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A filosofia como contribuição para a construção do conhecimento na Enfermagem

RESUMO

Objetivo:

Tecer considerações acerca do conhecimento da Enfermagem e da inclusão da Filosofia, apontando as contribuições para o Cuidado.

Método:

Texto teórico que teve como base literária a contribuição de autores da Filosofia e de estudiosas e teoristas da área de Enfermagem.

Resultado:

Constou da enumeração de características filosóficas importantes para alavancar novos conhecimentos e habilidades para o avanço da Enfermagem.

Conclusão:

O estudo apontou a contribuição maior da Filosofia ao desvelar o Cuidado como a essência do Humano, adotando-o também como a essência da Enfermagem.

Palavras-chave:
Filosofia; Enfermagem; Ciência; Conhecimento; Cuidados de enfermagem

ABSTRACT

Objective:

To make considerations about Nursing knowledge and the inclusion of Philosophy, pointing out the contributions for Caring.

Method:

Theoretical text based on the literature from authors of Philosophy and Nursing scholars and theorists.

Results:

The study offered an enumeration of philosophical characteristics important for the promotion of new knowledge and abilities for the advance of Nursing.

Conclusion:

The text indicated the major contribution of Philosophy, revealing Caring as the essence of humans and embracing it as the essence of Nursing as well.

Keywords:
Philosophy; Nursing; Science; Knowledge; Nursingcare

RESUMEN

Objetivo:

Hacer consideraciones sobre el conocimiento Enfermero y la inclusión de la Filosofía y su contribución para el Cuidado.

Método:

Texto teórico que tuve como base literária autores de la Filosofia y de estudiosas y teoristas de Enfermería.

Resultados:

Constó en la enumeración de características filosóficas importantes en alargar nuevos conocimientos y habilidades para el avance de la Enfermería.

Conclusión:

El texto señaló la mayor contribución de la Filosofía en desvelar el Cuidado como la esencia del Humano, abrazandolo también como la esencia de la Enfermería.

Palabras clave:
Filosofía; Enfermería; Ciencia; Conocimiento; Atención de enfermería

INTRODUÇÃO

O presente texto tem como objetivo apontar as contribuições da Filosofia para o cuidado na saúde privilegiando a área da Enfermagem. Primeiramente faço um apanhado dos eventos de maior destaque, em meu ponto de vista, no desenvolvimento do conhecimento da Enfermagem e que são marcados por uma busca de um status de Ciência.

De forma breve apresento alguns tópicos gerais característicos da Filosofia e, a seguir, aspectos específicos na inserção da Filosofia na Enfermagem considerados importantes e fundamentais segundo alguns autores.

Finalmente enfoco a natureza do ser humano e o foco da Enfermagem, momento em que aponto o Cuidado como a mais exitosa contribuição da Filosofia, principalmente para a Enfermagem, ampliando seu conceito e dando novo frescor à disciplina.

Considero inegável a importância do conhecimento na Enfermagem como uma reflexão necessária para o avanço da disciplina. Alguns fatos importantes destacaram-se no seu desenvolvimento em relação à construção do conhecimento e sua busca por um status de Ciência.

A entrada da Filosofia oferece uma nova visão e contribui de forma marcante para desvelar novas abordagens. Sua introdução e as contribuições no cenário da Enfermagem exercem influência na forma de visualizar sua prática tradicionalmente determinada por um pensamento oriundo das linhas do positivismo e do cartesianismo e suas semelhanças com os aspectos da área das ciências médicas.

Enfermeiras e enfermeiros transitam em mais de um paradigma e há diferentes proposições na definição e denominação destas visões paradigmáticas ou correntes de pensamento. Em um mergulho mais profundo na evolução da enfermagem estas transições ficam mais visíveis e currículos e planos de ensino são uma boa fonte para uma investigação sobre o assunto.

O desenvolvimento do conhecimento na enfermagem

Minha formação foi dentro de um pensamento biologicista e hospitalocêntrico em que a prática de enfermagem se caracterizava por ser de caráter dualista, com enfoque no profissional de enfermagem e suas atividades de cunho técnico, priorizando as patologias e a cura e na realização dos procedimentos terapêuticos prescritos pela medicina. Havia já um início desse discutir o paciente como pessoa individual, cujas necessidades poderiam ser de ordem biológica, psicológica, social e mais tarde, espiritual. Ações da enfermagem na denominada “Assistência de Enfermagem”, incluíam uma série de ações padronizadas e registradas em manuais de “técnicas” logo acrescentadas pela descrição de “princípios científicos” que as embasavam.

Em minha opinião, penso que o período mais significativo e fértil (não incluirei datas nestes períodos ou fases) se observa na busca de um conhecimento próprio, apesar de, mesmo assim, valer-se do conhecimento de outras disciplinas, no sentido de firmar-se como ciência, que foi o da criação e construção de teorias, modelos, marcos conceptuais, em que enfermeiras americanas foram pioneiras, incentivadas nestes empreendimentos pelo seu órgão de classe.

Lembro que debates e encontros se sucederam e surgiu das diversas discussões um dos primeiros questionamentos, de ordem filosófica, sobre “o que é enfermagem?”, “qual sua identidade?”.

Importante destacar o desenvolvimento de uma metodologia de trabalho, resultante das teorias, o Processo de Enfermagem, que se caracterizava por sistematizar a assistência de enfermagem, denominado hoje como a Sistematização da Assistência de Enfermagem, a SAE. Esta coloca a enfermagem em um patamar considerado de grande relevância no cenário da saúde, segundo comemorava a comunidade de Enfermagem.

A SAE vista como um trabalho que oferecia reconhecimento e alcance de (certa) autonomia, culminaram alguns anos depois de muitos debates e encontros internacionais e nacionais com a fase permanecida incubada dentro do protocolo desta metodologia, a “classificação diagnóstica”.

O diferencial ocorre em buscar libertar-se do feudo de algumas conquistas em que predominam os conteúdos médicos, com uma linguagem mais apropriada à Enfermagem.

Outro aspecto importante foi um maior aporte de pesquisas, raras na época, principalmente privilegiando os marcos e as teorias como base temática e, mais atualmente com o predomínio das práticas baseadas em evidências. Todo este enfoque cumpre lembrar, ainda inspirado no modelo biologicista das práticas médicas.

Assim que, no ínterim destes últimos eventos, a pesquisa deu um salto, em geral fruto de outro ganho, os cursos de pós-graduação, primeiramente com os mestrados e depois com os cursos de doutorado e inclusive, de pós-doutorado. Estes cursos, sem dúvida, alavancaram a produção de pesquisas e publicações, muitos das quais incluem a abordagem filosófica, resultado da ênfase da Filosofia, principalmente nos cursos denominados de Doutorado em Filosofia na Enfermagem (PhD), mudando assim o enfoque mais tradicional.

Ocorre, ao mesmo tempo, um movimento buscando libertar-se do feudo de algumas conquistas em que predominam os conteúdos médicos. A Filosofia no cenário da Enfermagem vai se insinuando e encontra receptividade, sendo absorvida por um grupo mais adepto de uma abordagem mais humanista, sensível e preocupada com o ser e sua experiência de saúde-doença.

Interessante notar o fato da entrada da esfera filosófica num espaço marcadamente positivista. E aí iniciam alguns conflitos oriundos de contradições, radicalismos e ausência de diálogo.

Aspectos gerais da Filosofia

A Filosofia oferece uma nova visão contribuindo para desvelar novas abordagens. Sua introdução e as contribuições no cenário da saúde exercem influência na forma de visualizar sua prática tradicionalmente determinada por um pensamento oriundo das linhas do positivismo e do cartesianismo.

As profissões da área da saúde lidam com o ser humano e a Filosofia questiona sobre este ser e sobre o seu fazer. Questionamentos comuns em algumas disciplinas servem como exemplo, tais como: o que é a enfermagem? Quem é o ser enfermeiro (a)? No que consiste seu fazer? Ou, o que significa ser professor? O que significa ensinar? O que é o ensino para o professor? E assim por diante.

Portanto, a Filosofia busca desvendar a realidade, saber o significado das coisas, sua natureza, sua essência. Em síntese, busca respostas à própria existência, uma tarefa nada fácil e que exige humildade, disponibilidade, abertura para o novo, às mudanças. Neste sentido a Filosofia nos desafia e convida a pensar o que se é, o que se faz e estas questões levam a uma sequência de outras perguntas, muitas vezes sem respostas. Por outro lado, nos impele a definir e estruturar fazeres, ampliar nossa atuação e de atualizar, transformar além de desenvolver potencialidades, vislumbrando novos caminhos, novos conhecimentos. Desta forma o ser se desenvolve, aprimora-se, atualiza-se e se realiza11. Rodgers BL. Developing nursing knowledge: philosophical traditions and influences. Philadelphia: Lippincott; 2005..

A ciência inclui questões que devem ser respondidas através de pesquisas, investigação e sobre causas e efeitos. Já a Filosofia ilumina estas questões através de análise reflexiva, resolve conflitos das disciplinas e entre estas.

Importante enfatizar o método básico da Filosofia: a reflexão. Significa um repensar, rever, voltar atrás e nesse sentido pode reavaliar o já pensado. Debruça-se sobre o próprio conteúdo, ou seja, questiona o próprio pensar, seu conteúdo, seus pressupostos, sua fundamentação. Caracteriza-se, portanto por uma maneira crítica de reflexão e desta forma “implica ir à raiz do assunto, para depois se alcançar uma visão geral”. Só depois é possível chegar a um posicionamento mais objetivo22. Brum A. O mistério da ética: o homem é a morada do fogo-logos. Brasília: Garbha-Lux; 2020..

Uma filosofia é para ser defendida, reflexionada e consiste em um guia de ação para a prática, pois oferece uma perspectiva para a mesma, identificando e definindo seu enfoque33. Salsberry PJ. A philosophy of nursing: what is it? what is not? In: Kikuchi JF, Simmons H, editors. Developing a philosophy of nursing [Internet]. London: Sage; 1994. doi: https://doi.org/10.4135/9781452243481
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Finalizando estes aspectos da Filosofia, deve ser enfatizado que ela pode oferecer uma base, assim como habilidades para refletir, analisar e criticar a realidade. Pode ainda, ser capaz de moldar o futuro.

A capacidade de questionamento é a característica decisiva do homem/mulher. Aristóteles até Kant já distinguiam dois grandes âmbitos de investigação filosófica: o âmbito do ser e o âmbito do trabalho44. Torralba FR. Antropologia do cuidar. Petrópolis: Vozes; 2009.. Outro autor55. Boff L. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes; 1999. também faz esta aproximação posicionando o ser e o trabalho, ou seja, dois modos de ser-no-mundo que seriam, portanto: o modo de ser-trabalho e o modo de ser-cuidado.

Considero importante trazer alguns aspectos22. Brum A. O mistério da ética: o homem é a morada do fogo-logos. Brasília: Garbha-Lux; 2020. que destacam a ética, na perspectiva da Filosofia em sua relação direta com a ‘arte de viver’. O discurso parte de uma reunião sobre a ética das virtudes e da compaixão na Filosofia do Ocidente e Oriente. Esta reunião fornece elementos que se aproximam de aspectos defendidos em discursos filosóficos humanistas e que, foram apropriados pela, em especial em seus estudos sobre o Cuidado. A ética da compaixão, com base no filósofo alemão Arthur Schopenhauer e a ética da responsabilidade para com o Outro na filosofia do lituano judeu em Emmanuel Lévinas e no argentino Enrique Dussel, completam-se com a ética das virtudes da filosofia budista.

A Filosofia na Enfermagem

Enfermeiras e enfermeiros transitam em mais de um paradigma e há diferentes proposições na definição e denominação destas visões paradigmáticas ou correntes de pensamento. Por vezes contraditórios, pois, além de privilegiarem os aspectos da lógica e da racionalidade, consideram a assistência dentro de uma visão holística.

A Filosofia oferece uma ampla gama de pontos de vista e argumentos pelos quais a Enfermagem pode (re)avaliar seu conhecimento base e até construir uma base mais sólida e isto não significam apenas um exame da enfermagem como ciência, mas de vislumbrar a Enfermagem em um campo bem mais rico do conhecimento. Compreender e reconhecer o que constitui o conhecimento, como pode ser criado, assim como os vários tipos de conhecimento disponíveis, certamente contribuiriam para o crescimento e avanço da enfermagem buscando bases que fundamentem seu fazer e direcionar seu conhecimento de maneira única ao invés de seguir outras disciplinas e novas iniciativas as quais não se ajustam ao perfil verdadeiro da enfermagem no sentido de reconhecimento de sua identidade11. Rodgers BL. Developing nursing knowledge: philosophical traditions and influences. Philadelphia: Lippincott; 2005..

A natureza do conhecimento como se sabe faz parte de um ramo da Filosofia, a Epistemologia que, por definição, é o estudo do conhecimento. A enfermagem ao buscar seu próprio conhecimento permitirá uma crença de seus membros acerca de seu status particular, em poderem argumentar e defender a disciplina a qual pertence. Assim, com a compreensão do que é e do que a Filosofia pode auxiliar, torna-se mais fácil entender que a ciência talvez não seja o único meio de criar uma base substantiva para o trabalho da enfermagem.

Em uma abordagem de natureza filosófica, as ações jamais devem ser mecanizadas, considerando-se que nas profissões da área da saúde, em geral, elas são realizadas em função de seres humanos em situação de vulnerabilidade, principalmente física e psicológica.

Uma filosofia na enfermagem facilita a afirmação de valores, crenças, conceitos e princípios de maneira a que sejam refletidas as ideias da comunidade, ou parte significativa dela, assim como suas convicções e atitudes11. Rodgers BL. Developing nursing knowledge: philosophical traditions and influences. Philadelphia: Lippincott; 2005..

Duas áreas centrais, de base comum deveriam compor a definição do conhecimento de enfermagem: a natureza do sujeito de quem a enfermagem se ocupa e o enfoque dado a sua prática para embasar suas ações e saberes.

É importante apontar o que é uma filosofia de enfermagem e o que não é33. Salsberry PJ. A philosophy of nursing: what is it? what is not? In: Kikuchi JF, Simmons H, editors. Developing a philosophy of nursing [Internet]. London: Sage; 1994. doi: https://doi.org/10.4135/9781452243481
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. Por exemplo, não é uma teoria de enfermagem, mas sim, o fundamento para qualquer desenvolvimento de uma teoria. A Filosofia inclui as suposições básicas e as crenças a partir das quais deve ser construída uma teorização. Não é um método, tampouco passível de testagem empírica. Ela oferece uma perspectiva para investigações e para identificar o fenômeno central da enfermagem, além de uma perspectiva de erudição, que, por sua vez, propicia elementos para despertar pensamentos, ideias inovadoras, discussões e debates.

As ações desempenhadas na enfermagem, assim como o pensamento que orientam muitas destas ações, refletem uma filosofia, um modo de ver as coisas e um modo de ver o mundo.

Através de uma prática reflexiva com base filosófica adequada, é possível nos depararmos com um cenário diferente daquele que rotineiramente estamos acostumados(a)s a ver. Contradições são percebidas, mas cuja consciência só nos auxiliará a delinear formas mais coerentes e perspectivas mais claras, iluminando e oferecendo insights e uma maneira nova de ver a realidade, permitindo que se atue contribuindo para uma prática mais avançada.

Enfermeiras e enfermeiros necessitam de habilidades para pensar filosoficamente sobre sua base de conhecimento e emitir julgamentos competentes acerca de seu desenvolvimento. Nesse sentido devem ser capazes de descrever, justificar e defender o que sabem e afirmar com segurança seu conhecimento de direito, além de apontar meios para desenvolver conhecimento33. Salsberry PJ. A philosophy of nursing: what is it? what is not? In: Kikuchi JF, Simmons H, editors. Developing a philosophy of nursing [Internet]. London: Sage; 1994. doi: https://doi.org/10.4135/9781452243481
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Questões éticas e morais das ações em enfermagem, devem se valer da Filosofia e frequentemente nos deparamos com situações que necessitam decisões e ações para as quais não há respostas científicas. Problemas éticos, por exemplo, requerem métodos e reflexão que são adequados para abordarem valores humanos em relação a direitos e responsabilidades, problemas estes, cada vez mais comuns em nosso atual sistema de saúde e vida.

A indagação filosófica ilumina quando permite ver os fenômenos como “todos”

Ao constatar sobre a abrangência e as contribuições da Filosofia, vale lembrar que como nós, pessoas, profissionais da saúde, convivemos com seres humanos vulneráveis; estamos no espaço da existência e isto nos leva a refletir a nossa prática e como ela (a Filosofia) entra neste contexto. Somos todos seres existenciais que ajudam e convivem com outros seres existenciais e aí surge a intersubjetividade, a alteridade que faz do outro, meu próximo, lembrando Emmanuel Lévinas66. Levinas E. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70; 1980..

Muitas vezes nós, enfermeiros e enfermeiras, não conscientizamos para o conteúdo moral de nossas ações na prática77. Waldow VR. Cuidar: expressão humanizadora da enfermagem. Petrópolis: Vozes, 2012.. Cuidar, vale destacar, constitui o fundamento moral pelo qual se deve reger a prática profissional.

Refere uma das autoras88. Durán de Villalobos MM. Indagación filosófica y práctica de enfermería. In: Grupo de cuidado. Dimensiones del cuidado. Colombia: Universidad Nacional de Colombia; 1998. p. 26-33.) do Grupo de estudos sobre o Cuidado na Colômbia, que a Filosofia é especialmente significativa para a enfermagem, pois ambas têm a ver com os aspectos humanos dos seres e seus potenciais na forma como são experienciados e vivenciados na realidade.Através do uso deste conhecimento, enfermeiras e enfermeiros podem ajudar as pessoas a entender melhor suas relações com o entorno e seus recursos e com as outras pessoas, de forma a obter o estado de saúde desejado. A natureza integral da indagação filosófica evita o rompimento dos fenômenos de enfermagem entre subjetivos e objetivos.

Sara Fry, mencionada por Durán de Villalobos, expõe que a indagação filosófica tem sido deixada de lado (percebo uma sutil mudança neste aspecto). Sua opinião é a de que, talvez, enfermeiro (a)s não tenham tido suficiente abertura mental (ou interesse) para visualizar sua importância no sentido de estabelecer as fundamentações teóricas da prática e na pesquisa em enfermagem88. Durán de Villalobos MM. Indagación filosófica y práctica de enfermería. In: Grupo de cuidado. Dimensiones del cuidado. Colombia: Universidad Nacional de Colombia; 1998. p. 26-33..

Considero difícil, porém, compreensível que a Enfermagem, como disciplina oriunda de prática biologicista e hospitalocêntrica, não consiga romper com o conservadorismo e os comportamentos e atitudes dos tradicionais e predominantes aspectos do enfoque positivista. O que ressalto é a dificuldade em evitar conflitos e paradoxos entre correntes tão diferentes, porém que podem ser tratadas com menos radicalismos, ajustando as arestas, principalmente abraçando aspectos inegavelmente humanísticos que permeiam a Enfermagem em sua existência trazendo muitos avanços e satisfação, tanto para os seres que realizam o cuidar como para os seres que o recebem.

Em situações de extrema vulnerabilidade, tais como no adoecimento e na situação de terminalidade, as ações dos profissionais da saúde deveriam ser dirigidas não só ao exterior, porém ao interior do ser, do sujeito que necessita de cuidado e que reage como um ser inteiro. Em outras palavras, pode-se combater o sofrimento exterior a partir da terapêutica, da farmacologia e de aparatos tecnológicos (e mesmo assim, por vezes fracassam, não conseguem vencer o inevitável). No entanto, o sofrimento interior reclama um modo de atenção distinta, reclama a presença humana, a escuta, a palavra adequada e o exercício do diálogo que expresse empatia, afeto, respeito e solidariedade, o ser-com.

Refletir sobre paradigmas (modelos) do passado, presente e re-criar, atualizar, analisar novas propostas, modificando, inovando concorre para o desenvolvimento da disciplina e seriam meios viáveis incluindo-se aí o desenvolvimento do profissional que através de sua disponibilidade e humildade em aceitar mudanças pode colaborar com ideias, experiência e conhecimento prático na orientação para a saúde ao invés da tradicional orientação à doença, centrando a atenção ao paciente, sua experiência e ao cuidado de forma sensível e integral.

Uma Filosofia de enfermagem deveria se ocupar de duas áreas centrais de base comum: a natureza do ser humano e o foco da Enfermagem.

A natureza do ser humano e o foco da Enfermagem

Consideremos estas duas áreas, apoiadas na Filosofia. O Ser é o conceito mais universal e o mais obscuro; é indefinível, ou prescinde de definição99. Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2008.. Ou seja, o Ser é conceito evidente por si mesmo. O fato de ser difícil de definição não impede, todavia, que seu sentido seja investigado. Para alguns filósofos o Ser é interpretado como presença e que na Enfermagem, consideramos como um elemento que define uma das “qualidades essenciais do cuidar”, denominação dada por uma socióloga da Itália1010. Mortari L. Filosofia do cuidado. São Paulo: Paulus; 2018..

O ser-aí, de Dasein, Da (aí) Sein (Ser) é a essência de sua própria existência. O ser- humano só é enquanto ser-aí. Ser-aí no modo de ser-no-mundo e como ser-no mundo, é um ser-com-os outros. Sem os outros não adianta de nada existir99. Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 2008.. É pela convivência com o outro que o ser se humaniza e a estrutura essencial da condição humana é o cuidado. Então, o ser-aí se destaca pelo cuidado e este só ocorre em relação ao outro. Parte daí a proposta em considerar o Cuidado como a essência da Enfermagem. Ele se ocupa e pré ocupa-se com o ser, resultando assim na segunda área de base comum entre a natureza (existencial) do ser humano e o foco da Enfermagem.

O Cuidado se caracteriza por ser existencial, relacional e contextual77. Waldow VR. Cuidar: expressão humanizadora da enfermagem. Petrópolis: Vozes, 2012.. Estas duas primeiras características me parecem terem sido contempladas através do que já foi escrito, apesar de breve. Sua característica contextual será abordada um pouco depois.

Se o ato de cuidar constitui a essência da práxis profissional da Enfermagem, então é imprescindível e inapelável uma “análise polivalente” em torno da essência e do sentido do cuidar humano33. Salsberry PJ. A philosophy of nursing: what is it? what is not? In: Kikuchi JF, Simmons H, editors. Developing a philosophy of nursing [Internet]. London: Sage; 1994. doi: https://doi.org/10.4135/9781452243481
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e segundo outra opinião necessita uma “analítica do cuidado”1010. Mortari L. Filosofia do cuidado. São Paulo: Paulus; 2018..

A esse respeito, conforme consenso dos profissionais de Enfermagem do México, o cuidado humano é seu objeto epistêmico de estudo. O objeto de cuidado é também sujeito com corporalidade e espiritualidade. Assim, a complexidade do cuidado na Enfermagem estaria em cuidar a um objeto-sujeito de natureza complexa1111. Becerril LC, Arana GB, Monroy RA, García HML. Cuidado profesional de Enfermería. México: Federación Mexicana e Asociaciones de Facultades y Escuelas de Enfermería, AC; 2018..

Para mim, o Cuidado é o objeto da Enfermagem, que é o seu fazer e o sujeito do Cuidado é o ser que o necessita.

Já pelo grupo de pesquisa do grupo de pesquisa “Aurora Mas”, na Espanha o Cuidado é invisibilizado e desta forma o denominam de Cuidado Invisível1212. Bes CG, Navarro FH, Esparza IH. La relación entre globalización y salud y el reto de cuidar. In: Waldow VR, coordenadora. Cuidado de Enfermería: reflexiones entre dos orillas. Granada: Fundación Index; 2014. p.75-93.. Portanto, pode se constatar que ainda necessitamos de estudos sobre o cuidar/cuidado.

Em seu livro “Filosofia do Cuidado, a autora1010. Mortari L. Filosofia do cuidado. São Paulo: Paulus; 2018., nos traz várias reflexões, somando-se a autores como Ricardo Ayres, Leonardo Boff, Nel Noddings, Francesc Torralba, além de outros, ao pontuar que em situações satisfatórias, quase perfeitas na vida, sempre existirá a necessidade do cuidar, principalmente em fases determinantes ou “ritos de passagem” (nascimento, entrada para a escola, adolescência, primeiro emprego, matrimônio, paternidade e maternidade, divórcio, menopausa, doenças, aposentadoria, morte, entre tantos outros eventos). Deveras, em vários eventos na trajetória da vida, o estado de vulnerabilidade gera uma forte dependência dos outros. O Cuidado, segundo a autora é ontologicamente essencial, pois protege a vida e cultiva as possibilidades de ser.

Outra contribuição, extraída de alguns dos autores já mencionados neste texto, é a de que o cuidado em sua real interpretação, só ocorre em uma íntima relação com a ética44. Torralba FR. Antropologia do cuidar. Petrópolis: Vozes; 2009.,55. Boff L. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes; 1999.,77. Waldow VR. Cuidar: expressão humanizadora da enfermagem. Petrópolis: Vozes, 2012..

O que permite a concretização do cuidado é sua indissociabilidade da ética que exige de certo desprendimento, de uma educação calcada em valores humanitários e que incluem: respeito, compaixão, solidariedade, compromisso, amor e de responsabilidade pela vida do ser e de todo o sistema planetário e seus viventes.

A realidade do cuidado é bem variável, considerando as diversas culturas, tais como hábitos de vida, valores e regras comunitárias, educação familiar, contextos e experiências de vida etc.

Menciono dois trabalhos importantes neste aspecto: o trabalho de uma enfermeira, antropóloga e teorista americana1313. Leininger MM, editor. Culture care diversity and universality: a theory of nursing. New York: National League for Nursing; 1991.) que desenvolveu a teoria transcultural do cuidado; suas pesquisas e as de suas seguidoras trazem uma vasta listagem de construtos encontrados em diversas culturas. Ela concluiu ser o Cuidado um fenômeno universal. Seu estudo e metodologia de pesquisa tornaram-se marcos na história da Enfermagem, reconhecendo o Cuidado como sua essência.

Outra autora que trouxe uma pesquisa muito interessante e reveladora1414. Ray MA. The theory of bureaucratic caring for nursing practice in the organizational culture. Nurs Adm Q.1989:13(2):31-42. doi: https://doi.org/10.1097/00006216-198901320-00007
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narrou as diferentes experiências e situações de cuidado na forma como se apresentavam nas diferentes unidades de assistência em uma organização hospitalar, constituindo uma organização cultural de vivências de cuidado. Os aspectos que mais se destacaram em seu estudo foram os econômicos, os políticos, os legais, os técnicos e as dimensões éticas, sociais e espirituais. Portanto, resultou que a cultura e a estruturação social da organização influenciam a maneira como os sujeitos (cuidadores principalmente) expressam e vivenciam o Cuidado.

A pesquisa acima mencionada contribuiria, sem dúvidas, para o desenvolvimento de projetos de pesquisa em que modos de ser e expressar cuidado podem ser revelados conforme os diferentes ambientes em que ocorre. Acrescentaria neste item também, os modos de expressar, de como sentem ou visualizam o cuidar em sua experiência de adoecimento, por exemplo, com os seres cuidados.

Considerando os diferentes sítios, nas culturas existentes e suas expressões de cuidado é que situo a terceira característica do cuidado, ou seja, além da existencial e da relacional, a contextual.

Não entrarei na antítese do cuidado, o não cuidado, pois requereria muito tempo, porém, valeria consultar alguns filósofos como Manuel Lévinas, Nel Noddings, Francesc Torralba, Hans-Georg Gadamer, Michael Foucault, entre outros.

Parece que é visível a origem do cuidado, em suas primeiras manifestações, variadas, porém de certo modo semelhantes, advirem de filósofos eminentes da antiguidade. Impossível não citar e sugerir incursões em obras de Aristóteles, Platão, Sócrates, em cujos manuscritos se encontram as raízes, princípios e valores que sustentam o Cuidar. Modernamente surgem outros filósofos, alguns mencionados neste trabalho, que se ancoram nos filósofos da antiguidade já mencionados.

CONTRIBUIÇÃO FINAL

Finalizando, ressalto o tema do Cuidado, para mim a mais exitosa contribuição da Filosofia para a Enfermagem, adotando-o como sua essência considerando que o que se faz na Enfermagem é cuidar independente de se expressar, ou não, em sua integralidade.

Trago uma definição1010. Mortari L. Filosofia do cuidado. São Paulo: Paulus; 2018.) em que a autora expõe o que autores filósofos já mencionados neste texto sustentam que “cuidar é tornar-se responsável por algo ou alguém, preocupar-se, empenhar-se, dedicar-se a alguma coisa”. Mais adiante ela conclui que “o cuidado é a resposta à condição do ser que caminha em direção a alguma coisa, em direção ao atualizar-se de alguma das suas próprias potencialidades”. Ou, completando, em perseguir a alcançar determinadas coisas, nem sempre potenciais, mas que luta para vencer e tornar-se.

Gosto da definição de uma colega em sua tese de doutorado que diz:

O cuidado é universal e singular entre os seres humanos como um ‘modo de ser’ na perspectiva filosófica; ele transita em todos os campos de conhecimento, pois o ser humano utiliza-o em todas as circunstâncias da vida. O cuidar do “Ser” é a grande tarefa da vida. O cuidado está presente nos processos vitais do desenvolvimento humano e nas relações pessoais e sociais1515. Borges RF. Cuidar e ensinar: relações e possibilidades de uma práxis transformadora no ensino superior. In: Waldow VR, Borges RF, Jiménez GY. Pesquisa na enfermagem: o cuidado em destaque. Curitiba: CRV; 2020.) [aqui eu incluiria as profissionais, também].

O Cuidado definido de forma geral, denominado Cuidado humano como o entendo, consiste em uma forma de viver, de ser, de se expressar. Caracteriza-se por uma postura ética e estética frente ao mundo e resulta em um compromisso com o estar-no-mundo, contribuindo com o bem-estar geral, na preservação da Natureza, na promoção das potencialidades, da dignidade humana e da nossa espiritualidade; portanto, contribui na construção da história, do conhecimento e da vida. Continuando, o ser-aí-no-mundo se define pelas formas ou maneiras de experienciar o Cuidado e pelas relações que estabelece consigo mesmo, com os outros e com o meio ambiente. Isto o distingue como ser humano, ou seja, lhe confere a condição de humanidade.

Concluo reafirmando a importância da Filosofia no que tange ao desenvolvimento do conhecimento na Enfermagem e sua inestimável contribuição ao desvelar a episteme e a ontologia do Cuidado outorgando-lhe o lugar central e fundamental na prática da Enfermagem, a condição humana de seu ser e fazer.

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Editado por

Editor associado:

Helena Becker Issi

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2022
  • Aceito
    20 Out 2022
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