processo de saúde-doença-cuidado tem desafiado profissionais e pesquisadores para uma maior compreensão dos fenômenos vividos na atenção aos pacientes e familiares. Para esse entendimento, exige-se a realização de pesquisas de diferentes abordagens, sejam elas quantitativas, qualitativas ou mistas.

A qualidade nas pesquisas qualitativas depende, entre outros aspectos, da adoção de um marco teórico que possa abranger fenômenos complexos, socialmente significativos para as pessoas e a sociedade, e que não seja redutívelà descrição puramente numérica1. Entretanto, para aprofundar a compreensão de aspectos não mensuráveis e que dizem respeito aos significados e sentidos atribuídos pelas experiências vividas por indivíduos que interferem no seu modo de pensar e agir em saúde, tem-se requerido a utilização de abordagens de pesquisa de natureza epistemológica compreensiva e interpretativa. Para tanto, a fenomenologia, como enquadre teórico-metodológico, mostra-se adequada para compreender esses fenômenos no contexto do cuidado em saúde e enfermagem.

A fenomenologia, fundamentada nas reflexões e estudos de Edmund Husserl, ganha status de ciência voltada às experiências vividas e se ocupa da essência dos fenômenos existenciais do ser humano. Isso possibilita à enfermagem investigar diferentes dimensões do existir do ser humano, em determinado tempo e espaço, e do modo singular de atribuir significado aos fenômenos2. Contudo, ainda é frequente observar publicações dessa natureza sem que sejam fornecidas informações detalhadas do referencial teórico-metodológico para que os leitores possam examinar a adequação do método ao aporte epistemológico utilizado e aos objetivos da investigação3.

No campo da epistemologia social compreensiva, Alfred Schutz4destacou-se pela articulação que realizou entre o pensamento da fenomenologia e das Ciências Sociais, dando consistência fenomenológica à Sociologia, criando uma teoria do conhecimento e da produção de realidade social pelos indivíduos na vida cotidiana. Sua teoria foi uma importante fonte na elaboração do Método Narrativo Biográfico proposto por Fritz Schütze que, posteriormente foi desenvolvida por Gabriele Rosenthal5.

A Sociologia Compreensiva é vista como a ciência que busca compreender o sentido das ações sociais no mundo da vida4. Tais ações são interpretadas a partir do estoque de conhecimento à mão de cada indivíduo e da compreensão motivacional dos interesses socialmente construídos, além do sistema de relevância, elementos que são possíveis acessar por meio da entrevista biográfica.

Para além de uma entrevista clínica, neste referencial busca-se operar com outro olhar sobre um método de produção de informações mediante à entrevista narrativa biográfica (relatos orais biográficos) e por conseguinte, do uso da reconstrução de caso biográfico (método de análise)5. Assim, este artigo tem como objetivo apresentar os métodos da Entrevista Narrativa Biográfica e da Reconstrução de Caso Biográfico como alternativas metodológicas nas pesquisas em Enfermagem. Entende-se que este artigo traz subsídios teórico-metodológicos que podem contribuir para a realização de pesquisa em enfermagem e saúde relacionadas ao método proposto.

MÉTODO

Trata-se de um estudo teórico-reflexivo sobre a apresentação dos principais aspectos do método narrativo biográfico e de reconstrução de caso biográfico segundo o referencial de pesquisa social interpretativa alemã da socióloga Gabriele Rosenthal5. A construção textual reflexiva foi alicerçada em literatura científica internacional e nacional sobre a temática, a qual foi organizada em três tópicos: Aspectos conceituais interpretativos de pesquisas biográficas; Entrevista narrativa biográfica na produção dos dados; Reconstrução biográfica de caso e tipologia como análise de dados.

Inicialmente, o presente artigo busca embasar conceitualmente os aspectos teóricos (fenomenológicos e sociológicos) em análise, depois apresenta aspectos operacionais (metodológicos) na produção de informação e análise interpretativa guiadas pelo referencial. As possibilidades de contribuições para as pesquisas em enfermagem foram apresentadas de forma transversal no texto.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Aspectos conceituais e interpretativos de pesquisas biográficas

Os usos de relatos orais em pesquisa são diversos e vêm contemplando diferentes abordagens e objetos de investigação. Em geral, as abordagens de pesquisa biográfica atendem a desenhos de pesquisa qualitativos, mas também podem ser trianguladas com outros métodos, incluindo métodos quantitativos5.

No Brasil, o desenvolvimento de pesquisa baseada em relatos orais biográficos tem crescido nas últimas décadas na medida em que houve a introdução de uma perspectiva de pesquisa biográfica interpretativa, nascida na Alemanha na década de 1920 com base em autores vinculados à sociologia interpretativa e fenomenológica, tais como Georg Simmel, Max Weber e Alfred Schütz6.

Dentre as perspectivas em pesquisa biográfica, há investigações sendo conduzidas no mundo todo a partir da abordagem de reconstrução de caso biográfico, desenvolvida pela pesquisadora alemã Gabriele Rosenthal, elaborada a partir dos trabalhos de Fritz Schüze, e do aporte da Sociologia de orientação fenomenológica de Alfred Schütz. A proposta central desta metodologia é reconstruir a gênese biográfica de determinado fenômeno social a partir das experiências e das interpretações dos próprios sujeitos entrevistados. A abordagem remonta, portanto, a tradição interpretativista das Ciências Sociais, e desloca seu foco para a forma como as pessoas criam e recriam a realidade social na vida cotidiana, considerando seus recursos, agência, mas também as limitações estruturais presentes na vida social.

Essa forma de abordagem torna-se relevante também para as pesquisas em Enfermagem, sobretudo envolvendo experiências vividas no processo saúde-doença-cuidado. Isso porque o modo como os indivíduos interpretam suas próprias experiências revela aspectos importantes sobre biografia, potencialidades e fragilidades, permitindo obter um olhar aprofundado dos significados das experiências. Autores7 defendem que há congruência entre a fenomenologia e a prática de enfermagem, pois são ontologicamente subjetivas, uma vez que um componente fundamental da Enfermagem é o cuidado holístico, pautado no bem-estar biopsicossocial e espiritual de indivíduos, famílias e comunidades.

No quadro 1, estão presentes os principais elementos da Pesquisa Social Interpretativa alemã descrita por Rosenthal5, organizados segundo as fases da entrevista narrativa biográfica e da análise reconstrutiva de caso biográfico. Esse tipo de entrevista viabiliza dois pressupostos da abordagem interpretativa: o primeiro tem foco na ação e na interação social interpretada; e o segundo diz respeito à relevância do entrevistado (aquilo que é importante para determinado sujeito) durante todo o processo de produção dos dados de pesquisa. Por sua vez, a análise reconstrutiva de caso biográfico permite que a análise dos dados produzidos siga esses mesmos pressupostos, na medida em que não impõe ao material a ser analisado perguntas e hipóteses pré-estabelecidas, orientadas por um problema de pesquisa fechado.

Quadro 1
Elementos conceituais e procedimentais do processo de produção e análise de dados do referencial segundo Rosenthal. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, 2022

FASES	ELEMENTOS DA PESQUISA SOCIAL INTERPRETATIVA ALEMÃ (SOCIÓLOGA GABRIELE ROSENTHAL)
PRODUÇÃO DE DADOS	- Entrevista Narrativa biográfica - Princípio da abertura - Acesso ao sistema de relevância - Três etapas: Pergunta biográfica aberta Perguntas narrativas internas Perguntas narrativas externas - Memos
ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO	- Análise interpretativa - Reconstrução biográfica de caso - Dados biográficos - Campo temático e vida narrada - Vida vivenciada - Microanálise - Contraste - Construção de tipos

• Fonte: Elaborado pelos autores.

Como descrito posteriormente neste artigo, o princípio de abertura, conforme estabelecido na pesquisa social interpretativa é um pilar essencial para que métodos que se pretendam interpretativos possam adequar suas práticas na direção das experiências e interpretações cotidianas dos próprios sujeitos de pesquisa e a maneira como vivenciam determinado fenômeno. A abertura para suas perspectivas diz respeito à noção fenomenológica central de que só é possível compreender a “realidade” a partir das diferentes consciências que olham para o mundo externo. A própria consciência do pesquisador, nesse sentido, entra na ordem de análise, visto que é produtora de interpretação da interpretação dos sujeitos de pesquisa5.

Na medida em que se dá a análise das entrevistas, as interpretações dos sujeitos sobre os dados biográficos são reconstruídas como uma maneira de se chegar à gênese de motivações para as ações. A reconstrução visa a compreender interpretações presentes sobre eventos experienciados no passado5. A reconstrução e a sequencialidade - preceitos básicos nesta perspectiva - só são aplicáveis com a utilização da abertura na coleta e na análise de dados e a partir do reconhecimento dos sujeitos como agentes que atribuem sentido às suas ações.

No contexto da pesquisa em Enfermagem, entende-se que as narrativas biográficas podem levar ao conhecimento e à compreensão de vivências do cotidiano do processo de saúde-doença-cuidado. A forma como as condições de saúde e diagnósticos são interpretados, por exemplo, tem relação com o tempo e o espaço e as abordagens biográficas podem contribuir para o entendimento da maneira como as pessoas lidam com suas perdas e problemas de saúde8.

Entrevista narrativa biográfica na produção dos dados

A entrevista narrativa biográfica dá acesso ao sistema de relevâncias das pessoas entrevistadas por meio do princípio da abertura, em que são dispensadas perguntas norteadoras que direcionam a fala do entrevistado. Ela inicia com uma pergunta biográfica aberta e ampla a fim de evitar um enquadramento dos temas a serem levantados e explorados5.

Durante a produção de dados, a entrevista biográfica é realizada em etapas. Na primeira, é feita uma pergunta aberta e ampla, possibilitando ao entrevistado oportunidade para falar de experiências consideradas por ele importantes para constituir sua biografia. Nesta fase, não são realizados comentários ou inserções que possam influenciar sua fala. A etapa conta com a auto apresentação do entrevistado da narrativa principal, que é desenvolvida autonomamente5. Atenção especial é dada aos temas abordados e à forma com que o falante expõe suas experiências, sendo realizadas breves anotações com palavras-chave, tomando sempre como referência o sistema de relevâncias e as experiências dos entrevistados na ordem em que são apresentadas. O sistema de relevância caracteriza-se por orientar-se pelos interesses do indivíduo em uma situação determinada. Isso implica dizer que o indivíduo separa, dentre os elementos presentes na situação, os que servem para defini-la à luz dos propósitos que essa pessoa tem em mente4^-10. Essas anotações são utilizadas para o desenvolvimento de um roteiro para a fase seguinte, específico a cada caso. As anotações devem ser escritas na linguagem dos entrevistados e não na do pesquisador, desconsiderando assim a interpretação do entrevistador. Quando o entrevistado sinaliza o fim da apresentação, dá-se início à segunda etapa da entrevista5.

Na segunda etapa, são realizadas perguntas narrativas internas com base nas anotações do pesquisador. O objetivo é o aprofundamento temático e a busca por narrativas, ou seja, exemplos empíricos vivenciados pelo entrevistado referentes a determinado tema mencionado em seu relato inicial. Essa etapa é baseada na sequência das anotações realizadas durante o relato principal, garantindo assim o seguimento do sistema de relevâncias do biografado. Já na terceira etapa, podem ser inseridas perguntas externas com questões de interesse do pesquisador ainda não mencionadas no relato, mas relacionadas ao contexto de vida do entrevistado, ou ainda, informações pontuais, como datas e locais que não ficaram claros5.

Finalizadas as três etapas, será realizado um Memoda entrevista, antes de seguir para a próxima. O Memo constitui-se de um memorando em que são descritas as impressões do pesquisador sobre a interação dos momentos antes e após a entrevista, elencando os dados biográficos, bem como uma descrição detalhada da entrevista em si6. Assim, a análise dos dados iniciais ocorre de forma paralela à geração de dados.

Reconstrução biográfica de caso e construção tipológica

A abordagem de narrativa biográfica de Rosenthal5 propõe a reconstrução biográfica das entrevistas, permitindo captar as experiências subjetivas dos entrevistados através de cinco passos:1) análise dos dados biográficos; 2) vida narrada (análise do campo temático e do material textual); 3) vida vivenciada; 4) Microanálise; 5) Contraste entre história de vida vivenciada x história de vida narrada e construção tipológica:

No primeiro passo, análise dos dados biográficos, inicialmente, é realizada a leitura da entrevista, destacando-se os dados biográficos e colocando-os em sequência cronológica. Em seguida, são acrescentadas informações de outras fontes e o contexto histórico correspondente a cada dado. É feito o levantamento de dados dos antecedentes do entrevistado (história do pai e da mãe), para complementar a análise e a construção das narrativas5.

Após a inclusão de informações complementares é criada uma descrição densa acerca da situação de nascimento do biografado e sobre a história pregressa de sua família. Nesse momento, ainda não é considerada a interpretação do entrevistado sobre a sua própria vida, apenas as informações por ele fornecidas e informações complementares, excluindo relatos centrados em sentimentos e percepções. A partir daí, são formuladas hipóteses primárias, hipóteses secundárias, contra-hipóteses e follow-ups, partindo de uma perspectiva abdutiva -método da hermenêutica objetiva de Oevermann - acerca de cada um dos dados biográficos elencados5. Esse mesmo processo é realizado sobre os demais dados biográficos do entrevistado (organizados cronologicamente), como apresentado no quadro 2.

Quadro 2
Método de criação de hipóteses para dados biográficos. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, 2022

1. PRIMEIRO DADO	Situação de nascimento
1.1 Hipótese principal
1.1.1 Hipótese secundária	1.1.1.1 Hipótese secundária 1 1.1.1.2 Hipótese secundária 2 1.1.1.3 Hipótese secundária 3
1.2 Hipótese principal
1.2.1 Hipótese secundária	1.2.1.1 Hipótese secundária 1 1.2.1.2 Hipótese secundária 2 1.2.1.3 Hipótese secundária 3
2. SEGUNDO DADO	Acontecimentos dos primeiros anos de vida (entrada na escola ou outras mudanças relevantes relatadas pelo entrevistado). Dados subsequentes seguem a cronologia da vida do biografado.

• Fonte: Lavall, 2019.

Com esse processo de geração de hipóteses, tenta-se evidenciar quais os possíveis caminhos a serem percorridos, bem como quais limitações estruturais e contextuais estavam em jogo. As hipóteses principais descrevem de modo mais geral qual poderia ter sido o caminho escolhido e a situação enfrentada pelo entrevistado na época, e as secundárias restringem-se às possibilidades dentro de um cenário traçado pela hipótese principal. Ao mesmo tempo, procura-se vislumbrar hipóteses contrárias às principais, com o intuito de não seguir um caminho determinado ao cogitar as escolhas e ações do biografado. Na sequência, as follow-ups representam consequências mais específicas, que podem ter sido desencadeadas pelas hipóteses secundárias e como essas consequências poderiam ter influenciado no contexto e nas ações futuras do biografado. Por último e para finalizar esse passo, é realizado um resumo dos dados biográficos que servem como preparação para a etapa “reconstrução da vida vivenciada”5.

No segundo passo, análise da vida narrada (auto apresentação, análise do campo temático e do material textual) será considerada a forma como o biografado narrou sua própria vida, sendo analisados os trechos segmentados e sequenciados de acordo com o tipo de texto: relato, narração, argumentação, relatório, descrição, história e situação condensada. Espera-se, na entrevista narrativa biográfica, a prevalência de sequências da entrevista com tipo de texto narrativo, pois é o tipo textual em que o entrevistado reconstrói sua participação como agente, recapitulando a experiências tidas no passado a partir de sua própria perspectiva, contudo, todos os tipos textuais são considerados nesta etapa da análise5.

Além disso, os temas contidos na fala do entrevistado também integram a análise dessa etapa. Assim, para preparar a análise, na hora de construir a separação das sequências de texto, é levado em consideração os seguintes critérios: troca de falante, mudanças no conteúdo da fala e no tipo do texto.

Outro aspecto a ser analisado nessa etapa é a interação do entrevistado com o entrevistador, uma vez que a entrevista é produzida na interação mútua entre os dois, sendo levando em conta a situação em que a entrevista aconteceu. É nessa etapa da análise que os preconceitos e valores do entrevistador se tornam claros e acontece a avaliação de que modo interferem na narrativa do entrevistado e também na análise dos dados. É destacado aí o rigor metodológico da transparência ao explicitar todas as condições em que foram coletados os dados que, mais tarde, serão analisados. Sendo assim, uma postura a ser adotada pelo pesquisador durante todo o trabalho. Ainda, nessa fase, são levantadas hipóteses sobre cada um dos trechos sequenciados, sendo consideradas as seguintes questões: motivo que levou o entrevistado a se apresentar na sequência relatada, o momento do discurso e tipo textual, tempo de fala, e o motivo da omissão de determinadas partes da vida? Analisa-se também o quanto o entrevistado está orientado para o sistema de relevância do entrevistador, observando aquilo que vem à tona na segunda fase da entrevista, quando começam as perguntas narrativas internas do entrevistador. Em outras palavras, é nesse momento da entrevista que são analisados os mecanismos que influenciam a escolha dos temas abordados na estruturação da narrativa5.

É importante enfatizar que nessa etapa é reconstruída a perspectiva presente do biografado. Ela ajuda a assumir uma postura crítica em relação à origem dos dados para que o pesquisador não se deixe levar pelo interesse de apresentação. Essa etapa visa encontrar a origem de experiências vivenciadas pelo entrevistado, buscando reconstruir a forma e a estrutura na história de vida, conforme narrada. Nesse momento não interessa resgatar os acontecimentos conforme ocorreram à época, mas investigar os motivos que levam o entrevistado a relatar os fatos da forma como relatou, de forma latente ou manifesta. Investigam-se os mecanismos que determinam a escolha dos temas retratados e a forma como estrutura sua fala e os elementos textuais que constituem um ou mais campos temáticos. O produto desse passo serve como preparação para o passo seguinte5.

Na terceira etapa é realizada a reconstrução da história de vida vivenciada, é o momento em que as hipóteses da análise dos dados biográficos são comparadas com trechos da entrevista, em que o entrevistador relata aquela experiência. Assim, os resultados do primeiro passo (análise dos dados biográficos) e do passo dois (texto e campo temático) serão contrastados posteriormente. A reconstrução da vida vivenciada é baseada na perspectiva do passado do indivíduo, como ele viveu e interpretou as experiências no passado, como ele atuou e tomou suas decisões ao longo de sua história de vida. Assim, com base no texto da entrevista, as hipóteses do primeiro passo serão comprovadas ou rejeitadas. Salienta-se que essa etapa é fundamentada teoricamente com base nos motivos porque de Alfred Schutz, que refere-se a uma ação do passado, já concluída, podendo também ser denominada razão ou causa. Trata-se de explicar uma ação recorrendo-se ao pretérito a partir de um olhar retrospectivo11. Nesse sentido, objetiva-se a compreensão intersubjetiva do caso, expondo o processo interpretativo de forma compreensiva, em que as interpretações são fundamentadas com passagens do texto transcrito ou das observações de campo. A reconstrução da estrutura do caso é realizada para desvelar o significado biográfico que as situações tinham para o biografado na época em que ocorreram.

A Microanálise, apesar de estar na quarta etapa de análise, pode ser realizada em qualquer momento da reconstrução. Ela visa compreender melhor passagens de texto contraditórias, pouco claras, que aparentam ter duplo significado ou mostram uma estrutura latente. É realizada por meio de uma análise detalhada, em ordem sequencial, linha por linha, ou palavra por palavra, em que são consideradas enfaticamente expressões da linguagem com gírias, palavras enfatizadas, expressões não linguísticas como pausas longas e diminuição no tom de voz. Além disso, essa fase de análise serve também para testar e ampliar as hipóteses geradas nos passos analíticos anteriores e encontrar as estruturas latentes que direcionam a apresentação do biografado5.

Na quinta etapa, contraste entre a história de vida narrada e a história de vida vivenciada, são explicadas as diferenças ou contradições entre o presente e o passado na perspectiva do entrevistado. Nesse sentido, é realizada uma comparação contrastante entre a vida narrada e a vida vivenciada, com a finalidade de realizar possíveis explicações entre diferenças para essas duas perspectivas. Esse contraste possibilita descobrir a origem da diferença entre o narrado e o vivenciado e quais experiências biográficas estão por trás do relato e dos acontecimentos. Ao finalizar a reconstrução de caso, o pesquisador retoma a questão de pesquisa, tomando-a como base para buscar, na reconstrução de caso biográfico, elementos e fenômenos inter relacionados que possam respondê-la. Assim, ao final da análise de diferentes casos biográficos, será possível realizar uma construção tipológica, ou seja, construir tipos de experiência ou de fenômenos vinculados a estes diferentes casos5.

A ideia de tipificação aparece no método de reconstrução de caso biográfico a partir de duas vertentes teóricas. A primeira, de Alfred Schütz e sua teoria do conhecimento, em que é a tipicidade dos objetos o que possibilita aos indivíduos atribuir significados a partir de características gerais deste, e não necessariamente de suas particularidades. Por exemplo, apesar das casas serem diferentes umas das outras, seus atributos típicos - o que é comum entre elas - possibilitam que qualquer casa possa ser reconhecida como casa por aqueles que compartilham uma linguagem cultural comum12. Esta ideia é originada a partir de uma segunda vertente teórica implícita, a de Max Weber e sua noção de tipo ideal, que seria uma construção abstrata baseada nas características fundamentais, básicas, de determinado fenômeno empírico. Nos ajuda, assim, a tangenciar variedades de maneira a torná-las acessíveis cientificamente e comparativamente13.

Em outras palavras, o pesquisador poderá ver como os fenômenos vinculados ao seu interesse de pesquisa surgiram, se desenvolveram, e foram se transformando a partir da perspectiva dos próprios sujeitos que os vivenciaram, podendo identificar quais outros eventos e experiências estão direta ou indiretamente ligadas, em cada caso, ao problema de pesquisa. O pesquisador fará isso sem impor os achados de outros pesquisadores ou suas próprias crenças sobre o tema, mas sim reconstruindo vários casos biográficos e diferentes ações e interpretações que fizeram parte e constituíram um dado fenômenos social, e, consequentemente, como essas ações e interpretações se ligam e são informadas por processos socioeconômicos, políticos e históricos12.

Assim, a construção tipológica faz parte da última etapa da reconstrução biográfica de caso, e os tipos são construídos a partir dos casos particulares com base na diferenciação entre casos de contraste mínimo e contraste máximo. Enquanto o contraste mínimo considera casos reconstruídos que apresentam semelhanças a respeito do fenômeno pesquisado, o contraste máximo diz respeito aos casos que apresentam a maior diferença entre si. Deve-se ressaltar, ainda, que um único caso poderá representar um possível tipo no universo investigado, mesmo que não haja frequência estatisticamente relevante em sua ocorrência. A lógica de generalização desta abordagem, portanto, independe da regularidade de aparecimento dos fenômenos investigados5.

CONCLUSÃO

A abordagem de narrativas biográficas é uma ferramentaimportante que pode ser utilizada para as pesquisas em Enfermagem, uma vez que possibilita compreender a vida dos indivíduos a partir do seu mundo vivido, do seu próprio sistema de relevâncias. Essa abordagem visa, portanto, a interpretação dos sujeitos em relação à vivência de eventos e situações do cotidiano, comuns a muitos indivíduos, mas únicas e singulares para cada um deles, como ocorre no processo saúde-doença-cuidado.

Nesse sentido, espera-se avanço do conhecimento científico específico a partir de uma técnica de pesquisa, até então, pouco difundida na área de Enfermagem. O rigor metodológico apresentado neste artigo garante a transparência na descrição dos dados em todas as etapas de coleta e análise. A busca por explicitar a interpretação dos indivíduos que vivenciam os fenômenos sociais investigados numa pesquisa oferece uma perspectiva para o entendimento da internalização das normas sociais e também da reprodução, de forma ativa, por meio de prática de códigos sociais.

Este tipo de abordagem de pesquisa já foi utilizada, por exemplo, em investigações sobre as experiências biográficas de pessoas que perderam um familiar para o suicídio⁽⁸⁾. Os resultados indicaram que existe uma contribuição possível dos resultados tanto para produção e implementação de políticas de prevenção de suicídio quanto de posvenção. A posvenção, em especial, tem-se mostrado um espaço importante que necessita de maior atenção interdisciplinar por parte das áreas em Saúde(14-15). Sendo assim, o trabalho aqui apresentado permite avanço na Translação do Conhecimento, na medida em que oferece resultados que podem subsidiar aplicação, reunindo recursos dinâmicos e interativos.

As narrativas biográficas permitem evidenciar não só informações individuais, mas também elementos socioculturais contextualizados no tempo histórico e econômico. Contudo, não podem responder a problemas de pesquisa que buscam, por exemplo, generalizações vinculadas à lógica quantitativa, visto que a generalização, aqui, não permite afirmações de frequência e constância de determinado fenômeno. Na Enfermagem, e na área da Saúde de forma geral, as narrativas biográficas podem servir para acessar estruturas e representações sociais sobre condições de saúde individual e coletiva, possibilitando construir tipologias - generalizações teóricas - a partir de estudos de caso, úteis para compreender dificuldades experienciadas pelos indivíduos. Tal compreensão contribui para qualificar o cuidado em Saúde e Enfermagem e a formação de profissionais dessas áreas engajados para proporcionar um cuidado digno, respeitoso e integral do ser humano e coletividades.

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Editado por

Editor associado:

Helena Becker Issi

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  13 Mar 2023
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  07 Jul 2022
• Aceito
  10 Out 2022