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Identidade profissional das enfermeiras em tempo de pandemia: novos/velhos desafios a partir da mídia jornalística

RESUMO

Objetivo:

Analisar aspectos relacionados à identidade profissional das enfermeiras durante a pandemia da COVID-19 a partir de conteúdo jornalístico.

Método:

Estudo qualitativo, documental e retrospectivo, com 51 reportagens da Folha de São Paulo com recorte histórico entre março e dezembro de 2020. A organização dos dados se deu pelo ATLAS.ti, com Análise de Conteúdo Temática e discussão na perspectiva sociológica de Claude Dubar.

Resultados:

Três categorias foram constituídas: a Identidade capturada pelas imagens refletidas no texto; Identidade simbolizada pelo apoio das enfermeiras a quem precisa de cuidado e; Identidade como um valor social do trabalho das enfermeiras.

Conclusão:

Apesar da imagem ainda errônea e o contexto difícil, o compromisso com a população, a forma de cuidar e a cientificidade garantiram visibilidade e possibilitaram uma identidade mais empoderada e segura de seu papel na sociedade.

Palavras-chave:
Enfermagem; COVID-19; Papel profissional; Pandemias; Meios de comunicação de massa

ABSTRACT

Objective:

To analyze aspects related to the professional identity of nurses during the COVID-19 pandemic usingnews media as a source.

Method:

Qualitative, and retrospective document study with 51 reports from Folha de São Paulo from March to December 2020. Data was organized using ATLAS.ti, with Thematic Content Analysis and discussion from the theoretical perspective of Claude Dubar.

Results:

Three categories were formed: Identity captured by the images reflected on the text; The identity symbolized by the support of nurses to those who need care; and The identity symbolized by the support of nurses to those who need care.

Conclusion:

Despite the fact that the image of nurses is still mistakenly apprehended, the way they provide care, their commitment to the population, and their scientific mindedness ensured visibility and enabled a more empowered and secure identity for their role in society.

Keywords:
Nursing; COVID-19; Professional role; Pandemics; Mass media

RESUMEN

Objetivo:

Analizar aspectos relacionados con la identidad profesional de las enfermeras durante la pandemia de COVID-19 a partir de contenidos periodísticos.

Método:

Estudio cualitativo, documental y retrospectivo, con 51 reportajes del periódico Folha de São Paulo entre marzo y diciembre de 2020. La organización de los datos fue realizada por ATLAS.ti, con Análisis de Contenido Temático y discusión desde la perspectiva teórica de Claude Dubar.

Resultados:

Se constituyeron tres categorías: la identidad captada por las imágenes reflejadas en el texto; La Identidad simbolizada por el apoyo dado por enfermeras a quienes necesitan cuidados; y La identidad como valor social del trabajo del enfermero.

Conclusión:

A pesar de la imagen aún errónea y del contexto difícil, el compromiso con la población, la forma de cuidar y la cientificidad aseguraron visibilidad y posibilitaron una identidad más empoderada y segura de su papel en la sociedad.

Palabras clave:
Enfermería; COVID-19; Rol profesional; Pandemias; Medios de comunicación de masas

INTRODUÇÃO

A identidade profissional pode ser entendida como parte da construção identitária da própria pessoa, desenvolvida por meio de características específicas que diferenciam um indivíduo de outro. As características se adequam de acordo com o contexto histórico, social e de atuação profissional11. Pereira JG, Oliveira MAC. Identidade profissional da enfermeira: possibilidades investigativas a partir da sociologia das profissões. Indagatio Didactica. 2013;2(5):1141-52. doi: https://doi.org/10.34624/id.v5i2.4505
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,22. Teodosio SSC, Padilha MI. “To be a nurse”: a professional choice and the construction of identity processes in the 1970s. Rev Bras Enferm. 2016;69(3):401-7. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167.2016690303i
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, influenciadas pela interação da trajetória de cada indivíduo, dos sistemas de emprego, trabalho e formação, num processo de construção e reconstrução mediante sucessivas socializações33. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005..

Alguns aspectos relativos à identidade profissional formulados durante a trajetória de formação universitária, persistem ao longo da vida adulta e laboral, no entanto, há que se considerar que as vivências sociais do indivíduo influenciam fortemente a (re)construção contínua de sua identidade33. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005.-44. Silva AR, Padilha MI, Backes VMS, Carvalho JB. Professional nursing identity: a perspective through the brazilian printed media Esc Anna Nery. 2018;22(4):e20180182. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2018-0182
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O debate social contemporâneo reacende os interesses pela identidade profissional e todas as repercussões que dela emanam. As identidades pessoal e profissional passam por uma ressignificação que exige um olhar mais atento para a trajetória histórica das profissões33. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005.. A identidade profissional da enfermeira vem sendo estudada com o passar do tempo e apresenta importantes sinais de transformação. Ainda que a enfermagem tenha muitos anos de profissão, segue marcada por limitações relacionadas à técnica, ao cuidado materno, à subordinação e com baixa valorização social11. Pereira JG, Oliveira MAC. Identidade profissional da enfermeira: possibilidades investigativas a partir da sociologia das profissões. Indagatio Didactica. 2013;2(5):1141-52. doi: https://doi.org/10.34624/id.v5i2.4505
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Uma estratégia para o empoderamento dos profissionais de Enfermagem e valorização iniciou em 2018, com a Campanha Nursing Now, promovida pelo International Council Nurses (ICN), a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o All Party Parliamentary Group on Global Health do Reino Unido. No Brasil, a campanha Nursing Now é realizada pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEn) em parceria com o Centro Colaborador da OMS vinculado à Universidade de São Paulo55. Oliveira KKD, Freitas RJM, Araújo JL, Gomes JGN. Nursing Now and the role of nursing in the context of pandemic and current work. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(spe):e20200120. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200120
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. Esta campanha finalizaria em 2020 com a celebração dos 200 anos de Florence Nightingale (1820-1910) e foi escolhido como o Ano Internacional da Enfermagem55. Oliveira KKD, Freitas RJM, Araújo JL, Gomes JGN. Nursing Now and the role of nursing in the context of pandemic and current work. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(spe):e20200120. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200120
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. A COVID-19 amplificou este movimento, e consagrou seu empoderamento mundialmente. Porém, para além das campanhas e das comemorações, as Enfermeiras têm mostrado sua importância de muitas formas, nas redes sociais, nas mídias jornalísticas e no seu trabalho diário que é narrado por meio de publicações que expõem a relevância social do trabalho da Enfermagem e os problemas enfrentados. Pesquisa realizada no Twitter e no Instagram evidenciou que as Enfermeiras utilizaram as mídias sociais para emitir apelos à sociedade, para que respeitassem o isolamento social, valorizassem os profissionais de saúde e, queixando-se da falta de EPI para realizar os atendimentos66. Forte ECN, Pires DEP. Nursing appeals on social media in times of coronavirus. Rev Bras Enferm. 2020;73( Suppl 2):e20200225. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0225
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Em fevereiro de 2020 os primeiros casos da COVID-19 surgem no Brasil, e em março do mesmo ano, a OMS declara a doença uma pandemia. O SARS-CoV-2, causador da COVID-19, trouxe uma série de consequências inestimáveis ao se tornar um inimigo poderoso da humanidade. A pandemia marcou de forma muito contundente o trabalho em saúde, especialmente, o de enfermagem, pelo lugar estratégico ocupado por esses profissionais na linha de frente para o tratamento, a prevenção e a recuperação dos doentes, em todas as instituições de saúde. No Brasil, são 2.644.000 profissionais de enfermagem77. Conselho Federal de Enfermagem (BR). Enfermagem em números [Internet]. Brasília, DF: Cofen; 2022 [cited 2022 Apr 02]. Available from: http://www.cofen.gov.br/enfermagem-em-numeros
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. Nesse sentido, as enfermeiras assumem um papel de suma importância nesse cenário, não somente por estarem em estreita relação com os infectados, mas por estarem sofrendo com as consequências da pandemia, adoecendo e morrendo. No Brasil, até dezembro de 2020 (antes da chegada das vacinas), foram contabilizados quase 500 profissionais de enfermagem mortos pelo vírus, e até 21 de janeiro de 2022, foram contabilizados 872 óbitos, o que representam 2, 57% dos 60.185 casos reportados88. Conselho Federal de Enfermagem (BR) [Internet]. Brasília, DF: Observatório de Enfermagem; 2022 [cited 2022 Jan 21]. Available from: http://observatoriodaenfermagem.cofen.gov.br/
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No primeiro ano da pandemia, ao mesmo tempo em que a equipe de enfermagem trabalhava incessantemente e, inclusive, adoeciam e morriam com a COVID-19, as mídias nacionais e internacionais deram um destaque especial à profissão. Destaques estes, que enfocavam principalmente, as adaptações realizadas em toda a rotina dos serviços de saúde, nos hospitais de campanha que precisaram ser montados. O foco centrou-se no atendimento aos sintomáticos da doença, com as Unidades de Terapia Intensiva (UTI), emergências e enfermarias, denominadas “Covidários” que permaneciam lotadas99. Oliveira AC. Desafios da enfermagem frente ao enfrentamento da pandemia da COVID19. Rev Min Enferm. 2020;24:e-1302. doi: https://doi.org/10.5935/1415-2762.20200032
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,1010. Padilha MI, Borenstein MS, Bellaguarda MLR, Santos I, et al, organizadores. Enfermagem: história de uma profissão. 3. ed. São Caetano do Sul: Difusão; 2020.. Com isso, o trabalho das enfermeiras foi essencial para a prevenção da doença, para o tratamento dos doentes, para o gerenciamento dos serviços no contexto da crise e para o desenvolvimento de estudos relacionados às vacinas1111. Bitencourt JVOV, Meschial WC, Frizon G, Biffi P, Souza JB, Maestri E. Nurse's protagonism in structuring and managing a specific unit for COVID-19. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20200213. doi: http://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2020-0213
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Neste sentido, entende-se que a mídia jornalística pode contribuir com o processo de (re)construção social e histórica da identidade da enfermagem, contribuindo não apenas com a memória, mas também para o registro do papel essencial que essas profissionais vêm desenvolvendo ao longo do tempo.

Portanto, a questão norteadora desta pesquisa é: Como a identidade da enfermeira foi apresentada pela mídia jornalística durante a pandemia de COVID-19? Este estudo tem como objetivo, analisar aspectos relacionados à identidade profissional das enfermeiras durante a pandemia da COVID-19 a partir de conteúdo jornalístico.

MÉTODO

Estudo qualitativo, retrospectivo e descritivo, de base documental, a partir do conteúdo jornalístico. Os dados foram coletados em uma fonte primária escolhida pela sua abrangência nacional e veiculação de fatos de impacto social em voga no Brasil e no mundo, que é o jornal Folha de São Paulo, no formato online, com recorte temporal de 6 de março a 31 de dezembro de 2020, sendo o período inicial do início do estado de calamidade pública no país e o final, devido ainda não ter sido iniciado a vacinação da população.

A pesquisa documental é pertinente quando se tem fontes históricas primárias que permitam buscar fatos ocorridos num passado distante ou recente em registros feitos pelo homem. Neste estudo se justifica por oportunizar o alcance de elementos objetivos inclusos em contextos subjetivos da história do fenômeno a ser estudado. Por isso, utilizar sistematicamente os documentos para explorar e o analisar dados a partir de uma perspectiva histórica1212. Carlos DJD, Bellaguarda MLR, Padilha MI. The document as a primary source in nursing and health studies: a reflection. Esc Anna Nery. 2022;26:e20210312. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2021-0312
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A coleta de dados, realizada entre os meses de dezembro de 2020 e fevereiro de 2021, utilizou como termos de busca: enfermagem, covid, pandemia. Na primeira busca foram identificadas 8.351 matérias, porém após a filtragem por meio da leitura exaustiva, foram excluídas as reportagens duplicadas, as que não continham assuntos de interesse deste estudo e as que se tratavam de fake News. O número final de reportagens incluídas foi de 51. Não houve necessidade da dupla checagem, uma vez que a pesquisa não teve cunho de revisão e sim de encontrar fontes históricas.

As reportagens passaram pela Análise de Conteúdo Temática proposta por Bardin1313. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2016., tendo como base o referencial teórico de Claude Dubar33. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005.. Para a organização e a codificação dos dados, contou-se com o auxílio do software ATLAS.ti® 9.5.0, seguindo as etapas de: pré-análise (leitura exaustiva e codificação inicial - elaboração dos códigos primários para identificar questões relativas à identidade - amor ao trabalho, valorização, apoio das equipes; exploração do material (busca de palavras determinantes para a estruturação de grupos de códigos com a devida associação dos códigos à categorias de análise com apoio do software (exemplo: imagem - angelical) e; tratamento dos dados e interpretação (as redes de significados foram criadas para organizar as informações obtidas a partir da colocação das informações no sistema)1313. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2016.. A tematização do conteúdo jornalístico é realizada, ao selecionar-se os códigos primários das questões relativas a identidade profissional, que emergiram dos discursos contidos nas matérias jornalísticas, e não definidas previamente. Seguiu-se o referencial teórico de Claude Dubar33. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005. que orientou todo o processo de investigação. A partir da definição das unidades de registro, segue o processo de análise temática dos conteúdos até chegar-se as categorias de análise finais1212. Carlos DJD, Bellaguarda MLR, Padilha MI. The document as a primary source in nursing and health studies: a reflection. Esc Anna Nery. 2022;26:e20210312. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2021-0312
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Por não haver envolvimento direto com seres humanos e o conteúdo analisado ser considerado de domínio público, dispensou-se a necessidade de apreciação por comitês de ética, apoiado na Resolução n. 510, de 07 de abril de 2016 e na Lei n. 12.527/2011. Mesmo diante de conteúdo público e de fácil acesso, as reportagens foram mantidas na íntegra, garantindo o anonimato dos indivíduos e instituições e, identificadas no texto pela letra R de reportagem seguida do número ordinal atribuído pelo software ATLAS.ti®.

RESULTADOS

De acordo com a análise das 51 reportagens do jornal A Folha de São Paulo, a identidade profissional das enfermeiras foi associada a três aspectos principais: imagem, apoio e valor social, a serem detalhados a seguir. Essa associação teve por subsídio as falas das enfermeiras que concederam entrevistas à respectiva fonte dos dados e ao conteúdo produzido por jornalistas responsáveis pelas matérias.

Identidade capturada pelas imagens refletidas no texto

A primeira categoria diz respeito à imagem retratada nas reportagens analisadas sinalizando aspectos peculiares à profissão, que estão relacionados ao modo como as enfermeiras se percebem e ao amor que dedicam ao trabalho. A imagem também está amparada pela sociedade, ou seja, como os outros percebem as enfermeiras, associando-as com figuras iconográficas, como os anjos e com o imaginário hollywoodiano de ficção científica.

O uniforme das enfermeiras volta a fazer parte do imaginário popular, ao associar as roupas brancas aos profissionais de saúde, mas que, durante a pandemia, passa a constituir-se como um sinal de perigo para as enfermeiras, ao associarem o uniforme às possibilidades de contágio em ambientes e transportes públicos, gerando muitas vezes hostilizações por parte dos demais.

O detalhamento dos resultados encontrados encontra-se apresentado na Figura 1, abaixo.

Figura 1 -
Identidade profissional associada à imagem das enfermeiras durante a pandemia. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2021

O amor pela profissão, pelo que fazem e pelas muitas possibilidades de fazer a diferença na vida das pessoas é o que motiva a forma de agir das enfermeiras que, segundo os relatos na mídia, são capazes de mudar a vida de quem é cuidado e de quem cuida.

Identidade simbolizada pelo apoio das enfermeiras a quem precisa de cuidado

Frente aos problemas enfrentados durante a pandemia, o apoio surge como um alento para o trabalho das enfermeiras e pode se configurar um importante aspecto para a sua identidade profissional. O apoio relatado nas reportagens evidencia que os vínculos com os pacientes e suas famílias, bem como com os colegas de trabalho, se configura como uma arma poderosa para os desgastantes dias de trabalho árduo. O trabalho em equipe se destaca para a concretização do apoio mútuo diante da rotina exaustiva. O apoio foi sentido por outras frentes, pelas entidades organizativas da profissão, ao disponibilizar recursos para que as enfermeiras fossem ouvidas, além de vir a público contestar ou repudiar atos e normativas que não são seguras. As falas relacionadas com esse tema estão destacadas na figura 2.

Figura 2
Identidade profissional associada ao apoio das e para as enfermeiras durante a pandemia. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2021

Os achados deste estudo revelam que o apoio percebido durante a pandemia foi direcionado pelas enfermeiras, ao suporte aos pacientes e familiares, e à própria sociedade. Além disso, o apoio foi reconhecido por elas, ao receberem respaldo de suas entidades organizativas, mesmo em meio a tantos entraves e desgastes gerados pela crise que se instalou.

Identidade como um valor social do trabalho das enfermeiras

O valor social do trabalho das enfermeiras teve destaque especial nos meios de comunicação durante a pandemia. A maior manifestação desse aspecto se refere à valorização profissional, ao se referirem como profissionais mal valorizadas e, até mesmo, invisíveis. As reportagens trazem informações que podem não ser conhecidas pela sociedade em geral, como é o caso de não se compreender a Enfermagem como profissão, como ciência, como disciplina do conhecimento.

Salientou-se o compromisso social das enfermeiras com a população, mediante um contexto em que o conhecimento, a técnica e o preparo das enfermeiras tomaram a frente de batalha para salvar muitas das vidas que foram contaminadas com o vírus. Também fizeram parte desta compreensão de identidade, a empatia e o cuidado humanizado com aqueles que ficaram isolados para tratamento, um tratamento agressivo e solitário.

O olhar para o outro em tempos marcados por muitas dificuldades foi realizado, em sua grande maioria, por mulheres, que continuam sendo a maioria na profissão de enfermagem.

Esses aspectos são tratados na figura 3.

Figura 3 -
Identidade profissional associada ao valor social do trabalho das enfermeiras durante a pandemia. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2021

Por fim, as enfermeiras mostram que os aplausos e as vinculações com atos de heroísmo estão longe de serem consideradas como marcas de uma valorização profissional que é tão esperada.

DISCUSSÃO

O exercício profissional das enfermeiras assistenciais que trabalham durante a pandemia, seja nos hospitais, seja nas unidades básicas de saúde, seja na vacinação da população, se torna oportuno para a análise da identidade profissional dessas profissionais, mediante a possibilidade de compreender a visão destas e da sociedade, por meio da mídia jornalística, os processos de socialização que influenciam na (re)construção da identidade profissional das enfermeiras.

O referencial de Claude Dubar33. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005. para este estudo, permite compreender e refletir sobre a construção, desconstrução e a reconstrução da identidade profissional com base nos processos contínuos de socialização. No presente estudo, evidencia-se que há uma influência marcante da mídia na identidade profissional das enfermeiras, no dualismo descrito por Dubar33. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005., no qual o processo relacional é composto pela identidade para o outro, ou seja, o que dizem/visualizam das/nas enfermeiras e, a identidade para si, um processo biográfico no qual as enfermeiras dizem quem elas são, por meio de falas que denotam o olhar dessas profissionais para elas mesmas.

A elaboração de reportagens dessa natureza é, geralmente, guiada pelo senso comum, e tem por objetivo destacar os valores da sociedade naquele momento histórico e social1414. Cavaca AG, Vasconcellos-Silva PR. Doenças midiaticamente negligenciadas: uma aproximação teórica. Interface. 2015;19(52):83-94. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622014.0205
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. Nesse sentido, os achados deste estudo mostram que a maioria das reportagens trazem assuntos relacionados à assistência/cuidado de enfermagem aos pacientes contaminados com o coronavírus e o papel das enfermeiras nesse processo.

A imagem das enfermeiras na mídia impressa durante a pandemia da COVID-19 exige que os contextos sejam minuciosamente analisados, especialmente pela maneira como essa questão é posta, que geralmente, é projetada pela sociedade em geral e por quem produz a notícia. Existem muitas peculiaridades no modo de produção das reportagens, pois a mídia dispõe de mecanismos próprios para esse processo, ao utilizar de recursos retóricos e técnicas de persuasão1414. Cavaca AG, Vasconcellos-Silva PR. Doenças midiaticamente negligenciadas: uma aproximação teórica. Interface. 2015;19(52):83-94. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622014.0205
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. Portanto, faz-se necessário compreender que, embora o conteúdo noticiado não seja entendido como uma projeção de verdades absolutas da realidade, a mídia passa a ser considerada muito mais que um veículo de informações, ela também configura uma fonte de pesquisa importante e contribui para a formulação de novos conceitos e opiniões1515. Menegon VSM. Crise dos serviços de saúde no cotidiano da mídia impressa. Psicol Soc. 2008;20(spe):32-40. doi: http://doi.org/10.1590/S0102-71822008000400006
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Assim, se percebe a pluralidade de papéis que as profissões exercem na sociedade e que manifesta uma identidade diante daquilo que representa o espaço de ação profissional33. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005.. Quando se trata de Enfermagem, há que se considerar as representações por conjuntos de imagens, conceitos, afirmações e explicações, reproduzidas no cotidiano das práticas sociais, interna e externamente à profissão1616. Padilha MI. From Florence Nightingale to the COVID-19 pandemic: the legacy we want. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20200327. https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2020-0327
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,1717. Hagopian EM, Melo FS, Freitas GF, Taffner VBM, Rodrigues MM, Oliveira MVL. Professional identities in construction: conjectures about nursing in the post-pandemic of COVID-19. Rev Baiana Enferm. 2021;35:e42883. doi: https://doi.org/10.18471/rbe.v35.42883
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. Essas imagens remetem à própria identidade profissional numa intrincada rede de significados, inerentes à profissão e que se concretizam por meio da representação profissional1818. Oliveira EFS. Representação social da profissão enfermagem: reconhecimento e notoriedade. Barueri, SP: Manole; 2018..

Com relação à imagem das enfermeiras, a identidade para o outro é marcada pelas figuras angelicais e heroicas, imagens estas muito influenciadas pela religiosidade, que propiciavam ao trabalho da enfermagem um sentido divinal permeado por pensamentos inclinados à vocação espiritual1919. Begnini D, Cicolella DA, Freitas KR, Maranhão T, Rocha CMF, Kruse MHL. Heroines in Covid-19 times: visibility of nursing in the pandemic. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(spe):e20200373. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200373
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. Uma constituição histórica marcada pelas “religiosas, senhoras de caridade, devotadas, bondosas, caridosas, assexuadas e virgens, dedicadas à filantropia, que barganhavam a salvação através da prática do cuidar”1616. Padilha MI. From Florence Nightingale to the COVID-19 pandemic: the legacy we want. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20200327. https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2020-0327
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Essa ideia servia como base para incutir nas enfermeiras que o seu trabalho seria a maneira mais nobre de servir a Deus e ao próximo2020. Franco MF, Farah BF. A percepção dos sentidos do trabalho para enfermeiros no âmbito hospitalar. Rev Enferm Atual In Derme. 2019;90(28):1-8. doi: https://doi.org/10.31011/reaid-2019-v.90-n.28-art.502
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. Em contrapartida, quando se trata dos uniformes atuais, especialmente, aqueles utilizados durante a pandemia, desconstroem essa imagem angelical e passam a marcar esse momento histórico novo, ao associar as enfermeiras com a ciência, com os demais profissionais de saúde, distanciando-as dos aspectos mais intuitivos e caritativos.

Já a identidade para si remete às enfermeiras ao amor que é colocado no seu trabalho, o gostar do que faz e a necessidade de ver sentido em suas atividades. O amor de que trata a análise deste estudo não representa mais a enfermagem como uma atividade intuitiva de cunho caritativo e de doação ao próximo, mas sim, o amor e a dedicação exercidos dentro de critérios científicos planejados, um amor pela profissão em todos os seus requisitos. Verifica-se que a identidade se transforma conforme os profissionais assimilam o olhar do outro sobre si, de modo que ocorre uma construção coletiva a partir daquilo que é refletido da imagem profissional33. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005., nesse caso, difundido pela mídia.

Estudos têm evidenciado que o prazer e a satisfação das enfermeiras estão relacionados ao reconhecimento pelo seu trabalho, constituindo um importante fator de motivação para o trabalho e para o crescimento profissional2121. Lake ET, Narva AM, Holland S, Smith JG, Cramer E, Rosenbaum KEF, et al. Hospital nurses' moral distress and mental health during COVID-19. J Adv Nurs. 2022;78:799-809. doi: https://doi.org/10.1111/jan.15013
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, o que denota a forte dedicação das enfermeiras num processo permanente de engajamento subjetivo para vencer as barreiras diárias impostas pelas condições de trabalho2222. Souza IMJ, Oliveira LGR, Cavalcante KO, Fernandes DCA, Barbosa ES, França AHR, et al. Impacto na saúde dos profissionais de enfermagem na linha de frente da pandemia de covid-19. Braz J Health Rev. 2021;4(2):6631-9. doi: https://doi.org/10.34119/bjhrv4n2-214
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Houve a prevalência do olhar para si das enfermeiras com forte influência do olhar do outro sobre a identidade, denotando a impossibilidade de dissociação das questões individuais e das relações sociais. Portanto, a identidade profissional é reconstruída pela aceitação ou negação desses diferentes olhares1717. Hagopian EM, Melo FS, Freitas GF, Taffner VBM, Rodrigues MM, Oliveira MVL. Professional identities in construction: conjectures about nursing in the post-pandemic of COVID-19. Rev Baiana Enferm. 2021;35:e42883. doi: https://doi.org/10.18471/rbe.v35.42883
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. Adjetivar as enfermeiras como anjos e heroínas, agrega valor social de alguma forma, porém serve de aditivo para impetrar mais pressão ao seu trabalho, por entender que anjos e heroínas não falham e não adoecem, o que pode gerar um sofrimento psíquico sem precedentes2323. Thofehrn MB, Fernandes HN, Porto AR, Arreguy-Sena A, Borel MGC, Amestoy SC, et al. Relações interpessoais na equipe de enfermagem: fatores para formação de vínculos profissionais saudáveis. ReTEP. 2018 [cited 2021 Oct 05];10(4):3-11. Available from: http://www.coren-ce.org.br/wp-content/uploads/2020/01/Rela%C3%A7%C3%B5es-interpessoais-na-equipe-de-enfermagem-fatores-para-forma%C3%A7%C3%A3o-de-v%C3%ADnculos-profissionais-saud%C3%A1veis.pdf
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. Ao serem retratadas como anjos, há uma referência à bondade, à caridade e ao amor com que se dedicam ao trabalho. Ao retratar as enfermeiras como heroínas, a conotação segue para um imaginário de que são fortes o suficiente para suportar diferentes tipos de adversidades e que não desistem facilmente.

O trabalho no âmbito hospitalar apresenta características peculiares no cuidado aos problemas de saúde dos indivíduos, que exigem dedicação, atenção, competência e conhecimento técnico cientifico, além de condições de trabalho adequadas. Com a pandemia, e os problemas advindos da mesma, ficaram evidentes a sobrecarga de trabalho por condições inadequadas, falta de EPIs, e situações-limite diárias envolvendo riscos ocupacionais. O trabalho em saúde hospitalar, implica em olhar o outro, a necessidade do outro e muitas vezes, se sentir impotente diante da impossibilidade de salvar vidas. Para o enfrentamento das adversidades, as equipes de enfermagem buscam na cooperação e na colaboração estratégias eficazes, para permitir que haja menor sofrimento no trabalho e melhores resultados2424. Bautista Rodríguez LM, Arias Velandia MF, Carreño Leiva ZO. Percepcíon de los familiares de los pacientes críticos hospitalizados respecto a la comunicacíon y apoyo emocional. Rev Cuidarte. 2017;7(2):1297-309. doi: https://doi.org/10.15649/cuidarte.v7i2.330
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. O trabalho em equipe, além de proporcionar resultados efetivos na assistência de enfermagem, tende a valorizar a comunicação e a atuação integrada, diminuindo a distância entre profissionais, pacientes e familiares.

O estabelecimento de vínculos com toda a equipe de saúde, pacientes e familiares é fundamental para a compreensão das reais necessidades de todos os envolvidos no trabalho em saúde2424. Bautista Rodríguez LM, Arias Velandia MF, Carreño Leiva ZO. Percepcíon de los familiares de los pacientes críticos hospitalizados respecto a la comunicacíon y apoyo emocional. Rev Cuidarte. 2017;7(2):1297-309. doi: https://doi.org/10.15649/cuidarte.v7i2.330
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. Nesse sentido, quando as enfermeiras são apoiadas e se apoiam, sentem mais próximas a valorização e o reconhecimento profissional, o que as estimula a continuar mais comprometidas e produtivas, fazendo perceber no exercício profissional sua identidade2424. Bautista Rodríguez LM, Arias Velandia MF, Carreño Leiva ZO. Percepcíon de los familiares de los pacientes críticos hospitalizados respecto a la comunicacíon y apoyo emocional. Rev Cuidarte. 2017;7(2):1297-309. doi: https://doi.org/10.15649/cuidarte.v7i2.330
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As enfermeiras assistenciais que atuam em setores hospitalares com internações prolongadas e que enfrentam situações muito próximas da finitude da vida tendem a criar maiores vínculos com pacientes e familiares e, consequentemente, sofrerem mais com os desfechos das situações mais graves. Ademais, as mulheres compõem mais de 80% da força de trabalho da enfermagem e os resultados mostram que, justamente por assim ser, a valorização profissional parece estar distante.

A identidade profissional das enfermeiras pode ser ameaçada pelo excesso de trabalho durante a pandemia e pela precariedade, podendo gerar um processo de alienação e sofrimento, haja vista que a identidade humana é reconstruída ao longo da vida. pelas sucessivas socializações dentro do ambiente profissional e nas em relações de trabalho33. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005..

Estudo que investigou as ações e interações suscitadas por enfermeiras no cuidado ao paciente e família em processo de morte e morrer evidenciou que a sensibilização das enfermeiras desses setores diante da morte de um paciente pode ser mais exacerbada, haja vista que se impõe um final não desejado e uma quebra de vínculo constituído por meio de relações afetivas2525. Forte ECN, Ribeiro OMPL, Amadigi FR, Pires DEP. The voice of those who provide care during the pandemic - a lexicographic study in Brazil-Portugal. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(esp):e20200336. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200336
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Diante de uma avalanche de sentimentos vivenciados com o diagnóstico da COVID-19, como incerteza, medo, ansiedade e solidão, pacientes e familiares vivem angústias que só podem ser minimizadas com o apoio das enfermeiras. Autores ressaltam a relevância ímpar de promover a empatia com pacientes e familiares, com comunicação clara e acessível e a utilização de recursos que visem a inclusão dos familiares nos cuidados, mesmo que à distância2424. Bautista Rodríguez LM, Arias Velandia MF, Carreño Leiva ZO. Percepcíon de los familiares de los pacientes críticos hospitalizados respecto a la comunicacíon y apoyo emocional. Rev Cuidarte. 2017;7(2):1297-309. doi: https://doi.org/10.15649/cuidarte.v7i2.330
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,2525. Forte ECN, Ribeiro OMPL, Amadigi FR, Pires DEP. The voice of those who provide care during the pandemic - a lexicographic study in Brazil-Portugal. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(esp):e20200336. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200336
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. As enfermeiras realçam que o conhecimento científico, aliado à vocação orienta as suas atividades diárias e que, competência, resiliência e espírito de missão são determinantes no combate à pandemia2626. Galehdar N, Kamran A, Toulabi T, Heydari H. Exploring nurses' experiences of psychological distress during care of patients with COVID-19: a qualitative study. BMC Psychiatry. 2020;20(1):489. doi: https://doi.org/10.1186/s12888-020-028
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Com tamanha importância desvelada neste estudo, pela imagem de dedicação e de compromisso com o trabalho, pelo amor dedicado à profissão, pela cientificidade e pela empatia e a capacidade de ser apoio e segurança para os colegas e pacientes, as enfermeiras ainda veem na falta de valorização social um empecilho para o seu reconhecimento. Com uma grande porcentagem de mulheres na profissão, a enfermagem sofre as consequências da lógica de que o seu trabalho é reflexo das atividades tradicionalmente femininas, como uma extensão das atividades domésticas de cuidado1919. Begnini D, Cicolella DA, Freitas KR, Maranhão T, Rocha CMF, Kruse MHL. Heroines in Covid-19 times: visibility of nursing in the pandemic. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(spe):e20200373. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200373
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Considerando que a identidade é mais que algo herdado e sim, reconstruído ao longo da vida profissional, este estudo evidencia que a mídia impressa se caracteriza, no processo relacional, como a identidade para o outro, ou seja, na forma como as enfermeiras são vistas e revistas pela sociedade a partir do conteúdo noticiado. As enfermeiras remetem à identidade o seu próprio processo biográfico, a identidade para si, pelos processos vivenciados e diferenciados que influenciam a construção da sua identidade33. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005..

Ainda que, sob forte influência dessas concepções equivocadas, as enfermeiras engajaram-se no seu compromisso social, o de cuidar de pessoas, priorizando a ciência ao mesmo tempo em que agiram humanamente com os doentes e suas famílias, e com a sociedade como um todo. Esses aspectos repercutem nas atribuições específicas das enfermeiras, especialmente na autonomia, na satisfação pessoal e no reconhecimento da profissão2626. Galehdar N, Kamran A, Toulabi T, Heydari H. Exploring nurses' experiences of psychological distress during care of patients with COVID-19: a qualitative study. BMC Psychiatry. 2020;20(1):489. doi: https://doi.org/10.1186/s12888-020-028
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. E que, mesmo tendo essa desmotivação, não saem do foco de manter um cuidado humanizado para com as pessoas, sendo este o grande compromisso social de uma profissão realizada por um contingente grande de mulheres. A ponto de esquecer-se do próprio cuidado, tão essencial para as enfermeiras, que fica esquecido em prol do cuidado com os doentes. Esse cuidado é tão primordial que influencia o cuidado com as outras pessoas.

A pandemia da COVID-19 impactou de forma contundente toda a sociedade e permitiu um novo olhar sobre a Enfermagem, que passou a ser vista com mais frequência e magnitude em relação à importância da sua atuação profissional. Essa visibilidade tornou possível que as enfermeiras tomassem para si um protagonismo na pandemia, que deve ser considerado um impulso para a (re)construção da identidade profissional1616. Padilha MI. From Florence Nightingale to the COVID-19 pandemic: the legacy we want. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20200327. https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2020-0327
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. Constitui-se, portanto, um momento político importante para as enfermeiras que provoca toda a profissão a reivindicar o seu espaço e as suas lutas por condições de trabalho dignas e salubres1616. Padilha MI. From Florence Nightingale to the COVID-19 pandemic: the legacy we want. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20200327. https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2020-0327
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Com tantas transformações econômicas e sociais e mudanças significativas no mundo do trabalho, as identidades também requerem ajustes. Configura-se, assim, uma possibilidade de as enfermeiras, enquanto profissionais que são, apropriarem-se de novas identidades que suplantem as concepções do passado2626. Galehdar N, Kamran A, Toulabi T, Heydari H. Exploring nurses' experiences of psychological distress during care of patients with COVID-19: a qualitative study. BMC Psychiatry. 2020;20(1):489. doi: https://doi.org/10.1186/s12888-020-028
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e ganhem contornos mais fiéis, que realmente representem a grandeza de ser Enfermeira.

Entende-se que este estudo trará grandes contribuições ao ensino e à prática de enfermagem, considerando que permite uma reflexão sobre o agir das enfermeiras diante das situações de crise, e em especial desta crise de saúde mundial, que levou a questionar sobre as condições de trabalho existentes, o planejamento estrutural para atender e vencer as situações emergenciais, o sofrimento que isto causa em todos os profissionais, mas também da necessidade de fortalecer os cursos de graduação em enfermagem, para que os estudantes se tornem profissionais proativos e empoderados para atuar nas situações de crise locais e globais.

As limitações do estudo se referem à coleta de dados realizada em um jornal de grande circulação brasileiro, haja vista que a pesquisa em outros jornais pode influenciar os resultados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A (re)construção da identidade profissional das enfermeiras que trabalharam e trabalham na pandemia da COVID-19 passou por um intenso processo de socialização, seja para formas de atuação em um contexto ainda não experimentado, seja pela visibilidade que a mídia jornalística proporcionou ao longo desse tempo.

A análise dos aspectos relacionados à identidade profissional das enfermeiras durante a pandemia da COVID-19 a partir de conteúdo jornalístico, propiciou evidenciar as fragilidades vivenciadas nos serviços de saúde, em especial os hospitalares, mas também, empoderou as enfermeiras e os profissionais de enfermagem para lutarem pelas condições de trabalho adequadas, pela aprovação do piso salarial para a enfermagem há tanto tempo desejado.

Percebe-se que a mídia jornalística é um importante meio de difusão do processo identitário e cumpriu esse papel com a enfermagem durante a pandemia da COVID-19. Dentro do recorte temporal aqui estudado, houve a expressão pelo trabalho das enfermeiras sua identidade, que coerentemente ao referencial teórico aplicado, não é uma essência e sim um vetor que expressa coerência e continuidade de si. Embora algumas questões ainda sejam retratadas com certo atraso no imaginário popular, como profissionais heroínas ou anjos, e mesmo a desvalorização seja uma constante na Enfermagem, as enfermeiras mantiveram-se firmes no seu propósito, o de cuidar dos doentes de COVID-19 da melhor forma possível. Para tanto, apoiaram-se em suas equipes e no amor à profissão para garantir um cuidado humanizado. O apoio das entidades organizativas no sentido de tornar real a valorização profissional, com melhores condições de trabalho e salários justos, é uma prerrogativa importante nesta valorização.

Há que se considerar a importância dessa visibilidade no contexto da pandemia e, principalmente, a manutenção desta após esse período, para que mudanças reais aconteçam em termos de valorização profissional. Deve-se ressaltar que, mesmo diante das situações de risco de contaminação, o compromisso, enquanto Enfermeiras, não foi abnegado. E, essa conjuntura ímpar influencia a formação de uma nova profissional, uma nova identidade, cada vez mais necessária para a sociedade.

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Editado por

Editor associado:

Carlise Rigon Dalla Nora

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2022
  • Aceito
    09 Jun 2022
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