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AVALIAÇÃO DE ESTUDANTES SOBRE A PRÁTICA DE PRODUZIR REGISTROS DAS ATIVIDADES DE CIÊNCIAS 1 1 Esta pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).

EVALUACIÓN DE ESTUDIANTES ACERCA DE LA PRÁCTICA DE PRODUCIR REGISTROS DE LAS ACTIVIDADES DE CIENCIAS

STUDENTS’ ASSESSMENT ABOUT THE PRACTICE TO PRODUCE RECORDS OF SCIENCE EDUCATION ACTIVITIES

Resumos

Nesta pesquisa, apresentamos os resultados da avaliação de um recurso que utilizamos para ensinar ciências: a produção de registros das atividades realizadas pelos estudantes em seus próprios cadernos. Nós investigamos se os estudantes valorizam a produção dos registros, bem como suas justificativas para o interesse ou o desinteresse por essa prática. Nossos dados foram gerados a partir de uma análise das respostas dadas por 196 estudantes a um questionário de avaliação do curso. No processo, nós utilizamos métodos estatísticos combinados com uma análise de enunciações fundamentada na Filosofia da Linguagem de Bakhtin e na Gramática Sistêmico- Funcional de Halliday. Nossos dados mostram que a maioria dos estudantes declara ter feito os registros com frequência e interesse, além de atribuir diversas funções aos mesmos.

Avaliação da prática pedagógica; Recursos mediacionais para o ensino das ciências; Análise de enunciações e Gramática Sistêmico-Funcional.


En esta investigación, presentamos los resultados de evaluación de un recurso que utilizamos para enseñar ciencias: la producción de registros de las actividades realizadas por los estudiantes en sus propios cuadernos. Investigamos si los estudiantes valoran la producción de registros, así como sus justificativas para el interés o desinterés por esa práctica. Nuestros datos fueron renegados a partir del análisis de respuestas dadas por 196 estudiantes a un cuestionario de evaluación del curso. En el proceso, utilizamos métodos estadísticos combinados con análisis de enunciaciones fundamentada en la Filosofía del Lenguaje de Bakhtin y en la Gramática Sistémico Funcional de Halliday. Nuestros datos muestran que la mayoría de los estudiantes declaran haber hecho los registros con frecuencia e interés, además de atribuir diversas funciones a los mismos.

Evaluación de la práctica pedagógica; Recursos mediacionales para la enseñanza de ciencias; Análisis de enunciaciones; Gramática Sistémico Funcional.


In this research, we present a students' assessment about the practice to produce records of Science Education Activities. We wonder if students value the production of records, and how they justify their interests or disinterests in this practice. Our data were generated by analyzing the responses of 196 students to a questionnaire course evaluation. In this process we use typical statistical analysis of quantitative research methods, but we also produced an analysis of utterances inspired in the Bakhtin's Philosophy of Language and in Halliday's Systemic Functional Grammar. Our data shows that most students claims to have made records with attendance and interest. Moreover, they ascribe various functions to records.

Assessment of teaching practice; Mediational means for science education; Analysis of utterance and Systemic functional grammar.


Introdução

Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla na qual estamos investigando os recursos que medeiam o ensino e a aprendizagem em um curso introdutório de Física no qual atuamos como professores. Esse curso compõe o primeiro ano de cinco currículos de Ensino Técnico Integrado, de nível médio, em uma escola vinculada a uma universidade federal brasileira.

O problema que deu origem à pesquisa aqui relatada foi assim formulado: nós, professores, incentivamos os estudantes a produzir registros, no caderno de classe, das atividades realizadas durante o curso, mas será que esses sujeitos também valorizam o caderno como uma mediação para aprender física?

As três questões de pesquisa que concebemos a partir desse problema foram: (i) do ponto de vista dos estudantes, que funções o caderno desempenha? (ii) como se comparam as contribuições que nós atribuímos ao caderno com aquelas mencionadas por esses sujeitos? (iii) como os estudantes explicam seu interesse ou seu desinteresse pela realização de registros no caderno?

Em nosso curso, o incentivo docente à produção no caderno envolve várias estratégias. O registro de tarefas para casa e de algumas das atividades feitas em sala é exigido pelos professores, que recolhem e avaliam os cadernos junto com os testes. Ao fim de cada trimestre, a nota atribuída a esse caderno corresponde a 20% dos pontos distribuídos.

Existem registros que os professores estabelecem como obrigatórios, mas há, ainda, a cobrança de um número mínimo de outros registros escolhidos pelos próprios estudantes a partir de opções que incluem anotações e resumos pessoais do conteúdo estudado, pesquisas que respondem a curiosidades levantadas em sala de aula, atividades complementares acessíveis no site mantido pelos professores2, etc. Por fim, merece destaque a permissão de consulta exclusiva ao caderno de classe e ao caderno de laboratório nos testes de avaliação da aprendizagem, que compõem outros 20% dos pontos distribuídos em cada trimestre.

Os dados que aqui apresentamos e analisamos foram produzidos a partir de respostas dadas pelos estudantes a um questionário de avaliação do curso. Por essa razão, podemos dizer que nosso trabalho se insere em uma perspectiva educacional que procura envolver os estudantes na avaliação da atividade escolar. Tal perspectiva, denominada avaliação dialógica, foi explicitada e discutida em Paula e Moreira (2014PAULA, H. F e MOREIRA, A. F. Atividade, ação mediada e avaliação escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 30(1), 17-36, 2014.). Esses autores afirmam que, na educação escolar, só se beneficia da avaliação quem se faz sujeito do processo. Sendo assim, torna-se importante rever o papel secundário normalmente atribuído aos estudantes nas práticas de avaliação. Com a participação desses sujeitos, nós, professores, podemos adequar nossa atuação e os recursos que utilizamos para ensinar ciências.

A avaliação positiva acerca da prática de produzir registros no caderno - que ficará evidente mais adiante, na seção de apresentação e análise de dados - difere daquela que os estudantes fizeram da produção de relatórios de atividades feitas no laboratório. Essa segunda avaliação é apresentada em outro artigo, em fase final de conclusão, no qual utilizamos dados oriundos do mesmo questionário de avaliação do curso usado para a produção deste artigo.

Os dados apresentados aqui nos autorizam a afirmar que a maioria dos estudantes utilizou, com frequência e interesse, um caderno para o registro de atividades feitas em classe. No trabalho sobre a produção de relatórios, todavia, os estudantes apresentam diversas críticas aos relat´-órios. Nesse outro artigo, nós mostramos como a decisão de escutar os estudantes produziu mudanças na frequência com que propusemos esse tipo de tarefa, bem como nas características dos relatórios que passamos a demandar dos estudantes.

Tomando esses dois trabalhos como referência, nós podemos dizer que nossa prática de avaliação dialógica tem duas implicações para o ensino pelo qual somos responsáveis: (i) a alteração das mediações avaliadas negativamente pelos estudantes e das atividades nas quais essas mediações são utilizadas; (ii) a manutenção daquelas mediações cuja avaliação pelos estudantes converge com nossas expectativas.

Referencial teórico

Ação mediada e Sistema de Atividade

Os conceitos de mediação e ação mediada são centrais no modo como Vygostsky caracterizou o surgimento e o funcionamento das capacidades especificamente humanas (KOZULIN, 2002KOZULIN, Alex. O conceito de atividade na psicologia soviética: Vygotsky, seus discípulos, seus críticos. In: DANIELS, H. (Org.) Uma introdução a Vygotsky. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 111-138.; WERTSCH, 1985WERTSCH, James. Mediation. In: DANIELS, H.; COLE, M.; WERTSCH, J. (Org.). The Cambrigde Companion to Vygotsky. Cambridge Collections Online. New York: Cambridge University Press, 2007, p. 178-192., 1998WERTSCH, James. Mind as action. New York: Oxford University Press, 1998., 2007). Para Vygostsky e seus colaboradores Luria e Leontiev, que são considerados fundadores da psicologia sócio-histórica, a atividade humana é necessariamente constituída por ações que são mediadas, quer seja por ferramentas materiais, quer seja por "ferramentas" psicológicas.

Werstch (1998)WERTSCH, James. Mind as action. New York: Oxford University Press, 1998. elege a ação mediada como a unidade de análise para o estudo das atividades humanas e, nesse contexto, sugere que a distinção entre as ferramentas materiais e as psicológicas é mais sutil do que parece. O autor argumenta que o uso de ferramentas materiais não modifica apenas os objetos do mundo físico ou nossas ações sobre tal mundo, mas, também, a nós mesmos, visto que interferem no fluxo e na estrutura de nosso funcionamento mental. Partindo desse ponto de vista, Werstch (1998)WERTSCH, James. Mind as action. New York: Oxford University Press, 1998. sugere a substituição dos termos "ferramentas materiais e psicológicas" pelo conceito mais amplo de mediacional mean, um termo que temos traduzido por meio da expressão "recursos mediacionais".

Além de ser influenciada pela obra de Werstch, a forma como nós concebemos e utilizamos as noções de ação mediada e mediação é amplamente baseada na Teoria da Atividade (TA), tal como ela é concebida por Engeströn (1987). Aqui, nossa apresentação da TA ficará restrita à caracterização do conceito de Sistema de Atividade. Uma descrição do sistema de atividades Curso de Física que compõe o contexto desta pesquisa será usada com esse objetivo (ver o diagrama da FIG. 1).

Figura 1:
Sistema de atividades "Curso de Física que compõe o contexto desta pesquisa

Os elementos do sistema apresentado na FIG. 1 estão ligados por linhas. Essas linhas representam tensões entre esses elementos, que, todavia, não serão mencionadas e discutidas aqui. O leitor interessado poderá encontrar uma apresentação do significado dessas linhas ou tensões e de seu papel no dinamismo de um sistema de atividades em Paula e Moreira (2014PAULA, H. F e MOREIRA, A. F. Atividade, ação mediada e avaliação escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 30(1), 17-36, 2014.).

Os sujeitos que compõem o sistema representado na FIG. 1 são os três professores responsáveis pela disciplina Introdução à física e os estudantes que compuseram as seis turmas que vivenciaram o curso de física no ano de 2013. Dois desses três professores são também autores do presente artigo. Os objetos ou motivos atribuídos institucionalmente a esse sistema (vide lado direito do diagrama) são o ensino e a aprendizagem da física escolar, e o resultado esperado para o sistema tem duas dimensões complementares: (i) a preparação dos estudantes para compreender os conteúdos das disciplinas profissionalizantes dos cursos oferecidos em nossa escola, que são altamente dependentes da física; (ii) a preparação dos estudantes para se tornarem sujeitos de uma sociedade que valoriza e utiliza essa ciência.

A expressão "recursos mediacionais", que aparece no topo do diagrama mostrado na FIG.1, diz respeito a um amplo espectro de mediações a partir das quais os sujeitos desse sistema de atividades se movem em direção ao objeto ou motivo ensino e aprendizagem da física escolar. Tendo em vista o interesse deste artigo, o diagrama destaca um recurso específico: o caderno de classe, a partir do qual se instituiu a prática de os estudantes produzirem registros escritos das atividades.

Em sua base, o diagrama mostra que a relação entre os sujeitos e o objeto do sistema é mediada pela comunidade na qual esses sujeitos estão inseridos. Essa comunidade, no nosso caso, é constituída no seio de uma instituição de ensino técnico integrado de nível médio, a qual possui sua própria história e regula as ações mediadas dos sujeitos (professores e estudantes). Tal regulação ocorre por meio de regras e formas de divisão do trabalho (ver extremidade inferior esquerda e direita do diagrama da FIG.1).

Do ponto de vista das regras instituídas nesse sistema de atividades, o uso do caderno de classe não é uma escolha para os estudantes, mas uma norma instituída pelos professores. No que diz respeito à divisão do trabalho, cabe aos professores determinar os conteúdos a serem registrados no caderno, bem como avaliar a adequação dos registros.

Enunciação e sentido

Os textos que os estudantes produziram como resposta ao item do questionário que demandava justificativas para o interesse ou o desinteresse pelo caderno poderiam ser interpretados seguindo duas perspectivas distintas: análise de conteúdo ou análise discursiva. Em decorrência de nossas concepções sobre o papel da linguagem nas interações humanas, que foram influenciadas pela obra de Bakhtin (1992BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal: os gêneros do discurso. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes. 1997., 1997BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. São Paulo: Unesp/Hucitec, 1998.), nós optamos por interpretar esses textos sob a ótica de uma Análise de Enunciações.

O conceito de enunciação está no centro do arcabouço teórico da obra de Bakhtin. Lima (2005LIMA, Maria Emília Caixeta de Castro. Sentidos do trabalho: a educação continuada de professores. Belo Horizonte, Editora: Autêntica, 2005.) nos introduz esse conceito-chave ao afirmar que toda enunciação é marcada pelas seguintes características: (a) a existência de um projeto de dizer de quem enuncia3 ; (b) a presença de um interlocutor, que interfere na enunciação mediante uma reação, que é antecipada pelo enunciador ou que se manifesta enquanto o enunciador se expressa; (c) a possibilidade de identificação da enunciação como pertencente a um determinado gênero discursivo, definido a partir de certo número de esferas sociais de produção, circulação e recepção dos discursos.

Uma implicação do uso desse conceito nas pesquisas em educação é sinalizada por Paula e Lima (2010PAULA, H. F.; LIMA, M. E. C. C. Formulação de questões e mediação da leitura. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 15(3), 429-461, 2010.), quando destacam a importância de considerar os contextos concretos nos quais uma atividade humana ocorre e o papel dos sujeitos que dela participam para interpretar toda e qualquer enunciação. A esse respeito, Bakhtin (1997BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal: os gêneros do discurso. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes. 1997.) afirma que as situações em que se produz o dizer não se encontram isoladas daquilo que se enuncia, e, de modo complementar, em outro momento de sua obra, esse autor também nos diz que "para adivinhar o significado verdadeiro das palavras de outrem, pode ser decisivo saber-se quem fala e em que precisas circunstâncias" (BAKHTIN, 199, p. 141). Essa compreensão da importância de se conhecerem os sujeitos e os contextos do dizer é o que justifica nossa opção em ter descrito, na seção anterior deste artigo, o sistema de atividades dentro do qual os estudantes enunciaram sua avaliação sobre o uso do caderno como mediação para aprender física.

Uma segunda implicação importante do mesmo conceito é a afirmação de que a interpretação de uma enunciação será sempre marcada pelo lugar social ocupado pelos enunciatários ou intérpretes. Assim, interpretar uma enunciação é o mesmo que atribuir um sentido à mesma como um elo em uma longa cadeia de interações na qual se inserem o enunciador e o enunciatário (BAKHTIN, 1997BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal: os gêneros do discurso. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes. 1997., p. 386). Aplicando essa perspectiva na pesquisa relatada neste artigo, podemos dizer que nossa interpretação acerca do que os estudantes nos disseram, por escrito, ao avaliarem a prática de produzir registros das atividades no caderno corresponde aos sentidos que nós atribuímos a esse dizer, na condição de sujeitos do mesmo sistema de atividades no interior do qual tal prática foi instituída.

Além do que já dissemos, também é importante ressaltar que, para Bakhtin e seu círculo, a produção de sentidos no ato de interpretação da enunciação ou da palavra alheia envolve uma atitude crítica e responsiva de um sujeito que compreende e sente. Toda compreensão de enunciação ou palavra alheia implica, pois, uma reação ao que foi dito, de modo a complementar, negar ou questionar esse dizer. Como nos esclarecem Paula e Lima (2010PAULA, H. F.; LIMA, M. E. C. C. Formulação de questões e mediação da leitura. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 15(3), 429-461, 2010.), a compreensão envolve, assim, a produção de uma espécie de "fala interior", por meio da qual ocorre um povoamento da palavra alheia com as contrapalavras do sujeito que interpreta o que foi dito (BAKHTIN, 1981BAKHTIN, Mikhail. Discourse in the novel. In: BAKHTIN, M. The dialogic Imagination: four essays. Austin: University of Texas Press, 1981., p. 282).

A partir do referencial teórico acima exposto, na primeira etapa de nossa análise das enunciações produzidas pelos estudantes, nós elaboramos paráfrases desses discursos, de modo que fomos povoando as palavras dos estudantes com as nossas próprias contrapalavras. Apenas aquelas raras enunciações consideradas como muito curtas ou lacunares não foram objeto de nossas paráfrases. No primeiro caso, não julgamos necessário explicitar as contrapalavras a partir das quais nós realizamos nossas interpretações; no segundo, a produção de paráfrases foi inviabilizada por nossa dificuldade em interpretar o que foi dito.

Três dimensões do sentido potencial de uma enunciação

Com a intenção de encontrar padrões ou perfis nos modos dos estudantes de enunciar sua avaliação acerca do caderno como um recurso mediacional para aprender física e baseando-nos em nossa compreensão da Filosofia da Linguagem de Bakhtin e seu círculo, nós nos apropriamos de conceitos-chave da Gramática Sistêmico-Funcional (ou SFG, em inglês), que foi concebida pelo linguista Michael A. K. Halliday (ver, por exemplo, HALLIDAY (1985HALLIDAY, Michael. An introduction to functional grammar. London: Edward Arnold, 1985.)).

Basicamente, a SFG propõe que concebamos o ato de produção de uma mensagem (ou, em termos bakhtinianos, de uma enunciação) como algo que envolve seleções simultâneas de um grande número de opções inter-relacionadas que representam o "potencial de sentido" de uma determinada língua (HALLIDAY, 1976HALLIDAY, Michael. Estrutura e função da linguagem. In: LYONS, J. (Org.) Novos horizontes em linguística. Tradução de Jesus Antônio Durigan. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 134-160.). Desse ponto de vista, ao enunciarmos, nós realizamos, necessariamente, escolhas dentro de um sistema semiótico socialmente constituído (HALLIDAY, 1978HALLIDAY, Michael. Language as social semiotic: The social interpretation of language and meaning. London: Edward Arnold, 1978.).

Produzir enunciações por meio desses atos de escolha nos permite, dentre outras coisas, especificar ou generalizar, introduzir ou omitir nossa avaliação acerca do que estamos dizendo, construir argumentos que sustentem tal avaliação, assumir essa avaliação como uma opinião pessoal ou caracterizarmo-nos como representantes de um grupo de interesses. Esses exemplos das potencialidades da linguagem não foram apresentados aqui ao acaso, mas identificam as principais diferenças entre os tipos de enunciação elaborados pelos estudantes que responderam ao questionário de avaliação do curso quando confrontados com a demanda de explicar o seu interesse ou o seu desinteresse pela realização de registros no caderno.

A estrutura do sistema de opções disponíveis para a produção de uma enunciação é caracterizada por Halliday (1976HALLIDAY, Michael. Estrutura e função da linguagem. In: LYONS, J. (Org.) Novos horizontes em linguística. Tradução de Jesus Antônio Durigan. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 134-160.) como a "gramática funcional da língua". Esse autor esclarece que, além de estar limitado por essa "gramática", o falante, ou o escritor, faz suas escolhas sob a influência dos contextos de enunciação. Assim, como existem, virtualmente, infinitos contextos distintos ou específicos, Halliday (1976HALLIDAY, Michael. Estrutura e função da linguagem. In: LYONS, J. (Org.) Novos horizontes em linguística. Tradução de Jesus Antônio Durigan. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 134-160.) considera que a língua é usada para servir a uma variedade virtualmente infinita de diferentes necessidades. Entretanto, existem certas funções básicas da linguagem que nos permitem entender a estrutura do sistema de opções disponíveis para a produção de uma enunciação, ou seja, compreender a gramática funcional da língua.

Essas funções gerais, ou metafunções, são denominadas ideacional, textual e interpessoal. A primeira é identificada na comunicação de informações acerca de objetos, eventos, acontecimentos, estados, processos, sentimentos, qualidades e valores. Em outras palavras, a função ideacional está associada à representação das experiências dos sujeitos sobre o "mundo", seja ele interior ou exterior à sua própria consciência. De acordo com Halliday (1976HALLIDAY, Michael. Estrutura e função da linguagem. In: LYONS, J. (Org.) Novos horizontes em linguística. Tradução de Jesus Antônio Durigan. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 134-160., p. 136), ao desempenhar tal função, uma língua também estrutura a experiência e ajuda a determinar nossa maneira de ver as coisas.

Já metafunção textual permite a qualquer língua estabelecer coesão entre os elementos que compõem uma enunciação ou um conjunto de enunciações, bem como explicitar sua coerência com as características da situação ou do contexto da comunicação. Da mesma forma que não existe ato de comunicação sem uma informação a ser comunicada (isto é, sem a presença da função ideacional), também não existe ato de comunicação sem, por um lado, a garantia de uma coesão estrutural interna entre os elementos que compõem esse ato e, por outro lado, a construção de uma coerência contextual externa com a situação na qual tal ato se realiza. Dito de outra forma, a coesão estrutural interna e a coerência contextual externa são os dois aspectos constitutivos da metafunção textual. Ademais, somente em virtude da existência de uma função textual da linguagem é que uma determinada enunciação se torna distinguível de enunciações anteriores ou posteriores. Extrapolando Halliday (1976HALLIDAY, Michael. Estrutura e função da linguagem. In: LYONS, J. (Org.) Novos horizontes em linguística. Tradução de Jesus Antônio Durigan. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 134-160., 1978HALLIDAY, Michael. Language as social semiotic: The social interpretation of language and meaning. London: Edward Arnold, 1978., 1985HALLIDAY, Michael. Language as social semiotic: The social interpretation of language and meaning. London: Edward Arnold, 1978.) e resgatando o que dissemos de Bakhtin, afirmamos que a função textual da linguagem é o que nos permite delimitar uma enunciação como um elo dialógico de uma interação discursiva e que o sentido "real" ou histórico de uma enunciação depende do imenso fluxo de interações do qual ela faz parte.

A língua escrita possui recursos específicos para dar a uma enunciação o acabamento que a diferencia de outras enunciações, como o ponto final em uma oração, uma quebra de parágrafo, a introdução de um novo subtítulo ao texto, etc. Nas interações verbais orais, por sua vez, aquele que enuncia pode interromper a enunciação de outrem ou, ao contrário, sentir que está autorizado a enunciar por receber sinais de que a enunciação iniciada por seu interlocutor foi concluída. Para fazer tal sinalização, um interlocutor pode utilizar vários recursos de comunicação, como os gestos, as mudanças de postura corporal ou alterações na entonação da voz sucedidas pelo silêncio. Sinalizar o término de uma enunciação é condição para observar se a intenção que levou o enunciador a se expressar obteve o efeito de sentido desejado.

Para caracterizar a terceira função geral da linguagem, ou metafunção interpessoal, podemos afirmar que não existe enunciação ou ato comunicativo se não houver entre os sujeitos relações sociais específicas de poder, tolerância, indiferença ou solidariedade, a serem mantidas, estabelecidas ou alteradas no fluxo das interações. Além disso, parafraseando as palavras do próprio autor (HALLIDAY, 1976HALLIDAY, Michael. Estrutura e função da linguagem. In: LYONS, J. (Org.) Novos horizontes em linguística. Tradução de Jesus Antônio Durigan. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 134-160., p. 136), nós podemos dizer que, através da função interpessoal, os grupos sociais são delimitados, e os processos identitários são constituídos nas relações estabelecidas entre os atores sociais.

Os indícios para identificar a manifestação da função interpessoal em uma enunciação estão ligados às escolhas feitas pelo enunciador sobre o que deve ser mencionado ou omitido. Por um lado, tais escolhas nos remetem à função ideacional da enunciação, mas, por outro, dependem do modo como o enunciador concebe seu enunciatário, concepção esta que é determinada pelas relações sociais estabelecidas entre esses dois sujeitos. Por essa razão, as escolhas sobre o que mencionar ou omitir são manifestações simultâneas tanto da função ideacional quanto da interpessoal.

De modo similar, as escolhas ligadas à estruturação interna de uma enunciação obrigam um enunciador a decidir, por exemplo, qual informação ou raciocínio deve ser introduzido no início da mensagem. Informações e raciocínios que ocupam esse lugar na estrutura de uma enunciação são, geralmente, aqueles que o enunciador supõe serem do conhecimento do enunciatário. A ordem de apresentação desses elementos é importante, porque o que aparece no início de uma enunciação serve de base para uma introdução àquilo que é supostamente desconhecido ou não compreendido pelo enunciatário.

A escolha da ordem de apresentação de informações e raciocínios em uma enunciação nos remete, por definição, à função textual da linguagem, mas essa mesma escolha também nos revela a maneira como o enunciador concebe seu enunciatário ao atribuir a esse outro sujeito diferentes graus de conhecimento e ignorância. Dessa feita, a estruturação interna de uma enunciação e a avaliação de que ela é adequada a um dado contexto interacional são manifestações simultâneas das funções textual e interpessoal da linguagem. Por fim, como não há estrutura textual sem elementos a serem estruturados, podemos identificar a presença da função ideacional nas relações que acabamos de estabelecer e, daí, concluir que as três funções gerais da linguagem, por serem irredutíveis uma a outra, são simultaneamente complementares e indissociáveis.

Como complemento do parágrafo anterior, podemos dizer que inúmeros elementos podem ser representados ideacionalmente em uma enunciação, e, ademais, incontáveis diferentes textos ou "tecidos" podem ser criados para dar coesão interna e coerência contextual a esses elementos. Assim, podemos estudar as escolhas ideacionais, textuais e interpessoais que caracterizam uma enunciação no intuito de identificar ênfases, hierarquias ou relações causais postuladas pelo enunciador, em decorrência da forma como ele concebe tanto aquilo que diz quanto aquele com quem se comunica.

Metodologia da pesquisa

Caracterização do instrumento de pesquisa

Como já brevemente mencionado na introdução deste artigo, os dados aqui apresentados e analisados provêm de um questionário destinado a orientar estudantes a avaliarem um curso introdutório de física e a autoavaliarem seu comportamento e seu interesse pelos recursos mediacionais nele utilizados.

O conceito de "interesse" que nós utilizamos neste trabalho pode ser atribuído a Hidi e Renninger (2006HIDI, S., RENNINGER. K. The Four-Phase Model of Interest Development. Educational Psychologist, v.41(2), 111-127, 2006), a Krapp (2002KRAPP, A. Basic needs and the development of interest and intrinsic motivational orientations: learning and Instruction. Oxford, v.15, n.5, p.381-395, 2005., 2005KRAPP, A. Basic needs and the development of interest and intrinsic motivational orientations: learning and Instruction. Oxford, v.15, n.5, p.381-395, 2005.), bem como a Swarat, Ortony e Revelle (2012SWARAT, S.: ORTONY, A.: REVELLE, W. Activity Matters: Understanding Student Interest in School Science. J Res Sci Teach, 49: 515-537, 2012.). Para esses autores, o interesse é concebido como um tipo específico de relacionamento entre um sujeito e um objeto marcado pela predisposição do sujeito a interagir com o objeto. Tal predisposição pode ter origens variadas e estar vinculada a motivações mais subjetivas ou mais objetivas. O entendimento dos estudantes para o termo "interesse" - que nós identificamos por meio da análise apresentada na próxima seção - é compatível com essa definição.

Assim, na seção de apresentação e análise dos dados, nós descreveremos que a maioria dos estudantes mostrou estabelecer uma relação com a prática de produzir registros no caderno por meio da atribuição de funções a esses registros. Desse modo, para a maioria dos estudantes, o que os predispõem a interagir com o caderno é a utilidade desse recurso como mediação para diversas ações que compõem os processos de ensino e aprendizagem por eles vivenciados.

O questionário de avaliação do curso que deu origem à nossa pesquisa foi aplicado no fim do primeiro trimestre de 2013 a todos os estudantes que compuseram as seis turmas da primeira série do Ensino Médio naquele ano. Na ocasião, os estudantes foram informados de que o preenchimento do questionário "não valia pontos", bem como de que não havia espaço para eles se identificarem nem recursos que nos permitissem identificá-los, a posteriori. Diante dessa informação, afirmamos que eles deveriam ser plenamente sinceros ao participarem daquela atividade de avaliação. Essa informação é repetida a cada vez que os estudantes são convidados a usar questionários para avaliar o curso, o que tem ocorrido frequentemente nos últimos anos.

Na parte I do questionário, os estudantes deveriam marcar uma entre três opções relacionadas à frequência de uso e ao interesse/desinteresse por cada recurso ou mediação utilizado no curso, bem como justificar por escrito esse interesse ou desinteresse. Os recursos educacionais foram listados na seguinte ordem:

(i) laboratórios virtuais, simulações e aplicativos de computador; (ii) experimentos realizados nas salas de laboratório; (iii) produção de relatórios desses experimentos; (iv) demonstrações, investigações compartilhadas e atividades em grupo feitas em sala de aula; (v) textos didáticos extraídos de livros de física para o Ensino Médio; (vi) listas de exercícios; (vii) caderno dedicado à produção de registros das atividades feitas em casa ou em sala de aula; (viii) aulas expositivas dedicadas à apresentação de conceitos, modelos e teorias. Os itens de múltipla escolha 17 e 18, bem como o item dissertativo 19, diziam respeito à produção de registros no caderno. Esses itens seguem reproduzidos abaixo.

17- Em relação à frequência com que você fez registros das atividades no caderno dedicado à produção de registros das atividades feitas em casa ou em sala de aula, na época em que as atividades foram propostas:

( ) Fiz poucos registros ( ) Fiz vários registros ( ) Fiz muitos registros

18- Em relação ao seu interesse por realizar registros no caderno de aula:

( ) Fiz todos ou a maioria dos registros com pouco interesse.

( ) Fiz alguns registros com interesse e outros com pouco interesse.

( ) Fiz todos ou a maioria dos registros com muito interesse.

19- No espaço disponível a seguir [o estudante contava com cinco linhas pautadas e em branco para redigir sua resposta], diga o que poderia explicar o seu interesse ou o seu desinteresse pela realização de registros no caderno de sala de aula.

Note o leitor que, no item 17, há um trecho negritado e sublinhado no original. A produção dos registros no caderno de classe era uma ação praticamente obrigatória, tendo em vista o valor atribuído a esses registros na distribuição de pontos (20% do total). Na época em que redigimos esse item, supusemos que alguns estudantes poderiam copiar os registros de outros colegas às vésperas dos períodos nos quais os cadernos seriam recolhidos e avaliados. Esse comportamento poderia desqualificar os dados sobre a frequência de produção dos registros, pois, se esses registros não tivessem sido produzidos na época da realização das atividades, não haveria uma relação autêntica entre a frequência de uso e o interesse pelos recursos.

A Parte II do questionário continha itens aos quais couberam respostas que não foram analisadas nesta pesquisa. A Parte III era constituída por oito quadros dedicados à avaliação das eventuais contribuições de cada recurso mediacional usado no curso para uma lista fechada de ações ou processos centrados no uso de outros recursos. O quadro dessa Parte III do questionário, que foi utilizado para a avaliação da prática de produzir registros no caderno, segue reproduzido abaixo.

Quadro 1:
Contribuições do caderno para:

O estudante foi orientado a marcar um X sobre o numeral 0 (zero) quando ele julgasse que o caderno ou qualquer outro recurso por ele avaliado não havia dado nenhuma contribuição efetiva para ações ou processos mencionados no quadro. O numeral 1 (um) deveria ser marcado caso o estudante entendesse que o recurso avaliado havia dado uma pequena contribuição. O numeral 2 (dois) seria a opção para o estudante que considerasse o recurso avaliado como tendo dado uma contribuição média. Finalmente, o numeral 3 (três) seria a escolha a ser feita pelo estudante que julgasse o recurso avaliado como tendo dado uma grande contribuição.

Estratégias para produção e análise dos dados

Os questionários foram numerados de 1 a 196. As respostas dos estudantes aos itens objetivos 17 e 18 da Parte I do questionário foram graduadas de "1" a "3", seguindo a ordem das alternativas que indicam um crescimento na frequência de realização de registros no caderno ou no interesse pela produção dos mesmos. As respostas ao item reproduzido no Quadro 1 acima já estavam graduadas de "0" a "3". Esses itens objetivos foram tratados com o software estatístico SPSS. As respostas ao item discursivo foram digitadas em um arquivo do software Microsoft Excel. Nos dois casos, não houve separação das respostas por turmas, embora a identificação de um dado questionário como tendo sido produzido em uma dada turma pudesse ser resgatada, a qualquer momento, caso se tornasse de interesse para a pesquisa.

Usando o SPSS, nós produzimos uma tabela de contingência (ver seção V.1 deste artigo), que nos permitiu conjecturar a existência de seis perfis de estudantes, identificados pelas seis primeiras letras do alfabeto. A partir desses perfis, produzimos seis planilhas distintas no Excel para reunir as respostas em que esperávamos encontrar justificativas semelhantes de interesse ou desinteresse pela prática de fazer registros no caderno de classe.

Após criar as planilhas, nós parafraseamos, praticamente, todas as enunciações dos estudantes. A criação das paráfrases nos permitiu produzir interpretações mais elaboradas das enunciações, pois deu origem às justificativas e aos argumentos que cada um de nós apresentou ao outro durante a fase de negociação de sentidos, por meio da qual construímos uma compreensão mais consensual das respostas dos estudantes. Na linguagem utilizada na metodologia de pesquisa qualitativa (ver, por exemplo, LINCOLN e GUBA (1991LINCOLN, Y. e GUBA, E. Naturalistic inquiry. New York, Sage, 416 p. 1991.)), essa negociação de sentidos costuma ser denominada "validação por pares".

Confrontamos, por diversas vezes, as enunciações originais e as paráfrases que nós produzimos e, assim, fomos, progressivamente, identificando modos de enunciar que pareciam ser característicos de um dado perfil de estudantes. A partir das paráfrases, nós criamos as categorias de análise, inseridas em colunas adjacentes àquelas que, nas planilhas, continham o registro das enunciações dos estudantes. Os quadros 2 e 3, a seguir, apresentam as categorias concebidas durante essa etapa da análise. Note o leitor que as listas de categorias incluídas nos dois quadros não são idênticas. Isso decorreu do fato de que essas categorias não foram definidas a priori, mas emergiram da análise das enunciações. Sendo assim, perfis de enunciações diferentes, naturalmente, deram origem a listas de categorias também distintas.

Quadro 2:
Categorias de análise das enunciações de estudantes reunidos nos perfis C e F

Quadro 3:
Categorias de análise das enunciações de estudantes reunidos nos perfis A e D

Os perfis B e E, que não foram mencionados nos quadros 2 e 3, abrigaram, respectivamente, 12 e 48 enunciações cada um. As categorias usadas na análise das enunciações reunidas nesses perfis contêm uma composição daquelas que aparecem nos dois quadros acima apresentados. A razão para configurar esse terceiro tipo de planilha dessa forma deveu-se ao fato de que, nos perfis B e E, nós encontramos manifestações e justificativas relacionadas à existência tanto de interesse quanto de desinteresse pela produção de registros no caderno.

Com o filtro de dados do Excel, nós obtivemos a frequência de determinadas características das enunciações. Antes disso, e usando o mesmo recurso, nós agrupamos enunciações similares e, assim, pudemos refazer nossas paráfrases, ao mesmo tempo em que reinterpretamos e modificamos as categorias de análise. À medida que as paráfrases iam sendo traduzidas no conjunto de categorias que se estabilizou durante a análise, nós as retirávamos das planilhas, como um meio de registrar nossa avaliação de que o conjunto de categorias se mostrara capaz de expressar nossa interpretação das enunciações.

Pertinência das categorias de análise

A pertinência da categoria C1 mencionada nos quadros 2 e 3 pode ser justificada a partir da Gramática Sistêmico-Funcional de Halliday (1985)HALLIDAY, Michael. An introduction to functional grammar. London: Edward Arnold, 1985.. Assim, a diferença entre enunciar em primeira ou em terceira pessoa corresponde a duas manifestações distintas da função interpessoal da linguagem. Nas enunciações em 1ª pessoa, encontramos a presença explícita ou implícita do pronome pessoal reto (eu) ou dos pronomes pessoais oblíquos (me ou mim). Esses recursos foram usados pelo/a estudante para se identificar como um sujeito que assume sua enunciação como uma opinião pessoal.

Nas enunciações em 3ª pessoa, encontramos textos impessoais nos quais o plural majestático foi usado para generalizar uma dada opinião e atribuí-la a um grupo de estudantes cujo ponto de vista sobre o tema o autor da enunciação supõe representar. Esse papel de representante não apenas de si mesmo, mas de um grupo pode ser interpretado como uma forma de dar mais autoridade e poder ao que está sendo dito. É essa a razão pela qual a enunciação em 1ª ou 3ª pessoa muda o tipo de relação social estabelecida entre o estudante (o enunciador) e o professor (o enunciatário). No primeiro caso, temos uma relação entre dois sujeitos concebidos como indivíduos; no segundo, estabelece-se uma relação entre o professor e um sujeito coletivo (um dado grupo de estudantes supostamente identificados com a enunciação).

No quadro 2, as categorias C2, C4, C5 e C6 estão associadas à função ideacional, uma vez que elas identificam o que o estudante disse para justificar seu interesse ou não pela ação de produzir registros no caderno de classe. No quadro 3, as categorias associadas a essa mesma função da linguagem são a C2 e a C3.

As categorias C3 e C7 do quadro 2 e a categoria C4 do quadro 3 estão associadas à função textual da linguagem, pois resgatam características das enunciações relacionadas ao número de palavras usadas, bem como à presença de conectivos, orações subordinadas ou outros recursos congêneres. A categoria C3 no quadro 2 diz respeito à presença ou à ausência de uma explicação para o interesse pelos registros. No mesmo quadro, a categoria C7 identifica o número de funções atribuídas aos registros. No quadro 3, a categoria C4 especifica o número de justificativas para o desinteresse em produzir registros no caderno.

As categorias C8 do quadro 2 e C5 do quadro 3 também estão associadas à função textual, pois apontam para uma eventual coerência entre a frequência na produção dos registros e as justificativas dadas para o interesse ou o desinteresse em relação a esse tipo de ação.

Apresentação e análise dos dados

Associação entre as respostas dadas aos itens 17 e 18

A Tabela 1 associa as declarações dos estudantes nos itens de múltipla escolha que tratam da frequência da realização de registros no caderno de classe e as relacionadas ao interesse dos estudantes por essa prática. Nas colunas 2 e 3 dessa tabela, há letras maiúsculas, que identificam os perfis, bem como a frequência e o percentual de estudantes enquadrados em cada perfil.

Tabela 1:
Tabela de contingência das escolhas às alternativas dos itens 17 e 18.

A maioria absoluta dos estudantes (53,6%), que foram reunidos no perfil F, disse ter produzido vários ou muitos registros das atividades na época em que elas foram propostas, bem como ter realizado todos ou a maioria desses registros com muito interesse. Dos outros perfis mencionados na tabela, quatro não alcançaram percentuais na casa dos dois dígitos (perfis A, B, C e D). O perfil E foi o segundo em número de ocorrências e reúne estudantes que oscilaram entre interesse e desinteresse pela produção de registros.

Para avaliar se havia uma associação significativa entre as respostas dadas aos itens 17 e 18 do questionário e, assim, verificar a pertinência estatística dos perfis reunidos na Tabela 1, nós fizemos um teste de Qui-Quadrado, que revelou os seguintes valores: χ2 = 40,1 e p < 0,001. Esse resultado mostra que a associação entre o interesse por realizar registros e a frequência de sua produção no caderno é significativa. Contudo, por se tratar de mera associação, nós não podemos utilizar esse resultado para garantir a existência de uma relação causal entre os dois fatores correlacionados na Tabela 1.

Análise das enunciações produzidas como respostas ao item 19

Nesta seção, responderemos à terceira questão de pesquisa apresentada na introdução deste artigo, agora parafraseada em função do referencial teórico explicitado na seção II: como foram estruturadas as enunciações dos estudantes quando esses foram confrontados com a demanda de explicar o seu interesse ou o seu desinteresse pela realização de registros no caderno de sala de aula?

Embora tenhamos feito uma análise de todas as respostas dadas ao item 19, nós iremos retratar aqui apenas aquelas reunidas nos perfis A, D e F, que, juntas, correspondem a 66,1% das enunciações. Essa restrição tem como única justificativa o limite do número de páginas que pudemos dedicar à análise dos dados.

Caracterização dos perfis A e D

O perfil A reúne os 13 estudantes (de um total de 196) que, no item 17 do questionário, disseram ter produzido poucos registros e, no item 18, afirmaram que, em todas ou na maioria das situações, realizaram essa ação com pouco interesse. A falta de interesse é também característica dos 10 estudantes reunidos no perfil D, que, todavia, diferem-se daqueles associados ao perfil A, por terem produzido vários ou muitos registros. Considerando que o item 19 demandava justificativas para o interesse ou o desinteresse pela produção de registros no caderno de classe, seria natural se esperar que, nos perfis A e D, encontrássemos enunciações similares. Esse resultado esperado foi realmente observado.

Dos 13 questionários classificados no perfil A, apenas 10 continham respostas ao item 19. O silêncio de 3 estudantes enquadrados nesse perfil foi, todavia, interpretado como uma expressão de falta de interesse pelos registros, algo já declarado nas respostas desses sujeitos ao item 18. Vejamos a seguir dois exemplos de manifestação de desinteresse pelo caderno que são típicos do perfil A.

A1: Acho chato. Não me ajuda na hora de estudar. Prefiro buscar essas informações ou tê-las nos textos.

A2: Apenas prestei atenção e registrei o que achava necessário.

A1 argumenta que: (i) os registros não o ajudam a estudar; (ii) utiliza outras mediações para ter acesso às informações de que necessita; (iii) fazer registros é chato. Para A2, por outro lado, é suficiente prestar atenção (às aulas) e, por isso, a maioria dos registros é desnecessária.

Do ponto da função ideacional da linguagem, existem duas características marcantes nas enunciações encontradas nos perfis A e D. Em primeiro lugar, quase todos os estudantes nesses perfis disseram que fazer registros é desnecessário. No caso do perfil D, houve uma única exceção a esse tipo de afirmação. No perfil A, identificamos duas exceções. Em todas essas três exceções, os estudantes disseram não conseguir prestar atenção na fala do professor e escrever no caderno ao mesmo tempo. Isso nos pareceu estranho, pois os registros no caderno deveriam conter, preferencialmente, os resultados das tarefas marcadas para casa ou das atividades realizadas em pequenos grupos dentro de sala de aula. Por isso, não esperávamos encontrar declarações indicando um conflito entre a ação de produzir registros e o esforço em acompanhar a fala do professor.

Como segunda característica marcante das enunciações reunidas nos perfis A e D, no que tange à função ideacional, destaca-se o fato de que todos os estudantes reunidos nesses perfis apresentaram razões pessoais para justificar seu desinteresse pelo caderno. Assim, por exemplo, vários estudantes disseram considerar chato o ato de fazer registros; um estudante declarou ter boa memória e, além disso, afirmou não conseguir entender a própria letra; há um caso em que o estudante disse fazer registros apenas para não dormir em sala; dois estudantes justificaram o desinteresse a partir de seus estilos de aprendizagem (focar a atenção apenas nas fórmulas, em um dos casos, e prestar atenção às aulas, no outro).

Passando para a análise da manifestação da função interpessoal da linguagem nas enunciações reunidas nesses dois perfis, notamos que, com exceção de um único estudante, todos responderam ao item 19 com discurso em primeira pessoa, marcado pela presença implícita ou explícita dos pronomes pessoais reto: (eu), oblíquos (mim e me) ou possessivos (meu e minha). O estudante do perfil A que constitui a única exceção a esse padrão usou uma lógica de atributos ao dizer que:

A3: Copiar a matéria no caderno é muito chato, mas é necessário.

Essa declaração isenta o estudante de assumir como estritamente sua a avaliação que apresenta para a prática de fazer registros no caderno, tendo em vista que se baseia na atribuição de duas qualidades distintas a esse recurso mediacional: essa prática é muito chata (qualidade 1), mas é necessária (qualidade 2). A presença do advérbio "muito" indica que a qualidade 1 predomina sobre a qualidade 2 e, por essa razão, o desinteresse prevalece sobre o interesse.

Não obstante a coerência dessa declaração com a resposta do estudante aos itens 17 e 18, nós consideramos essa enunciação textualmente curiosa, porque o estudante faz uso da expressão "copiar a matéria no caderno". Afinal, no ambiente de ensino/aprendizagem onde realizamos a pesquisa, predomina a realização de atividades em pequenos grupos no espaço da sala de aula, e, embora, os professores façam uso da palavra para comentar atividades e apresentar conceitos, modelos e explicações, nós não consideramos essas ocasiões frequentes o suficiente para provocar nos estudantes a necessidade de "copiar a matéria" como um uso principal ou característico do caderno.

Apesar das inúmeras semelhanças, as enunciações reunidas nos perfis A e D diferem umas das outras em uma característica importante, que está relacionada à função textual da linguagem. No perfil A, todas as justificativas apresentadas para a falta de interesse foram plenamente coerentes com as respostas dadas ao item 17, nas quais os estudantes disseram ter produzido poucos registros. No perfil D, entretanto, os estudantes foram majoritariamente incoerentes, pois apresentaram justificativas para seu desinteresse pelo caderno, embora houvessem declarado, anteriormente, terem produzido vários ou muitos registros. Duas exceções a essa manifestação de incoerência encontradas no perfil D seguem apresentadas a seguir.

D1: Fiz registros por entender sua importância, porém é uma atividade exaustiva.

D2: Eu registro para evitar que eu durma.

Em D1 não há incoerência contundente entre o desinteresse pelo caderno e a frequência na produção de registros, pois o estudante apresenta uma posição ambivalente: por um lado, declara que a produção de registros é exaustiva; por outro, há um reconhecimento de que essa prática é importante. Em D2 fica claro que a falta de interesse não incide, especificamente, sobre o caderno, mas caracteriza a relação do estudante com a física enquanto disciplina escolar ou, quem sabe, com a própria escola. Seu interesse parcial pelos registros é justificado por ele julgar que é importante ficar acordado durante as aulas de física.

Caracterização do perfil F

No extremo oposto do quesito interesse pelo caderno de classe, nós encontramos os estudantes reunidos no perfil F. No que diz respeito à função interpessoal da linguagem, diferentemente do quadro encontrado nos perfis A e D, houve uma distribuição equilibrada entre a escolha por estruturar discursos feitos em terceira pessoa (51%) ou em primeira pessoa (49%). Praticamente, metade dos estudantes fez uso do plural majestático e, com esse recurso de linguagem, apresentou sua opinião como expressão do ponto vista de um grupo. Isso pode ser interpretado assim: metade dos estudantes considera que o interesse pelos registros e a frequência de sua produção é algo comum em sua turma.

Essa interpretação é compatível com o fato de que, em 103 dos 105 questionários reunidos no perfil F, encontramos uma avaliação bastante favorável à produção de registros no caderno. No que diz respeito à função ideacional da linguagem, desse total de 103 respostas, em apenas 8 enunciações há justificativas genéricas de interesse pelos registros no caderno, as quais não se fazem acompanhar da atribuição de, pelo menos, uma função específica para esses registros. Dos 95 estudantes que atribuíram funções aos registros, 53 mencionaram duas funções, distintas e complementares.

A Tabela 2, apresentada a seguir, compara a frequência de funções atribuídas ao caderno pelos estudantes reunidos no perfil F com aquelas mencionadas por estudantes dos perfis E, B e C. No perfil E, 36 estudantes atribuíram funções aos registros. No perfil B, foram apenas 2; enquanto no perfil C, apenas 1 estudante fez esse tipo de atribuição. A Tabela 2 não faz referência aos perfis A e D porque, nesses casos, não houve atribuição de funções ao caderno, o que é coerente com o fato de que os estudantes reunidos nesses dois perfis declararam ter pouco interesse pelo caderno.

Voltando à caracterização exclusiva do perfil F, e tratando agora da manifestação da função textual da linguagem, é importante destacar a coerência entre as declarações de interesse pelo caderno e a frequência com que os estudantes produziram registros das atividades. Apesar de nenhum estudante desse perfil ter utilizado todo o espaço disponível para responder ao item 19, dentre todos os perfis analisados, as enunciações dos estudantes reunidos no perfil F foram, em geral, as mais longas e elaboradas. Assim, para 36 das 95 manifestações de interesse que se basearam na atribuição de funções específicas ao caderno, houve uma explicação de como os registros cumprem as funções a eles atribuídas.

Paradoxalmente, algumas enunciações, apesar da riqueza de informações que continham, foram expressas em textos bem curtos, pois estavam sustentadas por informações contidas na formulação do item 19, bem como em conhecimentos compartilhados entre o estudante - o enunciador - e nós, professores - seus enunciatários. Dentre as enunciações reproduzidas a seguir, aquela elaborada pelo estudante F3 é claramente um exemplo de texto curto, mas rico em termos de informações e argumentos.

Tabela 2:
Frequência das funções atribuídas aos registros pelos estudantes (por perfil)

Três tipos de explicação sobre a importância dos registros no caderno ou o interesse em produzi-los foram encontrados no perfil F. No tipo 1, exemplificado nas enunciações F1 e F2, os estudantes atribuem qualidades ao caderno que explicam por que esse recurso é adequado à função a ele atribuída.

F1- Os registros no caderno o transformam em uma espécie de livro, em que se pode consultar a matéria novamente.

F2- Os registros me ajudam a estudar mais. É como se fosse uma cola, onde eu posso olhar sempre que quiser.

A função que os estudantes F1 e F2 atribuem ao caderno é a de ajudá-los a estudar ou consultar a matéria quando tal consulta se faz necessária. O caderno é apresentado como ferramenta ou recurso apropriado a essa finalidade (estudar a matéria a posteriori) porque os registros nele presentes o "transformam em uma espécie de livro" ou em "uma espécie de cola", que são as qualidades ou os atributos do caderno mencionados por esses estudantes.

No segundo tipo de explicação, exemplificado nas enunciações F3 e F4, os estudantes explicitam preferências no seu modo de estudar e aprender para mostrar como o caderno se adéqua a essas preferências.

F3- Estudo com o que eu mesmo escrevi.

F4- Prefiro estudar pelas minhas anotações a estudar pela leitura de outros materiais ou exercícios.

Assim como no caso dos estudantes F1 e F2, a função que o estudante F3 atribui ao caderno também é a de ajudá-lo a estudar a matéria. Porém, diferentemente do que ocorre com os dois primeiros estudantes, a explicação dada para a importância dos registros não recai sobre uma característica atribuída ao caderno (parecer com uma cola ou com uma espécie de livro), mas sobre uma característica do próprio estudante, na condição de sujeito de um processo de aprendizagem. Nós interpretamos essa enunciação como se o estudante F3 nos dissesse que: (i) é importante para ele estudar em um material que contenha registros do seu modo particular de compreender a matéria; (ii) ele é um sujeito que aprende mais ao retomar conhecimentos da física que já foram "traduzidos" em suas próprias palavras.

O estudante F4 nos diz algo semelhante, pois também sugere que o fato de ele ser o autor dos registros é o que torna o caderno uma mediação mais adequada para sua aprendizagem. Contudo, ele diz mais que o estudante F3, ao comparar, explicitamente, o recurso mediacional caderno com outros recursos normalmente usados para estudar física.

Finalmente, no terceiro tipo de explicação, exemplificado nas enunciações F5 e F6, a seguir, o estudante nomeia uma ação, atribui um objetivo a essa ação e identifica o caderno como o recurso mediacional por meio do qual esse objetivo é alcançado.

F5- Sempre registro as coisas, pois, são importantes e assim, posso estudá-las em casa, sem chances de esquecer as matérias.

F6- Fiz os registros, pois escrevendo eu também aprendo.

A ação nomeada pelo estudante F5 é a de estudar a matéria em casa; o objetivo atribuído a essa ação é não esquecer a matéria; o caderno é identificado como o recurso que medeia essa ação e permite alcançar esse objetivo. No caso desse estudante, o caderno adquire uma função mnemônica, pois ele é visto como uma mediação que contribui para esse sujeito não "esquecer as matérias". Já no caso do estudante F6, a ação destacada pelo estudante é a de escrever; o objetivo atribuído a essa ação é o de aprender física; o caderno é a mediação ou o suporte no qual a escrita acontece, propiciando, assim, a aprendizagem.

Contraste nas avaliações docente e discente sobre as funções do caderno

Na introdução deste artigo, apresentamos três questões de pesquisa. As funções que o caderno desempenha do ponto de vista dos estudantes e a forma como esses sujeitos explicam seu interesse ou desinteresse por produzir registros no mesmo foram abordadas nas seções anteriores. Nesta seção, apresentamos mais dados sobre as contribuições ao ensino e à aprendizagem que foram identificadas pelos estudantes. Ademais, discutimos como essas contribuições se comparam com aquelas que nós mesmos, na condição de professores, atribuímos a esse recurso mediacional.

No item da Parte III do questionário que foi apresentado no quadro 1 da seção III.1, nós explicitamos algumas dessas contribuições. A FIG. 2 a seguir mostra as avaliações dos estudantes para quatro ações ou processos mencionados nesse item do questionário. Para cada uma dessas avaliações, há um conjunto de quatro barras, organizadas em cluster, que mostra a distribuição percentual das seguintes alternativas: grande contribuição, média, pequena ou nenhuma contribuição.

Figura 2:
Contribuições do caderno para outras ações mediadas

Uma análise dos dados contidos na FIG. 2 mostra que a maioria dos estudantes afirma que o caderno prestou grande contribuição às seguintes ações:

(a) compreensão das aulas e participação nas mesmas; (b) compreensão e realização das listas de exercícios; (c) realização e desempenho em testes e provas. Nesses mesmos quesitos, nota-se, ainda, uma predominância da declaração de que houve grande contribuição do caderno em relação àquela que aponta para uma contribuição mediana. A diferença entre os dois tipos de declaração varia entre 1,7 e 2,5 vezes. A exceção fica a cargo do item "compreensão dos textos didáticos", no qual a diferença é de apenas 1,2 vez. Uma possível explicação para a menor diferença nesse último quesito decorre do fato de que utilizamos textos provenientes de livros variados, bem como de que houve poucas atividades de leitura mediada com esse tipo de textos durante o primeiro trimestre de 2013.

Além de produzir o gráfico de barras em cluster, mostrado na FIG. 2, nós decidimos investigar a existência de possíveis correlações entre as respostas dadas ao item da Parte III do questionário e aquelas dadas aos itens 17 e 18 da Parte I desse mesmo instrumento. Para isso, utilizamos a correlação de Spearman, uma estatística não paramétrica apropriada ao tratamento de dados com escala ordinal, que é o caso das respostas dadas aos itens acima mencionados.

Encontramos um relacionamento positivo e significativo entre as declarações sobre as contribuições do caderno feitas em resposta ao item da Parte III e o par de variáveis formado pela frequência na produção dos registros e o interesse dos estudantes por essa prática. A correlação entre as declarações sobre as contribuições do caderno e esse par de variáveis teve variação de 0,34 a 0,44 e nível de significância p<0,001. O importante nesse caso é que esse relacionamento positivo e significativo é coerente com a análise das enunciações dos estudantes dadas em resposta ao item 19.

Um dado complementar, que não apareceu nas subseções anteriores, é o de que muitos estudantes reunidos no perfil E (36 entre 49, ou 73,5% do total nesse perfil) atribuíram funções aos registros feitos no caderno. Apenas 13 das 49 enunciações incluídas nesse perfil E (ou 26,5% do total nesse perfil) não fizeram esse tipo de atribuição. Sendo assim, reunindo esse segmento dos estudantes do perfil E àqueles identificados com o perfil F, nós podemos concluir que 141 dos 196 estudantes declararam e justificaram seu interesse por produzir registros no caderno ao atribuírem funções ao mesmo. Isso corresponde a 72% do total de estudantes que se manifestaram por meio do questionário.

As funções do caderno listadas na Tabela 2 foram mencionadas pelos estudantes, espontaneamente, na Parte I do questionário, cerca de duas páginas antes de esses sujeitos serem apresentados às quatro possíveis contribuições do caderno mencionadas na FIG. 2. Comparando-se as funções citadas espontaneamente com as quatro contribuições expostas à avaliação dos estudantes na Parte III do questionário, vimos que há coincidência relativamente exata entre apenas duas das quatro contribuições. Assim, julgamos equivalentes a contribuição "compreensão e realização das listas de exercícios" e a função "fazer exercícios", bem como a contribuição "desempenho em testes e provas" com as funções "fazer testes e provas" e "preparar-se para testes e provas".

Realizando agora uma análise adicional dos dados da Tabela 2, vemos que a primeira função nela citada, "estudar a matéria a posteriori", responde por 41% do total de funções mencionadas. Se juntarmos esse percentual com o da função afim "preparar-se para testes e provas", que corresponde a 9% do total, nós teremos um total de 50% de vinculação do caderno com a atividade de estudar física fora da sala de aula. Esse número, muito expressivo, é mais do que o dobro do alcançado pela função "entender/aprender a matéria" (20%) e cerca de dez vezes aquele atingido pela função "fazer testes e provas" (apenas 5% do total). Esse resultado nos surpreendeu, considerando que nós sempre acreditamos que a permissão de consulta exclusiva ao caderno por ocasião da realização de testes e provas fosse um fator importante para motivar os estudantes a produzir e organizar registros das atividades no caderno de classe.

Considerações finais

Nesta pesquisa, nós analisamos a frequência de uso do caderno de física para a realização de registros das atividades de ensino e aprendizagem e o interesse dos estudantes em relação a esse tipo de ação. Nossos dados sustentam a afirmação de que a maioria dos estudantes valoriza a prática de produzir registros das atividades feitas ao longo do curso como uma mediação para aprender física.

Entre as contribuições do caderno mencionadas na Parte III do questionário, existem três que nos permitem considerar a prática de produzir registros das atividades como uma mediação para aprender física: 1º - compreensão das aulas (de física) e participação nas mesmas; 2º - compreensão e realização das listas de exercícios; 3º - compreensão dos textos didáticos. Indubitavelmente, compreender as aulas, os textos didáticos e as listas de exercícios, bem como participar das aulas e aprender a realizar os exercícios, são processos vinculados à aprendizagem.

Outras três funções atribuídas pelos estudantes aos registros feitos no caderno também podem ser claramente vinculadas à aprendizagem: (a) estudar a matéria a posteriori; (b) entender a matéria; (c) preparar-se para provas e testes.

Uma das principais implicações educacionais dos resultados da nossa pesquisa decorre da boa avaliação dos estudantes acerca da prática de produzir registros no caderno de classe. Outros recursos mediacionais utilizados em nosso curso também têm recebido avaliação favorável (ver, por exemplo, Paula e Talim, 2012)PAULA, H. F. e TALIM, S. L. Uso coordenado de ambientes virtuais e outros recursos mediacionais no ensino de circuitos elétricos. Caderno Brasileiro de Ensino. (Física). Florianópolis, v. 29, n. Especial 1, 614-650, 2012..

Nossas condições de trabalho nos permitem planejar o curso que ofereceremos e acompanhar de perto o envolvimento dos estudantes nas atividades propostas. Tais condições se contrapõem àquelas encontradas na maioria das escolas brasileiras. A avaliação majoritariamente favorável pelos estudantes às várias características de nosso curso se contrasta com o desânimo e a apatia atribuídos por muitos professores de física aos seus alunos. Esse contraste é uma evidência de que a educação em ciências pode acontecer de forma apropriada, desde que sejam dadas aos docentes e aos discentes boas condições de trabalho.

Uma segunda implicação que merece destaque é o reforço que nossos resultados trazem à importância de instaurarmos práticas de avaliação dialógica nas quais os estudantes participem de um exame das atividades que eles realizam. No caso específico da prática de produzir registros das atividades no caderno e da valorização dessa prática no sistema de distribuição de pontos, nossos dados não sugerem necessidade de alterarmos nossas estratégias. Apesar disso, os estudantes nos surpreenderam ao nos mostrarem que a possibilidade de consulta ao caderno durante a realização de provas e testes tem pouca importância em relação a outras funções que por eles foram mais citadas (estudar a matéria a posteriori, aprender e entender a matéria, etc.).

Vale a pena ainda ressaltar que, embora 11,7% dos estudantes reunidos nos perfis A e D tenham declarado pouco ou nenhum interesse pelo uso do caderno, a grande maioria (ou 72% do total de alunos) justificou seu interesse por esse recurso mediacional, de modo que o resultado da análise convergiu com e, em certa medida, até extrapolou nossas expectativas. Para interpretar a manifestação dos estudantes reunidos nos perfis A e D, devemos considerar como se dá a composição do corpo discente em nossa instituição. Uma parte dos estudantes entra por concurso, e a outra provém de uma escola de aplicação vinculada à mesma universidade, com admissão por sorteio. Como resultado desse processo misto de entrada, da heterogeneidade de interesses e da imaturidade natural dos sujeitos nessa faixa etária, nem todos os estudantes têm identidade com os cursos técnicos nos quais estão matriculados. Por isso, cabe a questão: nesse contexto, existiria algum recurso ou estratégia capaz de engajar 100% dos estudantes?

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  • 1
    Esta pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).
  • 2
    https://sites.google.com/site/1anofisicacoltecufmg.
  • 3
    A expressão "projeto de dizer", nesse caso, pode ser interpretada assim: quando alguém diz alguma coisa, esse alguém o faz a partir de um projeto marcado por intenções e objetivos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2015

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2014
  • Aceito
    08 Out 2014
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