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Motivações e expectativas de familiares no cuidado ao usuário de substâncias psicoativas

RESUMO

Objetivo:

Compreender as motivações e expectativas de familiares para o cuidado ao usuário de substâncias psicoativas.

Método:

Trata-se de um estudo qualitativo com a abordagem da Sociologia Fenomenológica de Alfred Schutz. Os dados foram coletados mediante entrevista semiestruturada com familiares de usuários de substâncias psicoativas atendidos na internação e no ambulatório de um Hospital universitário no sul do Brasil. Os dados foram interpretados por meio da análise compreensiva fenomenológica.

Resultados:

Foram identificadas cinco categorias de motivação: por medo e insegurança com a situação; por obrigação; pela relação de amor e vínculo; para interromper o sofrimento; para promover uma vida independente.

Conclusão:

As motivações dos familiares visam evitar o desamparo do usuário de substâncias psicoativas, alcançar mudanças positivas na construção de uma vida sem o uso de substâncias, projetando um futuro autossuficiente para o usuário.

Palavras-chave:
Família; Usuários de drogas; Serviços de saúde mental

ABSTRACT

Objective:

To understand the motivations and expectations of family members for the care of users of psychoactive substances.

Method:

This is a qualitative study using Alfred Schutz's phenomenological sociology framework. Data was collected through semi-structured interviews with family members of substance users treated in the inpatient and outpatient clinic of a university hospital in southern Brazil. Data was interpreted through comprehensive phenomenological analysis.

Results:

Five categories of motivation were identified: for fear and insecurity with the situation; for obligation; due to the relationship of love and connection; to stop suffering; to promote independent living.

Conclusion:

The motivations of the family members aim to avoid the helplessness of the substance user and to achieve positive changes in the construction of a life without the use of substances, projecting a self-sufficient future for the user.

Keywords:
Family; Drug users; Mental health services

RESUMEN

Objetivo:

Comprender las motivaciones y expectativas de los familiares para el cuidado de los usuarios de sustancias psicoactivas.

Método:

Se trata de un estudio cualitativo con enfoque en la sociología fenomenológica de Alfred Schutz. Los datos fueron recolectados a través de entrevistas semiestructuradas con familiares de usuarios de sustancias atendidos en la clínica de hospitalización y consulta externa de un hospital universitario en el sur de Brasil. Los datos se interpretaron mediante un análisis fenomenológico integral.

Resultados:

Se identificaron cinco categorías de motivación: por miedo e inseguridad con la situación; por obligación; por la relación de amor y vínculo; para dejar de sufrir; para promover la vida independiente.

Conclusión:

Las motivaciones de los familiares incluyen evitar el desamparo del usuario de sustancias y lograr cambios positivos en la construcción de una vida sin uso de sustancias, proyectando un futuro autosuficiente para el usuario.

Palabras clave:
Familia; Consumidores de drogas; Servicios de salud mental

INTRODUÇÃO

É consenso na literatura científica que a família pode influenciar no uso de substâncias psicoativas entre seus membros, exercendo um papel, tanto como fator de risco, quanto de proteção. Situações vivenciadas na família, tais como o distanciamento afetivo, a dificuldade na comunicação e a imprecisão de limites e responsabilidades favorecem os riscos de abuso de substâncias; ao passo que uma postura acolhedora e escuta adequada, de afeto e proteção podem representar como um fator de proteção ao uso de substâncias, sobretudo em pacientes em tratamento11. Assalin ACB, Zerbetto SR, Ruiz BO, Cugler PS, Pereira SS. Facilities of family adherence in treatment of chemical dependence: families’ perception. Rev Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. 2021;17(1):17-25. doi: https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2021.150251
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,22. Bessa FB, Bandeira M, Pollo TC, Oliveira DCR. Sobrecarga e sintomatologia depressiva em familiares cuidadores de pessoas dependentes de álcool e outras drogas. Gerais Rev Interinst Psicol. 2020;13(2):e14705. doi: http://doi.org/10.36298/gerais202013e14705
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No cuidado em saúde mental é comum haver sobrecarga na família, sobretudo aqueles que mais se envolvem no cuidado do indivíduo com transtorno mental ou por uso de substâncias (TUS)22. Bessa FB, Bandeira M, Pollo TC, Oliveira DCR. Sobrecarga e sintomatologia depressiva em familiares cuidadores de pessoas dependentes de álcool e outras drogas. Gerais Rev Interinst Psicol. 2020;13(2):e14705. doi: http://doi.org/10.36298/gerais202013e14705
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. Frequentemente a sobrecarga do cuidador é caracterizada com a manifestação de doença física e emocional de seus membros, tensão emocional, restrição social e dificuldades financeiras oriundas da atividade de cuidar33. Maciel SC, Silva FF, Pereira CA, Dias CCV, Alexandre TMO. Cuidadoras de dependentes químicos: um estudo sobre a sobrecarga familiar. Psicol Teor Pesqui. 2018;34:e34416. doi: https://doi.org/10.1590/0102.3772e34416
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Da mesma maneira, sabe-se que famílias com indivíduos com TUS também tem impactada a saúde física, psicológica e social de seus membros, com maior intensidade entre os familiares mais próximos do usuário (geralmente cônjuges, pais e/ou filhos)44. Dias LM, Alves MS, Pereira MO, Melo LD, Assis CCG, Spindola T. Health personnel, family relationships and codependency of psychoactive substances: a phenomenological approach. Rev Bras Enferm. 2021;74(1):e20200309. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0309
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Estudo realizado com familiares de usuários de substâncias psicoativas mostrou que além de serem vítimas da exposição ao tráfico de drogas e violência, muitos sofrem com preconceito e estigma. Nesse sentido é necessário olhar tanto para as necessidades do usuário quanto de estudar as necessidades e demandas do grupo familiar dos usuários55. Green B, Jones K, Lyerla R, Dyar W, Skidmore M. Stigma and behavioral health literacy among individuals with proximity to mental health or substance use conditions. J Ment Health. 2021;30(4):481-7. doi: https://doi.org/10.1080/09638237.2020.1713998
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No mundo, 35 milhões de pessoas sofrem de TUS, sendo que apenas uma em cada sete delas recebe tratamento específico.Entre as principais substâncias consumidas estão o álcool, o tabaco, cannabis (maconha) e Cocaína (crack)66. United Nations Office on Drugs and Crime. Regional Oficce for Central Asia. Annual Report 2019: together making the region safer from drugs, crime and terrorism [Internet]. Viena: UNODC; 2019 [cited 2023 Mar 13]. Available from: https://www.unodc.org/documents/centralasia//2020/August/Annual-Report-2019/ROCA-AR-2019-ENG.pdf
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.

No Brasil, o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas mostrou que 11,7 milhões de pessoas sejam dependentes de álcool, representando 5,73% da população geral. Revelou ainda que o Brasil é responsável por 20% do consumo mundial de cocaína/crack77. Laranjeiras R. II Levantamento nacional de álcool e drogas [Internet]. São Paulo, SP: UNIFESP; 2014 [cited 2023 Mar 13]. Available from: http://inpad.org.br/wp-content/uploads/2014/03/Lenad-II-Relat%C3%B3rio.pdf
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. Esse mesmo levantamento identificou que os familiares mais envolvidos no cuidado ao usuário de substâncias psicoativas são geralmente mulheres (mãe ou esposa do usuário) que exercem o papel de “chefe da família”, evidenciando uma sobrecarga devido à sobreposição de responsabilidades atribuídas, quase sempre, a um dos seus membros77. Laranjeiras R. II Levantamento nacional de álcool e drogas [Internet]. São Paulo, SP: UNIFESP; 2014 [cited 2023 Mar 13]. Available from: http://inpad.org.br/wp-content/uploads/2014/03/Lenad-II-Relat%C3%B3rio.pdf
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Nesse sentido, a sobrecarga do cuidador do usuário de substâncias psicoativas é caracterizada como um estado de sofrimento psicológico, tensão emocional, conflitos familiares, problemas financeiros oriundos do ato de cuidar88. Baptista HP, Bortolon CB, Moreira TC, Barros HMT. Investigation of factors associated with low adherence to treatment of codependency in family members of psychoactive substance users. Estud Psicol. 2021;38:e200023. doi: https://doi.org/10.1590/1982-0275202138e200023
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. Esse grau de sobrecarga do cuidador está fortemente relacionado ao grau de parentesco do familiar cuidador do usuário de substâncias psicoativas99. Eloia SC, Oliveira EN, Lopes MVO, Parente JRF, Eloia SMC, Lima DS. Family burden among caregivers of people with mental disorders: an analysis of health services. Ciênc Saúde Colet. 2018 [cited 2021 Jul 19];23(9):3001-11. Available from: https://doi.org/10.1590/1413-81232018239.18252016
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O ato de cuidar do usuário de substâncias psicoativas, realizado por seu familiar, é permeado por expectativas e sentimentos que se faz necessário investigar, para compreender melhor essa dinâmica de relação entre o familiar e o usuário, evitando assim, pressupostos simplistas e reducionistas como a vitimização e responsabilização da família pelo abuso de substâncias do usuário.

Dessa maneira, com o intuito de desvelar a essência das motivações de familiares para o cuidado do usuário de substâncias psicoativas este estudo buscou responder a seguinte questão de pesquisa: Quais são as motivações e expectativas de familiares no cuidado ao usuário de substâncias psicoativas? Desse modo o objetivo desta pesquisa foi compreender as motivações e expectativas de familiares no cuidado ao usuário de substâncias psicoativas à luz do referencial teórico-filosófico da Sociologia Fenomenológica de Alfred Schutz.

MÉTODO

Adotou-se o instrumento COREQ1010. Souza VRS, Marziale MHP, Silva GTR, Nascimento PL. Translation and validation into Brazilian Portuguese and assessment of the COREQ checklist. Acta Paul Enferm. 2021;34:eAPE02631. doi: https://doi.org/10.37689/acta-ape/2021AO02631
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para organizar as informações deste artigo.

A abordagem adotada nesta investigação foi qualitativa, fenomenológica tendo como referencial teórico-filosófico a Sociologia Fenomenológica de Alfred Schutz1111. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução a sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018.. Nesse referencial é possível compreender as motivações e expectativas humanas por meio da identificação dos motivos porque (as razões de uma ação) e dos motivos para (as expectativas de uma ação). Dessa maneira, toda ação humana, sobretudo uma ação social, pode ser compreendida como um comportamento motivado, ou seja, essa ação pode ser interpretada por meio de suas motivações1111. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução a sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018.. Então, para compreender o cuidado do usuário de substâncias psicoativas foi necessário revelar e interpretar essa rede de motivações desses familiares que orientam as suas ações de cuidado.

Essas ações ocorrem no mundo da vida cotidiana das pessoas, as quais agem de acordo com seus estoques de conhecimento à mão, ou seja, a partir de suas vivências experienciadas de modo particular e com significados próprios a cada uma delas. Ao apreender ações, comuns aos familiares de usuários de substâncias, emergem-se as categorias concretas desse vivido1111. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução a sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018., traduzidas nesse referencial como o típico da ação dos familiares de usuários de substâncias. Trata-se, portanto, em construir uma visão tipificada de um grupo social, em um dado tempo e em um dado local, descrevendo os traços típicos da ação desse grupo - típico da ação (tipo vivido)1111. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução a sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018..

Portanto, com a identificação dos significados dos motivos porque e motivos para da ação de cuidar de usuários de substâncias de cada familiar é possível revelar as características típicas dessa ação social1111. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução a sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018..

Este estudo foi realizado em um serviço de tratamento de usuários de substâncias (internação e ambulatório em adição) de um hospital universitário no sul do Brasil. A internação atende um público masculino adulto mediante um programa de tratamento pautado na desintoxicação e na promoção da reabilitação do usuário para seguimento em serviço extra-hospitalar. O ambulatório atende um público masculino e feminino mediante um programa de tratamento estruturado para dois anos de seguimento visando à adesão ao tratamento e reinserção social. A escolha desses serviços foi intencional devido à realização de atendimento especializado para os familiares de usuários de substâncias (atendimento individual e em grupo).

Participaram do estudo 15 familiares de usuários de substâncias em tratamento,escolhidos de maneira intencional, sendo cinco deles abordados na internação e 10 no ambulatório. Foram incluídos no estudo os familiares mais envolvidos com os cuidados do usuário, indicados pela equipe assistencial e validados pelo usuário. Foram excluídos os familiares de usuários que estavam em regime de atendimento privado e aqueles com dificuldades de comunicação verbal. Os familiares foram abordados pelos pesquisadores nos serviços enquanto aguardavam atendimento, sendo que não houve recusa em participar da pesquisa.

Para a produção de informações, realizou-se entrevista fenomenológica, permitindo ao entrevistado expressar de maneira livre suas vivências, motivações, sentimentos e expectativas acerca do fenômeno em estudo. Nesta modalidade de entrevista o pesquisador adota uma postura empática, ao mesmo tempo em que coloca em suspensão (epoché) as suas crenças, pré-julgamentos e conceitos estabelecidos na sua perspectiva vivida, dando espaço para que a essência do fenômeno vivido pelos familiares emerja dessa relação. Em pesquisa fenomenológica, a epochè significa o exercício de colocar em suspensão os valores, crenças e pressupostos do pesquisador, na tentativa consciente de abster-se de seus pré-conceitos, julgamentos e ideais para poder compreender determinada realidade vivida pelo outro, da maneira como ela é, de forma transparente e despida de preceitos que poderiam invalidar a expressão da essência do fenômeno pesquisado1212. Camatta MW. Ações voltadas para saúde mental na Estratégia de Saúde da Família: intenções de equipes e expectativas de usuários e familiares [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2010 [cited 2023 Mar 13]. Available from: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/27895/000767787.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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-1414. Schneider JF, Camatta MW, Nasi C. O trabalho em um centro de atenção psicossocial: uma análise sociológica fenomenológica em Alfred Schütz. Rev Gaúcha Enferm. 2008 [cited 2023 Mar 13];28(4):520. Available from: https://www.seer.ufrgs.br/index.php/rgenf/article/view/3129
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Essa coleta foi realizada de março de 2018 a março de 2019, mediante as seguintes questões: 1) De que forma você cuida do seu familiar? 2) Por que você cuida do seu familiar? 3) O que você espera com essas ações? As entrevistas foram realizadas em um ou dois encontros, com duração média de 45 minutos, conforme a disponibilidade do familiar e a necessidade de aprofundamento da entrevista. Elas foram realizadas em uma sala privada nos próprios serviços de saúde, sendo conduzidas por uma mestranda acompanhada de um aluno de graduação em enfermagem, os quais foram treinados previamente.

Foi empregada a análise compreensiva conforme o referencial da Sociologia Fenomenológica de Alfred Schutz operando com os conceitos de:motivos (porque e para) e tipificação da ação (rede de motivações típicas)1212. Camatta MW. Ações voltadas para saúde mental na Estratégia de Saúde da Família: intenções de equipes e expectativas de usuários e familiares [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2010 [cited 2023 Mar 13]. Available from: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/27895/000767787.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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-1414. Schneider JF, Camatta MW, Nasi C. O trabalho em um centro de atenção psicossocial: uma análise sociológica fenomenológica em Alfred Schütz. Rev Gaúcha Enferm. 2008 [cited 2023 Mar 13];28(4):520. Available from: https://www.seer.ufrgs.br/index.php/rgenf/article/view/3129
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A análise das falas dos participantes foi construída a partir das motivações e expectativas dos familiares no cuidado ao usuário de substâncias psicoativas. O ponto de partida foi um contexto de descrições subjetivas das vivências dos entrevistados para cunhar a construção de um contexto de significado objetivo (tipificado da ação), característico do grupo de familiares de usuários de substâncias psicoativas atendidos no serviço.

Seguiram-se as seguintes etapas: leitura atenta das falas para captar a situação vivenciada e os motivos porque e para dos sujeitos; identificação de categorias concretas que se constituem como sínteses objetivas dos diferentes significados da ação que emergem das experiências dos sujeitos que abrigam os atos dos mesmos; e a releitura das falas para selecionar e agrupar trechos que contenham aspectos significativos semelhantes das ações dos sujeitos. A partir das características típicas das falas, foi estabelecido o significado das ações dos sujeitos, buscando descrever o típico da ação dos familiares no cuidado aos usuários de substâncias psicoativas1212. Camatta MW. Ações voltadas para saúde mental na Estratégia de Saúde da Família: intenções de equipes e expectativas de usuários e familiares [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2010 [cited 2023 Mar 13]. Available from: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/27895/000767787.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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-1414. Schneider JF, Camatta MW, Nasi C. O trabalho em um centro de atenção psicossocial: uma análise sociológica fenomenológica em Alfred Schütz. Rev Gaúcha Enferm. 2008 [cited 2023 Mar 13];28(4):520. Available from: https://www.seer.ufrgs.br/index.php/rgenf/article/view/3129
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A análise das falas dos participantes foi o ponto de partida para compreender as descrições subjetivas das vivências de cada entrevistado, para que, progressivamente se construísse um corpus de análise de significado objetivo, que retratasse o que fosse tipicamente vivido nesse grupo social de familiares de usuários de drogas.

Esse processo de redução fenomenológica do fenômeno revelou como essência cinco categorias concretas1111. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução a sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018.: cuido por medo e insegurança com a situação; cuido por obrigação; cuido por amor e vínculo; cuido para interromper o sofrimento; cuido para promover uma vida independente, o que, possibilitou interpretar o significado das ações (motivações) dos familiares bem como, descrever o que é típico no cuidado ao usuário de substâncias psicoativas- o típico da ação de cuidar.

Este estudo faz parte de uma pesquisa maior aprovada por um Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE: 80602517.8.0000.5327). Para garantir o anonimato dos participantes, utilizou-se a letra P (participante) e de número sequencial de 1 a 15 para referir-se aos participantes (P1 a P15).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram entrevistados 15 familiares de usuários de substâncias com histórico de abuso de substâncias na família sendo a maioria do sexo feminino (86%) com idades variando de 28 a 80 anos. A principal substância de abuso do usuário foi o álcool (53%), seguida de múltiplas substâncias (26%), tendo todos histórico de tratamentos anteriores, sendo 10 em acompanhamento ambulatorial no momento da pesquisa (Tabela 1).

Tabela 1 -
Caracterização dos familiares de usuário de substâncias psicoativas. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, 2018-2019

As motivações e expectativas de familiares para o cuidado do usuário de substâncias psicoativas foram organizadas em cinco categorias concretas, as quais foram interpretadas à luz do referencial da sociologia fenomenológica de Alfred Schutz e discutidas com a literatura científica sobre o fenômeno em estudo.

O Tabela 2 apresenta a estrutura das motivações dos familiares para cuidar do usuário - motivos porque e motivos para - conforme as suas vivências do seu cotidiano junto aos usuários de substâncias.

Tabela 2 -
Rede típica das motivações dos familiares cuidarem do usuário de substâncias psicoativas. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, 2018-2019

Razões porque cuidar do usuário

Os familiares vivenciam um cotidiano de preocupação, medo e insegurança devido às circunstâncias vividas pelo usuário de substâncias psicoativas, que sem o apoio e suporte familiar, são marcadas pela solidão e ausência de vínculos sociais, como referem:

“Cuido por que tenho medo, que ele (filho) vá embora, mas ele não tem pra onde ir [...] a gente não tem como veranear com ele assim, primeiro ele né, depois a gente! Natal, ano novo é só os três, fazemos uma janta e cama, a gente não vai a lugar nenhum, é ele! Em função dele! Pra ele não ir a qualquer lugar que já bebe”. (P6)

“Eu não quero que ele passe trabalho, não quero que ele passe necessidade [...]. Eu acho que eu tenho esses cuidados pra que ele não caia nisso de novo e não ter todas as consequências que teve no passado e que eu não vou conseguir ver é muito sofrimento, muito mesmo”. (P4)

“Acontece alguma coisa com essa pessoa que é o caso dele, o caso de alcoolismo dele é grave [...]. Então, tu tem que fazer alguma coisa para não vir a óbito. Então eu faço a minha parte, claro que depende muito dele” (P1).Os familiares vivem apreensivos devido ao provável desamparo do usuário de substâncias psicoativas, receosos de novas recaídas e de agravamento das consequências já experimentadas pelo usuário, tomando importantes proporções como o medo dos familiares em relação ao óbito desse usuário, caso não sejam prestados apoio e cuidados necessários.

O depoimento P4 destaca o temor do familiar em vivenciar novamente situações negativas em relação ao uso de substâncias pelo usuário, relatando que não quer que o usuário volte a ter as consequências que já teve com o uso de substâncias - “que ele não caia nisso de novo”.

Nesse sentido, destacam-se as experiências anteriores desse familiar relacionadas ao uso de substâncias pelo usuário, isto é, resgata a experiência desse familiar com base no seu estoque de conhecimento a mão. Tais situações vividas deixaram marcas de sofrimento na família, o que gera o temor em revivê-las.

Para Schutz, o estoque de conhecimento a mão possui uma história particular construído pelas experiências vivenciadas por nossas consciências, isto é, trata-se de um esquema interpretativo de experiências passadas e presentes, e de experiências antecipadas por projeções da consciência, das coisas que estão por vir1111. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução a sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018.. Portanto, nota-se que há preocupação e temor desse familiar em relação a uma possível recaída do usuário de substâncias psicoativas.

A família é o primeiro núcleo de relações do usuário que costuma ser afetado pela recaída do usuário de substâncias psicoativas, sendo comuns os sentimentos de medo e apreensão em relação à manutenção da abstinência do usuário de drogas, o que acaba por culpabilizá-lo pela recaída, atribuindo a ela uma conotação de falha moral do indivíduo1515. Di Sarno M, De Candia V, Rancati F, Madeddu F, Calati R, Di Pierro R. Mental and physical health in family members of substance users: a scoping review. Drug Alcohol Depend. 2021;219:108439. doi: https://doi.org/10.1016/j.drugalcdep.2020.108439
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É comum que o familiar do usuário de substâncias psicoativas veja a recaída como um prejuízo ao bem estar do usuário, e não como uma oportunidade de reconhecer as dificuldades dele com relação ao consumo de substâncias. Com isso, os seus familiares costumam viver constantemente angustiados, em um estado de sofrimento e apreensão.

Nesse sentido, experiências difíceis vividas previamente em relação ao uso de substâncias, as diversas recaídas do usuário e os sentimentos de preocupação e medo moldam uma “bagagem” de experiências que motivam esses familiares a cuidar do usuário.

É possível observar ainda uma alteração importante na dinâmica social da família, uma vez que acaba renunciando participar de atividades sociais (festividades) com o receio da recaída do usuário.

Apesar disso, esses familiares referem participar do cotidiano do usuário, convivendo num espaço social de relações, como forma dele não passar por dificuldades, como se segue:

“A gente teve que ter mais cuidado com ela, porque ela não podia ficar sozinha em casa, porque se ela ficava um pouco sozinha batia uma angústia, uma depressão, um mal-estar e ela recorria ao álcool”. (P10)

“Porque ele não tem ninguém que cuide dele [...] cuido porque ele não teve mais condições de trabalho, e não teve mais condições de sustento, e não teve mais condições de... como eu vou dizer assim, ficar sozinho... social também, porque ele começou tomando álcool ele fica muito agressivo”. (P6)

O desamparo aparece relacionado a desconfiança e inquietação constante dos familiares em deixar o usuário sozinho em seu domicílio, devido ao comportamento de isolamento, angústia, depressão e inabilidade dele de sustentar-se financeiramente ou de inserir-se socialmente. Essas situações ilustradas pelos familiares motivam-nos a cuidarem dos usuários, uma vez que em essência querem que o usuário de drogas possa estar inserido no mundo social e provendo o seu próprio sustento. Além de insegurança, fica evidente o sentimento de culpa da própria família como um elemento que pode estar servindo para alimentar o processo de superproteção do usuário frente às adversidades da vida, que ao invés de ajudá-lo, prejudicá-lo na condução de uma vida mais autônoma.

“Eu considero um cuidado e ao mesmo tempo uma proteção, porque na verdade, ao mesmo tempo é errado, é certo, então vem a culpa de que eu estou protegendo ele de uma maneira errada, eu e o pai dele, que se talvez a gente cobrasse mais dele, não desse as coisas que ele necessita ele fosse buscar”. (P4)

No contexto do abuso de substâncias, há uma tendência de os familiares manifestarem os sentimentos de culpabilização pela superproteção realizada para o usuário frente às adversidades da vida, contudo, observa-se que este comportamento superprotetor predispõe às recaídas do usuário em tratamento1616. Zerbetto SR, Cid JM, Gonçalves AMS, Ruiz BO. As crenças de família sobre dependência de substâncias psicoativas: estudo de caso. Cad Bras Ter Ocup. 2018 [cited 2021 Jul 29];26(3):608-16. Available from: https://www.scielo.br/j/cadbto/a/HkBHtdryHnHCzXxByjKZhYG/?lang=pt
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Em famílias que motivam e apoiam o tratamento do usuário de drogas, é comum que em situações de crise, tanto os familiares e quanto os usuários de drogas busquem apoio mútuo com objetivo de superação das adversidades, promovendo a união da família a qual visualiza a crise como desafio e possibilidades para a resolução de problemas1717. Mancheri H, Maghsoudi J, Alavi M, Sabzi Z. Experienced psychosocial problems of women with spouses of substance abusers: a qualitative study. Open Access Maced J Med Sci. 2019;7(21):3584-91. doi: https://doi.org/10.3889/oamjms.2019.729
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É nesse mundo intersubjetivo, compartilhado com seus semelhantes, que os familiares e os usuários de drogas se encontram inseridos, para que possam partilhar suas experiências1111. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução a sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018.. Desse modo, a interação social de apoio e compreensão entre familiar e usuário de drogas são fortalecedoras do tratamento do TUS.

A obrigação social foi mencionada pelos familiares como outra razão porque cuidar do usuário. Eles argumentam ser um dever moral ou uma forma de retribuição da participação do usuário na vida familiar em outras etapas do ciclo de vida familiar.

“Porque a gente sempre pensa na tua família, o que é que tu vai dizer pro teu neto né, como é que tu vai explicar pro teu neto que tu não cuidou do avô dele”. (P1)

“Digamos é minha mãe, eu amo ela, ela me criou, cuidou e acho que é obrigação dos filhos também terem esse retorno com o familiar [...]. Então, a gente tem que cuidar, acredito que seja isso, a relação de mãe e filho, né? De sangue, acho que é isso. [...]. Porque eu descobri que isso é uma doença [...]. Então, a gente tem que estar sempre cuidando dele, é uma obrigação”. (P10)

O TUS afeta tanto o usuário quanto a família. Observa-se assim que o processo de cuidar do outro com uso de substâncias é complexo, podendo configurar uma escolha, às vezes negociada, aonde o familiar e o usuário são influenciados mutuamente pelo adoecimento dessa relação quando a mesma se dá por obrigatoriedade11. Assalin ACB, Zerbetto SR, Ruiz BO, Cugler PS, Pereira SS. Facilities of family adherence in treatment of chemical dependence: families’ perception. Rev Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. 2021;17(1):17-25. doi: https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2021.150251
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Observa-se que os familiares parecem implicados no cuidado do usuário, apoiando-se em outra categoria de motivo porque cuidam traduzidas nas falas pela relação de amor e vínculos construídos.

“Porque ele é meu filho, porque eu amo ele, quero o melhor pra ele [...] eu tenho responsabilidade por ele”. (P4)

“Amor! Eu tive meus filhos por amor, eles nasceram com meu amor, mesmo essa filha que não fala comigo, eu a amo imensamente, amo meu neto que eu vi uma vez. Amo!” (P5)

“É o amor de mãe né. Só amor de mãe. Se a minha filha reclama dele eu já fico, braba não, fico sentida né, porque eu não tô na minha casa, na minha casa cai o xixi pra fora do vaso que é normal, ele me diz que é normal, ai eu tô com álcool, tô com um produto ali, já limpo na hora”. (P6)

“Porque é meu irmão, meu sangue, eu amo ele, me dói (muito emocionada), não gosto, eu sinto, eu fico muito triste de ver ele nessa situação (chora), pra gente é muito difícil”. (P12)

Apesar dos familiares serem, muitas vezes, as pessoas que mais sofrem com as consequências dos TUS do usuário, os laços de amor são em muitos casos mais fortes que as lembranças deixadas por essas consequências. Ainda assim, mesmo que o cuidado prestado pelos familiares aos usuários de drogas seja motivado pela obrigação de cuidar, fica evidente que os laços de afeto são quase decisivos para a realização deste cuidado.

É possível visualizar nas falas uma relação construída a partir da convivência e reconhecimento de suas singularidades (familiares com seus usuários), revelando um cuidado prestado ao usuário motivados por uma relação de proximidade, confiança, carinho, amizade e amor, ultrapassando os estereótipos e preconceitos atribuído a eles como “drogaditos”, “drogados”, “marginais”, “vagabundos” entre outras conotações.

Nesse sentido, o preconceito e o estigma direcionados os usuários de drogas, têm influenciado a relação deles nos diversos setores da sociedade, relacionando-os imediatamente à criminalidade e violência, fazendo que esses usuários sejam automaticamente marginalizados e estigmatizados no meio social1818. McCann TV, Lubman DI. Help-seeking barriers and facilitators for affected family members of a relative with alcohol and other drug misuse: a qualitative study. J Subst Abuse Treat. 2018;93:7-14. doi: https://doi.org/10.1016/j.jsat.2018.07.005
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Destaca-se aqui que, para além de um julgamento prematuro e preconceituoso sobre o uso e abuso de substâncias psicoativas,evidencia-se um olhar estigmatizante do indivíduo, tornando-o como algo indigno e depreciativo, em que este indivíduo é reconhecido e reduzido a esse julgamento88. Baptista HP, Bortolon CB, Moreira TC, Barros HMT. Investigation of factors associated with low adherence to treatment of codependency in family members of psychoactive substance users. Estud Psicol. 2021;38:e200023. doi: https://doi.org/10.1590/1982-0275202138e200023
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. Desse modo fica evidente nos depoimentos que há uma relação de amor e carinho do familiar ao usuário de substâncias psicoativas, que ultrapassa os pré-julgamentos e estigmas relacionados ao consumo de drogas impostos pela sociedade.

No referencial Schutziano essa relação de amor e carinho pode ser expressa pelo construto das relações intersubjetivas entre sujeitos humanos no mundo da vida, em que é possível experienciar um ao outro de forma direta, denominada face a face (familiaridade), ou indireta, quando na relação o sujeito se volta para o contemporâneo (anonimato)1111. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução a sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018..

Entre os participantes ficou evidente que as relações intersubjetivas entre familiar e usuário de substâncias psicoativas caracterizam-se como relações face a face, ou seja, de relações de familiaridade permeadas pela presença, em tempo e espaço, de forma contínua na vida do usuário expressas pela confiança, carinho, amizade e amor demonstrado nas falas.

A relação face a face ocorre na medida em que o familiar tenta estabelecer uma relação de proximidade e de propiciar um reconhecimento mútuo de subjetividades com o usuário de drogas, ou seja, quando compartilham o mesmo espaço e mesma dimensão de tempo. Essa estratégia de ação potencializa a construção de uma relação mais íntima com o usuário, contribuindo para uma relação autêntica, de apreensão mais vívida das subjetividades envolvidas1111. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução a sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018., contribuindo de maneira substancial para o tratamento. Isto porque há uma decisão livre e espontânea do familiar do usuário de drogas ao prestar cuidado para ele, as quais emergiram com base nas relações familiares ao longo da vida, do processo de construção do estoque de conhecimento à mão, em que sentimentos de amor e responsabilidade emergiram dessa relação.

Expectativas ao cuidar do usuário

Essa categoria retrata a expectativa do familiar em interromper o sofrimento do usuário por meio da cessação do uso de substância e a consequente retomada de sua vida cotidiana.

“Eu espero que ele caia em si, uma hora, que ele tenha aquele insight, [...]. Então eu fico nessa esperança, de talvez um dia ele tenha esse insight e pare”. (P1)

“Espero que ele não beba e a gente não brigue”. (P3)

“Espero o que eu estou tendo, um retorno positivo [...] não ter vontade de usar”. (P10)

“Eu espero [...] que ele consiga viver e sair dessa droga, [...] por mais difícil que seja para ele usar porque ele está com paralisia”. (P12)

“Eu vou fazer tudo que eu conseguir para ajudar ele, por causa que ele não pode andar sozinho... eu vou organizar meus horários, para poder acompanhar ele, dar as medicações dele, sair com ele final de semana. Assim, eu espero que ele consiga ficar sóbrio”. (P14)

Observa-se por meio dos depoimentos que o familiar do usuário tem a expectativa da cessação do uso da substância com o objetivo de que ele retome as atividades rotineiras da vida que foram prejudicadas, revelando assim o anseio pela abstinência total do uso da substância. Com isso, espera-se que o usuário volte a ser uma pessoa independente e autônoma na condução sua vida, no entanto, os familiares parecem desconhecer outra alternativa de tratamento que possa atender as suas expectativas de ver o seu usuário abstêmio.

Os familiares têm a expectativa que os usuários de substâncias consigam aceitar o tratamento e consigam se vincular ao serviço de saúde, projetando assim, a cessação do uso da substância. A vinculação aos serviços de saúde mental é essencial para garantia do cuidado prestado ao usuário de substância após uma internação para desintoxicação. A comunidade em que o usuário e sua família estão inseridos são caracterizados como territórios ativos, dinâmicos, repleto de inter-relações, construído cotidianamente, onde se realiza a vida coletiva. E é nesse espaço que o cuidado em liberdade se torna potente, transformador e é campo fértil para dar continuidade ao tratamento instituído no espaço da internação1919. Lima EMFA, Yasui S. Territórios e sentidos: espaço, cultura, subjetividade e cuidado na atenção psicossocial. Saúde Debate. 2014;38(102):593-606. doi: https://doi.org/10.5935/0103-1104.20140055
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Por meio de suas experiências vividas, o ser humano tende a projetar experiências futuras que expressem expectativas confiáveis e seguras em relação ao futuro1111. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução a sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018.. Entre os depoimentos observa-se a projeção idealizada pelo familiar P3, por exemplo, de uma realidade cotidiana sem brigas e com comunicação assertiva, caracterizada, sobretudo, pela cessação do abuso de substâncias do usuário. Entretanto, essa realidade não é tão comum, como mostra um estudo que revelou que nas relações familiares de usuários de drogas há inúmeras dificuldades, tais como de comunicação violenta (não assertiva), brigas e discussões, resultando em distanciamento afetivo, esgotamento familiar e rompimento de vínculos de apoio2020. Melo PT, Santana SM. O consumidor de crack: a influência das crenças familiares no tratamento. Pesqui Prát Psicossociais. 2020 [cited 2021 Aug 30];15(1):e3057. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082020000100010&lng=pt&nrm=iso .
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Nesse sentido, a família precisa de suporte para seguir no tratamento do usuário de substâncias psicoativas como um fator potencialmente motivador para que o usuário veja na família um suporte de buscar e sustentar mudanças de comportamento alinhados ao seu tratamento1515. Di Sarno M, De Candia V, Rancati F, Madeddu F, Calati R, Di Pierro R. Mental and physical health in family members of substance users: a scoping review. Drug Alcohol Depend. 2021;219:108439. doi: https://doi.org/10.1016/j.drugalcdep.2020.108439
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. Além da expectativa de uma vida abstêmia, esses familiares cuidam do usuário com a esperança deles suprimirem seus desejos e impulsos pela substância, por meio da conquista de um autoconhecimento que permita escrever outra possibilidade de conduzir a vida.

É possível perceber ainda que os familiares projetam um futuro de retomada de aspectos perdidos pelo usuário ao longo das vivências com o abuso de substâncias, almejando o retorno a uma “vida normal”, assumindo responsabilidades e compromissos com a própria vida (engajamento).

“Espero que ele seja uma pessoa normal, sabe, independente, que ande limpo, que ande arrumado, que tenha uma vida normal [...]. Tu imagina que a pessoa possa ter uma vida melhor com outra pessoa”. (P1)

“Eu queria que voltasse ao que ele era antes [...] que tivesse responsabilidade e compromisso”. (P4)

“Eu espero que ele tenha uma vida boa, não para mim, para ele, entende. Que ele consiga andar, que ele consiga trabalhar, que ele consiga realizar os sonhos dele”. (P8)

“Que ele melhore bastante, que se cure de uma vez por todas [...] ter outras relações de busca, algo que ele deseja sem ser nessas dependências. Acredito nisso”. (P10)

Notam-se nos depoimentos dos familiares o sentimento de esperança, da mudança de comportamento do usuário, como um fator motivador para eles permanecerem acompanhando o tratamento do usuário de substâncias psicoativas, ou seja, eles projetam uma vida para o usuário com uma maior autonomia e independência, aspirando que eles consigam gerir suas próprias vidas.

“Eu espero que ele consiga encontrar de novo ‘o fio da meada’, que ele consiga se resolver, enquanto pessoa [...] ser autossuficiente, não só emocionalmente, mas também até financeiramente”. (P2)

“Esse é o primeiro tratamento aí que ele está tendo mais longo é esse, claro que pode ser que a cabeça dele mude né, eu falo para ele: “Filho tu tem que melhorar disso”, ele disse que quer muito mudar, mas eu acredito na mudança”. (P12)

Os familiares vislumbram um futuro em que o usuário consiga retomar ou mesmo desenvolver a autogestão de suas vidas, em diferentes dimensões - financeira, emocional, relacional e subjetiva. Essa é a essência ideia principal da intencionalidade de suas consciências quando cuidam deles, pois esse fenômeno tem por essência a realização de uma vida com maior autonomia e independência, em que o usuário possa sonhar e participar da vida social de forma satisfatória com a comunidade em que vive.

Nesse estudo, ao investigar as motivações dos familiares no cuidado ao usuário de drogas, buscou-se construir as características típicas da ação do grupo social que vivencia a situação no mundo da vida cotidiana. Para chegar à tipificação, foi necessária a compreensão da rede de motivações (motivos porque e motivos para)1111. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução a sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018. dos familiares no cuidado ao usuário de drogas atendidos nos serviços estudados.

Portanto, o tipo vivido dos familiares de usuários de drogas realiza o cuidado do seu familiar motivado pelo medo e insegurança (culpa e angústia) com a integridade física e psíquica dele, bem como por sentir-se obrigado socialmente a desempenhar este papel (responsabilidade), uma vez que reconhece o usuário como membro pertencente ao grupo familiar. São motivados ainda pelo amor e vínculo construídos ao longo da história da vida em família. Além disso, os familiares são motivados. Além disso, os motivos desse cuidado apontam como expectativas que o usuário interrompa o seu sofrimento, com a cessação do uso de substâncias e a retomada das atividades da cotidiana, e que assuma a condução satisfatória e saudável da própria vida.

CONCLUSÃO

A utilização do referencial teórico-filosófico da sociologia fenomenológica permitiu uma maior compreensão do mundo social de familiares de usuários de substâncias, sobretudo na revelação de nuances de suas relações sociais e expectativas motivadoras no cuidado ao usuário. No transcorrer das entrevistas, testemunhou-se a mescla de sentimentos de afeto, responsabilidade, preocupação e medo do familiar em relação às vivências com o usuário de substâncias psicoativas, evidenciados pelo desgaste emocional vivenciado frente às inúmeras recaídas e experiências de tratamento prévios.

As experiências vividas pelos familiares formam um “estoque de conhecimento à mão” (“bagagem de experiências”) que moldam suas motivações e ações no momento atual vivido, revelando como principal expectativa a interrupção total do uso de substâncias pelo usuário para que possa autogerir a sua vida e alcançar os meios para sua autonomia.

Ainda que a família possa representar fator de risco ou de proteção para o uso de substâncias, o olhar do profissional de saúde e de enfermagem deve se voltar para a avaliação da organização e dinâmica das relações da vida do usuário na família. O estudo aponta para uma lacuna de cuidado à família que precisa ser melhor estudada e atendida nos serviços que atende usuários de substâncias, uma vez que o cuidado à unidade familiar sempre se mostra fundamental para obter resultados mais duradouros e consistentes. Portanto, esse cuidado deve considerar a família do usuário a partir da compreensão de suas singularidades (desejos e intenções) construídas ao longo de suas experiências vividas (biografia).

Os familiares apontaram somente o caminho a cessação do uso de substâncias (abstinência total) como única alternativa de desfecho de tratamento e retomada da vida, não vislumbrando alternativas como a redução de danos como uma possibilidade de tratamento, tema que deveria ser desenvolvido em pesquisas futuras.

Este estudo permitiu um olhar voltado à família na sua singularidade, destacando a sua importância como elemento fundamental no tratamento do TUS, uma vez que suas motivações para cuidar do usuário possam ser fortalecidas e apoiadas na relação com profissionais de saúde e enfermagem.

Enquanto limitação, este estudo foi realizado em apenas um serviço especializado no atendimento ao usuário de substâncias psicoativas (internação e ambulatório) e suas famílias em um dado contexto assistencial no sul do Brasil, cabendo à ampliação da realização de estudos semelhantes, em outros serviços voltados à assistência em saúde mental com diferentes características epidemiológicas e de constituição de rede assistencial social e em saúde.

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Editado por

Editor associado:

Rosana Maffacciolli

Editor-chefe:

João Lucas Campos de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2022
  • Aceito
    12 Set 2022
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