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EDITORIAL

É com prazer que tomo o encargo de apresentar o presente número da Revista Ensaio. Como editor adjunto, gostaria, inicialmente, de agradecer a todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização de mais este número. Em especial, agradeço a dedicação e o zelo dos avaliadores na leitura dos originais.

Os editoriais dos dois números anteriores destacaram o papel dos periódicos científicos e a pesquisa em torno da formação de professores. Neste editorial, além de apresentar os artigos publicados, ressaltamos a importância de uma reflexão sobre o que ficou conhecido como abordagem Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente (CTSA).

Os estudos nessa perspectiva de ensino surgiram na década de 1970, fortemente apoiados por questões de interesses sociais e políticos iniciados durante a Segunda Grande Guerra. Trata-se de um modelo de ensino que, para além dos conteúdos específicos da ciência, valoriza as relações que a ciência mantém com a sociedade, com a tecnologia e com o ambiente natural. De modo geral, podemos dizer que o espírito que anima essa visão é a intuição básica de que a ciência não ocorre dentro de suas próprias fronteiras, isolada do mundo social.

Deve-se considerar, no entanto, que o movimento CTSA não sobreveio de forma homogênea e sem tensões. Durante suas quatro décadas de existência, diversas tendências se constituíram, e o movimento CTSA estabeleceu diversos objetivos e estratégias de ensino/aprendizagem, partindo de uma compreensão mais ampla de ensinar a ciência enquanto processo e produção humana e, portanto, não como um conjunto de verdades eternas a serem recitadas como um mantra.

Porém, ao mesmo tempo, o movimento CTSA acabou por engendrar limites e contradições internas, que têm sido base para novas formulações. Algumas críticas levantadas atualmente (veja-se PEDRETTI; NAZIR, 2011PEDRETTI, E.; NAZIR, J. Currents in STSE education: mapping a complex field, 40 years on. Science Education, 95: 601-626, 2011.) chegam a apontar para verdadeiras aporias dentro do movimento CTSA, uma vez que se reconhecem algumas consequências das estratégias educacionais do movimento CTSA em contradição com seus objetivos fundamentais. Dito de forma mais clara, segundo tais críticas, as abordagens CTSA acabaram ensinando justamente o que se queria evitar que fosse ensinado, ou seja: 1) ensinar a ciência como conhecimento objetivo e neutro; 2) ensinar a ciência e a tecnologia como desenvolvimento inexorável da humanidade; 3) romantizar ou estereotipar a história da ciência; 4) estabelecer uma concepção estreita de racionalidade, tratando assimetricamente o modo de raciocinar de outros povos; e 5) estabelecer visões universalistas de valores (sejam morais ou epistemológicos).

Diante dessas contradições, o desejo imediato é o de lançar fora qualquer referência ao movimento CTSA e procurar soluções para a educação científica que sejam menos problemáticas. Essa solução, porém, seria igualada à famosa anedota do sujeito que "deitou fora a água suja da banheira junto com o bebê". Portanto, nesse caso, a solução do problema não pode ser igualada à dissolução do movimento. Isso porque, dentro da comunidade de educadores, tornou-se amplamente aceito que a educação científica em ciências naturais não é somente sobre conteúdos e conceitos específicos. Mais do que isso, uma educação científica deveria enfatizar elementos sobre a ciência, sua natureza, seus métodos, bem como seus aspectos sociais, ideológicos e históricos (HOVARDAS; KORFIATIS, 2010HOVARDAS, T.; KORFIATIS, K. Towards a critical re-appraisal of ecology education: scheduling an educational intervention to revisit the 'balance of nature' metaphor. Science and Education. DOI 10.1007/s11191-010-9325-0. 2010.
https://doi.org/10.1007/s11191-010-9325-...
). Nesse sentido, as intenções do movimento CTSA continuam a ser exemplares, e suas conquistas durante esses mais de 40 anos não podem ser ignoradas.

Localizam-se, entretanto, movimentos de ressignificação teórica e metodológica dos estudos de educação em ciências inspirados na perspectiva CTSA. Uma dessas perspectivas consiste em localizar tensões e trabalhar a partir delas. Dentre as tensões identificadas, reconhecemos aquelas entre os polos da natureza ou da cultura, da ciência ou da tecnologia, do direito ou da economia, do compromisso ético ou do acabamento estético, do racionalismo ou do relativismo, entre tantas outras. Uma rota de superação das dificuldades estaria na recusa em se assumir um desses polos em detrimento do seu complementar e antagônico. Entender as relações entre CTSA equivale a, segundo essa abordagem, justamente recusar o esforço de separação entre esses polos.

Dito isso, apresentamos o presente número da Revista Ensaio.

O primeiro artigo, "As representações sociais dos licenciandos em ciências biológicas sobre o ser biólogo e o ser professor", analisa as representações sociais construídas no cotidiano da formação inicial dos licenciandos em Ciências e Biologia. O artigo conclui que a docência manifesta-se como construção arraigada na trajetória escolar e na área de conhecimento sem alterar-se significativamente durante a formação inicial.

O segundo artigo, "Intervenções no ambiente escolar utilizando a promoção da saúde como ferramenta para a melhoria do ensino", avalia o impacto de intervenções colaborativas no ambiente escolar. Segundo os autores, as intervenções colaborativas promovem mais mudanças cognitivas e motivacionais do que o desenvolvido na prática docente. Ainda segundo os autores, os professores têm dificuldades em modificar suas práticas docentes.

A seguir, o artigo "Recontextualização do currículo nacional para o ensino médio de física no discurso de professores" analisa enunciados produzidos por professores de física em uma atividade proposta durante um curso de extensão à distância. Segundo o artigo, a maior parte dos professores defende a proposta de currículo nacional, ainda que recontextualizado para atender à diversidade regional.

O artigo "Introdução à pesquisa com sequências didáticas na formação continuada online de professores de ciências" procura avaliar a inserção da pesquisa na prática docente e conclui que essa foi positivamente avaliada pelos professores, além de ter promovido um maior entendimento sobre pesquisa.

O artigo cinco, "Epistemologia de Nancy Cartwright: uma contribuição ao debate sobre a natureza da ciência atual", apresenta algumas ideias propostas por Nancy Cartwright sobre a natureza da ciência atual. Os autores objetivam manter em curso o debate epistemológico e instigar novas reflexões, especialmente aos professores de física.

O artigo seis, "Interações entre modos semióticos e a construção de significados em aulas de ensino superior", investiga como duas professoras do Ensino Superior mobilizam diferentes modos semióticos e promovem interações entre eles para a construção de significados em aulas de Química Orgânica. A investigação demonstra a importância do uso de diferentes modos semióticos, tais como fala, gestos, olhar, modelos bola/vareta e desenhos no quadro, para o ato de comunicação.

A seguir, o artigo "Esquema de argumento de Toulmin como instrumento de ensino: explorando possibilidades" analisa a potencialidade do ensino da estrutura de um "bom" argumento, baseado no esquema de argumento de Toulmin, como apoio ao desenvolvimento de habilidades argumentativas de alunos de graduação em Química. Segundo as autoras, os resultados indicam que esse tipo de intervenção didática oferece subsídios para o desenvolvimento de habilidades argumentativas.

O artigo oito, "Enem, temas estruturadores e conceitos unificadores no ensino de física", analisa as questões de Ciências da Natureza e suas Tecnologias das edições de 2009 a 2012 do Enem relacionadas à física. Segundo os autores, a contextualização está presente em aspectos do cotidiano e do par ciência-tecnologia, e a interdisciplinaridade e a contextualização são articuladas privilegiando a abordagem conceitual unificadora.

No artigo "Análise de questões de física do Enem pela taxonomia de Bloom revisada", os autores encontraram que, entre as dimensões do conhecimento, destacam-se o conhecimento conceitual, seguido pelo conhecimento procedural. Concluem ainda que, entre os processos cognitivos, destacam-se entender e aplicar, indicando que o exame nacional enfatiza domínios de complexidade intermediários nas dimensões analisadas.

O artigo dez, "O júri simulado como recurso didático para promover argumentações na formação de professores de física: O problema do 'gato'", analisa o uso de júris simulados como recurso didático para o estabelecimento de argumentações sobre temas controversos em salas de aula. As análises evidenciam como os júris simulados possibilitaram a produção de argumentos diversificados e o papel do professor como mediador da discussão.

Finalmente, o artigo onze, "Interações discursivas em aulas de química ao redor de atividades experimentais: uma análise sociológica", examina as interações em aulas de química de duas escolas de diferentes perfis sociais, de modo a compreender como professores e alunos interagem discursivamente em torno da definição de tarefas e atividades e como tais interações e intercâmbios contribuem para o êxito dos aprendizes na realização de seus trabalhos.

Belo Horizonte, 27 de novembro de 2014

Francisco Ângelo Coutinho

  • PEDRETTI, E.; NAZIR, J. Currents in STSE education: mapping a complex field, 40 years on. Science Education, 95: 601-626, 2011.
  • HOVARDAS, T.; KORFIATIS, K. Towards a critical re-appraisal of ecology education: scheduling an educational intervention to revisit the 'balance of nature' metaphor. Science and Education. DOI 10.1007/s11191-010-9325-0. 2010.
    » https://doi.org/10.1007/s11191-010-9325-0

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2014
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