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Condições de trabalho em unidades hospitalares COVID-19: percepções de trabalhadores de enfermagem

RESUMO

Objetivo:

Conhecer as percepções de trabalhadores de enfermagem acerca de suas condições de trabalho em unidades hospitalares COVID-19.

Método:

Estudo qualitativo, descritivo, multicêntrico, realizado setembro de 2020 e julho de 2021 com 35 trabalhadores de enfermagem de unidades COVID-19 de sete hospitais do Rio Grande do Sul, Brasil. Os dados foram produzidos por meio de entrevistas semiestruturadas e submetidos à análise temática de conteúdo com auxílio do software NVivo.

Resultados:

Os participantes referiram disponibilidade de recursos materiais e equipamentos de proteção individual, mas percebiam carências de recursos humanos, de suporte multiprofissional e absorção extra de tarefas, resultando na intensificação do trabalho e culminando em sobrecarga. Aspectos profissionais e institucionais também foram referidos, como fragilidade na autonomia profissional, defasagem salarial, atrasos nos pagamentos e pouca valorização institucional.

Conclusão:

Os trabalhadores de enfermagem das unidades COVID-19 conviveram com a precarização das condições de trabalho, agravadas por elementos organizacionais, profissionais e financeiros.

Palavras-chave:
Enfermagem; COVID-19; Condições de trabalho; Profissionais de enfermagem; Unidades hospitalares

ABSTRACT

Objective:

To know the perceptions of nursing workers about their working conditions in COVID-19 hospital units.

Method:

Qualitative, descriptive, multicenter study, carried out in September 2020 and July 2021 with 35 nursing workers from COVID-19 units of seven hospitals in Rio Grande do Sul, Brazil. Data were produced through semi-structured interviews and submitted to thematic content analysis with the support of NVivo software.

Results:

The participants reported availability of material resources and personal protective equipment, but perceived a lack of human resources, multiprofessional support and extra absorption of tasks, resulting in the intensification of work and culminating in overload. Professional and institutional aspects were also mentioned, such as fragility in professional autonomy, wage lag, payment delays and little institutional appreciation.

Conclusion:

Nursing workers in the COVID-19 units lived with precarious working conditions, worsened by organizational, professional and financial elements.

Keywords:
Nursing; COVID-19; Working conditions; Nurse practitioners; Hospital units

RESUMEN

Objetivo:

Conocer las percepciones de los trabajadores de enfermería sobre sus condiciones de trabajo en unidades hospitalarias COVID-19.

Método:

Estudio cualitativo, descriptivo, multicéntrico, realizado en septiembre de 2020 y julio de 2021 con 35 trabajadores de enfermería de unidades COVID-19 en siete hospitales de Rio Grande do Sul, Brasil. Los datos fueron producidos a través de entrevistas semiestructuradas y sometidos al análisis de contenido temático con la ayuda del software NVivo.

Resultados:

Los participantes mencionaron la disponibilidad de recursos materiales y equipos de protección personal, pero percibieron falta de recursos humanos, apoyo multidisciplinario y absorción extra de tareas, lo que resultó en la intensificación del trabajo y culminó en la sobrecarga. También se mencionaron aspectos profesionales e institucionales, como fragilidad en la autonomía profesional, brecha salarial, retrasos en los pagos y poca valorización institucional.

Conclusión:

Los trabajadores de enfermería de las unidades COVID-19 vivían con la precariedad de las condiciones de trabajo, agravada por elementos organizativos, profesionales y económicos.

Palabras clave:
Enfermería; COVID-19; Condiciones de trabajo; Enfermeras practicantes; Unidades hospitalarias

INTRODUÇÃO

Historicamente, a enfermagem tem demarcado forte atuação junto aos serviços de saúde e nas políticas públicas, inclusive em situações de crise e nas epidemias. Esse protagonismo está evidenciado na linha de frente do enfrentamento à pandemia da Coronavirus Disease 2019 (COVID-19), pois a categoria compõe importante força de trabalho nos diferentes pontos da Rede de Atenção à Saúde. No entanto, esse engajamento na linha de frente ampliou situações de vulnerabilidade dos trabalhadores, levando-os ao medo, insegurança e ao adoecimento11. Ximenes Neto ERG, Machado MH, Freire NP, Silva MCN, Santos BMP, Wermelinger MCMW. Complaints of Brazilian nursing about exposure to occupational risks during the COVID-19 pandemic. Nursing. 2021;24(280):6195-8. doi: https://doi.org/10.36489/nursing.2021v24i280p6191-6198
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A COVID-19 vem impactando a dinâmica organizacional e laboral dos hospitais em diferentes países do mundo, gerando transformações nas condições de trabalho da enfermagem22. Malinowska-Lipień I, Suder M, Wadas T, Gabryś T, Kózka M, Gniadek A, Brzostek T. The correlation between nurses' COVID-19 infections and their emotional state and work conditions during the SARS-CoV-2 pandemic. Int J Environ Res Public Health. 2021;18(23):12715. doi: https://doi.org/10.3390/ijerph182312715
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,33. Fernández-Castillo RJ, González-Caro MD, Fernández-García E, Porcel-Gálvez AM, Garnacho-Montero J. Intensive care nurses' experiences during the COVID-19 pandemic: a qualitative study. Nurs Crit Care. 2021;26(5):397-406. doi: https://doi.org/10.1111/nicc.12589
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. Houve um aumento da carga de trabalho e de riscos à saúde mental destes trabalhadores44. Li TM, Pien LC, Kao CC, Kubo T, Cheng WJ. Effects of work conditions and organisational strategies on nurses' mental health during the COVID-19 pandemic. J Nurs Manag. 2021;30(1):71-8. doi: https://doi.org/10.1111/jonm.13485
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Apesar da COVID-19 ter colocado em pauta na sociedade temas que reforçaram a importância da enfermagem para o setor saúde11. Ximenes Neto ERG, Machado MH, Freire NP, Silva MCN, Santos BMP, Wermelinger MCMW. Complaints of Brazilian nursing about exposure to occupational risks during the COVID-19 pandemic. Nursing. 2021;24(280):6195-8. doi: https://doi.org/10.36489/nursing.2021v24i280p6191-6198
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, as condições de trabalho dessas equipes são desfavoráveis no Brasil e no mundo, com destaque para a insuficiência de recursos materiais e humanos, sobrecarga laboral, baixa remuneração, insuficiência e inadequação de Equipamentos de Proteção Individual (EPI’s)55. Backes MTS, Higashi GDC, Damiani PR, Mendes JS, Sampaio LS, Soares GL. Condições de trabalho dos profissionais de enfermagem no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(esp):e20200339. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200339
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. O conjunto destes elementos tem potencializado os riscos laborais e conduzido muitos trabalhadores à exaustão, adoecimento ou morte11. Ximenes Neto ERG, Machado MH, Freire NP, Silva MCN, Santos BMP, Wermelinger MCMW. Complaints of Brazilian nursing about exposure to occupational risks during the COVID-19 pandemic. Nursing. 2021;24(280):6195-8. doi: https://doi.org/10.36489/nursing.2021v24i280p6191-6198
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,55. Backes MTS, Higashi GDC, Damiani PR, Mendes JS, Sampaio LS, Soares GL. Condições de trabalho dos profissionais de enfermagem no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(esp):e20200339. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200339
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Até o início do mês de junho de 2022, o Observatório da Enfermagem, mantido pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), contabilizava 63.517 casos reportados de trabalhadores de enfermagem contaminados pelo Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (Sars-CoV-2). Registrava, ainda, 872 óbitos no Brasil, representando uma taxa de letalidade de 1,37%66. Conselho Federal de Enfermagem [Internet]. Observatório de Enfermagem. 2022 [citado 2022 jun 03]. Disponível em: Disponível em: http://observatoriodaenfermagem.cofen.gov.br/
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. O International Council of Nurses relembra que cerca de 180.000 trabalhadores de saúde do mundo morreram vítimas do Sars-CoV-2. Destes, destacam-se os profissionais de enfermagem que, além do risco de contaminação, enfrentaram precarização de suas condições de trabalho e baixos salários77. International Council of Nurses. “The greatest threat to global health is the workforce shortage” - International Council of Nurses International Nurses Day demands action on investment in nursing, protection and safety of nurses [Internet]. Geneva: ICN; 2022 [cited 2022 Jun 04]. Available from: Available from: https://www.icn.ch/sites/default/files/inline-files/PR_14_IND2022_FINAL_no%20embargo.pdf
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Por estas razões, é relevante destacar o conceito de condições de trabalho, entendido pela International Labour Organization como um conjunto de circunstâncias que incluem tempo laboral, remuneração, condições físicas, mentais e exigências do trabalho88. Organização Internacional do Trabalho. Condições de trabalho [Internet]. Lisboa: OIT; 2021 [cited 2021 Jul 12]. Available from: Available from: https://www.ilo.org/lisbon/temas/WCMS_650796/lang--pt/index.htm
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. Aspectos como a sensação de sobrecarga, de inadequação de estrutura física, disponibilidade de insumos e recursos humanos, além de estressores físicos e psicológicos são descritos como os mais frequentes fragilizadores das condições de trabalho e, consequentemente, da saúde dos trabalhadores de enfermagem99. Silva AGI, Mendonça SES, Moraes AC, Vasconcelos TS, Costa GF. Satisfaction and dissatisfaction of the nursing team in urgent and emergency units: integrative review. Nursing. 2021;24(276):5663-9. doi: https://doi.org/10.36489/nursing.2021v24i276p5656-5669
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Equipes de enfermagem têm realizado um trabalho físico e emocional intenso, que pode repercutir em sua saúde, o que justifica a importância de que os aspectos relacionados às condições de trabalho sejam descritos, discutidos e analisados, para que a profissão seja fortalecida na sociedade e a estruturação de ações de cuidado voltados a estes profissionais1010. Huang H, Liu L, Yang S, Cui X, Zhang J, Wu H. Effects of job conditions, occupational stress, and emotional intelligence on chronic fatigue among Chinese nurses: a cross-sectional study. Psychol Res Behav Manag. 2019;12:351-60. doi: https://doi.org/10.2147/PRBM.S207283
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,1111. Kowalczuk K, Krajewska-Kułak E, Sobolewski M. Factors determining work arduousness levels among nurses: using the example of surgical, medical treatment, and emergency wards. Biomed Res Int. 2019;2019:6303474. doi: https://doi.org/10.1155/2019/6303474
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. A relevância deste tema se amplifica no contexto do trabalho de enfermagem nas unidades hospitalares COVID-19, em que as equipes de enfermagem assumem um cotidiano repleto de desafios e adversidades na atenção às pessoas que desenvolvem a forma grave da doença, e onde as condições de trabalho tem repercussão na qualidade da assistência e também na saúde dos trabalhadores33. Fernández-Castillo RJ, González-Caro MD, Fernández-García E, Porcel-Gálvez AM, Garnacho-Montero J. Intensive care nurses' experiences during the COVID-19 pandemic: a qualitative study. Nurs Crit Care. 2021;26(5):397-406. doi: https://doi.org/10.1111/nicc.12589
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Ao mesmo tempo em que o mundo observa o protagonismo da enfermagem no enfrentamento da COVID-19, se estabelecem baixas garantias de condições de trabalho adequadas em alguns contextos55. Backes MTS, Higashi GDC, Damiani PR, Mendes JS, Sampaio LS, Soares GL. Condições de trabalho dos profissionais de enfermagem no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(esp):e20200339. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200339
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. Portanto, pode-se considerar que esse compõe um tema de sensível relevância na atualidade. A celeridade em que ocorreu a organização das unidades COVID-19 e as transformações do cotidiano das equipes demanda a publicação de evidências que iluminem esses aspectos e amplifiquem sua visibilidade. Sendo assim, este estudo tem como objetivo conhecer as percepções de trabalhadores de enfermagem acerca de suas condições de trabalho em unidades hospitalares COVID-19.

MÉTODO

Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo e multicêntrico, cujo método foi delineado a partir das diretrizes do checklist Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ). Realizou-se a investigação em sete instituições hospitalares localizadas em diferentes mesorregiões do estado do Rio Grande do Sul, Brasil (Noroeste, Centro-Ocidental, Centro-Oriental, Metropolitana, Sudeste e Sudoeste). Eram quatro instituições de grande porte e três de médio porte. Cinco eram de caráter filantrópico; duas se caracterizavam como hospitais públicos vinculados a instituições de ensino federais. Foram incluídas as unidades caracterizadas pelo atendimento aos casos suspeitos e/ou confirmado de COVID-19, incluindo Unidades Triagem Respiratória, setores de Urgência\Emergência, Unidades de Internação Clínica e Unidades de Terapia Intensiva (UTI).

Fizeram parte do estudo trabalhadores de enfermagem (enfermeiros e técnicos) lotados em atividades assistenciais nestes setores. Como critérios de exclusão, considerou-se os trabalhadores em férias ou qualquer tipo de afastamento funcional.

As gerências dos hospitais encaminharam à equipe de pesquisa listas de profissionais que respondiam aos critérios de elegibilidade, com nomes, e-mails e/ ou números de telefone. Um total de 470 trabalhadores compuseram estas litas. Optou-se por uma amostragem por conveniência a partir de um sorteio aleatório simples de cinco trabalhadores de enfermagem por instituição hospitalar - portanto, 35 ao total. O material gerado por esses depoentes possibilitou a saturação teórica dos dados, portanto, delimitando a amostragem adequada do estudo1212. Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesq Qual. 2017 [cited 2022 Jun 03];5(7):01-12. Available from: Available from: https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/82/59
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Os trabalhadores foram contatados por e-mail ou por meio dos aplicativos de trocas de mensagens para o convite e o agendamento das entrevistas. Doze trabalhadores não responderam aos pesquisadores, mesmo quando contatados por três vezes. Cinco profissionais se recusaram a participar do estudo; o principal motivo relatado foi a quantidade de pesquisas realizadas no período da pandemia. Nesses casos, ocorriam novos sorteios até que se viabilizasse o alcance da amostra adequada.

A produção dos dados ocorreu entre setembro de 2020 e julho de 2021 por meio de entrevistas semiestruturadas. As mesmas foram agendadas a partir da disponibilidade dos participantes, sendo que o acesso a eles ocorreu a partir do e-mail institucional ou intercedido pelas respectivas gerências de enfermagem. As entrevistas foram individualizadas e ocorreram na presença de somente dos pesquisadores.

As entrevistas ocorreram presencialmente em cinco instituições. Buscou-se a utilização de ambientes físicos espaçosos e ventilados, que pudessem oferecer privacidade e segurança aos envolvidos. Os pesquisadores utilizaram máscaras N95 não valvuladas ou PFF2, face shield, toucas cirúrgicas, propés, jalecos e aventais cirúrgicos descartáveis, bem como álcool em gel antisséptico 70%. Respeitando o distanciamento social recomendado, entre o pesquisador e o depoente foi utilizado o parâmetro de 1,5 metros.

Posteriormente à explanação da pesquisa, leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), coletaram-se dados relativos ao gênero, idade, cor/raça, categoria profissional, unidade/setor de lotação. A partir da anuência dos entrevistados, procedeu-se a entrevista em profundidade, sendo que as mesmas foram audiogravadas. No roteiro semiestruturado, os principais tópicos se direcionaram às percepções sobre o trabalho na linha de frente do enfrentamento à COVID-19 e aspectos relacionados às condições de trabalho.

Duas instituições hospitalares solicitaram a realização das entrevistas de forma virtual. O TCLE foi apresentado por meio do Google Forms para que fosse assinalada formalmente a concordância. O Google Meet foi utilizado na interlocução em tempo real, possibilitando o compartilhamento de áudio e imagem. Para se garantir o caráter isonômico, as entrevistas virtuais seguiram o rito do formato presencial, sendo que as gravações foram realizadas a partir dos recursos da própria plataforma.

As entrevistas tiveram duração de aproximadamente 22,5 minutos. A primeira entrevista foi considerada piloto para ajustes do roteiro semiestruturado. Como não foram necessárias mudanças no roteiro, ela foi incluída no banco de dados. Foram conduzidas pelos autores do estudo, enfermeiros doutores inseridos em instituições federais de ensino com expertise em pesquisa, além de duas enfermeiras matriculadas em um programa de pós-graduação em enfermagem, todos com trajetória na Saúde do Trabalhador. Todos foram capacitados para a etapa de campo a partir de um protocolo de pesquisa padrão para este estudo.

A participação de acadêmicos bolsistas dos grupos de pesquisa da graduação em enfermagem se deu na transcrição da íntegra das entrevistas, sendo estes também previamente habilitados. A análise temática de conteúdo foi utilizada para o tratamento dos dados a partir de três etapas: pré-análise; exploração do material; tratamento dos dados obtidos e interpretação1313. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70 , 2016..

A pré-análise partiu da leitura flutuante para imersão no conteúdo empírico, possibilitando a sua apreensão e seleção de material pertinente para o objetivo do estudo. Na exploração do material, houve a decomposição e codificação do material em Unidades de Registro (UR), que são termos que manifestam o conteúdo das falas segundo temas relacionados ao objetivo da investigação1313. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70 , 2016..

Esta etapa foi operacionalizada com o subsídio do software New NVivo Academic, por meio de seus recursos que acolhem a codificação e decomposição textual, com a qualidade e a transparência metodológica necessárias. O mapa conceitual é um dos recursos disponibilizados pelo software e foi empreendido na análise textual. Ao final desta etapa, o agrupamento das categorias e subcategorias de análise foi possibilitado por intermédio da aproximação das UR conforme sua afinidade semântica.

O tratamento dos dados obtidos e sua interpretação permitiu aos pesquisadores a realização de inferências e comentários que os dirigiram às conclusões fundamentais1313. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70 , 2016.. As categorias e subcategorias de análise foram reexaminadas e teorizadas admitindo a interpretação e a discussão em torno de aspectos adstritos às condições de trabalho.

Nos resultados deste estudo, há trechos de depoimentos dos participantes. Para proteger suas identidades, estão identificados pela letra T, que antecede a palavra “trabalhador”, seguida por um número cardinal que representa a ordem em que o depoente foi entrevistado. Há também a identificação da unidade de lotação: Urgência/Emergência ou Unidades de Triagem Respiratória COVID-19 (Emerg. COVID-19); Unidades de Internação COVID-19 (Intern. COVID-19); Unidade de Terapia Intensiva COVID-19 (UTI COVID-19); e mais de um setor COVID-19 (Setores COVID-19).

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa local sob parecer n° 4.549.077, sendo assim, garantido os aspectos éticos das pesquisas realizadas com seres humanos preconizados pelas Resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde.

RESULTADOS

Ao todo, 35 trabalhadores de enfermagem de unidades COVID-19 participaram da pesquisa. Dentre eles, 28 (80%) eram mulheres. A média de idade foi de 38 (±8,9) anos. No que tange à cor/raça, 27 (77%) eram brancos e 8 (23%), pretos ou pardos. No que diz respeito à categoria profissional, 25 (71,4%) eram técnicos em enfermagem e 10 (28,6%), enfermeiros.

No que diz respeito às unidades de lotação, 15 (42,8%) estavam em unidades de Urgência/Emergência ou Unidades de Triagem Respiratória COVID-19; 11 (31,4%), em Unidades de Internação COVID-19; 8 (22,8%), em UTI’s COVID-19; e 1 (2,8%) em mais de um setor COVID-19.

A Figura 1 mostra o mapa conceitual construído com a síntese dos resultados encontrados na análise de conteúdo. Na sequência, estes resultados estão aprofundados em duas categorias analíticas: Condições de trabalho de enfermagem no cotidiano das unidades COVID-19; e Para além dos limites da unidade COVID-19: aspectos institucionais e profissionais das condições de trabalho.

Figura 1 -
Mapa conceitual ilustrativo da síntese dos resultados encontrados na análise temática de conteúdo. Palmeira das Missões, Rio Grande do Sul, Brasil, 2021

Condições de trabalho de enfermagem no cotidiano das unidades COVID-19

Em um primeiro momento, os trabalhadores de enfermagem reconheceram que, ao longo da pandemia, houve esforços por parte das instituições em promover adequada disponibilidade de recursos materiais para as unidades COVID-19:

Eu acho que aqui [unidade COVID-19] a gente está muito bem assistido. Tudo que a gente precisa, tudo que a gente solicita, tem. A medicação está “na mão”. Tem os testes. [...] A gente não tem muita dificuldade. A gente tem bastante movimento, lógico. Mas não é uma exclusividade nossa e conforme o que a gente tem aqui, a assistência que a gente tem do município e do hospital são muito boas. [...] (T12-Emerg. COVID-19)

As mesmas percepções se referiram à adequação e disponibilidade de EPI’s. Os depoentes referiram que os colegas lotados nos setores não COVID-19 estavam, na prática, mais expostos aos riscos de contaminação em relação aos que estava na linha de frente:

[...] a gente via muitos pacientes aqui na unidade [COVID-19] que no começo estavam assintomáticos. Um dia anterior esses pacientes estavam na unidade aberta. Muitos colegas manipularam aqueles pacientes simplesmente com máscara cirúrgica e não tiveram o treinamento adequado para paciente COVID-19. No outro dia aquele colega estava desesperado porque aqueles pacientes tinham vindo para nós, para o isolamento. Eu também poderia estar trabalhando lá. Não somos autorizados a usar N95 fora da unidade [COVID-19]. Lá [unidade não COVID-19] é somente a máscara cirúrgica, não pode usar avental, não usa luva, salvo nos procedimentos. Não pode verificar os sinais no paciente de luva [...] (T25-Intern. COVID-19)

No entanto, apesar da disponibilidade de EPI’s e outros subsídios, os trabalhadores de enfermagem reconheceram que suas condições de trabalho eram atravessadas por outros elementos. Um deles diz respeito à insuficiência de recursos humanos, em parte devido às dificuldades de recrutamento para estas unidades, mas também como resultado do elevado número de afastamentos devido às contaminações das equipes:

[...] um dia que eu fiquei com quatro pacientes na UTI. Foi puxado porque meus colegas não renovaram o contrato e saíram [...] (T20-Emerg. COVID-19)

[...] durante a pandemia eu fui uma das únicas da minha equipe que não contraiu a COVID-19. O restante dos meus colegas todos foram contaminados. [...] se eu não entrava em um plantão à noite, no outro dia eu entrava, porque nós éramos uma equipe de quatro e às vezes um funcionário estava de atestado, então sobrava sempre para a gente entrar [...] (T16-UTI COVID-19)

Além da carência numérica de força de trabalho nas unidades COVID-19, os trabalhadores de enfermagem também sentiam necessidade de maior suporte multidisciplinar no cotidiano de assistência aos pacientes COVID-19:

[...] médico, terapeuta [ocupacional], enfermeiro, técnico [em enfermagem], para poder fazer a técnica correta. Pronar corretamente. Muitos pacientes que não tinham indicação de ser pronados, [mas os médicos] prescreviam. [...] Sentia falta de toda a equipe, da fisioterapia, da medicina mais intensiva. Não que eles não fossem presentes, mas não como a enfermagem, que era 24 horas. No plantão a gente via praticamente a enfermagem, então eu sentia falta disso. Uma equipe mais multidisciplinar [...] (T29-UTI COVID-19)

Além disso, os trabalhadores de enfermagem referiram que precisaram absorver um conjunto de demandas e atribuições que, até o momento, não faziam parte de sua rotina de trabalho:

[...] a gente [enfermeiros] acabou assumindo várias outras atribuições. Secretaria, coleta de material de laboratório... A gente que coleta a gasometria. A gente tem que resolver as experiências burocráticas, atender telefone, papelada, enfim [...] (T21-Emerg. COVID-19)

[...] outros setores passaram a não entrar na [unidade] COVID-19, então qualquer demanda extra era conosco. A gente teve que fazer coisas de gestão, que eu não fazia. Tive essas alterações na minha rotina. Decidir coisas que eu não estava acostumada. [...] (T34-UTI COVID-19)

Esses elementos culminavam na intensificação do trabalho. Os participantes experenciaram uma rotina laboral intensa, com plantões em que a sequência de atividades se tornou quase ininterrupta em alguns momentos. Os depoentes referiram prejuízos nos momentos destinados ao descanso, além de dificuldades para se alimentar, beber água ou ir ao banheiro:

[...] às vezes eu não consigo fazer um lanche no meio do turno. [...] eu não tenho água lá dentro [unidade COVID-19] [...] (T22-Emerg. COVID-19)

[...] a gente teria um intervalo de 15 minutos, mas a gente não faz. Dificilmente a gente faz. Para começar a gente nem tem uma sala para isso. A gente teria que vir até o refeitório para tomar um café ou lanche, mas a gente não tem tempo [...] hoje tive que brigar com a minha colega para ela ir no banheiro, porque ela estava com vontade [...] (T26-Inter. COVID-19)

[...] teve dias que eu me paramentei, entrei no isolamento e não saí mais. [...] Um dia eu não aguentei e fui no banheiro do paciente. [...] Muitas vezes eu ficava seis horas paramentado, prestando assistência, sem banheiro, sem tomar água [...] (T29-UTI COVID-19)

O cotidiano de intensificação do trabalho, resultado da alta demanda nas unidades COVID-19, gerava sobrecarga para os participantes:

[...] está bem cansativo. A gente judia muito o nosso psicológico. A gente trabalha em unidade de 16 leitos e na maioria das vezes nós somos só em duas técnicas [de enfermagem] para fazer esse suporte da COVID-19 [...] a gente não para, a gente nem consegue dar o suporte necessário que a nossa unidade precisa. [...] Está muito cansativo, a gente acaba ficando atormentada [...] (T26-Intern. COVID-19)

Portanto, os dados desta categoria analítica sinalizam que, apesar da disponibilidade de recursos materiais e EPI’s para a assistência, houve precarização das condições de trabalho nestes setores, sobretudo relacionadas aos recursos humanos e à intensificação do trabalho.

Para além dos limites da unidade COVID-19: aspectos institucionais e profissionais das condições de trabalho

Os participantes identificaram outros aspectos relacionados às condições de trabalho que extrapolavam os limites da unidade COVID-19, abarcando questões institucionais e de prática profissional. Foi mencionada a fragilidade da autonomia profissional do enfermeiro e de sua força no processo de tomada de decisões:

[...] acho que a questão de a gente ser um pouco mais respeitado. Da nossa voz valer, nossas ideias serem colocadas em prática. De ter autonomia. Acho que o enfermeiro ainda tem uma pseudo autonomia. Autonomia muito vaga do enfermeiro [...] (T29-UTI COVID-19)

Houve destaque também à situação financeira dos hospitais, com atrasos de pagamentos e defasagem salarial, conferindo aos trabalhadores sentimentos de desvalorização, insatisfação e desmotivação:

[...] questão financeira é uma coisa que precisa mudar. Por exemplo, tem colega que entrou em férias e até agora não recebeu. Querendo ou não a gente traz isso com a gente para o serviço. Abala. A gente já não trabalha do mesmo jeito. Aí a gente é cobrado, tem que vir, não pode faltar. Mas a gente não é reconhecido [...] (T27-Intern. COVID-19)

[...] muito defasado [salário]. Ter que trabalhar em dois, três lugares para ser um pouco melhor remunerado. Por exemplo, sem desmerecer as outras categorias, mas eu recebo a mesma coisa que um colega da higienização. Que incentivo eu tenho? [...] Eu tenho que pagar COREN todo ano, tenho que estar estudando toda hora, tenho que saber puncionar, tenho que saber fazer a prática da enfermagem. [...] (T29-UTI COVID-19)

Por fim, os trabalhadores de enfermagem verbalizaram sua percepção em relação à falta de investimento institucional em suas condições laborais, rememorando colegas que deixaram o trabalho por estas razões:

[...] eu acho que o que precisa para o pessoal trabalhar mais motivado e incentivado é um cuidado maior por parte da instituição. Pagamentos em dia. Eu tirei férias e até agora não recebi. Às vezes a gente está em um plantão de 12 horas, a comida que vem para a gente é horrorosa e ainda descontam quando a gente faz refeição. [...] Muitos [colegas] foram embora por esses motivos. [...] (T26-Intern. COVID-19)

Portanto, esta categoria analítica sinaliza que as condições de trabalho de enfermagem eram intersectadas por aspectos que extrapolam os limites da unidade COVID-19 em si, incluindo questões de remuneração, valorização e autonomia profissional.

DISCUSSÃO

A primeira categoria analítica sinaliza para aspectos cotidianos nas unidades COVID-19 que se relacionavam às condições de trabalho. Os depoentes enfatizaram a disponibilidade de recursos materiais e EPI’s. Esse resultado diverge de outros estudos realizados com esta população, no Brasil e em outros países, que relataram situação contrária à encontrada nesta pesquisa33. Fernández-Castillo RJ, González-Caro MD, Fernández-García E, Porcel-Gálvez AM, Garnacho-Montero J. Intensive care nurses' experiences during the COVID-19 pandemic: a qualitative study. Nurs Crit Care. 2021;26(5):397-406. doi: https://doi.org/10.1111/nicc.12589
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,1414. Nasi C, Marcheti PM, Oliveira E, Rezio LA, Zerbetto SR, Queiroz AM, et al. Meanings of nursing professionals' experiences in the context of the pandemic of COVID-19. Rev Rene. 2021;22:e67933. doi: https://doi.org/10.15253/2175-6783.20212267933
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-1616. Llop-Gironés A, Vračar A, Llop-Gironés G, Benach J, Angeli-Silva L, Jaimez L,et al. Employment and working conditions of nurses: where and how health inequalities have increased during the COVID-19 pandemic? Hum Resour Health. 2021;19(1):112. doi: https://doi.org/10.1186/s12960-021-00651-7
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. Pode-se considerar que isso é resultado dos esforços realizados pelas instituições de saúde do estado do Rio Grande do Sul na aquisição de EPI’s para estes setores ao longo da pandemia.

Os depoentes sugerem também que, em alguns momentos, sentiram-se mais seguros no que dizia respeito à disponibilidade e adequação dos recursos quando comparadas às unidades não COVID-19. Estudo transversal polonês com mais de 500 trabalhadores de enfermagem de diferentes setores hospitalares encontrou diferenças estatísticas significativas quando realizadas comparações entre as condições de trabalho de diferentes unidades, sugerindo que nuances diferem entre elas1111. Kowalczuk K, Krajewska-Kułak E, Sobolewski M. Factors determining work arduousness levels among nurses: using the example of surgical, medical treatment, and emergency wards. Biomed Res Int. 2019;2019:6303474. doi: https://doi.org/10.1155/2019/6303474
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. Além disso, pode-se considerar que, em alguns momentos, pode haver ocorrido priorização das unidades COVID-19 na distribuição de EPI’s, culminando no desabastecimento de alguns setores não COVID-19.

Estudo de revisão da literatura internacional aponta que a crise sanitária do Sars-CoV-2 desnudou sistemas de saúde, em todo o mundo, despreparados para lidar com emergências desta natureza. O desequilíbrio entre demanda e oferta de EPI’s foi um dos reflexos desse despreparo. As lições aprendidas com esta experiência devem servir para a gestão em saúde no mundo pós-pandemia1717. Li DTS, Samaranayake LP, Leung YY, Neelakantan P. Facial protection in the era of COVID-19: a narrative review. Oral Dis. 2021;27(Suppl 3):665-73. doi: https://doi.org/10.1111/odi.13460
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.

No entanto, os profissionais destacaram aspectos negativos das condições de trabalho. Dentre elas, a insuficiência de recursos humanos, atribuída a descontinuidades e dificuldades de recrutamento, além do número elevado de afastamentos funcionais por contaminação. Esse achado vai ao encontro de resultados de outros estudos realizados com trabalhadores de enfermagem, os quais evidenciaram que estes percebiam aumento da jornada de trabalho em decorrência das dificuldades de recrutamento e da quantidade de trabalhadores contaminados pelo Sars-CoV-2 (e, portanto, em afastamento)33. Fernández-Castillo RJ, González-Caro MD, Fernández-García E, Porcel-Gálvez AM, Garnacho-Montero J. Intensive care nurses' experiences during the COVID-19 pandemic: a qualitative study. Nurs Crit Care. 2021;26(5):397-406. doi: https://doi.org/10.1111/nicc.12589
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,1818. Fernandez M, Lotta G, Passos H, Cavalcanti P, Corrêa MG. Condições de trabalho e percepções de profissionais de enfermagem que atuam no enfrentamento à covid-19 no Brasil. Saúde Soc. 2021;30(4):e201011. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902021201011
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.

Uma pesquisa realizada em três hospitais da Bélgica avaliou e comparou a carga de trabalho de enfermagem envolvendo pacientes COVID-19 e não COVID-19 (totalizando mais de 1700 pessoas). O estudo concluiu que pacientes COVID-19 envolviam maior carga de trabalho e requeriam significativamente mais tempo de cuidados1919. Bruyneel A, Gallani MC, Tack J, d'Hondt A, Canipel S, Franck S, et al. Impact of COVID-19 on nursing time in intensive care units in Belgium. Intensive Crit Care Nurs. 2021;62:102967. doi: https://doi.org/10.1016/j.iccn.2020.102967
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. A complexidade destes cuidados deveria motivar um incremento na força de trabalho nas unidades COVID-19, no entanto, outas pesquisas têm mostrado o contrário.

Estudo transversal israelense conduzido com 130 profissionais de enfermagem mostrou que a maioria percebeu sua carga de trabalho aumentada devido à escassez de pessoal durante a pandemia2020. Savitsky B, Radomislensky I, Hendel T. Nurses' occupational satisfaction during Covid-19 pandemic. Appl Nurs Res. 2021;59:151416. doi: https://doi.org/10.1016/j.apnr.2021.151416
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. Estudo transversal brasileiro realizado com 890 trabalhadores de enfermagem evidenciou que a ocorrência de abstenção no trabalho devido à suspeita ou confirmação de COVID-19 foi relatada por 16,6% da amostra estudada. Além disso, o estudo encontrou associação estatística significativa entre a avaliação negativa das condições de trabalho e a suspeita de infecção pelo Sars-CoV-22121. Kantorski LP, Oliveira MM, Treichel CAS, Alves PF, Lemos DSC, Ramos CI. Suspected infection, absenteeism at work and testing for COVID-19 among nursing professionals. Texto Contexto Enferm. 2021;30:e20210135. doi: https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2021-0135
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, o que reforça a relação entre esses fatores.

É fato que a COVID-19 aumentou a demanda das instituições pelos serviços de enfermagem. Em parte, essa demanda culminou em um aumento no número de contratações. No entanto, embora haja um contingente relativamente grande de profissionais de enfermagem por número de habitantes no Brasil, as instituições nem sempre respeitam o dimensionamento adequado das equipes em relação às exigências dos setores. Isso causa um déficit profissional proposital, pois o comportamento de sobrecarregar o trabalhador é sustentável ao serviço55. Backes MTS, Higashi GDC, Damiani PR, Mendes JS, Sampaio LS, Soares GL. Condições de trabalho dos profissionais de enfermagem no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(esp):e20200339. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200339
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. Portanto, esse achado pode ser relacionado à precarização profissional da enfermagem, que culmina em prejuízos nas condições de trabalho.

A insuficiência de suporte multidisciplinar também foi referida pelos participantes. A crise sanitária da COVID-19 desvelou a importância do apoio entre as diferentes categorias profissionais para o enfrentamento da sobrecarga física e psicológica33. Fernández-Castillo RJ, González-Caro MD, Fernández-García E, Porcel-Gálvez AM, Garnacho-Montero J. Intensive care nurses' experiences during the COVID-19 pandemic: a qualitative study. Nurs Crit Care. 2021;26(5):397-406. doi: https://doi.org/10.1111/nicc.12589
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. A complexidade dos casos graves da doença evidenciou a importância do trabalho multiprofissional para a integridade do cuidado e obtenção de bons resultados na recuperação destes pacientes.

No entanto, ao mesmo tempo, há registros de diminuição de contingente profissional em algumas instituições, com redistribuição de atividades entre os funcionários55. Backes MTS, Higashi GDC, Damiani PR, Mendes JS, Sampaio LS, Soares GL. Condições de trabalho dos profissionais de enfermagem no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(esp):e20200339. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200339
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, o que fragiliza a integralidade do cuidado e as condições de trabalho. Nessas situações, profissionais que prestam cuidados contínuos e ininterruptos - como a enfermagem - sentem-se fragilizados e desassistidos em um momento em que precisariam de uma rede interdisciplinar coesa.

A absorção de novas atribuições também foi destacada pelos participantes e relacionada à prejuízos de suas condições de trabalho. Estudo realizado com 445 trabalhadores de enfermagem brasileiros evidenciou que 92,5% destes acreditavam que a pandemia transformou seus processos de trabalho1818. Fernandez M, Lotta G, Passos H, Cavalcanti P, Corrêa MG. Condições de trabalho e percepções de profissionais de enfermagem que atuam no enfrentamento à covid-19 no Brasil. Saúde Soc. 2021;30(4):e201011. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902021201011
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. Já um estudo qualitativo realizado com 17 trabalhadores de enfermagem hospitalares da Espanha identificou que as medidas de restrição de circulação de pessoas nas unidades COVID-19 determinaram que os trabalhadores destas unidades absorvessem novas demandas que, até então, eram realizadas por outras pessoas. Na percepção dos participantes, os enfermeiros foram os trabalhadores mais sobrecarregados por atividades extras, por serem considerados profissionais mais versáteis e adaptativos33. Fernández-Castillo RJ, González-Caro MD, Fernández-García E, Porcel-Gálvez AM, Garnacho-Montero J. Intensive care nurses' experiences during the COVID-19 pandemic: a qualitative study. Nurs Crit Care. 2021;26(5):397-406. doi: https://doi.org/10.1111/nicc.12589
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.

No entanto, sabe-se também que sobrecarregar trabalhadores com a sobreposição de funções é parte da desvalorização profissional e precarização do trabalho de enfermagem, pois é uma realidade que já existia antes da pandemia55. Backes MTS, Higashi GDC, Damiani PR, Mendes JS, Sampaio LS, Soares GL. Condições de trabalho dos profissionais de enfermagem no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(esp):e20200339. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200339
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. Portanto, pode-se ponderar que a conjuntura imposta pela pandemia, para além de criar novas situações, conferiu outras nuances a problemas já existentes na profissão. A precarização do trabalho de enfermagem é um fenômeno histórico intersectado por elementos políticos, econômicos e sociais que tornam difícil sua dissolução e que se potencializam nos períodos de crise.

A coexistência destes elementos promovia a intensificação do trabalho da enfermagem, que se manifestava em prejuízos aos momentos de descanso, alimentação e, em alguns casos, de uso do banheiro. Sabe-se que o uso dos EPI’s, antes pontual, com a COVID-19 passou a ser contínuo. Isso também gera desconfortos aos trabalhadores de enfermagem, como dificuldades na alimentação, uso do banheiro e o surgimento de lesões por pressão55. Backes MTS, Higashi GDC, Damiani PR, Mendes JS, Sampaio LS, Soares GL. Condições de trabalho dos profissionais de enfermagem no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(esp):e20200339. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200339
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,1818. Fernandez M, Lotta G, Passos H, Cavalcanti P, Corrêa MG. Condições de trabalho e percepções de profissionais de enfermagem que atuam no enfrentamento à covid-19 no Brasil. Saúde Soc. 2021;30(4):e201011. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902021201011
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. No entanto, é importante também pontuar a interferência da aceleração do ritmo de trabalho e acúmulo de demandas, o que pressiona o trabalhador a abdicar, algumas vezes, do seu autocuidado.

O resultado deste contexto é a caracterização da sobrecarga laboral no trabalho de enfermagem nas unidades COVID-19, o que vai ao encontro dos resultados de outros estudos similares33. Fernández-Castillo RJ, González-Caro MD, Fernández-García E, Porcel-Gálvez AM, Garnacho-Montero J. Intensive care nurses' experiences during the COVID-19 pandemic: a qualitative study. Nurs Crit Care. 2021;26(5):397-406. doi: https://doi.org/10.1111/nicc.12589
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,1414. Nasi C, Marcheti PM, Oliveira E, Rezio LA, Zerbetto SR, Queiroz AM, et al. Meanings of nursing professionals' experiences in the context of the pandemic of COVID-19. Rev Rene. 2021;22:e67933. doi: https://doi.org/10.15253/2175-6783.20212267933
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,1515. Miranda FBG, Yamamura M, Pereira SS, Pereira CS, Protti-Zanatta ST, Costa MK, et al. Psychological distress among nursing professionals during the COVID-19 pandemic: scoping review. Esc Anna Nery 2021;25(spe):e20200363. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2020-0363
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,1818. Fernandez M, Lotta G, Passos H, Cavalcanti P, Corrêa MG. Condições de trabalho e percepções de profissionais de enfermagem que atuam no enfrentamento à covid-19 no Brasil. Saúde Soc. 2021;30(4):e201011. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902021201011
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. É importante lembrar que essa conjuntura gera consequências para a população assistida. Em condições adversas, as equipes de enfermagem atendem pacientes de acordo com prioridades clínicas ou conforme a perspectiva de prognóstico. Essas decisões, por vezes, perpassam a tomada de decisões bioeticamente controversas55. Backes MTS, Higashi GDC, Damiani PR, Mendes JS, Sampaio LS, Soares GL. Condições de trabalho dos profissionais de enfermagem no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(esp):e20200339. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200339
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.

Além disso, gera prejuízos à saúde mental dos trabalhadores22. Malinowska-Lipień I, Suder M, Wadas T, Gabryś T, Kózka M, Gniadek A, Brzostek T. The correlation between nurses' COVID-19 infections and their emotional state and work conditions during the SARS-CoV-2 pandemic. Int J Environ Res Public Health. 2021;18(23):12715. doi: https://doi.org/10.3390/ijerph182312715
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,44. Li TM, Pien LC, Kao CC, Kubo T, Cheng WJ. Effects of work conditions and organisational strategies on nurses' mental health during the COVID-19 pandemic. J Nurs Manag. 2021;30(1):71-8. doi: https://doi.org/10.1111/jonm.13485
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e outros danos relacionados à saúde. Como exemplo, resultados de estudo realizado com 158 trabalhadores de enfermagem da Polônia evidenciaram que a infecção de profissionais de enfermagem pelo Sars-CoV-2 estava associada a maiores níveis de ansiedade, depressão e percepção de sobrecarga de trabalho22. Malinowska-Lipień I, Suder M, Wadas T, Gabryś T, Kózka M, Gniadek A, Brzostek T. The correlation between nurses' COVID-19 infections and their emotional state and work conditions during the SARS-CoV-2 pandemic. Int J Environ Res Public Health. 2021;18(23):12715. doi: https://doi.org/10.3390/ijerph182312715
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.

A segunda categoria analítica é resultado de uma visão mais ampliada das condições de trabalho por parte dos participantes, pois eles identificaram interface de aspectos institucionais e profissionais. As dificuldades sentidas pelos trabalhadores no estabelecimento de sua autonomia profissional na tomada de decisões, inicialmente, resgatam as contradições existentes na atribuição de valor simbólico entre as profissões. Falta de reconhecimento profissional, de autonomia, além de sobrecarga laboral e condições de trabalho inadequadas são descritas como vivências de insatisfação na enfermagem99. Silva AGI, Mendonça SES, Moraes AC, Vasconcelos TS, Costa GF. Satisfaction and dissatisfaction of the nursing team in urgent and emergency units: integrative review. Nursing. 2021;24(276):5663-9. doi: https://doi.org/10.36489/nursing.2021v24i276p5656-5669
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, fragilizam os sentidos do trabalho e não favorecem a saúde mental dos trabalhadores.

Além disso, foi dada ênfase aos atrasos nos pagamentos e defasagem salarial, o que explicitou o sentimento de desvalorização profissional. Sabe-se que adequadas condições de trabalho e remuneração, além de sensação de realização e valorização profissional são descritas como vivências de satisfação na enfermagem99. Silva AGI, Mendonça SES, Moraes AC, Vasconcelos TS, Costa GF. Satisfaction and dissatisfaction of the nursing team in urgent and emergency units: integrative review. Nursing. 2021;24(276):5663-9. doi: https://doi.org/10.36489/nursing.2021v24i276p5656-5669
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. No entanto, no contexto da COVID-19, a necessidade de contratação de pessoal de enfermagem potencializou o trabalhado precarizado. Como exemplos, podem-se citar: contratos temporários, perfil de pagamentos por dia/plantão, jornadas com horas extras não remuneradas e compensadas com banco de horas, folgas intercaladas por grandes períodos55. Backes MTS, Higashi GDC, Damiani PR, Mendes JS, Sampaio LS, Soares GL. Condições de trabalho dos profissionais de enfermagem no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(esp):e20200339. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200339
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.

A geração do valor do profissional de enfermagem no Brasil não é proporcional à crescente demanda pelo seu trabalho ou ao seu nível de qualificação. Mesmo com a COVID-19, a enfermagem segue demarcando uma população potencialmente explorável. A pandemia causou aumento da necessidade de força de trabalho de enfermagem. No entanto, essa demanda foi ao encontro de uma superpopulação de trabalhadores disponíveis a contratos precarizados, instáveis, caracterizados por sobrecarga e riscos55. Backes MTS, Higashi GDC, Damiani PR, Mendes JS, Sampaio LS, Soares GL. Condições de trabalho dos profissionais de enfermagem no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Rev Gaúcha Enferm. 2021;42(esp):e20200339. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200339
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.

A desvalorização da enfermagem é resultado de uma carga histórica atravessada por questões de gênero, raça e classe social. Os impactos da pandemia na saúde desnudam a desvalorização da categoria, ilustrada na invisibilidade social e na precarização da vida de quem a exerce1616. Llop-Gironés A, Vračar A, Llop-Gironés G, Benach J, Angeli-Silva L, Jaimez L,et al. Employment and working conditions of nurses: where and how health inequalities have increased during the COVID-19 pandemic? Hum Resour Health. 2021;19(1):112. doi: https://doi.org/10.1186/s12960-021-00651-7
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,2222. Gandra EC, Silva KL, Passos HR, Schreck RSC. Brazilian nursing and the COVID-19 pandemic: inequalities in evidence. Esc Anna Nery. 2021;25(spe):e20210058. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2021-0058
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. A pandemia estimulou na sociedade importantes reflexões em torno das condições de trabalho, reconhecimento e valorização salarial dos trabalhadores de enfermagem no Brasil e no mundo. Houve um movimento midiático importante que alimentou a construção social dos trabalhadores de enfermagem como heróis da pandemia; no entanto, esse movimento midiático não acompanhou transformações importantes na carreira da enfermagem, com destaque para questões de remuneração e contração.

Concorda-se que as relações de contratação influenciam fortemente a percepção de condições de trabalho. O emprego precário, determinado por relações ou por privações materiais, impacta negativamente na vida do trabalhador, perpetua as desigualdades1616. Llop-Gironés A, Vračar A, Llop-Gironés G, Benach J, Angeli-Silva L, Jaimez L,et al. Employment and working conditions of nurses: where and how health inequalities have increased during the COVID-19 pandemic? Hum Resour Health. 2021;19(1):112. doi: https://doi.org/10.1186/s12960-021-00651-7
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e reforça a desvalorização da profissão.

Por último, os dados sugerem que o abandono do emprego pode ter sido uma alternativa para um conjunto de trabalhadores de enfermagem como resposta à precarização das condições de trabalho, resultado simular ao encontro em um estudo polonês com mais de 500 profissionais de enfermagem. Os autores sugerem que o reconhecimento e intervenção sobre as condições de trabalho e a sobrecarga sobre a profissão podem mitigar o abandono dos empregos e mesmo da profissão1111. Kowalczuk K, Krajewska-Kułak E, Sobolewski M. Factors determining work arduousness levels among nurses: using the example of surgical, medical treatment, and emergency wards. Biomed Res Int. 2019;2019:6303474. doi: https://doi.org/10.1155/2019/6303474
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.

Por fim, é importante discutir a implicação destes resultados para a saúde dos trabalhadores de enfermagem. Uma scoping review evidenciou que as condições de trabalho estão entre as principais causas de sofrimento psíquico de trabalhadores de enfermagem da linha de frente da COVID-191515. Miranda FBG, Yamamura M, Pereira SS, Pereira CS, Protti-Zanatta ST, Costa MK, et al. Psychological distress among nursing professionals during the COVID-19 pandemic: scoping review. Esc Anna Nery 2021;25(spe):e20200363. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2020-0363
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. Estudo qualitativo dinamarquês realizado com 57 profissionais de enfermagem de unidades hospitalares COVID-19 reforçou que estas equipes especialmente necessitam de atenção gerencial contínua2323. Marsaa K, Mendahl J, Heilman H, Johansson H, Husum M, Lippert D, et al. Pride and uncertainty: a qualitative study of danish nursing staff in temporary COVID-19 wards. J Hosp Palliat Nurs. 2021;23(2):140-4. doi: https://doi.org/10.1097/NJH.0000000000000722
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. No entanto, transformações consubstanciais na saúde dos trabalhadores de enfermagem exigem políticas econômicas destinadas a melhorar substancialmente o emprego e as condições de trabalho da categoria1616. Llop-Gironés A, Vračar A, Llop-Gironés G, Benach J, Angeli-Silva L, Jaimez L,et al. Employment and working conditions of nurses: where and how health inequalities have increased during the COVID-19 pandemic? Hum Resour Health. 2021;19(1):112. doi: https://doi.org/10.1186/s12960-021-00651-7
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.

Os profissionais de enfermagem que atuaram no enfrentamento da COVID-19 necessitam de apoio institucional, suporte psicoemocional, proteção, segurança e educação em serviço. Esses investimentos precisam ser permanentes, ou seja, ganhar continuidade no período pós-pandemia1515. Miranda FBG, Yamamura M, Pereira SS, Pereira CS, Protti-Zanatta ST, Costa MK, et al. Psychological distress among nursing professionals during the COVID-19 pandemic: scoping review. Esc Anna Nery 2021;25(spe):e20200363. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2020-0363
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. A finitude da crise sanitária não demarca a resolução dos problemas agravados por ela. Após esse período, os trabalhadores de enfermagem precisarão de suporte e apoio institucional para reorganizar seu processo de trabalho e desenvolver estratégias que mitiguem os danos herdados dessa experiência.

Além disso, é necessário reconhecer e ampliar as discussões sobre as desigualdades sociais que pesam sobre a enfermagem e que foram potencializadas na pandemia2222. Gandra EC, Silva KL, Passos HR, Schreck RSC. Brazilian nursing and the COVID-19 pandemic: inequalities in evidence. Esc Anna Nery. 2021;25(spe):e20210058. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2021-0058
https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-20...
. Concorda-se que a gestão de recursos humanos e materiais é fundamental para sustentar as condições de trabalho da enfermagem33. Fernández-Castillo RJ, González-Caro MD, Fernández-García E, Porcel-Gálvez AM, Garnacho-Montero J. Intensive care nurses' experiences during the COVID-19 pandemic: a qualitative study. Nurs Crit Care. 2021;26(5):397-406. doi: https://doi.org/10.1111/nicc.12589
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. No entanto, os resultados deste estudo reforçam que, para além de condições que favoreçam o trabalho no cotidiano das unidades de saúde, a enfermagem necessita de transformações sociopolíticas que coíbam a exploração econômica e laboral da categoria e fortaleçam a autonomia e valorização profissional.

Os resultados deste estudo sinalizam para necessidades de investimentos e transformações das condições de trabalho nas instituições de saúde. Portanto, o estudo oferece subsídios para estas ações. Além disso, reforçam a importância de representações políticas que lutem por projetos que fortaleçam a empregabilidade e a valorização financeira e profissional da enfermagem no Brasil. Os resultados podem subsidiar também o ensino nos cursos de graduação em enfermagem, para que a formação de enfermeiros inclua o exercício da reflexão crítica em torno da autonomia, valorização profissional e financeira da categoria.

Este estudo apresentou como limitação o fato de a coleta de dados ter ocorrido durante diferentes fases da pandemia no estado do Rio Grande do Sul. Acredita-se que a percepção dos participantes era condicionada ao momento em que se encontravam no que diz respeito às ondas de contaminação nas diferentes mesorregiões, que assumiram características singulares. Portanto, diferentes grupos de participantes responderam à pesquisa em diferentes momentos da crise sanitária, o que confere aos dados um possível viés de temporalidade. Para contornar isso, os autores buscaram contextualizar esses dados, na discussão, com achados de outras pesquisas também realizadas em diferentes momentos da pandemia.

Também é importante destacar que as entrevistas foram conduzidas por diferentes pesquisadores. Isso foi necessário devido ao caráter multicêntrico do projeto, com cenários descentralizados e distantes geograficamente. Vieses de coleta foram diminuídos com auxílio de um sólido protocolo de pesquisa, construído e discutido de forma participativa e que contribuiu no alinhamento da coleta. Ainda assim, deve-se considerar a interface entre a condução de uma entrevista e a subjetividade do pesquisador, o que pode conferir ao banco de dados um viés de uniformidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados deste estudo revelaram que as condições de trabalho de enfermagem em unidades COVID-19 foram influenciadas por aspectos adstritos ao cotidiano das unidades, como disponibilidade de insumos e EPI’s, insuficiência dos recursos humanos e do suporte multidisciplinar, além da sobreposição de demandas, sendo identificada a intensificação do trabalho que ocasionava sobrecarga. Além disso, os resultados sinalizam que aspectos institucionais e profissionais também tem interface com as condições de trabalho, destacando-se a defasagem salarial, autonomia frágil e falta de investimentos, culminando em sentimentos de desvalorização e, em alguns casos, no abandono do emprego. Ao final do estudo, é possível considerar que os trabalhadores de enfermagem das unidades COVID-19 conviveram com a precarização das condições de trabalho, agravadas por elementos organizacionais, profissionais e financeiros.

Agradecimento:

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) por ter apoiado a realização desta pesquisa.

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Editado por

Editor associado:

Adriana Aparecida Paz

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Jan 2022
  • Aceito
    06 Set 2022
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