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Vivências de mães no desmame precoce: uma teoria fundamentada nos dados

RESUMO

Objetivo:

Compreender vivências de mães no desmame precoce.

Método:

Estudo qualitativo orientado pelo referencial metodológico da teoria fundamentada nos dados. A amostragem teórica foi composta por 19 participantes: mães, familiares e profissionais da saúde de uma Unidade Básica de Saúde, todos da Região Nordeste, Brasil. A coleta de dados ocorreu de abril a setembro de 2018, com entrevistas individuais em profundidade, analisadas por meio da codificação aberta, axial e de integração.

Resultados:

Emergiu o fenômeno "A mulher vivenciando a culpa e a sobrecarga pelo desmame precoce", sustentado por cinco categorias inter-relacionadas.

Considerações finais:

As mães vivenciaram a carência da rede de apoio, a insuficiência do tempo da licença-maternidade e o sentimento de culpa.

Descritores:
Aleitamento materno; Saúde materno-infantil; Teoria fundamentada nos dados; Desmame precoce; Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

To understand the experiences of mothers with early weaning.

Method:

Qualitative research with a theoretical-methodological contribution from Grounded Theory (Straussian perspective), carried out in the context of primary health care in a medium-sized municipality in the northeast of Brazil. 19 collaborators participated by theoretical sampling. Data collection took place between April and September 2018, with in-depth interviews, and was analyzed in three stages: open and axial coding, and integration.

Results:

The central category "Women experiencing guilt and overload due to early weaning" was supported by three categories: a) conditions: “Showing the factors that limit breastfeeding”; b) actions/interactions: “Trying to balance motherhood and work during breastfeeding” and “Insufficient social support to keep exclusive breastfeeding”; and c) consequences: “Introducing formula and complementary foods before six months” and “Blaming oneself for the early weaning”.

Final considerations:

The theoretical model can give support to managers and health professionals to advocate for longer maternity leaves and confront gender disparities and inequities, professional performance with conflicts of interest, and abusive marketing regarding the use of formula.

Descriptors:
Breast feeding; Maternal and child health; Child health; Grounded theory; Weaning; Nursing

RESUMEN

Objetivo:

Comprenderlas experiencias de las madres enel destete precoz.

Método:

Teoría fundamentada em losdatos. La muestra teórica estuvo compuesta por 19 participantes: madres, familiares y profesionales de la salud de una Unidad Básica de Salud de la región Nordeste de Brasil. La recolección de datos ocurrió de abril a septiembre de 2018, con entrevistas enprofundidad, analizadas a través de codificación abierta, axial y de integración.

Resultados:

Emergió la categoría central “La mujer experimentando culpa y sobrecarga por el destete precoz”, sustentada entres categorías: a) condicionantes: "revelando las limitaciones para lalactancia materna"; b) acciones/interacciones: “intentar conciliar la lactancia materna con la práctica profesional” y “recibir apoyo social insuficiente para mantener la lactancia materna exclusiva”; y c) consecuencias: “introducir fórmulas infantiles y alimentación complementaria antes de los seis meses de edad y culpabilizarse por el destete precoz”.

Consideraciones finales:

Las madres experimentaron la falta de una red de apoyo, la insuficiencia del tiempo de licencia por maternidad y el sentimiento de culpa.

Descriptores:
Lactancia materna; Salud materno infantil; Teoría fundamentada; Destete precoz; Enfermería

INTRODUÇÃO

A amamentação é reconhecida, mundialmente, pelos benefícios nutricionais e psíquicos, resultantes da interação entre mãe e filho. Nesse sentido, são apontadas potenciais evidências dos seus efeitos, ainda durante a infância, na redução da taxa de mortalidade11. Shafaei FS, Mirghafourvand M, Havizari S. The effect of prenatal counseling on breastfeeding self-efficacy and frequency of breastfeeding problems in mothers with previous unsuccessful breastfeeding: a randomized controlled clinical trial. BMC Womens Health. 2020;20:94. doi: https://doi.org/10.1186/s12905-020-00947-1
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) causada por infecções do trato respiratório (57%) e gastrointestinais (72%); e, na fase adulta, na redução das taxas de mal oclusão dentária, sobrepeso e diabetes; além de efeitos relacionados a um melhor desenvolvimento cognitivo. A prática da amamentação também pode promover benefícios à saúde materna, pois contribui para prevenção de hemorragias no pós-parto, câncer de mama e ovários, e diabetes mellitus tipo II22. AlQurashi A, Wani T, Alateeq N, Heena H. Effect of counseling service on breastfeeding practice among saudi mothers. Healthcare. 2023;11(6):878. doi: https://doi.org/10.3390/healthcare11060878
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Recomenda-se que o Aleitamento materno (AM) seja oferecido, exclusivamente, como única fonte de nutrientes para a criança, até seus seis meses de idade33. Ministério da Saúde (BR). Saúde da criança: aleitamento materno e alimentação complementar. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2015 [cited 2022 Oct 20]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/saude_crianca_aleitamento_materno_cab23.pdf
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. Tendo essa recomendação em vista,o desmame precoce caracteriza-se pela introdução precoce de alimentos à criança antes dos seis meses de idade44. United Nations International Children's Emergency Fund. Global breastfeeding scorecard, 2018: enabling women to breastfeed through better policies and programmes. New York: UNICEF; 2018 [cited 2022 Oct 20]. Available from: https://www.who.int/publications/m/item/global-breastfeeding-scorecard-2018-enabling-women-to-breastfeed-through-better-policies-and-programmes
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, o que pode desencadear diversos problemas à saúde e ao seu desenvolvimento.

O Aleitamento Materno Exclusivo (AME) compreende um imperativo de saúde global55. Yang SF, Burns E, Salamonson Y, Schmied V. Expectations and experiences of nursing students in supporting new mothers to breastfeed: a descriptive qualitative study. J Clin Nurs. 2019;28(11-12):2340-50. doi: https://doi.org/10.1111/jocn.14836
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, uma vez que pode salvar até 1,3 milhão de crianças por ano, em todo o mundo66. Dibisa TM, Sintayehu Y. Exclusive breast feeding and its associated factors among mothers of <12 months old child in Harar Town, Eastern Ethiopia: a cross-sectional study. Pediatric Health Med Ther. 2020;11:145-52. doi: https://doi.org/10.2147/PHMT.S253974
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. O AME melhora as chances de sobrevivência dos bebês, fazendo com que crianças amamentadas possuam quatorze vezes mais chances de sobrevivência, se comparadas às que não são amamentadas. Isso acontece porque essa prática previne diarreia e pneumonia, duas das principais causas da mortalidade infantil77. Joseph FI, Earland J. A qualitative exploration of the sociocultural determinants of exclusive breastfeeding practices among rural mothers, North West Nigeria. Int Breastfeed J. 2019;14:38. doi: https://doi.org/10.1186/s13006-019-0231-z
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O desmame precoce é uma prática recorrente, que ocorre devido a múltiplos fatores, dentre os quais, destacam-se: fissura mamilar e uso da chupeta88. Mosquera PS, Lourenço BH, Gimeno SGA, Malta MB, Castro MC, Cardoso MA, et al. Factors affecting exclusive breastfeeding in the first month of life among Amazonian children. PLoS One. 2019;14(7):e0219801. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0219801
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; mitos e crenças relacionados à percepção do leite como fraco ou insuficiente para saciar o(a) filho(a); retorno laboral materno, estilo de vida e influência de médicos99. Gianni ML, Bettinelli ME, Manfra P, Sorrentino G, Bezze E, Plevani L, et al. Breastfeeding difficulties and risk for early breastfeeding cessation. Nutrients. 2019;11(10):2266. doi: https://doi.org/10.3390/nu11102266
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; ausência de apoio paterno na amamentação1010. Carreiro JA, Francisco AA, Abrão ACFV, Marcacine KO, Abuchaim ESV, Coca KP. Dificuldades relacionadas ao aleitamento materno: análise de um serviço especializado em amamentação. Acta Paul Enferm. 2018;31(4):430-8. doi: https://doi.org/10.1590/1982-0194201800060
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; sensação de insatisfação da criança em relação ao leite materno1111. Martins FA, Ramalho AA, Andrade AM, Optiz SP, Koifman RJ, Silva IF. Padrões de amamentação e fatores associados ao desmame precoce na Amazônia ocidental. Rev Saude Publica. 2021;55:21. doi: https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2021055002134
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; posicionamento inadequado da mãe ou pega incorreta do filho durante a amamentação ou sucção; e preensão e deglutição incorretas1212. Colombo L, Crippa BL, Consonni D, Bettinelli ME, Agosti V, Mangino G, et al. Breastfeeding determinants in healthy term newborns. Nutrients. 2018;10(1):48. doi: https://doi.org/10.3390/nu10010048
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. Além desses, ainda há fatores históricos, socioeconômicos, culturais, fisiológicos e psicossociais que podem estar associados ao desmame precoce1313. Shiraishi, M, Matsuzaki M, Kurihara S, Iwamoto M, Shimada M. Post-breastfeeding stress response and breastfeeding self-efficacy as modifiable predictors of exclusive breastfeeding at 3 months postpartum: a prospective cohort study. BMC Pregnancy Childbirth. 2020;20(1):730. doi: https://doi.org/10.1186/s12884-020-03431-8
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Apesar da disseminação das contribuições da amamentação, o desmame precoce, ainda, é realidade mundial e problema de saúde pública. Do ponto de vista epidemiológico, no mundo, estima-se que apenas 41% das crianças menores de seis meses sejam amamentadas exclusivamente; percentual aquém das metas estabelecidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que preveem o alcance de 50%, para 2025, e de 70%, para 203044. United Nations International Children's Emergency Fund. Global breastfeeding scorecard, 2018: enabling women to breastfeed through better policies and programmes. New York: UNICEF; 2018 [cited 2022 Oct 20]. Available from: https://www.who.int/publications/m/item/global-breastfeeding-scorecard-2018-enabling-women-to-breastfeed-through-better-policies-and-programmes
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.

Corroborando com as evidências do cenário de desmame precoce, uma pesquisa desenvolvida nos Estados Unidos da América confirma que apenas 46,2% das crianças foram amamentadas exclusivamente até os três meses de idade; número que foi reduzido para 25,8%, quando considerado os seis meses de vida1414. McGuire S. Centers for disease control and prevention. 2013. strategies to prevent obesity and other chronic diseases: The CDC guide to strategies to support breastfeeding mothers and babies. Atlanta: U.S. Department of Health and Human Services, 2020. Adv Nutr. 2014;5(3):291-2. doi: https://doi.org/10.3945/an.114.005900
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. Em relação a outras partes do mundo, a América Latina e o Caribe apresentaram taxas de 37%1313. Shiraishi, M, Matsuzaki M, Kurihara S, Iwamoto M, Shimada M. Post-breastfeeding stress response and breastfeeding self-efficacy as modifiable predictors of exclusive breastfeeding at 3 months postpartum: a prospective cohort study. BMC Pregnancy Childbirth. 2020;20(1):730. doi: https://doi.org/10.1186/s12884-020-03431-8
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; e, no Sul da Ásia, apenas 37,7% das mulheres continuam a prática da amamentação exclusiva1515. Arif S, Khan H, Aslam M, Farooq M. Factors influencing exclusive breastfeeding duration in Pakistan: a population-based cross-sectional study. BMC Public Health. 2021;21(1):1998. doi: https://doi.org/10.1186/s12889-021-12075-y
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. Na Etiópia, a duração da amamentação diminui de 74% para 64% em crianças (0 a 1 mês), e para 36%, entre crianças de quatro a cincos meses de vida1616. Abdulahi M, Fretheim A, Magnus JH. Effect of breastfeeding education and support intervention (BFESI) versus routine care on timely initiation and exclusive breastfeeding in Southwest Ethiopia: study protocol for a cluster randomized controlled trial. BMC Pediatr. 2018;18(1):313. doi: https://doi.org/10.1186/s12887-018-1278-5
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.

O Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (ENANI), desenvolvido em todas as regiões do país, entre 2019 e 2020, com 14.584 crianças menores de cinco anos, revelou que a prevalência do AME em menores de seis meses foi de 45,8% no Brasil. A maior taxa foi observada na região Sul (54,3%) e a menor, na Região Nordeste, com apenas 39%1717. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Aleitamento materno: prevalência e práticas de aleitamento materno em crianças brasileiras menores de 2 anos 4: ENANI 2019 [Internet]. Rio de Janeiro: UFRJ; 2021 [cited 2022 Oct 20]. Available from: https://enani.nutricao.ufrj.br/wp-content/uploads/2021/11/Relatorio-4_ENANI-2019_Aleitamento-Materno.pdf
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.

Na tentativa de compreender as motivações para tal quadro, um estudo brasileiro mostrou a análise dos discursos oficiais para a promoção do AM no Brasil, e, a partir disso, evidenciou a inexistência ou escassez de uma abordagem mais complexa da amamentação que inclua o desmame. Foi verificada a desvalorização dos aspectos relativos à subjetividade da mulher que amamenta, à sua inserção no mercado de trabalho, além da secundarização das dificuldades enfrentadas na amamentação. Com isso, a condição de continuar amamentando, mesmo após o término da licença maternidade, é posta, de modo simplório, como uma questão facultativa, relegada ao desejo materno. Ainda é apontado o silenciamento de determinados sentidos relativos à amamentação, entre eles: as perspectivas maternas acerca do processo, a relação do pai da criança com a amamentação e o desmame1818. Kalil IR, Aguiar AC. Aquilo que a amamentação retira e o desmame restaura: relatos maternos sobre tensionamentos e materiais de comunicação e informação em saúde. RECIIS. 2021;15(3):597-613. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v15i3.2328
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A literatura revela que há a produção de estudos sobre as circunstâncias que afetam a decisão da mulher pela amamentação, porém esse processo é um fenômeno mais complexo do que a descrição das experiências maternas1818. Kalil IR, Aguiar AC. Aquilo que a amamentação retira e o desmame restaura: relatos maternos sobre tensionamentos e materiais de comunicação e informação em saúde. RECIIS. 2021;15(3):597-613. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v15i3.2328
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,1919. Primo CC, Brandão MAG. Teoria Interativa de Amamentação: elaboração e aplicação de uma teoria de médio alcance. Rev Bras Enferm. 2017;70(6):1191-8. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0523
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. Diante disso, ressaltam-se lacunas no que tange a uma compreensão melhor do fenômeno e a um desenvolvimento teórico que contemple a conceitualização e a construção de um modelo teórico capaz de apresentar a estrutura do fenômeno e a complexidade da ocorrência. São necessárias, ainda, portanto, pesquisas que avancem na descrição analítica dos dados para a teorização desse fenômeno2020. Lacerda MR, Santos JLG. Teoria fundamentada nos dados: bases teóricas e metodológicas. Porto Alegre: Moriá; 2019..

Mediante as considerações apresentadas, conclui-se que muito é estudado, na literatura, acerca dos motivos e circunstâncias que levam ao desmame precoce, mas pouco sobre a experiência materna nesse processo. Pensando nisso, delineou-se, neste estudo, a seguinte questão de pesquisa: como a mãe vivencia o processo de desmame precoce?

Diante do exposto, o trabalho tem como objetivo buscar compreender vivências de mães no desmame precoce. Isso será feito sob as seguintes justificativas: a existência de um cenário de alta prevalência do desmame precoce na região Nordeste do Brasil, onde se origina este estudo; a complexidade das vivências de mães no desmame precoce; e o reconhecimento da importância da amamentação para a díade mãe-filho. A partir disso, o estudo visa contribuir para a práxis assistencial dos profissionais de saúde, guiando ações de cuidado materno-infantil e de suporte emocional prestado à mulher, à criança e à família nesse contexto.

MÉTODO

Este trabalho consiste em um estudo qualitativo, orientado pela Teoria Fundamentada nos Dados (TFD) ou Grounded Theory, na perspectiva straussiana. A TFD apresenta caráter interpretativo e possibilita a construção de modelos teóricos assentados em dados de pesquisa que integram, sistematicamente, diversos conceitos para a compreensão, de forma aprofundada, de determinado fenômeno, desvendando novos caminhos e possibilidades de ação2020. Lacerda MR, Santos JLG. Teoria fundamentada nos dados: bases teóricas e metodológicas. Porto Alegre: Moriá; 2019.. Quanto ao rigor e à qualidade no desenvolvimento do estudo, eles seguiram os critérios estabelecidos no Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ)2121. Souza VR, Marziale MH, Silva GT, Nascimento PL. Translation and validation into Brazilian Portuguese and assessment of the COREQ checklist. Acta Paul Enferm. 2021;34:eAPE02631. doi: https://doi.org/10.37689/acta-ape/2021AO02631
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O cenário do estudo foi uma Unidade Básica de Saúde (UBS), que funcionava como Estratégia Saúde da Família, localizada no estado do Rio Grande do Norte (RN), Brasil. Justifica-se a escolha dessa UBS por ela ser a de menor taxa de amamentação exclusiva no município (<50%), conforme informações do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB)2222. Ministério da Saúde (BR). Sistema de Informação da Atenção Básica. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2015..

A coleta de dados ocorreu de abril a setembro de 2018, por meio de um roteiro constituído por duas partes: a primeira delas abrangeu o perfil sociodemográfico (idade, escolaridade, estado civil, ocupação e renda) e clínico dos participantes (dados da amamentação, do desmame precoce e do nascimento da criança, incluindo prematuridade); e a segunda, correspondeu à aplicação de entrevistas presenciais e individuais, com questões abertas e em profundidade, que foram adequadas ao contexto, no decorrer da coleta de dados, com o objetivo de levar ao aprofundamento das categorias.

Na TFD, a seleção de participantes é guiada pela coleta e análise dos dados, que orienta sobre “onde” e “com quem” novos dados poderiam ser encontrados, formando, assim, Grupos Amostrais (GAs). Esses grupos precisam ter, em sua composição, colaboradores com experiência empírica no objeto de estudo, definidos por questões hipotético-dedutivas. Assim, busca-se a maximização de oportunidades para o aperfeiçoamento das categorias conceituais e para a descoberta de variabilidades, a fim de se chegar à identificação de padrões de comportamento das pessoas investigadas e daquelas que com elas interagiam2020. Lacerda MR, Santos JLG. Teoria fundamentada nos dados: bases teóricas e metodológicas. Porto Alegre: Moriá; 2019.,2323. Adamy EK, Zocche DAA, Vendruscolo C, Santos JLG, Almeida MA. Validation in grounded theory: conversation circles as a methodological strategy. Rev Bras Enferm. 2018;71(6):3121-6. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0488
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O tamanho da amostragem culminou com a saturação teórica dos dados2020. Lacerda MR, Santos JLG. Teoria fundamentada nos dados: bases teóricas e metodológicas. Porto Alegre: Moriá; 2019., alcançada com três GAs, totalizando 19 participantes. O primeiro GA foi constituído por 13 mães; o segundo, por três profissionais de saúde da Atenção Básica e Saúde da Família; e o terceiro GA, por três familiares (a esse grupo incluíram-se a avó e o pai da criança).

O primeiro GA foi selecionado intencionalmente, a partir da hipótese de que os componentes seriam participantes-chave para responder o objetivo do estudo. Já para os outros, estabeleceram-se como critérios de inclusão: (1) mães com bebês de até seis meses de idade que desmamaram precocemente1313. Shiraishi, M, Matsuzaki M, Kurihara S, Iwamoto M, Shimada M. Post-breastfeeding stress response and breastfeeding self-efficacy as modifiable predictors of exclusive breastfeeding at 3 months postpartum: a prospective cohort study. BMC Pregnancy Childbirth. 2020;20(1):730. doi: https://doi.org/10.1186/s12884-020-03431-8
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; (2) mães que residissem na área urbana do município; e (3) mães maiores de 18 anos de idade. Foram excluídas: mães de bebês portadores de galactosemia ou outra doença que impossibilite a amamentação; e mães com deficiência auditiva, pela impossibilidade de estabelecer uma comunicação verbal, uma vez que se busca também sentidos na linguagem e não havia intérprete de Libras.

O segundo GA foi composto a partir do processo analítico dos dados do primeiro GA, o qual apontou os profissionais de saúde como referência à puérpera. Esses participantes foram selecionados por conveniência, a partir da citação dos profissionais nas entrevistas coletadas.

Por fim, o terceiro GA foi formado por meio da amostragem de conveniência, constituída por familiares, especialmente, os avós e genitor/pai dos bebês em desmame precoce, devido à proximidade e à interação maior no contexto relacional da mulher, conforme relato das entrevistas coletadas (Quadro 1).

Quadro 1 -
Apresentação dos Grupos Amostrais, suas hipóteses, critérios de inclusão e exclusão e questões norteadoras. Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, 2023

Após a explanação das razões para o desenvolvimento da pesquisa e o convite individual realizado pessoalmente, as entrevistas abertas ocorreram com os participantes, ficando a escolha do local ao critério deles. Elas foram conduzidas pela autora principal, Enfermeira e Mestra em Enfermagem, com experiência profissional e acadêmica no objeto e método de pesquisa. Além disso, utilizou-se gravador digital para o registro das entrevistas, que tiveram duração média de 50 minutos e, que, posteriormente, foram transcritas na íntegra e inseridas no software NVIVO 10, para a organização dos dados. As transcrições foram impressas e devolvidas aos participantes a fim de que eles as validassem ou reelaborassem as respostas, com inclusões ou exclusões de falas.

O método da TFD aponta que a finalização dos GAs por amostragem teórica ocorre quando há densificação das categorias em propriedades e dimensões. Além disso, foi observado que, no decorrer da análise dos dados dos GAs, conformados dentro do modelo paradigmático, não houve lacunas teóricas a serem preenchidas com a abrangência da amostragem2020. Lacerda MR, Santos JLG. Teoria fundamentada nos dados: bases teóricas e metodológicas. Porto Alegre: Moriá; 2019.. Assim, neste estudo, a saturação teórica foi alcançada quando todas as categorias conceituais apresentaram poder explicativo e teórico.

Conforme proposto pela TFD, a análise de dados ocorre, simultaneamente, à coleta, utilizando-se do método de comparação constante. Na perspectiva straussiana, a análise acontece em três etapas: codificação aberta, axial e integração. A codificação aberta é o momento em que os dados são conceituados e reunidos, conforme semelhanças, para a identificação das propriedades e das dimensões de cada conceito. Já a análise axial consiste em reagrupar os dados separados na codificação aberta, com o intuito de possibilitar o surgimento de categorias. Por fim, a etapa de integração, em que os conceitos das categorias e subcategorias são unificados, com a finalidade de construir a teoria2020. Lacerda MR, Santos JLG. Teoria fundamentada nos dados: bases teóricas e metodológicas. Porto Alegre: Moriá; 2019..

Os resultados foram organizados pelos seguintes componentes do modelo paradigmático: condições, ações-interações e consequências. As condições são as razões dadas pelos informantes para o acontecimento de determinadas situações, bem como explicações sobre os motivos pelos quais respondem de determinada maneira a uma ação. As ações-interações são as respostas e os movimentos expressos pelos participantes, com o objetivo de solucionar determinada situação. As consequências se referem aos resultados reais ou previstos, que são encontrados a partir das condições e ações-interações, sendo, desse modo, as consequências, o que emerge como resultado do que foi motivado. Assim, a inter-relação entre os componentes de análise evidencia o fenômeno2020. Lacerda MR, Santos JLG. Teoria fundamentada nos dados: bases teóricas e metodológicas. Porto Alegre: Moriá; 2019..

Entre as etapas para o desenvolvimento de uma TFD, a validação do modelo teórico é pertinente para avaliar a relevância, a representatividade e a aplicabilidade do estudo, na qual busca-se ampliar a visão do fenômeno e da pesquisa2323. Adamy EK, Zocche DAA, Vendruscolo C, Santos JLG, Almeida MA. Validation in grounded theory: conversation circles as a methodological strategy. Rev Bras Enferm. 2018;71(6):3121-6. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0488
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. Deste modo, realizou-se duas rodas de conversas dialógicas e dinâmicas, com três pesquisadores doutores, selecionados por conveniência, com expertise no objeto de pesquisa (n=01) e no referencial teórico-metodológico (n=02). Os encontros foram agendados e, posteriormente, realizados em sala virtual (Google Meet), gravados, mediante consentimento. Na primeira roda, apresentou-se categorias, diagramas e o modelo teórico. Na segunda, discutiu-se o modelo teórico após revisões. As rodas foram mediadas pela autora principal, com perguntas abertas, permitindo intervenções livres na discussão da abstração e generalização do fenômeno. Ressalta-se que os participantes da roda de conversa não forneceram entrevistas durante a coleta de dados.

O estudo foi desenvolvido respeitando os preceitos éticos da Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição responsável, conforme o parecer nº 2.574.139 e CAAE 83235117.2.0000.5537. Ressalta-se que, para preservar o anonimato dos participantes, adotou-se a letra "E" para as mães, "P" para os profissionais de saúde e "F" para se referir à família; seguida do número arábico correspondente à ordem de realização das entrevistas (E1, E2; P1, P2; F1...). Vale salientar que todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

RESULTADOS

Em relação as características sociodemográficas dos participantes, observou-se que a idade materna variou de 18 a 35 anos. Predominaram as mães com idade na faixa etária de 24 a 29 anos (46,15%), com escolaridade até o ensino médio completo (36,84%), solteiras (54,84%) e que informaram experienciar a amamentação do filho pela primeira vez (47,36%). Algumas trabalhavam em casa (30,76%) e as demais (69,23%) exerciam ocupações diversas, como, consultora de vendas, professora e frentista de posto de combustível. A maior parte das mães eram de famílias com poder aquisitivo de até um salário mínimo (61,53%).

Quanto à caracterização das crianças, especificamente, acerca da idade que ocorreu o desmame precoce, evidenciou-se prevalência na faixa etária entre dois a três meses de vida (69,23%), havendo, inclusive, uma mãe que realizou o desmame precoce logo após a alta hospitalar; e as demais (23,07%), aos quatro meses de idade. No que diz respeito à idade gestacional, a maioria das crianças nasceram entre 38 a 40 semanas (84,61%); e outras duas com prematuridade, entre 36-37 semanas (15,38%).

Do processo de análise e integração sistemática dos dados, emergiu o fenômeno “A mulher vivenciando a culpa e a sobrecarga pelo desmame precoce”, sustentado por cinco categorias inter-relacionadas sistematicamente, são elas: “Revelando os limitadores para amamentação” (condições); “Tentando equilibrar a maternidade com o trabalho durante a amamentação”; “Recebendo suporte social insuficiente para manter a amamentação exclusiva” (ações/interações); “Introduzindo a fórmula infantil e a alimentação complementar antes do seis meses de idade”; “Culpando-se pelo desmame precoce” (consequências). O modelo teórico está representado na Figura 1.

Figura 1
Modelo teórico explicativo do fenômeno. Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, 2023

Condições

A categoria “Revelando os limitadores para a amamentação” é sustentada por três subcategorias, a saber: “Acreditando que o leite materno é fraco e o filho chora com fome”; "Se sentindo sobrecarregada no cuidado solitário ao filho” e "Considerando insuficiente o tempo da licença-maternidade". Em relação à primeira subcategoria, apresentam-se algumas razões dadas pelos participantes, conforme os excertos a seguir.

No início, minha menina mamava e estava com a mesma fome, ela chorava muito e, quando colocava no peito, ela calava, mamava, mamava, mas quando passava pouco tempo, ela chorava de novo e eu colocava novamente, então, eu pensava que meu leite era fraco e não estava matando a fome dela [...]. (E12)

[...] a velha história de que o leite materno não alimenta, suficientemente, a criança; é uma espécie de tabu de que as pessoas não conseguem se desvencilhar e desconstruir; e como também a gente não consegue fazer essa intervenção no ambiente familiar, vai passando de geração em geração, porque, por mais que você converse com a paciente que está tendo o primeiro filho, quando ela chega em casa, ela vai ter a vivência [...]. (P1)

Na segunda subcategoria, “Se sentindo sobrecarregada no cuidado solitário ao filho”, percebe-se a sobrecarga desencadeada pelo aumento de demandas relacionadas à maternidade solo, dificultando a amamentação.

Eu queria dar só o peito, mas acho que secou um pouco com essas preocupações, porque o pai dele nos abandonou. Eu percebi que o leite diminuiu, por mais que eu bebesse muita água, muito suco, eu não aguentei a sobrecarga sozinha [...]. (E9)

Não ter ninguém para estar lhe auxiliando, um companheiro para estar ajudando no meio da noite, trocando as tarefas com você, então, sobrecarrega a mãe. Ter preocupação dificulta e faz com que a mãe não esteja pensando somente em amamentar [...] qualquer tipo de problema que tenha no pós-parto, de preocupação ou estresse, sobrecarrega a mente e o corpo da mulher, acaba acumulando tudo e tem mulheres que acham um meio de tirar o “peso” que é amamentar exclusivamente e interrompem. (E8)

Na subcategoria “Considerando insuficiente o tempo da licença-maternidade”,os participantes apresentaram o tempo da licença-maternidade, menor que seis meses, como um dos motivos para o desmame precoce.

[...] é muito difícil, até pela questão da legislação do trabalho, se for público, são seis meses; se for privado, são quatro meses e acho isso sem conexão uma coisa com a outra. O bebê com até seis meses, é primordial que ele receba o aleitamento materno, é indicado, é cobrado, mas, infelizmente, a mãe que trabalha não tem como fazer isso por essa questão [...]. (E13)

[...] acredito também que a licença-maternidade automática teria uma grande chance de melhorar os índices da amamentação; se a gestante já soubesse que ia ficar os 180 dias em casa, ao invés dos 120, porque quatro meses parece ser uma coisa tão rápida, porque já que eu vou ter que dar, vou dar mesmo, eu acho que ajudaria bastante nessa condição [...]. (P2)

Ações-interações

A categoria “Tentando equilibrara maternidade com o trabalho durante a amamentação” é sustentada pela subcategoria “Desejando conciliar a maternidade com o retorno ao trabalho”. Já a segunda categoria, “Recebendo suporte social insuficiente para manter a amamentação exclusiva”, é amparada por três subcategorias: “Sendo influenciada pela mãe e pelos amigos”; “Experimentando apoio insatisfatório dos profissionais de saúde”; e “Deixando de amamentar para suprir demandas da família”.

Dito isso, em relação à primeira categoria, na sua subcategoria, “Desejando conciliar a maternidade com o retorno ao trabalho”, as participantes evidenciaram a dificuldade de a mulher contemporânea conciliar vários papéis na sociedade.

Eu desejei amamentar de forma exclusiva, mas não tinha como eu amamentar até seis meses. Eu não tinha como fazer isso por conta do meu trabalho. Meu plano era esse, mas não deu certo, eu não consegui conciliar os dois [...]. (E2)

Quando eu voltei para o trabalho, foi mais dolorido, não só mentalmente, mas também fisicamente. Meu seio inchava muito, ficava muito cheio e eu não tinha como vir para casa, ficava preocupada, porque, em relação à gripe ou qualquer outra virose que ele pudesse pegar, o melhor remédio era o meu leite e eu tinha muito leite, mas não podia dar porque eu estava trabalhando [...] até se for para um berçário, lá não é dado o leite materno, se você levar de casa eles não dão, até pela questão da higiene, por ter mais crianças e pessoas no ambiente; e, então, você, com quatro meses, tem que introduzir a fórmula, a não ser que você não precise trabalhar. Eu tentei, mas não consegui conciliar tudo [...]. (E13)

Em relação à segunda categoria, a subcategoria “Sendo influenciada pela mãe e pelos amigos” revelou o apoio insuficiente da rede de apoio social como um dos fatores fundamentais para o desmame precoce.

[...] minha mãe não acha importante o aleitamento materno exclusivo, ela não quer nem que eu amamente porque eu fico muito magra. Por ela, eu só dava fórmula (...) para ela, não é importante, não é tão importante, talvez pelo desconhecimento sobre o assunto. É fraqueza da pessoa, mas acabamos sendo influenciadas para dar o complemento, de tantos amigos falarem [...]. (E5)

Uma vez minha tia veio aqui e disse: “você está vendo que eu não ficaria com um filho meu no peito tanto tempo, você com um monte de coisa para fazer e dando de mamar, dê logo uma mamadeira a essa menina” [...]. (E7)

Na segunda subcategoria “Experimentando apoio insatisfatório dos profissionais de saúde”, os participantes receberam estímulo à introdução alimentar de forma precoce, bem como o uso de fórmulas infantis, anteriormente ao período preconizado, como mostram os relatos:

[...] no mês passado, eu fui para o pediatra, ele disse que já podia, com quatro meses, introduzir outros alimentos: maçã, suco de laranja, sucos sem doce. Passou uma dieta com cinco meses, o que ele podia comer com seis e sete meses, tudo isso, o pediatra já passou [...]. (E2)

No posto de saúde, não recebi informações claras da equipe, fiquei insegura. A princípio está sendo artificial mesmo, estou tentando inserir a mamadeira com o leite artificial mesmo. Eu fiquei muito triste quando tive que interromper a amamentação [...]. (E6)

Na subcategoria “Deixando de amamentar para suprir demandas da família", as mães relataram que não amamentaram, de forma exclusiva, pela necessidade, também, de suprir as necessidades do outro filho. Apesar do anseio em ter mais horas livres, as participantes desmamaram precocemente, pela dificuldade em conciliar a amamentação exclusiva com as demandas familiares.

Queria mais tempo, mais horas livres para ficar amamentando-o, mas, muitas vezes, eu interrompi; tirava do peito porque estava na hora de dar a medicação ou porque estava na hora da alimentação do meu outro filho. Por isso, eu tirava, para suprir a necessidade do outro filho [...]. (E1)

As vezes o tempo é curto.Além de cuidar dela, tem que cuidar dele também. Já seria mais trabalho, apesar de ter ajuda da minha mãe, mas, mesmo assim, às vezes eu fico só com ela, mas o outro filho chama, pede atenção, então acabo parando a amamentação [...]. (E6)

Consequências

Duas categorias emergiram nas entrevistas: “Introduzindo a fórmula infantil e alimentação complementar antes de seis meses de idade” e “Culpando-se pelo desmame precoce”. A primeira é apoiada pelas subcategorias “Decidindo introduzir a fórmula infantil, devido à praticidade no preparo” e “Considerando a fórmula infantil mais segura”. Esse componente representa os desfechos e as repercussões reais das ações e interações relacionadas ao fenômeno, sustentado por cinco subcategorias.

Em relação à primeira categoria, na subcategoria “Decidindo ofertar a fórmula infantil pela praticidade no preparo”, os participantes desvendaram que houve a introdução da complementação alimentar de forma precoce, apoiada pela praticidade e comodidade do leite artificial, fatores que podem estar relacionados aos diversos papéis e às funções que a mulher assume em tempos hodiernos.

[...] O leite de pozinho, ele já tem a medida, já tem tudo prontinho; você usa só uma água morna e dá aquela quantidade. Até hoje, ainda, tenho medo, mas digamos que é bem mais prático para deixar com uma outra pessoa cuidar (...) O pozinho já se torna bem mais prático, mais fácil de fazer, porque misturar água com o pó e balançar todo mundo sabe, digamos que seja essa a praticidade (...) eu cheguei da maternidade e mandei comprar o leite, li as instruções que vinha na lata e dei por livre e espontânea vontade [...]. (E7)

[...] por mais que nós enfermeiros passemos as informações sobre a importância da amamentação, as mães interrompem; é mais por uma questão de comodidade que eu percebo e de tempo também, mas eu acho que a maioria é mais pela questão do tempo e é algo que vai ficar atrapalhando, então, elas acabam mesmo introduzindo outro leite; pouquíssimas continuam. Então, por questão de comodidade, elas vão deixar já o leite pronto para quem for cuidar da criança, é mais fácil já preparar o leite do que ela estar desmamando ou parando para amamentar [...]. (P3)

Quanto à segunda subcategoria, “Considerando a fórmula infantil mais segura”, as mulheres expressaram medo de o leite materno ordenhado não ser manejado da forma correta, ocasionando contaminação e, por consequência, transmissão de doenças ao(à) filho(a).

[...] não pensei em retirar meu próprio leite porque me preocupei com a higiene, eu tinha medo da higiene não ser suficiente e contaminar o leite, porque eu ia tirar, colocar na geladeira e eu tinha medo, tinha muita vontade, mas tinha medo de ele adquirir alguma doença [...]. (E13)

Vou introduzir o leite artificial, apesar de eu ter muito leite, mas eu nem sei como tirar e nem como armazenar [...]. (E16)

A categoria “Culpando-se pelo desmame precoce” está sustentada pelas subcategorias: “Sentindo-se culpada pela introdução da fórmula infantil”, “Experienciando o medo de comprometer o crescimento e desenvolvimento da criança” e “Tendo consciência dos prejuízos causados pelo desmame precoce”. Assim, em todas as subcategorias, abordaram-se experiências emocionais negativas pela não concretização da amamentação exclusiva.

[...] me dá um peso na consciência porque, às vezes, minha mãe precisa dar o complemento (...) eu me senti triste, culpada, com peso na consciência. Eu chego até a demorar a dormir pensando, porque eu sei da importância do aleitamento materno exclusivo até os seis meses, é uma questão de saúde, eu fico preocupada, porque eu fiz com as outras duas filhas exclusivamente e com ela, não, acho uma injustiça [...]. (E5)

Senti tristeza, eu acho que não tem pior; não teve outro sentimento quando deixei de amamentar exclusivamente, eu fiquei triste, por que eu não conseguia, não tinha mais leite de forma alguma [...]. (E2)

Na subcategoria “Sentindo medo de comprometer o crescimento e desenvolvimento e crescimento da criança”, os participantes referiram-se ao medo de prejudicar a saúde infantil.

De início, eu fiquei bem preocupado, quando ela precisou interromper; eu sei da importância do aleitamento materno até os seis meses de vida, principalmente para o desenvolvimento mental. Eu fiquei com medo, medo de desnutrição, porque o meu maior medo era que ele não evoluísse no peso e tamanho (...) era a mesma preocupação dos avós sobre o desenvolvimento e a saúde da criança [...]. (F3)

[...] minha mãe se sentiu muito fragilizada e pressionada, porque, por um lado eu estava na UTI, e por outro, ela tinha uma responsabilidade muito grande, porque ela estava cuidando de um recém-nascido, que estava totalmente precisando dela e começar uma alimentação que ele nunca tinha provado. Quando ela veio com a recomendação dele tomar a fórmula em casa, ela não sabia se ele iria aceitar, então ela passou esse período muito fragilizada, pressionada, se sentindo muito responsável e com medo de ele não se desenvolver [...]. (E13)

Quanto à subcategoria “Tendo consciência dos prejuízos causados pelo desmame precoce”, a partir dela, ficou evidente que a amamentação exclusiva foi comprometida devido às mães precisarem retornar às atividades laborais.

[...] Você imagine sair de casa às seis da manhã e só voltar às dez horas da noite e, de repente, ter que parar a amamentação, porque eu passava umas 10 horas fora, acompanhando paciente, trabalhando fora; então, deixei de amamentar (...) Quando cheguei em casa, dei o complemento na mamadeira, porque aqui em casa eu sei e tenho consciência de que isso, de certa forma, é prejudicial, mas eu nasci, digamos que seja uma cultura minha e das mulheres da família trabalhar e os filhos serem criados dessa forma, assim tendo outros cuidados, usando mamadeira e chupeta (...) eu preciso evoluir para ter um emprego e dar o sustento a eles [...]. (E8)

É muito difícil você se ver obrigada a trabalhar, se ver obrigada a deixar o seu filho com outra pessoa e você imaginando que o alimento dele está prontinho ali com você, mas você não pode estar toda hora amamentando. Então você, com quatro meses, tem que introduzir a fórmula, mesmo até sabendo o quanto é importante. Mas, a não ser que você não precise trabalhar fora de casa [...]. (E12)

DISCUSSÃO

Em relação às condições, os resultados evidenciaram que o desmame precoce está relacionado às crenças culturais, como a associação do choro da criança à figura errônea disseminada socialmente do leite materno como fraco ou insuficiente. Acredita-se que esse cenário seja reflexo de uma sociedade diversificada culturalmente, do desconhecimento materno e da rede de apoio sobre a composição do leite materno. Ao encontro desses achados, estudo apresenta que as declarações de mães para o desmame nos primeiros 15 a 30 dias giraram em torno da introdução de outros líquidos ou alimentos, que está, sobretudo, relacionada a causas de natureza cultural e educacional, como a crença de que o leite é insuficiente2424. Lima APE, Castral TC, Leal LP, Javorski M, Sette GCS, Scochi CGS, Vasconcelos MGL. Aleitamento materno exclusivo de prematuros e motivos para sua interrupção no primeiro mês pós-alta hospitalar. Rev Gaúcha Enferm. 2019;40:e20180406. doi: https://doi.org/10.1590/1983- 1447.2019.20180406
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A análise dos relatos do estudo em apreço, revelou o mito do leite fraco, o choro excessivo, a prematuridade, a falta de experiência, as experiências negativas maternas, a ausência de antecedentes familiares de amamentação e a carência de apoio e suporte culminaram no desmame precoce. Além disso, uma sobrecarga significativa imposta pela maternidade, uma vez que a maioria das mulheres desempenha, de forma solitária, o cuidado dos filhos e, dessa forma, desdobramentos psíquicos e físicos são revelados.

Infere-se a necessidade de um olhar sensível e atento às necessidades maternas relacionadas à sobrecarga materna. É preciso atentar-se à identificação, para que sejam realizadas intervenções céleres no contexto da assistência materno-infantil, especialmente, do enfermeiro, para que possam ser promovidos o cuidado integral à díade mãe e filho, e a saúde mental materna.

O retorno ao trabalho se tornou a dificuldade encontrada para a manutenção e a exclusividade da amamentação2525. Wagner LPB, Mazza VA, Souza SRRK, Chiesa A, Lacerda MR, Soares L. Fortalecedores e fragilizadores da amamentação na ótica da nutriz e de sua família. Rev Esc Enferm USP. 2020;54:e03563. doi: https://doi.org/10.1590/S1980-220X2018034303564
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. De forma ampla, aspectos sociais e emocionais da vida da mulher-mãe-trabalhadora que amamenta podem acometer a criança ou a mãe na iminência do término da licença e na volta ao trabalho. Esses aspectos não são abordados nos materiais oficiais de promoção ao AM, ocultando dificuldades em manter essa prática após a retomada da rotina profissional materna, silenciando, dessa forma, a problemática do desmame e desconsiderando aspectos (inter) subjetivos relacionados a ela1818. Kalil IR, Aguiar AC. Aquilo que a amamentação retira e o desmame restaura: relatos maternos sobre tensionamentos e materiais de comunicação e informação em saúde. RECIIS. 2021;15(3):597-613. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v15i3.2328
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Sobre a licença-maternidade brasileira, o percurso histórico de construção e elaboração da legislação configura-se como um conjunto de características que favorecem a existência de iniquidades entre o público e o privado, são elas: a diferenciação do tipo de inserção e do vínculo no mercado de trabalho; a condição de contribuição à previdência social; a distinção por sexo; e a ampliação apenas facultativa do período de licença no setor formal privado. Assim, estar desempregado e não ter recursos para contribuir com a previdência por conta própria resultam na desproteção dessas mulheres2626. Sorj B, Fraga AB. Licenças maternidade e paternidade no Brasil: direitos e desigualdades sociais. Rev Bras Estud Popul. 2022;39:1-19. doi: https://doi.org/10.20947/S0102-3098a0193
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Diante do exposto, destaca-se a importância do acesso às políticas de licença-maternidade de forma equânime; que sejam assegurados direitos iguais às mulheres trabalhadoras, seja no âmbito público, seja no privado.

Acerca dessa problemática, um estudo mostra a relevância da ampliação da licença-maternidade remunerada de 120 para 180 dias para as trabalhadoras formais sem distinção; além de políticas públicas que subsidiem as trabalhadoras informais, de modo a proporcionar condições favoráveis à amamentação por mais de seis meses2727. Fernandes RC, Höfelmann DA. Intention to breastfeed among pregnant women: association with work, smoking, and previous breastfeeding experience. Ciênc Saúde Coletiva. 2020;25(3):1061-72. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020253.27922017
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. Esses achados reafirmam a necessidade de despertar as discussões concernentes à ampliação da licença-maternidade feminina para 180 dias, independentemente do vínculo de trabalho, devendo haverá atenção sensível de profissionais de saúde, sociedade civil e setores estatais, na busca da transformação da licença-maternidade como direito estendido a todas as mulheres trabalhadoras.

Infere-se que a experiência da maternidade proporciona transformações na vida da mulher e no contexto familiar. Isso acontece porque a maternidade demanda uma adequação da rotina às necessidades da criança, bem como o fortalecimento da rede de apoio para lidar com essas novas vivências permeadas de singularidades.

Salienta-se, neste estudo, o suporte insuficiente dos profissionais de saúde em relação ao incentivo ao AME. Esse apontamento converge com outra pesquisa, que substancia a necessidade de intervenções que maximizem o apoio social dos profissionais de saúde, familiares e grupos no curso do pré-natal, visto que isso contribuiu de modo exponencial para a alta eficácia da amamentação exclusiva2828. Isiguzo C, Mendez DD, Demirci JR, Youk A, Mendez G, Davis EM, et al. Stress, social support, and racial differences: dominant drivers of exclusive breastfeeding. Matern Child Nutr. 2023;19(2):e13459. doi: https://doi.org/10.1111/mcn.13459
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. Dessa forma, houve convergência com o estudo quase experimental realizado na Arábia Saudita, cujo objetivo foi analisar os efeitos do aconselhamento, sendo apontados a educação e o apoio à amamentação no pós-parto como fatores de impacto positivo na duração da lactação exclusiva22. AlQurashi A, Wani T, Alateeq N, Heena H. Effect of counseling service on breastfeeding practice among saudi mothers. Healthcare. 2023;11(6):878. doi: https://doi.org/10.3390/healthcare11060878
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O incentivo e o apoio social e técnico à amamentação entre os profissionais de saúde foi considerado variável pelas participantes do estudo, ao longo da assistência gravídico-puerperal, especialmente, após a alta hospitalar. Isso leva, por conseguinte, à prevalência da ocorrência dessa prática exclusiva ser distante das recomendações. Desse modo, a carência da orientação profissional sobre AM após a alta hospitalar, registrada neste estudo, não deveria estar ocorrendo. Ressalta-se que é, nesse período, que ocorre a adaptação da mãe e do filho e a maioria das intercorrências, sendo o apoio e o suporte social qualificado indispensável nesse processo2929. Bauer DFV, Ferrari RAP, Cardelli AAM, Higarashi IH. Orientação profissional e aleitamento materno exclusivo: um estudo de coorte. Cogitare Enferm. 2019;24. doi: http://doi.org/10.5380/ce.v24i0.56532
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Referente às consequências, a fórmula infantil se intensificou como alternativa de alimentação. Fundada na praticidade de preparo e na representação da vida moderna da mulher independente, que pode cuidar do lar, trabalhar fora e manter a nutrição dos filhos, a fórmula infantil vem transformando o aleitamento artificial como prática cultural3030. Gil CA. Os anúncios de leite artificial no Rio de Janeiro da Primeira república - maternidade e alimentação infantil em debate. Rev Ingesta. 2019;1(2):236-7. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2596-3147.v1i2p236-237
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. Essa realidade pode estar relacionada, especialmente, à carência da educação em saúde para o fortalecimento da rede de apoio, e aos múltiplos papéis atribuídos à mulher/nutriz. O resultado disso foi identificado por investigadores, que evidenciaram a introdução de fórmula infantil ou de outros leites artificiais como responsável por aumentar o risco de diminuição do tempo de aleitamento materno em 4,7 vezes3131. Mendes SC, Lobo IKV, Sousa SQ, Viana RPT. Factors associated with a shorter duration of breastfeeding. Ciênc Saúde Coletiva. 2019;24(5):1821-9. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018245.13772017
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Associa-se a isso também o uso de alimentação artificial e de mamadeiras. Um estudo transversal realizado na região do Sul da Ásia, que objetivou analisar os fatores que influenciam a duração da amamentação exclusiva, evidenciou que as condições concernentes à saúde infantil são preocupantes a longo prazo, as quais incluem a desnutrição, o comprometimento do crescimento e desenvolvimento, a pneumonia, a obesidade, a diabetes e o aumento da pressão arterial1515. Arif S, Khan H, Aslam M, Farooq M. Factors influencing exclusive breastfeeding duration in Pakistan: a population-based cross-sectional study. BMC Public Health. 2021;21(1):1998. doi: https://doi.org/10.1186/s12889-021-12075-y
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Outro estudo desenvolvido em uma maternidade de referência da Região Sul do Brasil aponta maior possibilidade de desmame precoce no período de até 45 dias após o parto, quando a avó materna é a principal rede de apoio nos cuidados com a criança2525. Wagner LPB, Mazza VA, Souza SRRK, Chiesa A, Lacerda MR, Soares L. Fortalecedores e fragilizadores da amamentação na ótica da nutriz e de sua família. Rev Esc Enferm USP. 2020;54:e03563. doi: https://doi.org/10.1590/S1980-220X2018034303564
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Ainda nesse contexto de influência da rede de apoio, nesta investigação, os resultados ressaltaram a influência dos profissionais da saúde, especialmente, de pediatras e enfermeiros. Esse apoio profissional à mulher, durante o ciclo gravídico-puerperal, é de suma importância, sendo considerado determinante para a adesão à amamentação exclusiva. Além deles, a família exerce papel decisivo para o (in) sucesso dessa prática.

Diante disso, destaca-se a relevância de se buscar o engajamento de familiares na amamentação, com campanhas para a informação. Medidas como essa, potencialmente, auxiliariam para que as avós não superestimassem as fórmulas infantis e reconhecessem a magnitude de amamentação exclusiva.

Nessa conjuntura, surge a reflexão sobre o sentimento de culpa materna experimentada pela consciência moral, influenciada por fatores externos, relativos à internalização de expectativas de condutas e comportamentos sociais. Essa culpa é permeada pela sensação de prática obrigatória, pois implica a amamentação como a demonstração do amor materno ao filho, e, assim, do cumprimento com o dever sagrado de “ser mãe”. A culpa revela que esse sentimento vem de fora para dentro; é o julgamento de outros sobre si, é julgar a própria ação mediante a reação dos outros3232. Giordani RCF, Piccoli D, Bezerra I, Almeida CCB. Maternidade e amamentação: identidade, corpo e gênero. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(8):2731-9. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018238.14612016
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. A culpa também tem sido associada à fórmula infantil, percebida como falha moral3333. Jackson L, Pascalis L, Harrold J, Fallon V. Guilt, shame, and postpartum infant feeding outcomes: A systematic review. Matern Child Nutr. 2021;17(3):e13141. doi: https://doi.org/10.1111/mcn.13141
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A partir dos relatos, evidencia-se o sentimento de culpa materna, por não conseguir cumprir com as recomendações dos órgãos de saúde. Esses achados sinalizam a relevância de os profissionais proporem ações de intervenção e prevenção voltadas para os aspectos emocionais experimentados pela figura materna, sobretudo, nos espaços familiares, que objetivem dirimir o desmame precoce.

Exercer papéis de mulher e nutriz não são atribuições sociais fixas que as mulheres se apropriam de forma natural e desenvolvem harmoniosamente; são desafios e demandas construídas social e individualmente, que envolvem ressignificação, conflitos e redefinição da identidade social materna3232. Giordani RCF, Piccoli D, Bezerra I, Almeida CCB. Maternidade e amamentação: identidade, corpo e gênero. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(8):2731-9. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018238.14612016
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. Portanto, a prática da amamentação representa um processo intersubjetivo e complexo, com desdobramentos psíquicos e sociais para os envolvidos; fatores, muitas vezes, apagados ou ofuscados1818. Kalil IR, Aguiar AC. Aquilo que a amamentação retira e o desmame restaura: relatos maternos sobre tensionamentos e materiais de comunicação e informação em saúde. RECIIS. 2021;15(3):597-613. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v15i3.2328
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A partir dos constructos teóricos apresentados, a teoria emergente poderá contribuir para mudanças na práxis dos profissionais de saúde inseridos no cuidado materno-infantil, no contexto do desmame precoce. A complexidade das relações entre os fatores que contribuem para o desmame precoce, demonstrada no modelo teórico, poderá fomentar ações de gestores e profissionais de saúde orientadas para a defesa da ampliação da licença-maternidade e para o enfrentamento em relação às disparidades e iniquidades de gênero, à atuação profissional com conflitos de interesse ao marketing abusivo para o uso de fórmula infantis.

A carência da rede de apoio, a insuficiência do tempo da licença-maternidade e o sentimento de culpa representaram experiências desafiadoras às mães, visto que elas precisaram equilibrar diversas atribuições, além da maternidade e da introdução de alimentação complementar na dieta do(a) filho(a), antes dos seis meses de idade. Portanto, urge a necessidade do olhar sensível e do suporte emocional materno como formas de facilitar a minimização do sentimento de culpa e de medo pela não concretização da amamentação exclusiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que o modelo teórico emergente revelou que o desmame precoce está relacionado a múltiplos fatores, de forma particular e complexa para a díade mãe-filho. Por sua vez, a amamentação transcende a fisiologia, influenciado pela história de vida da mulher/nutriz, pelos significados construídos individualmente e pela interação social, por meio da qual se sobressaem crenças e mitos transmitidos por gerações anteriores, marcados pela diversidade cultural na sociedade.

A compreensão das vivências de mães diante do desmame precoce é essencial para repensar a práxis assistencial e o delineamento de intervenções, especialmente culturais, com vistas à promoção da saúde no contexto em que o desmame está presente. Ressalta-se a necessidade do engajamento de profissionais de saúde, no que se refere à utilização de programas de educação em saúde no cuidado materno e infantil, considerando a complexidade do processo de amamentação, de modo a auxiliar na qualificação do cuidado da saúde da mulher; na proteção da criança, de forma integral e sensível; e, sobretudo, no fortalecimento da rede de apoio, para que a mãe se sinta acolhida no novo papel a ser desempenhado.

Espera-se que este estudo possa contribuir para o avanço da ciência da Enfermagem e para a prática de profissionais de saúde, ao despertá-los para compreensão do desmame precoce como fenômeno dinâmico e singular, marcado pela diversidade das experiências e pelas interações humanas. Essa expectativa se deve porque este estudo parte de dados investigados, indo além de estudos descritivos, especialmente, pela escassez na literatura sobre a teorização e estruturação do desmame precoce no Brasil e no mundo.

Identifica-se, como principais limitações deste estudo, não ter estabelecido um relacionamento com os participantes antes do início da pesquisa e, assim, não ter relatado características do entrevistador; e a validação do modelo teórico ter ocorrido apenas com pesquisadores, sem seleção de participantes do estudo. No entanto, considera-se este estudo inovador, uma vez que apresenta a construção de um modelo teórico representativo do fenômeno investigado para guiar a prática dos profissionais de saúde, fornecer subsídios para formulação de políticas públicas intersetoriais, como ampliação da licença-maternidade brasileira para seis meses, e fomentar discussões entre gestores e profissionais de saúde.

Agradecimentos:

Agradecemos a Iago Matheus Bezerra Pedrosa pela contribuição na revisão e desenho do modelo teórico. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela bolsa de Mestrado.

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  • Contribuição de autoria:

    Análise formal: Tássia Regine de Morais Alves, Glauber Weder dos Santos Silva, Jovanka Bittencourt Leite de Carvalho, José Luís Guedes dos Santos. Conceituação: Tássia Regine de Morais Alves, Glauber Weder dos Santos Silva, Jovanka Bittencourt Leite de Carvalho. Escrita - rascunho original: Tássia Regine de Morais Alves. Escrita - revisão e edição: Tássia Regine de Morais Alves, Glauber Weder dos Santos Silva, José Luis Guedes dos Santos. Metodologia: Tássia Regine de Morais Alves, Glauber Weder dos Santos Silva, Jovanka Bittencourt Leite de Carvalho, José Luís Guedes dos Santos. Software: Tássia Regine de Morais Alves. Supervisão: Jovanka Bittencourt Leite de Carvalho, José Luís Guedes dos Santos. Validação: Tássia Regine de Morais Alves, Glauber Weder dos Santos Silva, Thais Rosental Gabriel Lopes, José Luís Guedes dos Santos. Visualização: Tássia Regine de Morais Alves, Glauber Weder dos Santos Silva, Rayrla Cristina de Abreu Temoteo, Thais Rosental Gabriel Lopes, José Luis Guedes dos Santos.

Editado por

Editor associado:

Helena Becker Issi

Editor-chefe:

João Lucas Campos de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Out 2022
  • Aceito
    13 Jun 2023
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