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INTERAÇÕES ENTRE MODOS SEMIÓTICOS E A CONSTRUÇÃO DE SIGNIFICADOS EM AULAS DE ENSINO SUPERIOR

INTERACTIONS BETWEEN SEMIOTIC MODES AND THE MAKING OF MEANING IN LESSONS OF HIGH EDUCATION

Resumos

Nos últimos anos tem crescido o interesse em investigar a contribuição da linguagem na construção de significados em sala de aula. Neste trabalho investigamos como duas professoras do Ensino Superior mobilizam diferentes modos semióticos e promovem interações entre eles para a construção de significados em aulas de Química Orgânica. Gravamos um conjunto de aulas de duas professoras e selecionamos um episódio de cada uma para análise. Observamos que as professoras investigadas utilizam e articulam, idiossincraticamente, variados modos semióticos em suas interações com os estudantes. A análise demonstra a importância do uso de diferentes modos semióticos, tais como fala, gestos, olhar, modelos bola/vareta e desenhos no quadro, para o ato de comunicação. A articulação desses modos semióticos potencializa a construção de significados em sala de aula.

Modos semióticos; Multimodalidade; Gestos; Sala de aula; Ensino Superior.


The interest on investigating the contribution of language to the making of meaning in classroom has increased lately. The present paper aims to investigate how two professors mobilize different-semiotic modes and promote interactions among the modes for the making of meaning in classes of Organic Chemistry. We recorded a set of classes of both professors and we selected an episode of each one of the professors for analysis. We observed that both professors use and articulate several modes idiosyncratically in their interactions with students. The analysis demonstrates the importance of the use of different-semiotic modes for communication such as: speech, gestures, the gaze, ball/stick models and drawings on the board. In addition, it is notable that the articulation of semiotic modes enhances the making of meaning in the classroom.

Semiotic modes; Multimodality; Gestures; Classroom; High Education.


INTRODUÇÃO

Nos últimos anos tem crescido gradualmente o interesse em investigar como os significados são desenvolvidos por meio dos vários modos de comunicação usados em sala de aula. Diferentes estudos têm mostrado, a partir de vários pontos de vista, a importância de investigar o uso da linguagem na Educação em Ciências (LEMKE, 1990LEMKE, J. L. Talking Science: Language, Learning and Values. Norwood, New Jersey: Ablex Publishing Corporation, 1990.; HALLIDAY e MARTIN, 1993HALLIDAY, M. A. K.; MARTIN, J. R. Writing Science: Literacy and discursive power. Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1993.; OGBORN et al., 1996OGBORN, J., KRESS, G., MARTINS, I. e McGILLICUDDY, K. Explaining science in the classroom. Buckingham: Open University Press, 1996.; MORTIMER, 1998MORTIMER, E. F. Sobre chamas e cristais: A linguagem cotidiana, a linguagem científica e o ensino de ciências. In: CHASSOT, Á. I. e OLIVEIRA, R. J. (Eds.). Ciência, ética e cultura na educação. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1998, p. 99-118.; CANDELA, 1999CANDELA, A. Ciencia en la aula: los alumnos entre la argumentación y el consenso. Ciudad de Mexico: Paidos Educador, 1999.; MORTIMER e SCOTT, 2003MORTIMER, E. F. e SCOTT, P. H. Meaning making in secondary science classrooms. Maidenhead: Open University Press, 2003.). Esses estudos destacam as formas pelas quais a compreensão e a aprendizagem são desenvolvidas em contextos sociais, como a sala de aula, por meio do uso da linguagem. Julgamos importante incorporar estudos sobre multimodalidade (JEWITT, 2009JEWITT, C. The routledge handbook of multimodal analysis.London: Routledge, 2009.; KRESS, 2009KRESS, G. e VAN LEEUWEN, T. Reading Images: the grammar of visual design. London&New York: Routledge, 1996. e 2010KRESS, G. e VAN LEEUWEN, T. Reading Images: the grammar of visual design. London&New York: Routledge, 1996.; KRESS e VAN LEEUWEN, 1996KRESS, G. e VAN LEEUWEN, T. Reading Images: the grammar of visual design. London&New York: Routledge, 1996.; NORRIS, 2004NORRIS, S. Analyzing Multmodal Interaction: a methodological framebook. New York: Routledge, 2004.) para ampliar a ótica pela qual a sala de aula pode ser estudada. Nesse sentido, no presente artigo investigamos como duas professoras de química do Ensino Superior mobilizam diferentes modos semióticos e promovem interações entre eles no esforço de construir significados em sala de aula.

No Ensino de Ciências no Brasil há alguns trabalhos que incorporam a multimodalidade nas suas análises. Laburú e Silva (2011LABURÚ, C. E.; SILVA, O. H. M.Multimodos e múltiplas representações: fundamentos e perspectivas semióticas para a aprendizagem de conceitos científicos. Investigaçõesem Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 16, p. 7-33, 2011.) analisam a convergência entre os estudos vigotskianos e a multimodalidade. Por sua vez, Laburú, Zompero e Barros (2013)LABURÚ, C. E.; SILVA, O. H. M.Multimodos e múltiplas representações: fundamentos e perspectivas semióticas para a aprendizagem de conceitos científicos. Investigaçõesem Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 16, p. 7-33, 2011. tratam dos registros de representação e das dificuldades encontradas na conversão dos diferentes modos de representar os discursos científicos. Para esses autores, os problemas com as atividades de representação e conceituação podem ser equacionados a partir de estratégias multimodais que enfatizem a formação, o tratamento e a conversão das representações (DUVAL, 1995DUVAL, Raymond. Sémiosis et Pensée Humaine: Registres Sémiotiques et apprentissages intellectuels. Berna: Peter Lang, 1995.). Piccinini e Martins (2004PICCININI C.; MARTINS I. Comunicação multimodal na sala de aula de ciências: construindo sentidos com palavras e gestos. Ensaio: pesquisa em ensino de ciências. Belo Horizonte, v. 6, n. 1, p. 1-14, 2004.), em estudo realizado com estudantes da educação básica em aulas de física, afirmam que o uso de diferentes modos semióticos permitiu um fluxo homogêneo de comunicação e auxiliou os estudantes na elaboração conceitual. Padilha e Carvalho (2011PADILHA, J. N.; CARVALHO, A. M. P.Relações entre os gestos e as palavras utilizadas durante a argumentação dos alunos em uma aula de conhecimento Físico. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, São Paulo, v. 11, p. 25-40, 2011.), ao analisarem aulas da Educação Básica, perceberam que a falta das palavrasadequadas nas explicações dos conceitos físicos não impediu a comunicação entre os estudantes, uma vez que os estudantes integraram gestos e palavras

Apenas recentemente as salas de aula do Ensino Superior passaram a ser objeto de análise em pesquisas. Porém, o olhar tem sido mais generalista, enfatizando tanto as estratégias gerais usadas por professores bem-sucedidos juntamente com os estudantes (CUNHA, 2009CUNHA, M. I. O bom professor e sua prática. 21 ed. São Paulo: Papirus, 2009.; PIMENTEL, 1993PIMENTEL, M. G. O Professor em construção. Campinas, SP: Papirus, 1993.; CHAMLIAN, 2003CHAMLIAN, H. C. Docência na Universidade: professores inovadores na USP. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 118, 2003. p. 41-64.; FERENC, 2005FERENC, A. V. F. Como o professor universitário aprende a ensinar? Um estudo na perspectiva da socialização profissional. 2005. (314 f.) Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos/SP, 2005.; SILVA e SCHNETZLER, 2006; ZANCHET e CUNHA, 2007SOLOMONS, T.W.G.; FRYHLE, C. B. Química orgânica. 7a edição. Rio de Janeiro: LTC, 2001.; QUADROS, 2010QUADROS, A. L. Aulas no Ensino Superior: uma visão sobre professores de disciplinas científicas na licenciatura em Química da UFMG. (292 f.) Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010. 2010), quanto a organização do ensino (ANASTASIOU, 1999ANASTASIOU, L. G. C. Desafios da Construção curricular em visão integrativa: elementos para discussão. In: DALBEN, A. I. L. F. et. al. (Eds.). Ensino Superior:Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente. Belo Horizonte: Ed. Autêntica. 2010. p. 590-611. e 2010AZEVEDO, M. A. R. Os Saberes de Orientação dos Professores Formadores: Desafios para Ações Tutorais Emancipatórias. 2009. (174 f.). Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2009.; GRILLO, 2001GRILLO, M. O professor e a docência: o encontro com o aluno. In: ENRICONE, D. (Eds.). Ser professor. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. p. 73-89.; ENRICONE, 2007ENRICONE, D. A Universidade e a Aprendizagem da Docência. In: CUNHA, M. I. (Ed.) Reflexões e Práticas em Pedagogia Universitária.Campinas, SP: Papirus, 2007. p. 145-159.) ou mesmo a prática mais utilizada por professores universitários no desenvolvimento das aulas (FERENC e SARAIVA, 2010FERENC, A. V. F.; SARAIVA, A. C. L. C. Os Professores Universitários. Sua formação pedagógica e suas necessidades formativas. In: DALBEN, A. I. L. F. et. al. (Eds.). Ensino Superior:convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2010. p. 573-589.; MASSENA, 2010MASSENA, E. P. A História do currículo da Licenciatura em Química da UFRJ: tensões, contradições e desafios dos Formadores de Professores (1993-2005). (367 f.) Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. 2010; AZEVEDO, 2009AZEVEDO, M. A. R. Os Saberes de Orientação dos Professores Formadores: Desafios para Ações Tutorais Emancipatórias. 2009. (174 f.). Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2009.).

Nossas análises até o momento destacaram como o discurso verbal contribui para a construção de significados no Ensino Superior (QUADROS, 2010QUADROS, A. L. Aulas no Ensino Superior: uma visão sobre professores de disciplinas científicas na licenciatura em Química da UFMG. (292 f.) Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010. 2010; QUADROS e MORTIMER, 2014QUADROS, A. L e MORTIMER, E. F. Fatores que tornam o professor de Ensino Superior bem-sucedido: analisando um caso. Ciência & Educação, Bauru, v. 20, n. 1, p. 259-278, 2014.). Essas análises estão baseadas nas interações que ocorrem entre o professor e os estudantes, e entre os estudantes. No entanto, nesse nível de ensino, as interações verbais são raras, e análises baseadas apenas nesse aspecto pouco revelam sobre essas aulas. Acreditamos que uma análise mais específica, envolvendo o Ensino Superior e a multimodalidade, principalmente no uso simultâneo de diferentes modos semióticos, pode trazer contribuições significativas para a compreensão mais ampla do papel e da interação dos vários modos semióticos, de forma a contribuir para dar sentido ao que se ensina. Neste trabalho fazemos uma abordagem centrada mais na dimensão social da multimodalidade, em aulas de professoras do Ensino Superior.

1. MODOS DE RELAÇÃO ENTRE SIGNIFICANTE E SIGNIFICADO

Pierce (citado por CHANDLER, 2002CHANDLER, D. Semiotics: the basics. London: Routledge, 2002.) introduz o mundo real no sistema linguístico ao inserir o referente em um sistema triádico, e não mais diádico, entre significante (chamado por Pierce de representamen), significado (chamado por Pierce de interpretant) e o objeto, que é definido como alguma coisa para além do signo. O objeto, introduzido por Pierce, não é necessariamente uma coisa física no mundo. Ele pode incluir vários conceitos abstratos que ganham concretude ao serem tratados em sala de aula, a exemplo dos que estamos interessados neste artigo. O modelo pierciano explicitamente deixa um lugar para a materialidade e para a realidade para além do sistema do signo, o que não é uma característica do sistema de Saussure. Significação no sistema pierceano inclui tanto a referência quanto o sentido conceitual.

É com base na existência dessa tríade que Pierce oferece a tipologia de signos que faz referência aos modos de relação entre os veículos do signo (significante) e o que é significado. De acordo com essa tipologia, um signo pode possuir propriedades de um símbolo, de um ícone ou de um índice. A forma simbólica de relação entre significante e significado é aquela na qual o significante não se assemelha ao significado, mas é um modo arbitrário ou convencional. A linguagem em geral é um modo simbólico. A forma icônica é aquela na qual o significante é percebido como se assemelhando, sendo análogo ou imitando o significado, e essa semelhança pode ser percebida tanto pelo olhar quanto pelo som, pelo gosto e pelo cheiro. Exemplos de signos icônicos são um retrato, um diagrama e os gestos pantomímicos. A forma indicial, por sua vez, é aquela na qual o significante não é arbitrário mas diretamente ligado, de uma forma física ou causal, ao significado. Essa relação pode ser diretamente observada ou inferida. Exemplos de signos indiciais são as manifestações clínicas como a dor, apontadores como o dedo indicador ou uma caneta-laser. O importante na forma indicial é que o objeto de referência é necessariamente existente, pois o índice é verdadeiramente conectado ao seu objeto. Neste trabalho, no qual duas professoras usam vários modos semióticos para dar sentido ao que estão ensinando, esse modo de relação entre significante e significado terá uma importância especial. Isso acontece porque apenas a linguagem verbal, com sua carga simbólica, não será suficiente para compreender o que a professora fala, já que ela faz várias relações indiciais com os objetos do conhecimento apresentados aos estudantes nos diversos modos.

Uma característica importante desses modos de relação entre significante e significado é que eles não são mutuamente excludentes, pois um signo pode ser um símbolo, um ícone ou um índice ou qualquer combinação entre os três modos de relação. Além disso, enquanto o modo indicial reforça a contiguidade entre significante e objeto, o modo icônico reforça a semelhança (Jakobson, citado por CHANDLER, 2002CHANDLER, D. Semiotics: the basics. London: Routledge, 2002.). Passaremos agora a definir os modos semióticos que iremos usar em nossa análise.

2. OS MODOS SEMIÓTICOS E A COMUNICAÇÃO

A multimodalidade é um campo de pesquisa que parte do pressuposto de que os significados são produzidos, distribuídos, recebidos, interpretados e refeitos a partir da leitura de vários modos de representação e comunicação e não apenas por meio da linguagem falada ou escrita. Dessa forma, para compreender a comunicação, é necessário ir além da interpretação da linguagem e de seus significados, pois o que demanda compreensão é um conjunto demodosde representaçãoe de comunicação (JEWITT, 2009JEWITT, C. The routledge handbook of multimodal analysis.London: Routledge, 2009.; KRESS, 2009KRESS, G. e VAN LEEUWEN, T. Reading Images: the grammar of visual design. London&New York: Routledge, 1996.; KRESS & VAN LEEUWEN, 1996KRESS, G. e VAN LEEUWEN, T. Reading Images: the grammar of visual design. London&New York: Routledge, 1996.; NORRIS, 2004NORRIS, S. Analyzing Multmodal Interaction: a methodological framebook. New York: Routledge, 2004.). Em uma abordagem multimodal, os modos - e não as linguagens - são estudados com toda a sua materialidade. A fala, por exemplo, tem como seu meio material o som. Esse meio material é que deve ser estudado, pois é com a variação do som que se produz discursos com sentidos diferentes. Essa variação normalmente envolve aspectos prosódicos (frequência, duração e intensidade), que produzem a ênfase no discurso. Sabe-se que a alteração nos aspectos prosódicos produz discursos com significados distintos. Por exemplo, a forma como um professor pergunta pode significar que ele realmente pergunta, no sentido de querer saber a resposta, ou que sua pergunta é apenas retórica, no sentido de avaliar uma afirmação feita por um aluno. Assim, quando o professor repete a fala de um aluno, e diz "O gelo é mais LEVE que a pedra?", colocando a ênfase na palavra "leve", imediatamente os alunos sabem que é necessário trocar "leve" por "menos denso", no contexto de aulas sobre densidade.

De acordo com Kress, "modo é um recurso semiótico para fazer sentido que é socialmente moldado e culturalmente dado. Imagem, escrita, layout, som, música, gesto, fala, imagem em movimento, trilha sonora e objetos 3D são exemplos de modos usados na representação e na comunicação" (KRESS, 2010KRESS, G. Multimodality: a social semiotic approach to contemporary communication. New York: Routledge, 2010., p. 79). Porém, os modos não são universais e dependem, portanto, da compreensão compartilhada de suas características semióticas dentro de uma dada comunidade2ANASTASIOU, L. G. C. Desafios da Construção curricular em visão integrativa: elementos para discussão. In: DALBEN, A. I. L. F. et. al. (Eds.). Ensino Superior:Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente. Belo Horizonte: Ed. Autêntica. 2010. p. 590-611..

Os modos são recursos semióticos resultantes de um trabalho de uma comunidade ao longo da história, que parte de bases materiais para construir signos que comunicam, organizam e estruturam o pensamento. As noções de modo e de multimodalidade produzem um desafio para a noção de linguagem, pois diferentes modos apresentam diferentes potenciais para fazer sentido. Esses diferentes potenciais têm um efeito na escolha de qual modo utilizar em instâncias específicas de comunicação. Por exemplo, um professor pode escolher, além da voz e dos gestos, imagens projetadas, para fazer sentido em uma aula de Química Orgânica. Outro professor pode preferir usar o quadro de giz para nele desenhar imagens das estruturas das moléculas orgânicas. Qualquer que seja o modo escolhido, ele terá sempre um efeito no uso tanto da voz quanto dos gestos. Os significados de qualquer modo semiótico são sempre entrelaçados com os significados produzidos em conjunto com todos os outros modos que participam do evento comunicativo, ou seja, a interação entre os modos é parte da produção de sentidos (JEWITT, 2009JEWITT, C. The routledge handbook of multimodal analysis.London: Routledge, 2009.).

Na maioria dos modos podemos usar diferentes registros semióticos. Para Duval (1995DUVAL, Raymond. Sémiosis et Pensée Humaine: Registres Sémiotiques et apprentissages intellectuels. Berna: Peter Lang, 1995.), registro é um sistema de signos que permite realizar as funções de comunicação. Tomemos um exemplo muito comum nas aulas de Ensino Superior: a escrita no quadro de giz. Nesse modo podemos utilizar diferentes registros, como é o caso do desenho, das linguagens escritas, do diagrama, das fórmulas e das equações.

Os registros semióticos podem incluir diferentes formas de representação (DUVAL, 1995DUVAL, Raymond. Sémiosis et Pensée Humaine: Registres Sémiotiques et apprentissages intellectuels. Berna: Peter Lang, 1995.). Por exemplo, quando representamos um determinado fenômeno por meio de um gráfico, poderemos fazê-lo usando duas ou mais formas de representação: em barras ou em pizza, por exemplo. No entanto, há que se ressaltar que a troca de registro sempre implica na troca das formas de representação. Da mesma forma, se os modos são hierarquicamente superiores aos registros, a troca de modos implica na troca de registros.

Norris (2004NORRIS, S. Analyzing Multmodal Interaction: a methodological framebook. New York: Routledge, 2004.) identifica uma gama de modos que ela classifica de várias formas. A primeira delas diz respeito à natureza corpórea do modo. Nesse sentido, os modos podem ser incorporados quando são diretamente executados por um corpo humano. Exemplos desses modos incluem a fala, os gestos e o olhar. Modos desincorporados não são diretamente executados pelo corpo humano no momento da ação. Exemplos incluem a escrita, a música executada por um CD, a imagem filmada etc. Outra maneira de classificar os modos tem por base a forma como eles são percebidos. Baseado em Norris (2004NORRIS, S. Analyzing Multmodal Interaction: a methodological framebook. New York: Routledge, 2004.), os modos podem ser pensados como auditivo (fala, música, som, efeitos sonoros etc.); visual (olhar, impressão, imagem etc.); de ação (gesto, postura, movimento, expressão facial, contato e manipulação de objetos/modelos, ações mediadas com livros, projeção em tela etc.); e ambiental (proxêmica, layout etc.).

Neste trabalho focaremos nossas análises em: fala, gesto, desenho no quadro, projeção na tela, modelos moleculares (bola-vareta) e proxêmica. Desses, a fala, os gestos e a proxêmica já vêm sendo trabalhados e alguns resultados são encontrados na literatura, enquanto o desenho no quadro, projeção na tela e modelos moleculares ainda não têm uma caracterização precisa na literatura, talvez por serem usuais.

a) Gesto e fala

As pessoas, quando em interação, comumente informam umas para as outras suas intenções, interesses, sentimentos e ideias por meio de ações corporais visíveis. Dessa forma, a maneira como as pessoas organizam e orientam seus corpos e os colocam em relação ao outro ou a elementos presentes no ambiente dá informação sobre como esses indivíduos estão engajados uns com os outros e a natureza de suas intenções e atitudes (KENDON, 2004KENDON, A. Gesture: visible action as utterance. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 2004.). As ações corporais visíveis, citadas por Kendon (2004KENDON, A. Gesture: visible action as utterance. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 2004.), compreendem os gestos e incluem o movimento dos braços, pernas, tronco, expressões faciais, manipulação de objetos, entre outros. Kendon (2004KENDON, A. Gesture: visible action as utterance. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 2004.) e McNeill (1992)McNEILL, D. Hand and mind: what gestures reveal about thought. London: University of Chicago Press, 1992. focalizam sua atenção em gestos realizados com os braços e as mãos. McNeill (2012)McNEILL, D. How language began: gesture and speech in human evolution. Cambridge: Cambridge university Press, 2012. define gesto como uma ação manifestamente expressiva que representa imagens sendo geradas como parte do processo da fala. Da mesma forma que para McNeill (2012)McNEILL, D. How language began: gesture and speech in human evolution. Cambridge: Cambridge university Press, 2012. e Kendon (2004KENDON, A. Gesture: visible action as utterance. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 2004.), os gestos que nos interessam são componentes integrais da fala, ou seja, não são meros substitutos, acompanhamentos ou ornamentos desta.

Kendon propôs uma classificação geral para os movimentos realizados pelas pessoas usando as mãos e os braços, dividindo-os em Gesticulação, Emblema, Pantomima e Língua de sinais. Essa classificação é conhecida como "Continuum do gesto ou continuum de Kendon".

Figura 1:
Continuum do gesto ou continuum de Kendon.

Quando nos movemos ao longo do continuum do gesto, representado na Fig. 1, da esquerda para a direita, a presença obrigatória da fala declina e aumenta a presença de propriedades linguísticas e de convencionalização (McNEILL, 1992, 2005, 2012McNEILL, D. Gesture & thought.Chicago: University of Chicago Press, 2005.). As gesticulações, que aparecem na extremidade esquerda, integram dois modos semióticos - imagético e linguístico - codificando a mesma unidade de ideia (McNEILL, 2005, 2012McNEILL, D. Gesture & thought.Chicago: University of Chicago Press, 2005.). De acordo com McNeill (2012)McNEILL, D. How language began: gesture and speech in human evolution. Cambridge: Cambridge university Press, 2012., esses gestos são sincrônicos e coexpressivos com a fala, porém não redundantes, pois expressam a mesma unidade de ideia - ou seja, o gesto e a linguagem verbal (McNEILL, 2012McNEILL, D. How language began: gesture and speech in human evolution. Cambridge: Cambridge university Press, 2012.) - por meio de modos semióticos diferentes. Diferente do emblema, da pantomima e da língua de sinais, a gesticulação não é convencionalizada.

A gesticulação, portanto, diferentemente da fala, não apresenta propriedades linguísticas, visto que ela é global, sintética, não combinatória e sem padrões de forma, ou seja, é idiossincrática. Já a fala tem as propriedades linguísticas de segmentação, combinação, léxico e sintaxe. Neste artigo trabalharemos com os gestos que são denominados, no continuum de Kendon, como gesticulação (não convencionalizada e idiossincrática) e emblema (convencionalizada).

McNeill (1992)McNEILL, D. Hand and mind: what gestures reveal about thought. London: University of Chicago Press, 1992. distingue quatro tipos de gestos: icônicos, metafóricos, dêiticos e de batimento, considerando as propriedades desses gestos. Os gestos icônicos e metafóricos são usados para representar objetos concretos e abstratos, respectivamente. Gestos icônicos, metafóricos e dêiticos têm, em geral, três fases: preparação, golpe e recuperação. Gestos de batimento alternam movimentos para cima/para baixo ou para trás/para frente e dão ênfase a um momento do discurso, destacando-o do discurso antecedente. Alguns desses gestos são indissociáveis da fala, cumprindo função de enfatizar palavras. Gestos dêiticos indicam posições de pessoas e objetos no mundo físico, mas também eventos no passado ou futuro, além de sugerirem posições espaço-temporais para entidades abstratas, como se elas pudessem ser localizadas no mundo físico.

Kendon (2004KENDON, A. Gesture: visible action as utterance. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 2004.) utiliza outra classificação para os gestos, contemplando as suas funções. Nesse sentido, os gestos podem ser referenciais quando são parte do conteúdo referencial do enunciado. Esses se subdividem em dois grupos: a) Referenciais representacionais que, por sua vez, podem ser de modelagem, quando as mãos modelam o formato de um objeto; de ação, quando as partes do corpo que estão gesticulando se engajam em um padrão de ação com características daquilo ao qual se refere; e de descrição figurativa, quando o gesticulante "cria" um objeto no ar; e b) Referenciais dêiticos, quando apontam objetos de referência no enunciado, sejam eles concretos, abstratos ou virtuais. Além dos gestos referenciais, há ainda os gestos pragmáticos, que não são parte do significado referencial ou do conteúdo proposicional do enunciado, mas indicam algo sobre a atitude do falante quanto ao significado referencial ou contribuem para o quadro interpretativo. Há três classes de gestos pragmáticos: os gestos de partição, que pontuam a fala ou marcam seus diferentes componentes lógicos; os gestos de modo, que dão ênfase ao discurso; e os gestos performativos, que mostramem que tipo de movimento ou ato de fala o falante está engajado.

b) Proxêmica

O modo proxêmico considera a relação que os indivíduos comunicantes estabelecem entre si, a distância espacial entre eles, a orientação do corpo e do rosto, o modo como dispõem e se posicionam entre os objetos e os espaços. A proxêmica, portanto, está relacionada à maneira como um indivíduo seorganiza, ocupa e utiliza o espaço no qual está envolvido.

O comportamento proxêmico indica o tipo de relações sociais estabelecidas num dado contexto. Esse comportamento varia em função da cultura e pode ter diferenças para cada indivíduo. Nas salas de aula, a relação do professor com os estudantes e com os objetos que usa define a proxêmica. Um aspecto importante dessa proxêmica é a relação que o professor estabelece com os diferentes objetos de conhecimento. Nesse sentido, ele pode destacar um dado conceito que acabou de escrever no quadro colocando-se ao lado da região onde está escrito o conceito e chamando atenção sobre o mesmo.

3. DENSIDADE MODAL

De acordo com Norris (2004NORRIS, S. Analyzing Multmodal Interaction: a methodological framebook. New York: Routledge, 2004.), a intensidade de modos específicos numa interação é determinada pela situação, pelos atores sociais e por outros fatores ambientais e sociais envolvidos. Há duas formas de analisar a densidade modal. A primeira delas refere-se à intensidade modal. Quando um modo tem um grande peso em uma determinada atividade, esse modo tem uma alta intensidade. Normalmente, a fala é um dos modos que assume alta intensidade na sala de aula, embora nem sempre isso ocorra. Como procuraremos demonstrar em relação a uma das professoras analisadas, ela confere alta intensidade a outros modos, por exemplo, os gestos de ação e o som que esses gestos provocam.

Um dos critérios que Norris (2004NORRIS, S. Analyzing Multmodal Interaction: a methodological framebook. New York: Routledge, 2004.) usa para distinguir que modo está tendo alta intensidade é perceber se esse modo está estruturando todos os outros. Além disso, a descontinuidade desse modo específico provocaria a descontinuidade da atividade. Finalmente, todos os participantes prestam atenção a esse modo. A fala, mais uma vez, estrutura outros modos usados pelas professoras e, além disso, uma descontinuidade na fala faz com que a atividade de dar aulas seja interrompida. Nesse sentido, em geral, a fala tem alta intensidade na atividade aula.

A outra maneira de abordar a densidade modal é por meio da complexidade modal. Nesse caso, ao contrário da intensidade modal, vários modos comunicativos interagem para fazer sentido e a descontinuidade ou mudança de qualquer um deles não afeta profundamente a atividade. Podemos pensar numa sala de aula em que grupos de alunos realizam uma atividade. Nesse contexto, são vários os modos que interagem: fala, olhar, material usado para fazer a atividade (layout), etc. Todos os modos estão interligados, e a interrupção de qualquer um deles não provoca a interrupção da atividade. Portanto, temos uma densidade modal realizada por complexidade.

Finalmente, temos o caso no qual a densidade modal resulta da combinação da intensidade com a complexidade. Um modo pode estar estruturando todos os outros e, ao mesmo tempo, pode funcionar juntamente com outros modos interligados (Norris, 2004NORRIS, S. Analyzing Multmodal Interaction: a methodological framebook. New York: Routledge, 2004.).

A densidade modal indica o nível de atenção que determinada pessoa coloca em certos modos. Um professor, por estar muito atento à sua fala, confere a ela uma alta densidade. No entanto, para um aluno que está conversando com seu colega enquanto o professor fala, a fala do professor possui baixa densidade modal.

4. METODOLOGIA

Selecionamos, neste trabalho, duas professoras cujas aulas foram objeto de investigação. Tínhamos a intenção de investigar professores com aulas mais interativas e que fossem bem avaliados pelos estudantes.

Essa seleção foi feita com o uso de dois instrumentos de coleta de dados. A boa avaliação dos professores foi aquilatada por meio de um instrumento institucional no qual os estudantes, ao final de cada semestre, avaliam os professores e as aulas que tiveram. Usamos a avaliação de quatro semestres consecutivos e fizemos uma média do grau de aceitação dos professores do Departamento de Química. O grau de interação das aulas, de acordo com a classificação de Mortimer e Scott (2003MORTIMER, E. F. e SCOTT, P. H. Meaning making in secondary science classrooms. Maidenhead: Open University Press, 2003.), foi analisado por meio de um questionário aplicado aos professores, no qual estes descreveram suas aulas e a participação dos estudantes nelas. Por meio da descrição dos professores, classificamos as aulas como mais interativas e menos interativas. Selecionamos duas professoras bem-avaliadas e de aulas descritas como interativas. Essas professoras ministram disciplinas com conteúdos semelhantes. Elas têm mais de dez anos de experiência no Ensino Superior, são graduadas em Química e possuem doutorado em Química Orgânica. A seleção feita com critérios objetivos permitiu identificar duas professoras que se destacam no Departamento de Química pelo esforço que fazem para garantir a aprendizagem dos alunos. Além disso, percebemos, pela observação de suas aulas, que elas estão interessadas no aprendizado e no bem-estar dos seus estudantes e os conhecem pelos nomes, o que é particularmente raro em professores do Ensino Superior.

Gravamos em vídeo um conjunto de aulas de cada uma das professoras. Essas aulas faziam parte do seu planejamento e não houve nenhuma interferência na forma como as professoras conduziam as aulas. Selecionamos aleatoriamente, para cada uma delas, um episódio para análise. Mortimer et al. (2007)MORTIMER, E. F., MASSICAME, T.; BUTY, C.; TIBERGHIEN, A. Uma metodologia para caracterizar os gêneros de discurso como tipos de estratégias enunciativas nas aulas de ciências. In: NARDI, R. A pesquisa em ensino de ciência no Brasil: alguns recortes. São Paulo: Escrituras Editora, 2007. p. 53-94. definem episódio a partir da adaptação da definição de evento, da tradição etnográfica interacional. Para eles, o episódio é "um conjunto coerente de ações e significados produzidos pelos participantes em interação, que tem início e fim claros e que pode ser facilmente discernido dos episódios precedente e subsequente" (p. 61). Normalmente, esses episódios trazem uma sequência de enunciados que comportam um tema e/ou uma intenção didática do professor e têm uma função específica no fluxo do discurso.

Para delimitar as fronteiras entre um episódio e outro, foram usadas as pistas contextuais, descrita por Gumperz (1992GUMPERZ, J. J.. Contextualization and understanding. In: Duranti, A.; Goodwin. C. (Eds.), Rethinking Context. Cambridge, UK: CambridgeUniversity Press, 1992. p. 229-252.), que incluem mudanças proxêmicas (relacionadas à orientação entre os participantes), as kinestésicas (ligadas aos gestos e movimentos corporais), as mudanças no tom de voz, de tópico ou tema, as pausas etc. O uso de uma ou outra pista ou mesmo de um conjunto de pistas depende de cada professor cujas aulas foram analisadas, ou seja, diferem de um para outro. Os episódios relatados neste trabalho demonstram as características típicas das professoras. Assim, escolhemos para Aline um episódio em que ela explica o uso de uma regra que deve ser observada quando se usa a projeção de Fischer3 3 Projeção de Fischer trata-se de um método simplificado de representar carbonos tetraédricos no plano. Os carbonos tetraédricos, quando ligados a quatro substituintes diferentes, dispostos segundo os vértices de um tetraedro, formam um centro quiral que pode ser girado em 180°, sem mudar sua conformação. . Nesse sentido, o episódio escolhido tem características de uma regra semiótica que ele está explicitando, no contexto do uso de determinada fórmula plana para representar objetos tridimensionais. Já o episódio escolhido para Rosa envolveu a apresentação de um mecanismo de reação, tópico comum em Química Orgânica. Como veremos, ambos os episódios retratam as professoras em um esforço autêntico para produzir sentido, usando uma variedade de modos semióticos.

Nesses episódios, as professoras trabalham com fórmulas estruturais que representam o mecanismo ou a estereoquímica de determinada reação orgânica. O fragmento da professora Aline tem duração de 1min18s, enquanto o fragmento da professora Rosa tem duração de 51s. Os fragmentos foram analisados utilizando o programa TRANSANA(r), e a análise centrou-se nos modos semióticos usados para comunicar o conteúdo e em alguns itens que mostram semelhanças e diferenças entre as duas professoras.

Na transcrição dos episódios utilizamos barras duplas (//) para indicar as pausas curtas, de no máximo 0,4s. Pausas mais longas são indicadas com a duração, em segundos, entre parênteses. Usamos caixa alta para as palavras ou sílabas pronunciadas com maior intensidade.

5. RESULTADOS E DISCUSSÃO

As professoras interagem com diferentes objetos ao comunicar o mesmo conteúdo. A professora Rosa interage predominantemente com o que desenha no quadro, enquanto a professora Aline usa um maior tempo da aula interagindo com os modelos bola/vareta que vai construindo. Porém, as duas se utilizam de outros modos semióticos que chamaram a atenção do grupo e, por isso, se tornaram objeto de análise mais específica.

Passaremos a descrever algumas características das duas professoras, com o intuito de identificar as estratégias que usam para comunicar um conteúdo considerado altamente teórico. Começaremos nossa análise por apresentar o episódio escolhido para cada professora e como, nesse episódio, são utilizados vários modos semióticos. Posteriormente, apresentaremos algumas características relacionadas à proxêmica, com o intuito de identificar como as duas professoras ocupam o espaço da sala de aula e como se relacionam com os objetos usados.

a) Como as duas transitam entre modos semióticos

Tanto Rosa como Aline estão lecionando Química Orgânica para alunos de Química, que precisam aprender a lidar com as diversas representações que essa ciência tem para os objetos moleculares. Nesse sentido, as duas professoras têm que tornar esses objetos simbólicos da Química familiares para os seus estudantes. A melhor maneira de fazê-lo é torná-los objetos concretos, pois os alunos vão ter que aprender a imaginar objetos de três dimensões, com uma geometria molecular, a partir de suas representações em duas dimensões. E vão ter que trabalhar com essas representações como se fossem objetos concretos, apesar de toda a sua carga simbólica, pois somente dessa maneira os estudantes poderão adquirir familiaridade e segurança com as representações. Por isso, o papel de Aline e Rosa em tornar essas representações concretas tem tanta importância e elas o fazem principalmente tornando-os objetos que guardam relações indiciais e icônicas com seus significantes. Essas relações, como veremos, tornam-se possíveis por meio de gestos dêiticos e gestos de ação.

Ao observarmos as aulas dessas professoras, chama-nos a atenção a facilidade com que lidam com diferentes modos semióticos ao explicarem um conteúdo considerado de difícil entendimento, por ser muito teórico. No entanto, elas se diferenciam na forma como o fazem. Vejamos essas diferenças.

a.1) A professora Aline

Como já foi dito, selecionamos um episódio de cada uma das professoras, dos quais fazemos a análise dos principais modos semióticos que estiveram presentes. Os episódios foram selecionados usando pistas contextuais (Gumperz, 1992GUMPERZ, J. J.. Contextualization and understanding. In: Duranti, A.; Goodwin. C. (Eds.), Rethinking Context. Cambridge, UK: CambridgeUniversity Press, 1992. p. 229-252.). O episódio da professora Aline iniciou-se quando ela terminou de montar, com o modelo bola/vareta, a representação da molécula que usaria no episódio. Nesse momento Aline usou a expressão "Ó // vejam bem...". Esses dois elementos da expressão funcionam como pista contextual inicial, que é seguida de uma mudança de sua posição na sala. Ela usou a expressão "está claro isso?" como pista contextual final. Esses fragmentos verbais e mudanças de posição marcam precisamente o início e o fim do episódio

No episódio anterior ao selecionado, a professora Aline estava ressaltando que a quebra de ligações representa uma reação química. Ela fez isso para diferenciar essa quebra do "giro" na ligação, com o intuito de identificar a mudança de conformação, já que a aula trataria de confórmeros4 4 Na estrutura analisada, dois carbonos estão ligados entre si por ligações simples. Os arranjos moleculares temporários que resultam da rotação de grupos em torno dessas ligações simples são denominados conformações de uma molécula. Cada estrutura possível é chamada de confórmero. . Na tela, a professora projetou três formas de representação química para a mesma molécula: a projeção de Fischer, a fórmula espacial dessa projeção e a projeção de Newman. Além disso, a professora construiu o modelo bola/vareta para a molécula em questão, que foi usado durante o episódio. Nesse sentido, ela fez uso de quatro formas de representação para a mesma molécula, o que demonstra sua preocupação em circular por essas diferentes formas, evidenciando como um objeto químico pode ser distintamente representado. Para entender o contexto em que o episódio selecionado ocorreu, ela estava mostrando que as ligações na projeção de Fischer, apesar de aparentemente iguais, não o são, tendo orientações espaciais diferentes (para frente e para trás do plano).

Para um melhor entendimento da ação da professora, a transcrição da fala se encontra no Quadro 1, dividida em frases que acompanham a sua respiração. Essa divisão em frases pela respiração foi feita por comodidade de análise. Quando ocorre uma pausa curta, nós indicamos por barra dupla (//). Quando a professora faz mudança da entonação que indica interrogação, colocamos o sinal entre parênteses (?), para sinalizar que trata-se de inferência dos investigadores.

No episódio destacado, a professora estava se referindo a uma regra que é importante para se trabalhar na estereoquímica. Nesse caso, trata-se de quais mudanças podemos operar na projeção de Fischer, sem que isso signifique uma alteração na molécula que está sendo representada. Segundo Solomons e Fryhle (2001SILVA, L. H. A.; SCHNETZLER, R. P. A mediação pedagógica em uma disciplina científica como referência formativa para a docência de futuros professores de biologia. Ciência & Educação, Bauru, v. 12, n. 1, p. 57-72, 2006.), essas fórmulas bidimensionais são especialmente úteis para compostos com muitos estereocentros5 5 Carbono assimétrico que possui quatro grupos diferentes ligados a ele. , porque elas economizam espaço e são fáceis de escrever. No entanto, o seu uso necessita de uma rígida aderência a certas convenções, explicitadas pela professora nesse episódio. Por convenção, projeções de Fischer são escritas com a cadeia carbônica principal estendida, de cima para baixo. As linhas verticais representam ligações que são projetadas para dentro do plano do papel e as linhas horizontais representam ligações que são projetadas para fora do plano do papel. Cada interseção da linha vertical com a horizontal representa um átomo de carbono, geralmente o estereocentro. As estruturas projetadas pela professora na tela estão representando a fórmula de Fischer e a fórmula tridimensional. Nessa última, as ligações para dentro e para fora do plano do papel são representadas com linhas tracejadas e traços mais grossos, respectivamente, conforme a Figura 2:

Figura 2
Representação da Projeção de Fischer e da forma tridimensional, projetadas na tela.

Solomons e Fryhle (2001SILVA, L. H. A.; SCHNETZLER, R. P. A mediação pedagógica em uma disciplina científica como referência formativa para a docência de futuros professores de biologia. Ciência & Educação, Bauru, v. 12, n. 1, p. 57-72, 2006.) argumentam que, ao usar as projeções de Fischer, podemos girá-las em 180o, no plano do papel, para verificar a superposição de duas estruturas. Porém, para outro ângulo, o giro representa mudança no estereocentro, o que não pode ser feito. No episódio selecionado, a professora está comunicando essa regra do giro de 180o, em que não há mudança no estereocentro, e a contrarregra, em que se rebate a molécula, tirando-a do plano, algo que não pode ser feito.

O Quadro 1 mostra a fala da professora Aline, no episódio em questão, acompanhado de um breve relato dos modos semióticos.

Quadro 1:
Transcrição da fala da professora Aline, no episódio selecionado

Apesar de a fala ser um modo privilegiado nas aulas, nesse episódio da professora Aline a fala, sozinha, não faz sentido. A leitura do trecho transcrito não é suficiente para entender o que a professora quer comunicar. O uso de 19 expressões indiciais - sublinhadas na transcrição - indica que a fala é acompanhada de outras ações importantes, que resultam do uso de outros modos semióticos. Portanto, Aline usa da forma indicial de relação entre o significante e os objetos sobre os quais fala. Todas as expressões indiciais fazem uso da contiguidade entre o significante - as expressões "isso aqui" ou "fazer assim", os pronomes demonstrativos "esse" e "essa" - e os objetos referidos. Essa contiguidade é garantida tanto por gestos dêiticos como por gestos de ação. Esses objetos adquirem concretude nos diversos modos semióticos pelos quais são representados. Assim, a fórmula de Fischer está projetada em uma tela ou uma molécula está representada pelo modelo bola/vareta ou a regra e a contrarregra são demonstradas usando gestos de ação. É por meio dessa concretude que esses objetos podem ser referidos de forma indicial, embora isso não diminua as suas propriedades de objetos teóricos e, portanto, simbólicos da Química. Apesar de simbólicos, esses objetos adquirem uma concretude na aula de Química Orgânica, pois os alunos vão ter que aprender a manipulá-los e a imaginar as relações espaciais implícitas em uma fórmula bidimensional.

As expressões indiciais são usadas na explicitação da regra (Frases 19 e 27; figuras 3 e 4) e da contrarregra (Frases 7, 14 e 25; figuras 5 e 6). E também aparecem quando a professora indica os grupos representados na projeção que está sendo usada (Frases 10, 12 e 13) ou quando se refere à ideia que está sendo introduzida no episódio, de uma maneira geral (Frase 3). A professora, ao apresentar a regra, usa expressões indiciais antes, durante e depois da apresentação, fazendo com que o número dessas expressões seja maior do que o número de vezes em que explicita a regra. Isso pode ser percebido na frase 7. Nessa, Aline faz um gesto de ação ao explicitar a contrarregra e pronuncia a frase "pegar e fazer assim". Ela usa, nessa frase, a expressão indicial "assim". Porém, na frase 6, ela usou a expressão "isto aqui oh" e na frase 8 ela usa "isso". Todas essas expressões indiciais se referem à contrarregra da frase 7.

Figuras 3 e 4
Gestos de ação da professora Aline feitos na mesa do projetor para demonstrar a regra.

O episódio tem a função de explicitar essa regra sobre a projeção de Fischer, que, segundo comentário da própria Aline, durante a aula, é fonte de erro comum entre os estudantes de Química.

Há, no episódio, três formas de representação diferente para uma mesma molécula: a fórmula de Fischer, que é plana, a fórmula tridimensional e o modelo bola/vareta, que é tridimensional. Para demonstrar como se transita entre a representação tridimensional e a bidimensional, a professora explicita a regra. Para tornar essa regra mais significativa para os estudantes, a professora utiliza vários modos semióticos e apresenta uma boa fluência entre esses diversos modos. Em alguns momentos da aula, diferentes modos são usados simultaneamente (Frases 2 e 9, por exemplo).

Algumas vezes ela usa mais de um modo simultaneamente, promovendo a interação entre eles. Por exemplo, a professora fez uso da projeção na tela, na qual aparece desenhado o modelo da projeção de Fischer e o modelo tridimensional, que são formas de representação diferentes. A explicação foi acompanhada do uso de um modelo bola/vareta - que é outro modo, além de ser uma forma de representação - montado pela professora antes de iniciar esse episódio. Em dois momentos a professora sobrepôs o modelo bola/vareta ao modelo bidimensional, para facilitar a comunicação da regra do giro de 180° e para demonstrar como um objeto tridimensional fica representado em apenas duas dimensões. Em outro momento, a professora usou uma folha de papel como suporte para sua ação de demonstrar a regra; e em outro enfatizou a contrarregra usando o conjunto gesto de ação e som produzido pela batida da mão na mesa, que soou durante a pausa em sua fala.

Em todos esses exemplos, temos um caso particular de densidade modal, que corresponde às descrições de Norris (2004NORRIS, S. Analyzing Multmodal Interaction: a methodological framebook. New York: Routledge, 2004.) para a complexidade modal. Nessa descrição, há um adensamento modal por intensidade quando não podemos suprimir um dos modos sem alterar significativamente a atividade que está sendo desenvolvida. No nosso exemplo, no lugar de um único modo, temos dois, três ou até quatro modos que cumprem o papel de tornar a densidade modal mais intensa: a fala, o gesto, a projeção na tela e o modelo bola/vareta. Na frase 2, por exemplo, temos a fala, o modelo de bola/vareta, a projeção na tela e o gesto. Todos esses modos estão articulados e qualquer um deles que for suprimido compromete o sentido que está sendo construído. Na frase 20, por exemplo, retirar a fala ou o gesto de ação comprometeria o sentido. O uso de 19 expressões indiciais é, portanto, uma maneira de fazer com que a fala interaja com os outros modos semióticos.

Nas frases 25 e 26, nas quais a professora explicita a contrarregra, acontece o gesto de ação que produz o som, quando Aline bate a mão direita sobre a mesa, e na outra frase continua o mesmo gesto, dessa vez sem produzir som. Essa produção de som funciona também como modo semiótico, pois o som é produzido em uma pausa da linguagem verbal e destaca o movimento da mão, enfatizando o que não se pode fazer segundo a contrarregra. Ao explicitar a regra ou a contrarregra, ela geralmente usa vários modos semióticos diferentes. Por exemplo, ela mostra a contrarregra na tela de projeção e depois sobre uma folha de papel que está sobre a mesa.

Outra observação significativa para a professora Aline refere-se às ênfases que utiliza na explicação de determinados pontos do assunto abordado, em certos momentos da sua aula. Nesse episódio ela interrompe a fala e faz um gesto de ação, ao explicitar a contrarregra. Ela pronuncia "Não posso é fazer isso aqui, no papel". Na frase 25 ela interrompe a fala até que o gesto de ação, com som, seja feito.

Não posso é fazer ISTO AQUI (1,1s) no papel ...

Ao pronunciar as palavras ISTO AQUI em tonalidade mais acentuada, ela já está chamando a atenção para o que quer destacar. O tempo de 1,1s foi usado pela professora para bater na mesa, ora com a palma da mão virada para baixo, ora virada para cima (Figuras 5 e 6). O fato de a professora interromper a fala é um forte indício de que ela quer comunicar o significado usando o gesto e o som, e não a fala.

Figuras 5 e 6
Gestos de ação da professora Aline feitos na mesa do projetor para demonstrar a contrarregra.

O mesmo gesto já havia sido usado pela professora para comunicar a contrarregra, sobre a tela da projeção, conforme Figuras 7 e 8.

Figuras 7 e 8
Gestos de ação da profesora Aline, feitos na tela de projeção.

Kress e Van Leeweun (1996KRESS, G. e VAN LEEUWEN, T. Reading Images: the grammar of visual design. London&New York: Routledge, 1996.), ao tratarem de casos em que a linguagem não é suficiente para comunicar, analisam textos de divulgação científica e as mudanças neles ocorridas, principalmente as relacionadas à inclusão de figuras diversas. Para eles, as figuras, assim como as palavras, comunicam. Para a professora Aline, a linguagem verbal não foi suficiente para explicar os significados da regra demonstrada. Ela se apropriou de outros modos de comunicação e de diferentes formas de representação, enfatizando o caráter multimodal da linguagem de sala de aula.

a.2) A professora Rosa

O episódio selecionado da professora Rosa iniciou-se com o movimento corporal, quando ela se dirigiu ao desenho do quadro, e terminou com a frase "então é tranquilo até aqui?". Consideramos esse movimento como uma pista contextual que demarca o início do episódio.

No episódio selecionado, a professora Rosa explica uma reação química desenhada no quadro (Figura 9). Trata-se da reação de obtenção dos alquenos, mais especificamente a reação de Wittig. Após representar a reação, ela inicia a explicação.

Figura 9
Representação da equação química escrita no quadro.

Para essa professora, também fizemos a transcrição das frases, dividindo-as de acordo com a respiração. No Quadro 2 reproduzimos essa transcrição, considerando o episódio selecionado, que teve uma duração de 51s. Cada uma das frases está acompanhada de uma descrição do modo semiótico.

Quadro 2:
Transcrição da fala da professora Rosa, no episódio selecionado.

Nesse episódio predominam três modos semióticos: linguagem verbal, gestos e desenhos. Esses modos atuam conjuntamente na construção dos significados. Se observarmos a parte final da descrição desse episódio (Frases 9 a 12), podemos perceber que a linguagem verbal isoladamente também não tem sentido. O sentido se revela quando a professora utiliza também os dois outros modos semióticos. Essa combinação de modos semióticos faz com que a equação química escrita no quadro, que era estática, adquira movimento, indicando as partes do reagente que se combinaram para formar o produto.

Nesse episódio, a professora usou a mesma estratégia usada por Aline: interrompeu a linguagem verbal para fazer um gesto de ação. A linguagem verbal da professora, que mostrava o que aconteceu com os reagentes, foi a seguinte:

Simplesmente essa parte (1,1s) VEIO e entrou aqui onde tava a dupla ligação.

Com ambas as mãos, a professora marcou o grupo negativo do ilídeo de fósforo (Figura 9). Depois de deslocar as mãos em direção ao primeiro reagente, ela puxou ambas as mãos levemente para baixo, como se fosse encaixar o grupo que estava conduzindo no lugar antes ocupado pelo oxigênio (Figura 10). Para fazer esse gesto, a professora deslocou-se, "carregando" o grupo negativo do ilídeo de fósforo durante a pausa (1,1 s), retomando a fala quando o deslocamento acabou.

Podemos perceber que nas frases 1 a 8 a professora usa, principalmente, gestos dêiticos. No momento em que passa a usar expressões indiciais, os gestos se tornam mais diversificados. Sublinhamos, na transcrição, as expressões indiciais, que são usadas para identificar grupos que ela havia desenhado no quadro. Nesse trecho, a professora Rosa usa de uma forma indicial de relação entre o significante e os objetos sobre os quais fala, aspecto que já analisamos na fala da professora Aline.

Tanto Rosa quanto Aline enfatizam o gesto que fazem e, para isso, interrompem a própria fala, como se quisessem que o estudante prestasse atenção só e unicamente no gesto feito por elas.

b) Análise da proxêmica

Como já citamos, a proxêmica refere-se tanto à distância física estabelecida espontaneamente pelas pessoas entre si e com os objetos que usam, no convívio social, quanto à variação dessa distância. Referimo-nos à proxêmica, neste trabalho, para analisar como as duas professoras se posicionam espacialmente, estabelecendo distâncias em relação a seus alunos e aos objetos de conhecimento. Para tal, usamos os episódios já analisados.

Aline desenvolveu sua aula com o uso da projeção na tela, na qual tem desenhada a projeção de Fischer (bidimensional) e o modelo tridimensional. Porém, durante praticamente todo o episódio ficou com o modelo bola/vareta (tridimensional) nas mãos. As figuras 11 e 12 mostram Aline explicando o desenho na tela de projeção e, em seguida, comparando-o com o modelo tridimensional, que tinha nas mãos. Ao terminar a comparação, Aline afastou seu corpo da tela, inclinando-o levemente para trás, ao mesmo tempo em que levou o modelo tridimensional para frente do corpo (figura 12). Com esse movimento do corpo ela destacou os objetos, colocando-os em evidência, para que os estudantes visualizassem tanto o modelo projetado quanto o modelo que tem em mãos.

Figuras 12 e 13
Variação da distância física de Aline com os objetos que usa.

Em outro momento Aline se dirigiu para a mesa do projetor (Frase 16) e pegou uma folha de papel que encontrou disponível. Primeiro ela mostrou a regra relacionada à projeção de Fischer, girando a folha de papel em um ângulo de 180° (Frases 18 e 19). Em seguida, realizou o gesto de ação, batendo e rebatendo com as mãos sobre a folha (Frase 20). A Figura 13 mostra Aline batendo sobre a folha. Ao terminar esse gesto, Aline retomou o modelo tridimensional que estava "guardado" na mão esquerda e o trouxe para o espaço compartilhado com os alunos. Ao fazer isso, ela afastou o corpo da mesa, parecendo querer dirigir a atenção dos estudantes para o modelo tridimensional e não mais para a folha que ficou na mesa (Figura 14).

Figuras 14 e 15
Gestos realizados na mesa e afastamento.

Nesse episódio Aline se movimenta, aproximando-se e distanciando-se dos objetos de conhecimento. Uma característica constante da professora Aline refere-se ao fato de usar dois modos e transitar entre um registro e outro. Ao se dirigir para o quadro, Aline aponta para a fórmula plana e, em seguida, pega o modelo bola/vareta. Nesse caso ela transita entre um modo e outro. Quando sobrepõe o modelo bola/vareta sobre o modelo projetado, a professora está, então, usando simultaneamente os dois modos. Ela também usa e transita entre os diferentes tipos de registros: as duas fórmulas no quadro - plana e tridimensional.

A professora Rosa intercalou o uso de projetor com o desenho no quadro durante toda a sua aula. No episódio selecionado, ela havia desenhado no quadro de giz várias reações de obtenção de alquenos e, entre elas, a reação de Wittig. Antes de explicar essa reação, ela apresentou o contexto científico, relatando quem foi Wittig e o fato de ele ter sido laureado com o prêmio Nobel.

A seguir, a professora retomou a explicação em relação às fórmulas escritas no quadro. Ela se valeu de uma série de gestos dêiticos que a auxiliaram na explicação de cada um dos reagentes participantes da reação, incluindo as cargas parciais positivas do fósforo e negativas do carbono. Ao explicar o significado dessas cargas, a professora se afastou do quadro e se aproximou dos estudantes. Ao pronunciar a parte da frase 7, "isso caracteriza o ilídeo de fósforo", ela se deslocou novamente para o quadro, mantendo o corpo voltado para os estudantes. Ela mostrou o que acontece com a parte negativa do ilídeo ao reagir com a carbonila, usando gestos dêiticos e olhando para os estudantes.

Ao apresentar o produto, ela retomou a explicação sobre o que aconteceu com os reagentes e, nesse momento, fez o gesto de ação que conferiu dinamicidade à estrutura estática desenhada no quadro. Durante todo o episódio, Rosa manteve-se posicionada próxima ao desenho no quadro de giz, pois toda a sua explicação girava em torno das equações nele representadas. Dessa maneira, para manter a sua interação com os estudantes, ela se valeu do olhar e do posicionamento do corpo.

O olhar é um modo fortemente ligado à proxêmica. Quando as professoras se posicionam em relação aos alunos ou aos objetos de conhecimento, elas concomitantemente usam o olhar para direcionar a atenção dos alunos. Além de alternarem constantemente o olhar entre os estudantes e o objeto do conhecimento, que pode estar escrito ou projetado no quadro ou estar em suas mãos ou, ainda, sobre a mesa, as duas professoras mantêm uma postura física voltada para o estudante. Nos dois episódios descritos anteriormente, contamos o tempo em que ficam voltadas para o quadro de giz e o que ficam voltadas para os estudantes. A professora Rosa ficou todo o episódio voltada para os estudantes (51s). A professora Aline, cujo tempo total do episódio foi de 1min18s, ficou voltada para os estudantes por 1min16,4s, permanecendo de costas apenas 1,6s.

Nossa experiência com o Ensino Superior nos mostra que essa não é uma postura usual, pois a maioria dos professores mantém-se de costas para os estudantes quando usa o quadro de giz.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho entendemos que o trânsito e o uso simultâneo de diferentes modos se deram pelo esforço das professoras em transformar o modelo químico bidimensional em tridimensional ou em fazer com que uma representação química estática seja entendida na sua forma dinâmica. Ao transitar entre os modos e usar simultaneamente diferentes modos semióticos, essas professoras demonstraram um esforço em diminuir a dificuldade dos estudantes em converter um modelo em outro.

As duas professoras fazem uso de variados modos semióticos nas suas interações com os estudantes. Elas parecem reconhecer a dificuldade do conteúdo tratado, que exige um constante apelo à geometria das moléculas e às suas representações por meio de fórmulas tridimensionais e bidimensionais. O conteúdo trabalhado é propício para descrever o uso de vários modos semióticos porque as moléculas podem ser representadas de diferentes formas. Nesse trânsito entre as diversas representações ou registros usados para as moléculas da Química Orgânica, as professoras fazem uso idiossincrático dos múltiplos modos semióticos. A professora Rosa, no episódio selecionado, mostra preferência pelo uso dos desenhos no quadro junto com a fala e os gestos, mas em outras passagens de suas aulas também usa projeções em powerpoint(r). Ela revela toda a sua maestria em usar os gestos para criar realidades ou para dar dinâmica às representações estáticas escritas no quadro, quando desloca o grupo negativo do ilídeo de fósforo. Seus gestos são amplos e articulados com a fala e com o desenho das representações para as reações. Nesse sentido, não é apenas a fala que se articula ao gesto. Para a professora Rosa, o desenho no quadro determina como essa articulação é possível de ser feita, potencializando o uso dos gestos e sua articulação com a fala.

A professora Aline, por sua vez, demonstra uma grande fluência no uso de diversos modos semióticos, todos bem articulados. Ela passa de um modo a outro (por exemplo, do modo projeção no quadro ao modo gesto), usa-os simultaneamente quando superpõe a representação em um modo (modelo bola/vareta) a outro modo (projeção na tela), e até mesmo se vale de um modo completamente imprevisto, o som de seu gesto de ação sobre a mesa.

Portanto, em complemento ao que McNeil (2005)McNEILL, D. Gesture & thought.Chicago: University of Chicago Press, 2005. e Kendon (2004KENDON, A. Gesture: visible action as utterance. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 2004.) apontam em relação a uma unidade de análise que engloba fala e gesto, poderíamos sugerir que, para professores, essa unidade também contempla também a escrita/desenho no quadro de giz.

Essa nova unidade de análise, que inclui a fala, o gesto e os diversos modos usados pelas professoras, contribui para tornar concretas e manipuláveis as moléculas da química orgânica, que na verdade são objetos simbólicos, portanto, altamente teóricos e abstratos. Mas o profissional de Química Orgânica vai ter que aprender a manipular essas representações como se fossem objetos reais. É nesse sentido que o esforço das professoras, em usar diferentes modos semióticos para representar as moléculas, é importante para a construção de significados em química orgânica. Da mesma forma, a transição entre duas e três dimensões, reforçado pelas professoras, é um aspecto de difícil compreensão pelos estudantes. Na interação entre os diversos modos semióticos, as professoras estão realçando significados que facilitam a compreensão dessas transições. O uso de expressões indiciais e icônicas auxilia tanto a transição entre as duas e três dimensões das representações das moléculas quanto a interação entre os diferentes modos. Os significados são produzidos pela interação de todos os modos em uso, o que intensifica a densidade modal e torna difícil a compreensão do texto se um deles for suprimido.

O esforço demonstrado pelas professoras para produzir significados, dessa maneira, destaca-se como uma qualidade em seus trabalhos. Elas parecem reconhecer que aquilo que ocorre em sala de aula precisa tocar, de alguma maneira, os sujeitos aprendizes. Nesse sentido, elas recuperam os significados já trabalhados, em suas aulas, usando vários modos semióticos para evidenciar, de diferentes formas, um mesmo conceito. Além disso, as professoras valorizam a interação ao dirigirem o olhar e ao manterem o corpo voltado para os estudantes e valorizam o objeto de conhecimento nessa interação ao gesticular e ao olhar para esse objeto, em uma ação criativa. Isso se constitui em uma troca interpessoal com os estudantes. Parece-nos, diante do observado, que há muitas possibilidades para praticar o diálogo e comunicar o conhecimento em sala de aula. Acreditamos que um dos fatores que levam essas professoras a serem bem avaliadas pelos estudantes é o uso da recursividade e a interação entre os modos semióticos na construção dos significados.

Investigar como um professor do Ensino Superior usa e articula diferentes modos semióticos contribui para entender os processos de comunicação em sala de aula para além do que tem sido feito normalmente na pesquisa em educação, onde a ênfase recai sobre o uso da linguagem e das interações em sala de aula. Esse tipo de pesquisa praticamente não tem sido contemplado pelos estudos realizados sobre o uso da linguagem em sala de aula. Mesmo que alguns estudos contemplem o uso da multimodalidade (por exemplo, LABURU e SILVA, 2011LABURÚ, C. E.; SILVA, O. H. M.Multimodos e múltiplas representações: fundamentos e perspectivas semióticas para a aprendizagem de conceitos científicos. Investigaçõesem Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 16, p. 7-33, 2011.; PICCININI e MARTINS, 2004PICCININI C.; MARTINS I. Comunicação multimodal na sala de aula de ciências: construindo sentidos com palavras e gestos. Ensaio: pesquisa em ensino de ciências. Belo Horizonte, v. 6, n. 1, p. 1-14, 2004.), eles restringem-se à Educação Básica.

Ainda que seja importante analisar esses aspectos, consideramos que uma microanálise é fundamental para entender e dar base a um processo de desenvolvimento profissional de professores. Essa análise revela a importância de diferentes facetas do ato de comunicação, como a fala, os gestos, o olhar, os modelos bola/vareta, os desenhos no quadro, etc., para compreender a produção de significados em sala de aula.

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  • 1
    Participação dos autores: Inicialmente, para a produção desse artigo, os autores Ana Luiza de Quadros e Eduardo Mortimer se dedicaram na seleção dos sujeitos da pesquisa. As autoras Ana Luiza de Quadros e Renata Reis realizaram a filmagem das aulas. Após essa etapa, as duas aulas investigadas foram assistidas e analisadas em três momentos diferentes. No primeiro momento o grupo de pesquisadores se dividiu em três subgrupos e cada um desenvolveu independentemente a análise dos dados com critérios previamente discutidos no grupo. Em um segundo momento, a análise de cada subgrupo foi compartilhada e discutida coletivamente pelos autores, resultando em uma única análise. Essa dinâmica foi adotada para garantir uma coerência interna em relação às análises desenvolvidas, uma vez que existe pouca literatura enfatizando esse tipo de análise. Nesse sentido, todos os autores participaram ativamente do processo de análise dos dados. No terceiro momento, com a participação ativa de todos os pesquisadores, foram realizadas a discussão dos resultados, a organização do texto escrito e a elaboração das considerações finais.
  • 2
    Nesse trabalho usamos termos presentes no "Glossary of Multimodal terms", que traz significados compartilhados na comunidade especializada em multimodalidade. Ele pode ser consultado em: http://multimodalityglossary.wordpress.com/mode-2/
  • 3
    Projeção de Fischer trata-se de um método simplificado de representar carbonos tetraédricos no plano. Os carbonos tetraédricos, quando ligados a quatro substituintes diferentes, dispostos segundo os vértices de um tetraedro, formam um centro quiral que pode ser girado em 180°, sem mudar sua conformação.
  • 4
    Na estrutura analisada, dois carbonos estão ligados entre si por ligações simples. Os arranjos moleculares temporários que resultam da rotação de grupos em torno dessas ligações simples são denominados conformações de uma molécula. Cada estrutura possível é chamada de confórmero.
  • 5
    Carbono assimétrico que possui quatro grupos diferentes ligados a ele.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    06 Jan 2014
  • Aceito
    23 Jul 2014
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