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Vivências de irmãos de crianças com doenças crônicas reveladas pelo brinquedo terapêutico dramático

RESUMO

Objetivo

Compreender por meio do brinquedo terapêutico dramático, vivências de irmãos de crianças com doenças crônicas.

Método

Estudo fenomenológico heideggeriano, realizado com 12 irmãos de crianças com doenças crônicas, com idades entre três e 11 anos, acompanhadas em hospital público de ensino, no interior do estado de São Paulo. As entrevistas fenomenológicas foram audiogravadas e mediadas por sessões de brinquedo terapêutico dramático; posteriormente, interpretadas a partir do referencial filosófico hedeggeriano e literatura temática.

Resultados

Os irmãos demonstraram que são tocados afetivamente no modo da tristeza, saudade e carinho em relação à criança doente e, pelas ocupações diárias impostas pela doença.

Conclusão

O brinquedo terapêutico dramático possibilitou que os irmãos de crianças com doenças crônicas expusessem suas vivências permeadas pelas limitações da doença crônica da criança. Instituir ações para a inclusão do irmão durante a assistência de enfermagem à criança com doença crônica faz-se urgente para melhoria da sua qualidade.

Palavras-chave:
Irmãos; Doença crônica; Pesquisa qualitativa; Jogos e brinquedos; Enfermagem pediátrica

ABSTRACT

Objective

To understand, through dramatic therapeutic play, the experiences of siblings of children with chronic diseases.

Method

Phenomenological study, in the light of Heideggerian philosophical framework, conducted with 12 siblings of children with chronic diseases, aged between three and 11 years, accompanied in a public teaching hospital in the countryside of the state of São Paulo. The phenomenological interviews were audio-recorded and mediated by sessions of dramatic therapeutic play; later, interpreted from the Heideggerianphilosophical framework and thematic literature.

Results

The siblings demonstrated that they are affectively touched in the mode of sadness, longing and affection towards the sick child and, by the daily occupations imposed by the disease.

Conclusion

The dramatic therapeutic play enabled the siblings of children with chronic diseases to expose their experiences permeated by the limitations of the child’s chronic disease. Instituting actions for the inclusion of the sibling during the nursing care of the child with chronic disease is urgent to improve its quality.

Keywords:
Siblings; Chronic disease; Qualitative research; Play and playthings; Pediatric nursing.

RESUMEN

Objetivo

Comprender, a través del juego dramático terapéutico, las experiencias de los hermanos de niños con enfermedades crónicas.

Método

Estudio fenomenológico, a la luz del referente filosófico heideggeriano, realizado con 12 hijos de niños con enfermedades crónicas, de edades comprendidas entre los tres y los 11 años, acompañados en el hospital público de enseñanza, en el interior del estado de São Paulo. Las entrevistas fenomenológicas fueron grabadas en audio y mediadas por sesiones de juego terapéutico dramático; luego, interpretada desde el marco filosófico heideggeriano y la literatura temática.

Resultados

Los hermanos demostraron que están tocados afectivamente en el modo de la tristeza, la añoranza y el afecto en relación con el niño enfermo y, por las ocupaciones diarias impuestas por la enfermedad. El brinco terapéutico dramático permitió que los hijos de los niños con enfermedades crónicas expusieran su vida a las limitaciones de la enfermedad crónica del niño.

Conclusión

Es urgente instituir medidas para la inclusión del hermano durante la asistencia de enfermera al niño con enfermedades crónicases urgente para mejorar su calidad.

Palabras clave:
Hermanos; Enfermedad crónica; Investigación cualitativa; Juego e implementos de juego; Enfermería pediátrica.

INTRODUÇÃO

Ser irmão é compartilhar relações próximas ou distantes, conflituosas ou não, junto de sentimentos como rivalidade, competição, ciúmes, carinho, companheirismo, as quais influenciam e modelam as futuras relações sociais que os envolvidos desempenharão além do sistema familiar11. Silva EP, Lucas MG. Relationship Relação entre irmãos: a percepção do primogênito. Pensando fam. 2020;24(1):144-59. [cited 2021 Nov 26]. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2020000100011&lng=pt&tlng=pt
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. Contudo, quando há uma criança com doença crônica, essas relações podem ser prejudicadas e esse diagnóstico pode impactar de diversas formas na vida dos irmãos, de acordo com a etapa do desenvolvimento em que eles se encontram22. Havill N, Fleming LK, Knalf K. Well siblings of children with chronic illness: a synthesis research study. Res Nurs Health. 2019;42(5):334-48. doi: https://doi.org/10.1002/nur.21978
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,33. Nogueira AJ, Ribeiro MT. “Na sombra da doença”: uma revisão de literatura sobre a vivência da doença crónica complexa na fratria. Cad Saúde. 2018;10(2),42-50. doi: https://doi.org/10.34632/cadernosdesaude.2018.5286
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.

Os irmãos relatam a relutância dos pais em esclarecer sobre a condição de saúde da criança doente e demonstram necessidade de compreender o que está acontecendo, pois isso aproxima os irmãos do contexto da doença crônica. Consequentemente, a carência de informações em relação ao diagnóstico e o medo do desconhecido desencadeiam impactos negativos, como ansiedade e pensamentos errôneos a respeito do estado de saúde da criança com doença crônica22. Havill N, Fleming LK, Knalf K. Well siblings of children with chronic illness: a synthesis research study. Res Nurs Health. 2019;42(5):334-48. doi: https://doi.org/10.1002/nur.21978
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-44. Zegaczewski T, Chang K, Coddington J, Berg A. Factors related to healthy siblings’ psychosocial adjustment to children with cancer: an integrative review. J Pediatr Oncol Nurs. 2016;33(3):218-27. doi: https://doi.org/10.1177/1043454215600426
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.

Estudos que buscam compreender o modo como os irmãos vivenciam a situação de doença crônica, abordam temáticas específicas como ansiedade, capacidade de enfrentamento e ajustes psicológicos, sobretudo, diante de doenças como o câncer e o diabetes22. Havill N, Fleming LK, Knalf K. Well siblings of children with chronic illness: a synthesis research study. Res Nurs Health. 2019;42(5):334-48. doi: https://doi.org/10.1002/nur.21978
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,44. Zegaczewski T, Chang K, Coddington J, Berg A. Factors related to healthy siblings’ psychosocial adjustment to children with cancer: an integrative review. J Pediatr Oncol Nurs. 2016;33(3):218-27. doi: https://doi.org/10.1177/1043454215600426
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. Além disso, a visão dos irmãos sobre a doença crônica se dá na perspectiva dos pais e não pelo discurso dos próprios irmãos55. Hilkner SH, Beck ARM, Tanaka EZ, Dini AP. Perceptions of siblings of children hospitalized due to chronic disease. Rev Enf Ref. 2019;IV(20):77-86. doi: http://doi.org/10.12707/RIV18074
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Assim, diante do exposto e ao considerar que os irmãos ao longo de suas vidas deparam-se com diversos sentimentos que os afetam de forma positiva ou negativa, a depender de suas experiências55. Hilkner SH, Beck ARM, Tanaka EZ, Dini AP. Perceptions of siblings of children hospitalized due to chronic disease. Rev Enf Ref. 2019;IV(20):77-86. doi: http://doi.org/10.12707/RIV18074
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, este estudo foi realizado a partir da seguinte questão de pesquisa: como é a experiência de ser irmão de uma criança com doença crônica?

Para isso, buscou-se dar voz aos irmãos para que suas experiências sejam compreendidas, respeitadas e reconhecidas por meio deles próprios, utilizando o brinquedo terapêutico dramático (BTD) como tecnologia e estratégia que possibilita a criança expressar como se sente e o que pensa sobre a situação vivenciada66. Almeida FA, Souza DF, Miranda CB. The experience told by the child who lives shelter through therapeutic play. Cienc Saude Colet. 2021;26(2):435-44. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232021262.40762020
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,77. Santos VLA, Almeida FA, Ceribelli C, Ribeiro CA. Understanding the dramatic therapeutic play session: a contribution to pediatric nursing. Rev Bras Enferm. 2020;73(4):e20180812. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0812
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.

O BTD é uma brincadeira estruturada, considerada uma tecnologia de cuidado utilizado por enfermeiros e há tempos vem sendo ressaltado enquanto recurso para coleta de dados em pesquisas qualitativas com crianças, pois possibilita à criança, enquanto brinca, aliviar a ansiedade, descarregar tensões, expressar sentimentos e, favorece a interação pesquisador criança, motivando os participantes66. Almeida FA, Souza DF, Miranda CB. The experience told by the child who lives shelter through therapeutic play. Cienc Saude Colet. 2021;26(2):435-44. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232021262.40762020
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-88. Green CS. Understanding children's needs through therapeutic play. Nursing. 1974;4(10):31-2..

Este estudo, corrobora com a literatura ao considerar essencial que os profissionais de saúde reconheçam os irmãos como membros da família que necessitam de atenção, levando em consideração, suas necessidades e identificando estratégias a serem implementadas no planejamento e execução da assistência de enfermagem que abarque todos os envolvidos22. Havill N, Fleming LK, Knalf K. Well siblings of children with chronic illness: a synthesis research study. Res Nurs Health. 2019;42(5):334-48. doi: https://doi.org/10.1002/nur.21978
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,55. Hilkner SH, Beck ARM, Tanaka EZ, Dini AP. Perceptions of siblings of children hospitalized due to chronic disease. Rev Enf Ref. 2019;IV(20):77-86. doi: http://doi.org/10.12707/RIV18074
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,99. Nabors L, Cunningham JF, Lang M, Wood K, Southwick S, Stough CO. Family coping during hospitalization of children with chronic illnesses. J Child Fam Stud. 2018;27:1482-91. doi: https://doi.org/10.1007/s10826-017-0986-z
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, como exemplo a permissão da visita de irmãos nas unidades pediátricas hospitalares, se assim for o desejo da criança e da família.

Portanto, ressalta-se a importância de compreender as vivências dos irmãos das crianças com doenças crônicas, de modo que os resultados possibilitem proposições para melhoria da qualidade da assistência de enfermagem prestada a essas crianças e, ao mesmo tempo, impulsione novos estudos que deem voz às crianças que vivem situações de adoecimento na família.

Acredita-se que os benefícios advindos desta pesquisa fornecerão subsídios para contribuir com a redução da lacuna que há no conhecimento entre as experiências dos irmãos e a forma como são vistos no contexto da enfermagem pediátrica.

Assim, o objetivo deste estudo foi compreender, por meio do brinquedo terapêutico dramático, vivências de irmãos de crianças com doenças crônicas.

Referencial teórico-filosófico

A Fenomenologia, fundamentada nos pressupostos de Martin Heidegger, busca o sentido do fenômeno, ou seja, o sentido daquilo que pode ser posto em claro, isto é, o ente. Assim, o ente é algo que, sempre, se mostra a alguém; é compreendido como tudo aquilo que o humano pode discursar sobre e a maneira como ele mesmo é, e se relaciona com outros ao seu redor1010. Heidegger M. Ser e tempo. São Paulo: Vozes; 2012.,1111. Vieira MR. Sobre a questão do método de redução fenomenológica em Heidegger. Multi-Sci J. 2017 [cited 2019 Nov 12];1:(7):64-78. Available from: https://periodicos.ifgoiano.edu.br/multiscience/article/view/196/276
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.

Desse modo, a Fenomenologia, é capaz de compreender a existência humana, o qual consiste no modo-de-ser do homem no mundo e está, sempre, localizado no tempo e no espaço, lançado na facticidade, ou seja, exposto a determinada situação, de um mundo histórico, tendo que lidar com o modo como sua vida e situações são dadas1010. Heidegger M. Ser e tempo. São Paulo: Vozes; 2012..

O ser-aí, ou Dasein, é o conceito utilizado para designar o caráter específico do ser humano, entendido como o lugar onde o ser se revela. O ser-aí é ser-no-mundo e corresponde às diversas possibilidades que o humano tem para viver em constante relação junto com os entes que a ele se apresentam. Deste modo, cada pessoa é a sua própria situação e sendo-em-um-mundo realiza sua existência1010. Heidegger M. Ser e tempo. São Paulo: Vozes; 2012.,1111. Vieira MR. Sobre a questão do método de redução fenomenológica em Heidegger. Multi-Sci J. 2017 [cited 2019 Nov 12];1:(7):64-78. Available from: https://periodicos.ifgoiano.edu.br/multiscience/article/view/196/276
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Desde o início, a criança é considerada um ser-aí, um ente que está lançado e constituído pelo modo da indeterminação, que afirma o caráter de poder-ser. Ao nascer, já se encontra imersa em uma relação com o mundo1212. Feijoo AMLC. A clínica psicológica infantil em uma perspectiva existencial. Rev Abordagem Gestalt. 2011 [cited 2019 Nov 12];17(2):185-92. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-68672011000200009&lng=pt&nrm=iso
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, compreendendo-o por meio da abertura de ser e do sendo-com-os-outros. Para a criança, as coisas ainda não são e não estão fechadas conceitualmente, e a abertura, como constitutiva do ser-aí, possibilita que ela descubra o mundo1313. Cytrynowicz MB. O mundo da criança. Daseinsanalyse. 2000;9:74-89..

Nesse caminho, a Fenomenologia vem ao encontro, como referencial teórico, pois abarca as descrições de fenômenos singulares e como são experimentados e sentidos pelos indivíduos1010. Heidegger M. Ser e tempo. São Paulo: Vozes; 2012.,1111. Vieira MR. Sobre a questão do método de redução fenomenológica em Heidegger. Multi-Sci J. 2017 [cited 2019 Nov 12];1:(7):64-78. Available from: https://periodicos.ifgoiano.edu.br/multiscience/article/view/196/276
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,1414. Basto CCBC. Pesquisa qualitativa de base fenomenológica e a análise da estrutura do fenômeno situado: algumas contribuições. Rev Pesq Qual. 2017 [cited 2019 Nov 12];5(9):442-51. Available from: https://editora.sepq.org.br/index.php/rpq/article/view/156/93
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,1515. Martins J, Bicudo MAV. Pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. 5. ed. São Paulo: Centauro; 2005.. Neste estudo, auxiliará no entendimento do que a experiência de ser irmão de criança com doença crônica significa em seu mundo vida, revelado a partir dos discursos dos irmãos, durante as sessões de BTD.

MÉTODO

A pesquisa qualitativa fenomenológica foi escolhida por possibilitar a compreensão de como as experiências humanas são vividas e a apreensão de significados não desvelados de experiências internas1515. Martins J, Bicudo MAV. Pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. 5. ed. São Paulo: Centauro; 2005..

Os participantes foram 12 irmãos de criança com doença crônica, que atenderam aos critérios de inclusão: crianças com idade entre três e 11 anos, residentes com um(a) irmão(ã) com doença crônica hospitalizado(a) no Serviço de Enfermagem Pediátrica (SEP). Como critério de exclusão considerou-se os irmãos que apresentassem alterações cognitivas que inviabilizassem a expressão das experiências.

Para acessar os participantes do estudo, a primeira autora e doutoranda do curso Pós-Graduação em Enfermagem comparecia ao SEP por quatro dias na semana,durante as atividades do Programa Estágio Docente (PED) e abordava o enfermeiro responsável pelo turno, questionando sobre crianças com doença crônica, cujos irmãos possuíssem idade entre três e 11 anos.

As famílias que atenderam aos critérios de inclusão foram esclarecidas sobre os objetivos da pesquisa por meio de visita individual ao leito da criança com doença crônica, de modo que o responsável pudesse avaliar a possibilidade de participação do(s) outro(s) filho(s), por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O estar presente, habitualmente no serviço, favoreceu a formação de vínculo com os profissionais da equipe de enfermagem e com as famílias das crianças com doenças crônicas.

Após a anuência dos responsáveis, e de acordo com suas indicações, os irmãos foram convidados a brincar e receberam orientações sobre o estudo por meio do Termo de Assentimento da Criança (TA), elaborado e ilustrado especialmente para esse fim.

Os cenários1414. Basto CCBC. Pesquisa qualitativa de base fenomenológica e a análise da estrutura do fenômeno situado: algumas contribuições. Rev Pesq Qual. 2017 [cited 2019 Nov 12];5(9):442-51. Available from: https://editora.sepq.org.br/index.php/rpq/article/view/156/93
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, ou seja, os locais onde ocorreram as sessões de BTD foram três:

1. Serviço de Enfermagem Pediátrica (SEP): instituição hospitalar pública e de ensino, localizada no interior do estado de São Paulo. Neste serviço, as sessões de BTD foram realizadas em uma mesa localizada na área externa. Das cinco sessões de BTD realizadas no SEP, quatro foram individuais e, uma grupal com dois irmãos, correspondendo ao total de seis irmãos. A opção da sessão de BTD ser grupal foi dos irmãos.

2. Domicílios: duas das residências estavam localizadas em municípios que compõe a Região Metropolitana de Campinas e duas fazem parte da Região Urbana de Jundiaí. Nesse contexto, cinco sessões de BTD, individuais, foram realizadas, totalizando cinco irmãos;

3. Praça pública: excepcionalmente, uma sessão de BTD com único irmão ocorreu em praça pública, localizada no centro da cidade onde a família da criança residia. Esse acontecimento se deu devido ao fato de a família morar em área de tráfico de entorpecentes e por considerarem a melhor opção para eles.

O ambiente não foi considerado determinante para que o irmão participasse ou não da sessão. Porém, no hospital, a presença de outros brinquedos na área externa do serviço despertou curiosidade de dois irmãos pré-escolares, impulsionando-os a explorar o ambiente ao redor, finalizando a participação na sessão de BTD, antes do tempo.

O irmão foi convidado para participar da entrevista fenomenológica1515. Martins J, Bicudo MAV. Pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. 5. ed. São Paulo: Centauro; 2005., mediada pelo BTD, norteada pela seguinte questão: Vamos brincar de uma criança que tem um irmão que precisa sempre ficar no hospital? Após o aceite, o material foi apresentado e a condução da sessão atendeu ao exposto na literatura99. Nabors L, Cunningham JF, Lang M, Wood K, Southwick S, Stough CO. Family coping during hospitalization of children with chronic illnesses. J Child Fam Stud. 2018;27:1482-91. doi: https://doi.org/10.1007/s10826-017-0986-z
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,1515. Martins J, Bicudo MAV. Pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. 5. ed. São Paulo: Centauro; 2005., dando ao irmão a liberdade para escolher os brinquedos e de que forma desejava brincar.

Durante as entrevistas fenomenológicas, a pesquisadora seguiu os pressupostos da literatura, os quais consideram a abertura do pesquisador para compreender a perspectiva do outro, a empatia, o despir-se de pre-conceitos, a escuta atenta e compreensiva para o desvelar-se do fenômeno, respeitando o tempo e espaço do outro1515. Martins J, Bicudo MAV. Pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. 5. ed. São Paulo: Centauro; 2005..

O material utilizado para as sessões de BTD foi selecionado com base na recomendação da literatura77. Santos VLA, Almeida FA, Ceribelli C, Ribeiro CA. Understanding the dramatic therapeutic play session: a contribution to pediatric nursing. Rev Bras Enferm. 2020;73(4):e20180812. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0812
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,88. Green CS. Understanding children's needs through therapeutic play. Nursing. 1974;4(10):31-2.: bonecos plásticos super-heróis, bonecos de pano representando a família, utensílios domésticos, alimentos, mamadeira, animais, carrinhos, motos, ferramentas, materiais artísticos (lápis de cor, giz de cera, pincéis, papel em branco, tinta guache, massa de modelar e lousa mágica) e um conjunto lúdico de materiais hospitalares77. Santos VLA, Almeida FA, Ceribelli C, Ribeiro CA. Understanding the dramatic therapeutic play session: a contribution to pediatric nursing. Rev Bras Enferm. 2020;73(4):e20180812. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0812
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,88. Green CS. Understanding children's needs through therapeutic play. Nursing. 1974;4(10):31-2.. Todo o conjunto de brinquedos estava acondicionado em caixa plástica.

O acesso aos irmãos e a realização das entrevistas fenomenológicas mediadas pelo BTD ocorreu no período de abril do ano de 2017 a abril de 2019. Foram convidados 14 responsáveis e quatro recusaram ao convite por motivos pessoais.

Os participantes foram identificados por nomes fictícios de personagens de história infantil: Segredo, Sonho, Coração, Amado, Carinhosa, Ternura, Soneca, Sincera, Campeão, Animada, Divertido e Amigo, com objetivo de assegurar o sigilo em relação à identidade dos irmãos participantes. Quando os irmãos mencionaram as crianças com doenças crônicas, os nomes reais foram substituídos por nomes próprios com a mesma letra inicial.

Os discursos dos irmãos, durante as entrevistas fenomenológicas foram audiogravadas, com duração média de 50 minutos, totalizando 552 minutos. As entrevistas foram transcritas na íntegra pela primeira autora, a qual possui ampla experiência em pesquisas qualitativas fenomenológicas desde a formação em nível de graduação, em 2009. Os comportamentos e reações dos irmãos foram anotados em diário de campo, imediatamente, após o término de cada entrevista, buscando preservar a forma mais originária do fenômeno1515. Martins J, Bicudo MAV. Pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. 5. ed. São Paulo: Centauro; 2005.. As transcrições e as anotações do diário de campo constituíram o corpus textual. Todos os irmãos participaram de uma única entrevista.

Encerraram-se as entrevistas fenomenológicas mediadas pelo BTD quando, durante a coleta dos dados, as brincadeiras possibilitaram a compreensão da facticidade desses irmãos. À medida que os discursos emergentes, durante as sessões, foram sendo transcritos, também foram sendo explorados individualmente. Essa tarefa contínua faz com que o pesquisador avalie a saturação teórica, ou seja, momento quando não é encontrado acréscimo de novas informações e/ou estas deixam de ser necessárias, pois não alteram mais a compreensão do fenômeno estudado1414. Basto CCBC. Pesquisa qualitativa de base fenomenológica e a análise da estrutura do fenômeno situado: algumas contribuições. Rev Pesq Qual. 2017 [cited 2019 Nov 12];5(9):442-51. Available from: https://editora.sepq.org.br/index.php/rpq/article/view/156/93
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,1515. Martins J, Bicudo MAV. Pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. 5. ed. São Paulo: Centauro; 2005..

Após um processo interpretativo constante de leituras e releituras do conteúdo total do corpus textual, de acordo com o que é recomendado pelo método fenomenológico1111. Vieira MR. Sobre a questão do método de redução fenomenológica em Heidegger. Multi-Sci J. 2017 [cited 2019 Nov 12];1:(7):64-78. Available from: https://periodicos.ifgoiano.edu.br/multiscience/article/view/196/276
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,1515. Martins J, Bicudo MAV. Pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. 5. ed. São Paulo: Centauro; 2005., buscou-se convergências e divergências nos discursos identificando as unidades de significados,as quais deram origem aos eixos temáticos, possibilitando o apreender do significado do fenômeno, de acordo com o referencial teórico filosófico de Martin Heidegger e a literatura temática1010. Heidegger M. Ser e tempo. São Paulo: Vozes; 2012.,1515. Martins J, Bicudo MAV. Pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. 5. ed. São Paulo: Centauro; 2005..

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas sob o parecer de número 1.950.007 - CAAE 64261816.6.0000.5404.

RESULTADOS

A análise fenomenológica das entrevistas mediadas pelo BTD possibilitou a emergência de dois eixos temáticos: 1) O instante da arte: o irmão da criança com doença crônica sendo-em liberdade e, 2) O cotidiano de estar lançado: o irmão da criança com doença crônica sendo si-mesmo.

O instante da arte: o irmão da criança com doença crônica sendo-em liberdade

Após os irmãos aceitarem o convite para brincar, imediatamente, ao se perceberem diante da possibilidade de escolher o modo de brincar para vir-a-ser na situação em que se encontravam lançados, a primeira manifestação foi o explorar dos brinquedos contidos na caixa de BTD. Os irmãos, de modo singular e espontâneo, consideraram a lousa mágica, a massa de modelar, as tintas guaches e os materiais para pintura como modo de expressão. Animada iniciou sua brincadeira modelando massas de cores variadas, enrolava as massas e, em pequenos pedaços, foi formando letras até completar uma frase, verbalizando, claramente, o que estava compondo: uma declaração de amor à criança com doença crônica, destacada na Figura 1.

Animada, 8 anos,em silêncio, modela todas as massas de modelar nas diferentes cores, uma a uma; pega pedaços pequenos, enrola-os e vai formando letras e verbaliza:

Figura 1 -
Massa de modelar moldada por Animada, 8 anos. Campinas, São Paulo, Brasil, 2020

Durante o brincar, alguns dos irmãos demonstraram estar à vontade para verbalizarem sobre o que estavam produzindo. No entanto, outros manusearam as massas de modelar em silêncio e sem anunciar o que estavam criando. Assim, suas brincadeiras foram marcadas pelo modelar das massas em movimentos repetitivos de enrolar e desenrolar, amassar e desamassar, acompanhadas ou não de emoções.

Segredo pega a massa de modelar laranja e a enrola. Enquanto a modela, sorri. Enrola, quebra, enrola novamente, modela a extremidade, por aproximadamente 15 minutos. Em determinado momento, suspira alto e seus olhos ficam rasos d’água, suspira e parece se emocionar. Vira mais o corpo, distanciando-se da pesquisadora, enquanto permanece modelando a massa de cor laranja. Mantém-se manipulando e modelando a massa laranja entre as mãos, enrolando cilindricamente em silêncio, até o término da sessão. (Segredo, 9 anos)

Esse movimento de (des)fazer e (trans)formar, que a massa de modelar viabiliza, também emergiu na brincadeira de Carinhosa. No entanto, o modo como ela utilizou-se dos materiais artísticos foi peculiar. Ao modelar, também, apropriou-se das tintas guache e as coloriu, modificando, portanto, as cores originais dos brinquedos.

Massinha. Quero brincar com massinha. Eu vou pintar essa de amarelo. Em sequência, abre os potes de tinta guache e pinta, uma a uma, com os dedos, todas as massas de modelar. Percebe que suas mãos ficaram coloridas e ao demonstrar alegria diante da nova situação, começa a brincar de tingir as mãos e os antebraços, com cores diferentes. Uma luva bem azul. Falta mais. [Espalha mais tinta azul nas mãos] Falta um pouquinho mais de […]. Vou pintar esse de verde. A luva. Olha, vai ficar verde. Ficou. Pega a boneca Barbie e pergunta se pode passar a tinta azul e preta nas pernas da Barbie® . (Carinhosa, 5 anos)

Durante o brincar com as tintas, na sessão de BTD de Carinhosa, percebeu-se que esse material proporcionou-lhe prazer para continuar e reinventar a brincadeira, rendendo-lhe novas vivências. Ao nascer após a criança com doença crônica, Carinhosa, já encontrava-se exposta à situação de doença crônica no seu cotidiano, ao colorir as pernas da boneca Barbie®, revelou o modo como compreende o adoecimento que está relacionado às mudanças físicas nos membros inferiores devido ao edema que a Síndrome Nefrótica causa, diagnóstico da doença crônica da criança.

Se expressar, por meio do desenho de traços e cores, não emergiu isoladamente e, veio também, intercalado com a lousa mágica. No caso de Ternura, durante a dramatização com os bonecos da família de feltro, alternava essa brincadeira com o uso do desenho na lousa mágica. O brincar de Ternura revelou a compreensão de um mundo-vida marcado por interrupções, ou seja, dramatizou no brincar que as suas possibilidades de ser-no-mundo são interrompidas a todo o momento devido à descontinuação do seu cotidiano, o qual é imposto pela hospitalização da criança com doença crônica.

Ternura apoia a lousa mágica no seu colo, faz um desenho e apaga em sequência. Realiza outro e apaga rapidamente. Começa a realizar o terceiro, colocando bastante força na caneta e então apaga novamente. Após, dramatiza com os bonecos da família de feltro, novas combinações familiares. Ternura pega a lousa mágica no colo e faz um desenho. Ao finalizar, apaga de modo discreto e delicado. Faz outro desenho, colocando mais intensidade ao fazer os riscos e apaga. Respira fundo e solta o ar rapidamente […]. Em sequência, volta a brincar com os bonecos da família de feltro. Posteriormente, pega a lousa mágica e, novamente, faz um desenho. Suspira. Apaga o desenho com força. (Ternura, 5 anos)

A possibilidade de revelar seu sendo-no-mundo por meio do grafismo, ou seja, pelo desenho, no papel branco, com lápis de cor e/ou tinta guache ou na lousa mágica, permitiu que os irmãos expressassem, durante a sessão de BTD, o que estavam sentindo naquele momento e o mundo em que vivem. Segredo iniciou a brincadeira desenhando na lousa mágica e, imediatamente, emocionou-se, chorando copiosamente enquanto desenhava cabisbaixo e, quando terminou, o observou.

Figura 2 -
Desenho elaborado por Segredo, 9 anos. Campinas, São Paulo, Brasil, 2020

O irmão ilustrou, conforme figura 2, o momento em que a mãe sai da residência da família para ir ao hospital com a criança com doença crônica. Questiona sobre sua dúvida de quando a mãe retornará para casa, e a mãe responde que não tem previsão. Revelou que conviver com uma criança com doença crônica altera sua vida, pois há rupturas nas relações familiares, sendo que a mudança mais evidente é quando há, de fato, a necessidade da hospitalização. Sendo assim, a ida do familiar com a criança para o hospital gera medo, sofrimento, dor e preocupações, em relação a si mesmo, à criança com doença crônica e com a mãe.

Segredo: Eu fico pensando na Lívia e na minha mãe, quando ela vai voltar. Fico preocupado se eu ficar doente se ela vai se preocupar comigo […]. [Fala com a voz embargada, lágrimas nos olhos] Se quando eu passar mal, ela vai ficar preocupada.

P: O que você acha?

Segredo: Eu acho que sim. [Fala chorando] Da Lívia. Se ela fica bem lá. [Refere-se ao hospital]. (Segredo, 9 anos)

Por meio do desenho, independentemente dos artefatos utilizados, Segredo revelou que a situação de hospitalização da criança com doença crônica é permeada por momentos difíceis e sentimentos diversos, como dúvidas e preocupações. Porém, outras crianças utilizaram tintas coloridas e não aparentaram estar desconfortáveis ao brincar com esses utensílios, pois demonstraram sentimento de afeto em relação à criança com doença crônica.

Embora nem todos os irmãos tenham demonstrado proximidade e optado por utilizar os recursos artísticos durante a sessão de BTD, quando escolhidos, esses viabilizaram a compreensão da vivência dos irmãos. Apesar de terem utilizado os materiais artísticos, também, brincaram com outros brinquedos e o revelar de suas brincadeiras será exposto na próxima categoria.

O cotidiano de estar lançado: o irmão da criança com doença crônica sendo si-mesmo

Imersos na sessão de BTD, os irmãos revelaram sua cotidianidade e historicidade, retiraram e manusearam os brinquedos, explorando o conteúdo da caixa de BTD, sem demonstrar preferência por brinquedo específico.

Milho. A faca! Olha, de passar roupa. Os pratinhos. (Coração, 5 anos)

Olha! O senhor dinossauro. Um leão. Nossa, que legal. Nossa, o senhor rinoceronte, da hora! […] Uma panelinha. Deixa eu ver aqui. Milho, o ovo. (Amigo, 8 anos)

Ao se aproximarem dos brinquedos e cogitarem possibilidades para brincar, os irmãos revelaram situações cotidianas de seus mundos-vida e a relação entre os membros da família. Na brincadeira de Campeão, surgiram as suas preferências alimentares, situações que compõem seu dia a dia e as interações entre os pais e o irmão.

Campeão: Aí agora eu vou jantar.

Campeão (responde como mãe): Carne? Milho. Ovo e carne para você. […] Mamãe está fazendo jantar [Dramatiza fritar a comida] Você quer ovo no jantar?

Campeão: Sim. Eu não gosto de milho, credo. Quero! Ovo.

Campeão (responde como mãe): Carne?

Campeão: Eu não gosto de carne!

Campeão (responde como mãe): Está bom, mas amanhã você vai ter que comer, está bom? Olha o papai chegou. Papai não gosta que você não come carne, hein. (Campeão, 8 anos)

As relações do ser-aí contemplam relações consigo mesmo, com os outros e com as coisas e são, sempre, fundadas em um mundo que a todo o momento se constrói mediante o cotidiano. Neste estudo, brincar de cozinhar foi expresso em quase todas as brincadeiras dos irmãos.

Faca, ovos e milho. É. A bolacha. Bolacha. Coloca ali. Coloca aqui para gente brincar. Separa duas panelinhas cor-de-rosa, o fogão, o frango, os ovos e o milho. Vamos fazer comida. (Soneca, 8 anos)

Já sei o que eu vou fazer. Uma salsicha vai fritar. De mentirinha. Mas, depois a salsicha. […] Um camarão. Molho de tomate. […] Coloco a… salsicha. Quem quer salsicha saindo do forno? Entrega para a pesquisadora. Cheirou bom? É para você comer. (Divertido, 8 anos)

Durante a brincadeira de cozinhar, foi revelado que para a família de Coração, Amado e Giovana, a preocupação em relação aos alimentos que podem ser consumidos faz parte do cotidiano e o uso do sódio durante o cozinhar é algo presente diariamente.

Giovana: Ó Amado, sua comida. A Coração está batendo o seu suco.

Coração: Eu coloquei sal. (Amado, 3 anos; Coração, 5 anos; Giovana, 9 anos)

Sendo assim, a restrição alimentar, referente ao uso do sódio e atrelada à doença crônica ganhou relevância e Coração ressaltou o uso do sal no preparo do alimento durante a brincadeira.

Direta ou indiretamente, a doença perpassa a existência desses irmãos. A alusão ao mundo da doença foi revelada em situações como a retratada acima, por meio de dramatizações relacionadas aos contextos de adoecimento. Embora os irmãos não façam uso dos materiais hospitalares ou necessitem de cuidados de saúde rotineiros, ao visualizarem esses objetos na caixa de BTD, de algum modo, davam serventia a eles e/ou os relacionavam a determinadas situações.

Ao se relacionarem com esses materiais, os irmãos não hesitaram em reviver situações que envolvem o contexto médico.

Amigo [Fala como médico]: Oi, senhor leão.

Amigo [Fala como leão]: Aí eu estou com muita dor de barriga.

Amigo [Fala como médico]: Você tem que tomar um remédio e a gente vai medir sua pressão, está bom?

Amigo [Fala como leão]: Está bom.

Amigo [Fala como médico]: Só está com febre, só. Daí você vai tomar o remedinho. É um sorinho rápido, não vai doer nada, está bom? (Amigo, 8 anos)

De forma tácita, o irmão revelou na brincadeira o impacto que a doença gera, as mudanças e as preocupações abruptas atreladas a esse contexto. Na sessão de BTD de Sincera, essa situação é claramente relatada:

Agora tudo aconteceu de repente. Foi… foi tudo de repente. Aí, é… aí minha mãe não tem como ficar mais em casa, vem só de final de semana. Aí meu pai fica trabalhando. Aí não tem como ficar direito com a minha mãe. Ela esteve aqui ontem e já foi embora. […] É horrível. (Sincera, 11 anos)

As mudanças desencadeadas pela situação do adoecimento de uma criança com doença crônica impulsionam os irmãos a expressarem outros sentimentos. Após conviverem com essa factualidade, revelam sentir saudades e o desejo de rever a criança doente, além de enviar recados e expressarem seu carinho.

Eu estava com muita saudade da Lavínia. Eu sou a irmã dela. Fala para minha irmã que você brincou comigo. (Carinhosa, 5 anos)

Ao mesmo tempo em que se veem percorrendo caminhos sinuosos, com preocupações e questionamentos, os irmãos retomaram seu ser-si-mesmo e conseguiram projetar-se verbalizando projetos.

Olha! A bailarina dançante. Eu queria sempre ser baralina (bailarina). (Coração, 5 anos)

Quando eu crescer eu vou querer ser veterinária. Só que um dia eu vou largar o veterinária e vou fazer igual a sua função. É igual você, fazer as criança fazer um desenho do seu irmão e fazer as criança feliz. (Animada, 8 anos)

A existência é um (re)construir-se a cada momento, do mesmo modo que a doença crônica impõe essa condição na vida dos que estão envolvidos. Mediante a abertura de cada ser-aí, suas possibilidades de ser e não ser-si-mesmo, o existir do ser-no-mundo vai se reconstituindo a cada falta e a cada necessidade, pois sendo-no-mundo a existência é a cada situação.

DISCUSSÃO

O revelar-se do mundo para criança pode acontecer por meio do brincar, pois durante a brincadeira, a criança descobre o mundo, os outros e a si mesma, o que pode e não pode fazer. Quando brinca, ela experimenta, modificando, inventando e atualizando, o que quer e o que não quer ante ao que se lhe impõe e, assim, de forma criativa, cresce. A mobilidade constante na construção de significados abarca as lembranças anteriores e expectativas que são reunidas no presente, ou seja, no momento em que brinca1313. Cytrynowicz MB. O mundo da criança. Daseinsanalyse. 2000;9:74-89..

Essa mobilidade, esse agrupamento de vivências da criança é que compõem o enredo de cada brincadeira1212. Feijoo AMLC. A clínica psicológica infantil em uma perspectiva existencial. Rev Abordagem Gestalt. 2011 [cited 2019 Nov 12];17(2):185-92. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-68672011000200009&lng=pt&nrm=iso
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,1313. Cytrynowicz MB. O mundo da criança. Daseinsanalyse. 2000;9:74-89., pois na articulação constante dos modos-de-ser diante da sua facticidade, a criança idealiza o mundo possível por meio das diversas descobertas que o brincar lhe proporciona.

Ao se entregar para a própria existência e considerando sua capacidade de se relacionar com os outros entes ao seu redor, a criança vislumbra a possibilidade do novo, sendo possível atribuir significados e ressignificar as coisas e as relações no mundo, por meio de suas ações1212. Feijoo AMLC. A clínica psicológica infantil em uma perspectiva existencial. Rev Abordagem Gestalt. 2011 [cited 2019 Nov 12];17(2):185-92. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-68672011000200009&lng=pt&nrm=iso
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,1313. Cytrynowicz MB. O mundo da criança. Daseinsanalyse. 2000;9:74-89.. Isso significa que uma criança que se encontra lançada no mundo da doença crônica de um membro da família dispõe, no seu brincar, de modos de ser que atualizam essa condição.

Heidegger afirma que o brincar é essencial para compreensão dos modos de ser-no-mundo, considerando esse ato como algo que faz parte da identidade humana. Ao retratar sobre o jogar (spielen), aponta para o jogo original da transcendência, ou seja, aquilo que impulsiona o ser-no-mundo vir-a-ser junto do seu mundo vida eir além da própria existência1010. Heidegger M. Ser e tempo. São Paulo: Vozes; 2012.,1616. Heidegger M. Introdução a filosofia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2009.. Esse jogo, enquanto tonalidade afetiva, impulsiona o ser-aí a construir seu mundo.Portanto, o ser-aí sempre se encontra situado num jogo da vida1010. Heidegger M. Ser e tempo. São Paulo: Vozes; 2012.,1717. Borges-Duarte I. O afecto na análise existencial heideggeriana. Cultura. 2016;35:135-50. doi: https://doi.org/10.4000/cultura.2603
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Já a obra de arte, para esse referencial, está atrelada à verdade, descrita na obra Ser e Tempo1111. Vieira MR. Sobre a questão do método de redução fenomenológica em Heidegger. Multi-Sci J. 2017 [cited 2019 Nov 12];1:(7):64-78. Available from: https://periodicos.ifgoiano.edu.br/multiscience/article/view/196/276
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, produzida pelo ser-aí e, se refere, portanto, a desvelamento, não no sentido de desencobrir algo que está velado e revelá-lo para alguém, mas sim no sentido de perceber diante de si como algo é, tratando-se de ser-no-mundo com os outros e com os entes1717. Borges-Duarte I. O afecto na análise existencial heideggeriana. Cultura. 2016;35:135-50. doi: https://doi.org/10.4000/cultura.2603
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,1818. Borges-Duarte I. Arte e técnica em Heidegger. Lisboa, Portugal: Edições documenta Pt; 2014..

Quando nos referimos à obra de arte, a literatura afirma que o desenho e a pintura são registros reveladores da percepção da criança sobre determinada temática. O uso de tais recursos possibilita à criança a liberdade de expressar o que ela quiser, portanto, é também, uma obra de arte. Logo, o fazer artístico é um modo de relação do homem/criança com o mundo, que permite o acontecimento de ser no qual o horizonte factual existencial se viabiliza como possível e tematizável1818. Borges-Duarte I. Arte e técnica em Heidegger. Lisboa, Portugal: Edições documenta Pt; 2014.,1919. Therense M. O processo ludoterapêutico na perspectiva fenomenológico-existencial das crianças em atendimento clínico. Rev Abordagem Gestalt. 2019;25(1):15-25. doi: https://doi.org/10.18065/RAG.2019v25.2
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. Nesse contexto, os irmãos revelaram a relação com seu mundo circundante e, que também, é envolto pela doença crônica da criança.

Desse modo, a verdade expressa, na sessão de BTD, é o mostrar-se do irmão em contato com os brinquedos e suas expressões, reveladas em forma de obra de arte e suas narrações. Assim, foi possível apreender que os irmãos manipularam a massa de modelar, dando-lhes significados concretos como na situação de Animada, a importância de Liz (criança com doença crônica) na sua vida. Em contrapartida, alguns irmãos deixaram velado o sentido daquilo que estavam fazendo, como Segredo.

O silêncio e o não revelar de algo também é um modo-de-ser, como ‘não disponibilidade’ do irmão para se abrir naquele momento. Além disso, demonstra que a facticidade de ter um irmão com doença crônica nem sempre é passível de explicações concretas e o silêncio revela o modo como Segredo e Ternura, principalmente, preencheram seu vazio existencial1010. Heidegger M. Ser e tempo. São Paulo: Vozes; 2012..

Nessa perspectiva, compreender fenomenologicamente uma obra quer dizer indagar a respeito da tonalidade afetiva fundamental que se dá quando o ser-aí se sente tocado por algo, como exemplo, ao sentir medo de algo, o medo é anterior, pois o ser-aí já tem uma significação para aquilo que está aparecendo naquele momento e é algo ameaçador para o ser-1717. Borges-Duarte I. O afecto na análise existencial heideggeriana. Cultura. 2016;35:135-50. doi: https://doi.org/10.4000/cultura.2603
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O conhecimento prévio de algo ameaçador, gerando medo, altera o modo como o ser-aí faz sua vida, pois é necessário reconhecer o que é nocivo para si para poder evitá-lo1111. Vieira MR. Sobre a questão do método de redução fenomenológica em Heidegger. Multi-Sci J. 2017 [cited 2019 Nov 12];1:(7):64-78. Available from: https://periodicos.ifgoiano.edu.br/multiscience/article/view/196/276
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. Esse algo que emerge, gerador de inseguranças, só é ameaçador se de algum modo já está presente na vida do irmão ou possa vir a estar. Isso define o medo como um modo de estar ocupado com entes que o ser-aí deixa vir ao seu encontro.

Ao se expressar por meio da arte, Segredo revelou o anseio em relação a não certeza do retorno da mãe do hospital para o domicílio, a preocupação em adoecer e quem cuidaria dele, como ilustrado na Figura 2. Já, durante a sessão de Animada, foi revelado que a doença crônica e a hospitalização da irmã a afetam no modo do carinho, ao relembrar do sentimento de consideração por meio da massa de modelar, de acordo com a Figura 1.

Ver-se diante de uma situação ameaçadora, como no caso de Segredo, por meio do desenho, e de Sincera, por meio do discurso, revela não só coisas, mas também os outros, com os quais o ser-aí se relaciona sendo no mundo. Quando o ser-aí teme por alguém, que não é ele, é por ele mesmo que teme. Amedronta-se diante da possibilidade de perder sua própria existência; teme que o mal atingindo o outro, fira também seu mundo circundante1010. Heidegger M. Ser e tempo. São Paulo: Vozes; 2012.,1717. Borges-Duarte I. O afecto na análise existencial heideggeriana. Cultura. 2016;35:135-50. doi: https://doi.org/10.4000/cultura.2603
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A hospitalização da criança com doença crônica emerge abruptamente na cotidianidade dos envolvidos, impactando e alterando diretamente o mundo-vida, tanto do irmão, como dos demais membros da família. Ao se dar conta da nova situação, muitas vezes, não há tempo para se organizar previamente e a necessidade da ida ao ambiente hospitalar, como na situação de Segredo, deixa-o sem informações concretas a respeito do novo horizonte de possibilidades que se instaurou.

Os resultados deste estudo corroboram com outras pesquisas realizadas com irmãos de crianças com doenças crônicas nos contextos nacional e internacional, ao revelar que o medo do desconhecido e a falta de informações concretas a respeito da criança com doença crônica são os principais fatores que interferem na saúde psicossocial dos irmãos e, além disso, mostram que eles temem pelo seu futuro e preocupam-se com bem-estar da criança com doença crônica22. Havill N, Fleming LK, Knalf K. Well siblings of children with chronic illness: a synthesis research study. Res Nurs Health. 2019;42(5):334-48. doi: https://doi.org/10.1002/nur.21978
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,55. Hilkner SH, Beck ARM, Tanaka EZ, Dini AP. Perceptions of siblings of children hospitalized due to chronic disease. Rev Enf Ref. 2019;IV(20):77-86. doi: http://doi.org/10.12707/RIV18074
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,2020. Deavin A, Greasley P, Dixon C. Children’s perspectives on living with a sibling with a chronic illness. Pediatrics. 2018;142(2):e20174151. doi: https://doi.org/10.1542/peds.2017-4151
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Para Heidegger, somente é possível o desencobrimento do ser-aí por meio da hermenêutica da facticidade, pois trata fundamentalmente daquilo que é o ser humano ‘concreto’ e sua realização como ser-no-mundo e, é caracterizado por três momentos concomitantes: o ter prévio do propósito, o ver prévio da cautela e o conceito prévio1111. Vieira MR. Sobre a questão do método de redução fenomenológica em Heidegger. Multi-Sci J. 2017 [cited 2019 Nov 12];1:(7):64-78. Available from: https://periodicos.ifgoiano.edu.br/multiscience/article/view/196/276
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O ter prévio é a indicação de um modo de ver determinada situação/coisa, ou seja, os irmãos já olham para suas existências, fundamentados naquilo que sua vida já é e está sendo, segundo suas relações no mundo. O ver prévio da cautela é o olhar para determinada situação já sendo, isto é, o irmão, ao olhar para as necessidades impostas pela doença crônica da criança, como exemplo, a hospitalização, ele já tem um olhar direcionador para o que acontecerá quando, de fato, a família se encontrar vivendo a hospitalização. O captar prévio é o modo ‘fixo’/o pensamento que o irmão tem acerca de uma situação e o que ela altera na sua historicidade1414. Basto CCBC. Pesquisa qualitativa de base fenomenológica e a análise da estrutura do fenômeno situado: algumas contribuições. Rev Pesq Qual. 2017 [cited 2019 Nov 12];5(9):442-51. Available from: https://editora.sepq.org.br/index.php/rpq/article/view/156/93
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Os irmãos, junto das suas experiências, ao olharem para os brinquedos e nomeá-los, mostram as relações mantidas com esse ente que vem ao seu encontro de modo subsistente, utilizável e, em cada momento, segundo o ter-prévio. Sendo assim, os irmãos já compreendem sua situação de conviver com uma criança com doença crônica, antes de qualquer acontecimento que o tratamento da doença imponha ao seu dia a dia, pois essa facticidade já está implantada na historicidade dos irmãos.

Na sessão de Coração e Amado, a restrição alimentar do sódio, específica para a doença renal da criança com doença crônica, foi ressaltada, em forma de aviso, pela irmã Coração. Houve uma relação entre a brincadeira e a situação vivenciada, sendo perceptível a sua preocupação e o cuidado já inserido na sua rotina que é a cautela em relação ao uso do sal. A doença crônica da criança e as limitações que impõem à vida do irmão, também,podem ser percebidas quando Amigo, ao brincar, relembra e associa a alimentação com a necessidade de cuidados de saúde, como a soroterapia. Henrique, irmão de Amigo, tem restrição alimentar severa devido à patologia, sendo necessário o uso de nutrição enteral e parenteral.

A questão do ser-aí encontrar-se envolto em diversos tipos de relação faz com que a (pre)ocupação desses irmãos se estenda para além da criança com doença crônica, e o sofrimento que os afeta pode se dar de diferentes formas1414. Basto CCBC. Pesquisa qualitativa de base fenomenológica e a análise da estrutura do fenômeno situado: algumas contribuições. Rev Pesq Qual. 2017 [cited 2019 Nov 12];5(9):442-51. Available from: https://editora.sepq.org.br/index.php/rpq/article/view/156/93
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. Nesse contexto, embora a ocupação do irmão não seja a necessidade de intervenções médicas rotineiras, ele faz escolhas pelos brinquedos que referem o mundo hospitalar. Já para outros, suas preocupações são em relação à saudade e vontade de visitar a criança com doença crônica e acerca das mudanças no núcleo familiar.

Até o presente momento, falamos a respeito da compreensão do irmão estando fixo em um ‘ter prévio’ que direciona seu olhar para a doença crônica da criança, o qual implica a necessidade de cuidados de saúde. No entanto, para o referencial heideggeriano, o exercício que o homem deve fazer, envolto na hermenêutica da facticidade, é sair de si mesmo, pôr-se em outra posição/lugar e enxergar as diferentes possibilidades de poder-ser, vislumbrar diferentes modos de olhar para seu mundo-vida1414. Basto CCBC. Pesquisa qualitativa de base fenomenológica e a análise da estrutura do fenômeno situado: algumas contribuições. Rev Pesq Qual. 2017 [cited 2019 Nov 12];5(9):442-51. Available from: https://editora.sepq.org.br/index.php/rpq/article/view/156/93
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As sessões de Animada e Coração, tomadas por suas historicidades, mostraram esse movimento de trazer à tona, novas perspectivas que as afastam da “lente” de enxergar a vida apenas com a doença crônica da criança. Buscam sentido para suas existências almejando projetos futuros, como à vontade de ser bailarina e veterinária.

Unindo a visão da Fenomenologia e os propósitos do BTD, vimos que é possível, por meio dessa tecnologia, auxiliar os irmãos a descobrirem outras maneiras de ser-no-mundo. Posicionando-se do seu modo, da forma como quiserem na brincadeira, tornam tudo plausível. O BTD contribuiu para que os irmãos se reconhecessem dentro da sua situação fáctica e pudessem ‘saltar’/mudar para outro modo de compreenderem suas existências1111. Vieira MR. Sobre a questão do método de redução fenomenológica em Heidegger. Multi-Sci J. 2017 [cited 2019 Nov 12];1:(7):64-78. Available from: https://periodicos.ifgoiano.edu.br/multiscience/article/view/196/276
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,1414. Basto CCBC. Pesquisa qualitativa de base fenomenológica e a análise da estrutura do fenômeno situado: algumas contribuições. Rev Pesq Qual. 2017 [cited 2019 Nov 12];5(9):442-51. Available from: https://editora.sepq.org.br/index.php/rpq/article/view/156/93
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Os irmãos de crianças com doenças crônicas revelaram nas suas brincadeiras que o surgimento de uma doença crônica, para a criança e sua família, acarreta modificações na dinâmica familiar e interfere na relação entre seus membros e ao se depararem com essa facticidade, experimentam transformações, pois a necessidade de hospitalizações frequentes devido à doença, desencadeia rupturas em seu mundo-vida. Logo, essas alteridades podem ser consideradas um momento ímpar para os irmãos.

Desse modo, permitir que o irmão brinque e verbalize momentos ‘difíceis’ da sua existência, ajuda-o a compreender sua condição existencial originária e singular de estar lançado no mundo da doença crônica da criança. Ao lançar-se nesse universo, depara-se, obrigatoriamente, com o tratamento da criança doente. Assim, a situação hermenêutica desses irmãos em relação a organização e a compreensão de seus mundos-vida são em torno do existir de uma criança com doença crônica e que, no fundo, eles estão ocupados, sempre, em tratar dessa enfermidade. Portanto, a doença marca a existência dos irmãos dia a dia.

Diante do exposto, fornecer elementos hermenêuticos para o irmão, como no caso, uma sessão de BTD, é favorecer para que ele não enrijeça dentro da sua situação e possa desenvolver outros modos de ser-aí-irmão e lidar com a sua situação, elaborando sua condição de forma autêntica. A historicidade do irmão pôde ser compreendida por ele mesmo de modo que, ao participar de uma sessão de BTD, foi possível perceber o quanto sua historicidade e o seu modo-de-ser-no-mundo podem ser ampliados e vistos de outra maneira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As vivências de irmãos de crianças com doenças crônicas, por meio de entrevistas fenomenológicas mediadas pelo BTD, possibilitaram a compreensão de que ser-no-mundo para os irmãos é ser-no-mundo-com-os-outros, com suas famílias e ao lado da criança com doença crônica.

A percepção de que a criança com doença crônica necessita de recursos de saúde e hospitalizações frequentes, atrelada às informações limitadas, desencadeiam, nos irmãos, sentimentos como medo, tristeza, saudade e curiosidade. Sendo assim, salienta-se a relevância da equipe de enfermagem em conversar com as famílias a respeito da importância do oferecimento de informações claras e adequadas sobre o estado de saúde da criança para os irmãos, a fim de que possam compreender sua facticidade e, dessa forma, evitarem pensamentos errôneos sobre a situação que vivenciam.

Além disso, faz-se importante discorrer sobre a necessidade de o enfermeiro aproximar-se das famílias e apreender sobre como os irmãos das crianças com doenças crônicas convivem com essa facticidade, no intuito de contribuir para a inclusão dos irmãos na assistência de enfermagem prestada à criança, se assim for desejado pela família.

O BTD mostrou-se como tecnologia indispensável para acessar às experiências dos irmãos, possibilitando-lhes expressar sentimentos e anseios em relação à criança doente, compreender seu mundo-vida e liberar tensões. Além disso, permitiu que o irmão vislumbrasse sua existência para além da doença crônica da criança.

Desse modo, considera-se a necessidade urgente de instituir ações para a inclusão do irmão na assistência de enfermagem à criança com doença crônica para a promoção do bem-estar desse irmão e da família. Além disso, os resultados deste estudo apresentam potencial para embasar proposições de políticas públicas, não só à criança com doença crônica, mas também para seus irmãos e suas famílias, junto de outros estudos acerca dessa temática.

Agradecimentos:

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES), pelo auxílio em forma de bolsa de estudos, modalidade Demanda Social, processo número 88882.434704/2019-01.

REFERENCES

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Editado por

Editor associado:

Helena Becker Issi

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2022
  • Aceito
    12 Set 2022
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