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A REFLEXÃO COLETIVA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: UMA EXPERIÊNCIA NO CURSO DE LICENCIATURA EM QUÍMICA DA UFVJM

LA REFLEXIÓN COLECTIVA EN LA FORMACIÓN DE PROFESORES: UNA EXPERIENCIA EN EL CURSO DE QUÍMICA EN UFVJM

RESUMO:

A percepção de que os egressos do curso de formação de professores, apesar de realizarem estudos teóricos importantes, nem sempre atuam de maneira diferente daquela que seus professores atuavam nos levou a realizar esta investigação. Envolvemos professores de Química em formação na elaboração de aulas a partir de temas do contexto, que foram desenvolvidas em três turmas de instituições do Ensino Médio. Essas aulas foram analisadas coletivamente, em reuniões de avaliação, para que um processo reflexivo acontecesse. Para isso as aulas e as reuniões de avaliação foram gravadas em vídeo. Neste trabalho analisamos as contribuições da reflexão no entendimento do papel do professor em sala de aula. Observamos resultados expressivos em termos de apropriação de estudos teóricos (interações discursivas, natureza da Ciência e relações pedagógicas), realizados com base na prática docente de cada um. Este estudo traz implicações para a formação de professores, principalmente para o estágio curricular.

Palavra-chave:
Formação de professores; Processo reflexivo; Avaliação compartilhada

RESUMEN:

La percepción de que los egresados del curso de formación de profesores, a pesar de que realizan importantes estudios teóricos, generalmente no actúan de manera diferente a lo que hicieron sus maestros nos llevó a realizar esta investigación. Involucramos a los profesores de Química en formación en la preparación de clases desde temas del contexto, las cuales se desarrollaron en tres clases de escuelas de secundaria. Se analizaron esas clases en conjunto, en reuniones de evaluación, con el fin de promover el proceso reflexivo. Para ello, se llevaron a cabo grabaciones en video de las clases y las reuniones de evaluación. En este artículo analizaremos las contribuciones de la reflexión para comprender el rol del profesor en las clases. Los resultados fueron expresivos en cuanto a la apropiación de estudios teóricos (interacciones discursivas, naturaleza de las Ciencias y relaciones pedagógicas), realizados con base en la práctica docente de cada uno. Esta investigación trae implicaciones para la formación de profesores, principalmente para la práctica curricular.

Palabras clave:
Formación de profesores; Proceso reflexivo; Evaluación colectiva

ABSTRACT:

What motivated this investigation is the idea that although students of teacher training courses engage in important theoretical discussions, they do not always act differently from what their teachers used to. Our project placed Chemistry teachers in training into procedures to prepare and develop their own classes based on contextualized themes that were deployed in three classes in High School. These classes were analyzed collectively, in evaluation meetings, seeking to promote a reflective process. For this, the classes and evaluation meetings were recorded in video. In this article we analyze the contributions of the reflective process in understanding the role of the teacher in a classroom. We observed expressive results in the appropriation of their theoretical studies (discursive interactions, nature of Science and pedagogical link-making), based on the teaching performance of each student. This study brings important implications in understanding the teacher formation, mainly for curricular stage.

Keywords:
training; Reflective process; Collective evaluation

INTRODUÇÃO

A pouca integração entre conhecimentos científicos e conhecimentos profissionais docentes e desses conhecimentos com a realidade escolar tem caracterizado a formação docente nos cursos de licenciatura (Schnetzler, 2010SCHNETZLER, R. P. Alternativas didáticas para a formação docente em química. In: CUNHA, A. M.; [ et al.] (Org.). Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.). Segundo essa pesquisadora, nos cursos de formação de professores de Química se construiu, ao longo do tempo, uma dicotomia entre as disciplinas específicas da área de Química e as disciplinas pedagógicas. Enquanto os formadores responsáveis por disciplinas específicas de conteúdos químicos fornecem pouca ou nenhuma atenção para o “que, como e porquê” ensinar, os professores de disciplinas de caráter pedagógico costumam tratar de teorias que mostram a complexidade do processo de ensinar, sem relacioná-las diretamente aos conhecimentos químicos.

Ao ofertarmos aos licenciandos conjuntos de disciplinas que não dialogam entre si, talvez estejamos transferindo a eles uma visão simplista de ensino. Por se tratar de dois tipos diferentes de discurso pedagógico - o da Química e o da Pedagogia - é provável que o egresso, ao assumir a docência, opte pelo que lhe parecer mais conveniente. Uma vez que a associação entre esses dois discursos deve acontecer durante a formação inicial, cujo currículo é fragmentado em disciplinas, faz-se necessário pensar estratégias para minimizar essa fragmentação.

Quadros e Mortimer (2018QUADROS, A. L.; SILVA, A. S. F.; MORTIMER, E. F. Relações pedagógicas em aulas de ciências da Educação Superior. Química Nova, vol. 41, n. 2, p. 227-235, 2018.) retomam essa discussão ao afirmar que os cursos de formação de professores de Química, apesar de trabalharem com as tendências contemporâneas de ensino, “nem sempre têm conseguido que os seus egressos atuem de maneira diferente daquela que seus professores atuavam” (p. 36). Inúmeras propostas de formação têm surgido na comunidade especializada, para fortalecer essa formação. Diversos autores (a exemplo de Alarcão, 2011ALARCÃO, I. Professores reflexivos em uma escola reflexiva. 8ª ed. - São Paulo: Cortez, 2011.; Echeverría; Benite; Soares, 2010ECHEVERRÍA, A. R.; BENITE, A. M. C.; SOARES, M. H. F. B. A pesquisa na formação inicial de professores de química. In: ECHEVERRÍA, A. R.; ZANON, L. B. (Org.). Formação superior em Química no Brasil: práticas e fundamentos curriculares. Ijuí: Unijuí, 2010.; Pérez Gómez, 1997GIL-PÉREZ, D.; MONTORO, I. F.; ALÍS, J. C.; CACHAPUZ, A.; PRAIA, J. Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação, v. 7, n. 2, p. 125-153, 2001.; Nóvoa, 1995NÓVOA, A. Os professores e a sua formação. 2ª ed.Lisboa: Dom Quixote, 1995. 158 p., 2009NÓVOA, A. O regresso dos professores. Campo Grande: OMEP/BR/MS. 88 p.; 21cm. ISBN: 978-85-67986-00-5, 2014.; Schön, 1995SCHÖN, D. A. Formar professores como profissionais reflexivos NÓVOA, A. Os professores e a sua formação. 2ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 1995., 2000SCHÖN, D. A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2000.; Zeichner, 1997ZEICHNER, K. M. Novos caminhos para o practicum: uma perspectiva para os anos 90. In: NÓVOA, A. (Org.). Os professores e a sua formação. 2ª ed. Lisboa, Publicações Dom Quixote. p. 77-91, 1997., 2003ZEICHNER, K. M. Teacher research as professional development for P-12 educators in the U.S. Educational Action Research. v. 1, n. 2, p. 301-325, 2003.) têm defendido a formação do professor como um profissional prático e reflexivo.

Neste trabalho optamos por enfatizar o profissional prático e reflexivo em um ambiente coletivo, por nos parecercoerente com o que propomos como processo formativo. Desenvolvemos este trabalho com o objetivo de analisar possíveis contribuições dos processos reflexivos para a melhoria da prática docente de professores de Química em formação.

REFERENCIAL TEÓRICO

Diante dos caminhos que vêm sendo apontados na literatura como possibilidades de melhorar a formação de professores, escolhemos considerar alguns apontamentos sobre as propostas de formação de professores apresentadas por António Nóvoa e Donald Schön.

Nóvoa (2009NÓVOA, A. Para una formación de profesores construida dentro de la profesión. Revista de Educación, n. 350, p. 203-218, 2009.; 2014PÉREZ GÓMEZ, A. O pensamento prático do professor - A formação do professor como profissional reflexivo. In: NÓVOA, A. (Org.) Os professores e a sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 3ª ed. p. 93-114, 1997.) argumenta que é preciso construir uma concepção mais abrangente de formação de professores, na qual o cotidiano da profissão docente seja parte essencial. Para isso ele defende uma formação de professores construída dentro da profissão, aproximando essa formação da realidade escolar e dos problemas vivenciados pelos professores.

Em relação à formação de professores, Nóvoa (2014NÓVOA, A. O regresso dos professores. Campo Grande: OMEP/BR/MS. 88 p.; 21cm. ISBN: 978-85-67986-00-5, 2014.) alerta que há um excesso de discursos e uma grande pobreza de práticas. Os discursos, segundo ele, são coerentes, mas não temos conseguido fazer aquilo que dizemos ser necessário fazer. Diante dessa reflexão, Nóvoa defende três medidas que, segundo ele, estão longe de esgotar as respostas possíveis, mas que podem ajudar a superar muitos dilemas. São elas: a) passar a formação de professores para dentro da profissão; b) promover novos modos de organização da profissão; c) reforçar a dimensão pessoal e a presença pública dos professores.

No que se refere à primeira medida, na qual temos um interesse profundamente especial, Nóvoa (2014NÓVOA, A. O regresso dos professores. Campo Grande: OMEP/BR/MS. 88 p.; 21cm. ISBN: 978-85-67986-00-5, 2014.) defende a necessidade de os professores em serviço terem um lugar predominante na formação de seus colegas, e alega, de forma enfática, que não haverá mudança se a comunidade de formadores de professores e a comunidade dos professores em serviço não se tornarem mais permeáveis e imbricadas. Nóvoa defende uma formação de professores em que a reflexão partilhada não seja apenas uma simples palavra. O autor sugere uma formação de professores em que haja estudo aprofundado de casos reais do cotidiano escolar, sobretudo de casos referentes ao insucesso escolar. Ele também diz que é necessário que ocorram análises coletivas das práticas pedagógicas adotadas e, principalmente, que haja vontade de mudança.

Concordamos com Nóvoa (2014NÓVOA, A. O regresso dos professores. Campo Grande: OMEP/BR/MS. 88 p.; 21cm. ISBN: 978-85-67986-00-5, 2014.) quando ele argumenta que muitas vezes as instituições de formação de professores ignoram ou conhecem pouco a realidade das escolas. Diante disso “é essencial reforçar dispositivos e práticas de formação de professores baseadas numa investigação que tenha como problemática a ação docente e o trabalho escolar” (Nóvoa, 2014NÓVOA, A. O regresso dos professores. Campo Grande: OMEP/BR/MS. 88 p.; 21cm. ISBN: 978-85-67986-00-5, 2014., p. 19). Para o autor, não adianta escrever textos atrás de textos evidenciando a práxis e os professores reflexivos como referências do saber docente, se não efetivarmos uma maior presença da profissão na formação dos professores. Segundo Nóvoa, trata-se, sim, de afirmar que as nossas propostas teóricas só fazem sentido se forem construídas dentro da profissão, se contemplarem a necessidade de um professor atuante no espaço da sala de aula, se forem apropriadas a partir de uma reflexão dos professores sobre o seu próprio trabalho (2014, p. 20).

Em relação à segunda medida, Nóvoa (2014NÓVOA, A. O regresso dos professores. Campo Grande: OMEP/BR/MS. 88 p.; 21cm. ISBN: 978-85-67986-00-5, 2014.) cita Pat Hutchings e Mary Taylor Huber (2008) para se referir à importância de reforçar as comunidades de prática, que são definidas como espaços conceituais construídos por grupos de educadores para discutirem questões relacionadas ao ensino e à aprendizagem e para elaborar perspectivas comuns para os desafios da formação pessoal e profissional, e, também, para os da formação dos estudantes. Sobre as comunidades de prática, Nóvoa (2014)NÓVOA, A. O regresso dos professores. Campo Grande: OMEP/BR/MS. 88 p.; 21cm. ISBN: 978-85-67986-00-5, 2014. alerta que essas são capazes de reforçar um sentimento de pertencimento relacionado à identidade profissional. Esse sentimento “é essencial para que os professores se apropriem dos processos de mudanças e os transformem em práticas concretas de intervenção” (Nóvoa, 2014NÓVOA, A. O regresso dos professores. Campo Grande: OMEP/BR/MS. 88 p.; 21cm. ISBN: 978-85-67986-00-5, 2014., p. 21). Para Nóvoa (2014)NÓVOA, A. O regresso dos professores. Campo Grande: OMEP/BR/MS. 88 p.; 21cm. ISBN: 978-85-67986-00-5, 2014., é a reflexão coletiva estabelecida dentro dessas comunidades de prática que dá sentido ao desenvolvimento profissional dos professores. Contudo, o autor deixa claro que se não houver mudanças nas políticas públicas em relação aos professores e mudanças nas condições existentes nas escolas, nada disso será conseguido. As comunidades de prática e as reflexões oriundas delas serão inúteis se não houver uma organização das escolas que as facilitem. Para ele, é inútil propor uma formação baseada na parceria entre escolas e universidades se os normativos legais dificultarem essa aproximação.

E por último, a terceira medida, que diz respeito ao reforço da dimensão pessoal e à presença pública dos professores, evidencia a construção de um conhecimento pessoal/autoconhecimento no interior do conhecimento profissional. Para Nóvoa (2014NÓVOA, A. O regresso dos professores. Campo Grande: OMEP/BR/MS. 88 p.; 21cm. ISBN: 978-85-67986-00-5, 2014.) esse conhecimento é importante para se compreender a especificidade da profissão docente e para que os professores possam construir percursos de aprendizagem ao longo da vida. O autor evidencia que a formação contínua dos professores começou por ser um direito, transformou-se em uma necessidade e agora é vista como uma obrigação. Nóvoa (2014)NÓVOA, A. O regresso dos professores. Campo Grande: OMEP/BR/MS. 88 p.; 21cm. ISBN: 978-85-67986-00-5, 2014. alerta para o fato de que muitos desses programas de formação continuada têm sido inúteis para os professores. É necessário, segundo defende Nóvoa (2014)NÓVOA, A. O regresso dos professores. Campo Grande: OMEP/BR/MS. 88 p.; 21cm. ISBN: 978-85-67986-00-5, 2014., recusar esse consumismo de cursos que caracterizam o “mercado da formação”, que é sempre alimentado por um sentimento de desatualização dos professores. A saída apontada pelo autor é que haja “investimento na construção de redes de trabalho coletivo que sejam o suporte de práticas de formação baseadas na partilha e no diálogo profissional” (2014, p. 23). Outro aspecto destacado é a necessidade de os lugares de formação (universidades e escolas) reforçarem a presença pública dos professores. O autor explica que muito se fala a respeito das escolas e dos professores, entretanto quem o faz são os jornalistas, os políticos, os colunistas etc. Uma vez que os professores não falam, eles reforçam uma espécie de silêncio de uma profissão que perdeu visibilidade no espaço público.

Donald Schön, por sua vez, parece ter inspirado “toda uma geração de pesquisadores brasileiros a propor, também para os professores, um novo modelo de formação profissional, baseado na reflexão sobre a prática” (Fontana; Fávero, 2013FONTANA, M. J.; FÁVERO, A. A. Professor Reflexivo: uma integração entre teoria e prática. Revista de Educação do IDEAU, v. 8, n. 17, p. 1-14, 2013., p. 3). Ao publicar o livro Educating the Reflective Practitioner, em 1987, Schön ampliou o conceito de reflexão na ação, que foi desenvolvido em obra publicada em 1983. Usando a formação em alguns cursos superiores como ponto inicial para seus estudos e tendo uma forte influência da obra de John Dewey (1959DEWEY, J. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma reexposição. São Paulo: Ed. Nacional, 1959.), Schön trouxe para a discussão a situação então vigente e as perspectivas da educação profissional, o que muito contribuiu para dar visibilidade às teorias sobre a epistemologia da prática.

Os estudos de Schön (2000SCHÖN, D. A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2000.), centrados na prática reflexiva e visando a formação de um profissional reflexivo, tratam de três tipos distintos de reflexão: conhecer na ação, a reflexão na ação e a reflexão sobre a reflexão na ação. Como estamos tratando da formação de professores, vamos sintetizar esses tipos de reflexão já pensando também no profissional professor.

Schön (2000SCHÖN, D. A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2000.) usou a expressão conhecer na ação para referir-se a tipos de conhecimento que nós revelamos em nossas ações inteligentes como, por exemplo, caminhar ou andar de bicicleta. Schön explica que nesses dois exemplos o ato de conhecer está na ação e nós o revelamos pela nossa execução capacitada e espontânea da performance, esclarecendo ser uma característica nossa o fato de não sermos capazes de torná-las explícitas verbalmente. No caso da profissão docente, conforme defendem Feitosa e Dias (2017FEITOSA, R. A.; DIAS, A. M. I. Décadas do surgimento do practicum reflexivo: por teoria(s) e prática(s) articuladas na formação e na ação docentes. In: SHIGUNOV NETO, A.; FORTUNATO, I. (Org.). 20 anos sem Donald Schön: o que aconteceu com o professor reflexivo? São Paulo: Edições Hipóteses, p. 13-32, 2017.), o conhecer na ação corresponde a um conjunto de saberes interiorizados adquiridos por meio da experiência e da atividade intelectual. Esses autores descrevem que esses saberes são mobilizados pelos professores nas situações concretas de trabalho, de forma inconsciente e mecânica, em suas ações cotidianas. O conhecimento na ação refere-se “a observações e reflexões do docente em relação ao modo como ele se desloca em sua prática” (Feitosa; Dias, 2017FEITOSA, R. A.; DIAS, A. M. I. Décadas do surgimento do practicum reflexivo: por teoria(s) e prática(s) articuladas na formação e na ação docentes. In: SHIGUNOV NETO, A.; FORTUNATO, I. (Org.). 20 anos sem Donald Schön: o que aconteceu com o professor reflexivo? São Paulo: Edições Hipóteses, p. 13-32, 2017., p. 17). Ao tomar consciência das ações que desenvolve em sala de aula, o professor pode ser conduzido a mudar sua prática, buscando outros caminhos para a produção de aprendizagens. Se ele olhar criticamente para o que aconteceu em sua aula é possível que venha a elaborar novas estratégias, principalmente se esse olhar for ancorado por teorias de ensino e aprendizagem.

A reflexão na ação acontece, como o nome já sugere, durante a realização da ação. Portanto, ela trata de um saber que já está presente e que deu origem às ações realizadas. Schön (2000SCHÖN, D. A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2000.) explica que podemos refletir sobre a ação pensando de forma retrospectiva sobre o ato realizado, com o objetivo de descobrir como o ato de conhecer na ação pode ter colaborado para um resultado inesperado. A esse respeito, o autor destaca que podemos realizar essa reflexão em dois momentos diferentes: após o fato ocorrido, em um ambiente de tranquilidade, ou no meio da ação, sem interrompê-la. Em relação ao segundo momento, Schön defende que esse ocorre “em um período de tempo variável com o contexto, durante o qual ainda se pode interferir na situação em desenvolvimento, [na qual] nosso pensar serve para dar nova forma ao que estamos fazendo, enquanto ainda o fazemos” (2000, p. 32).

Casos como esse são os que caracterizam o processo de reflexão na ação, que, em outras palavras, pode ser descrito como refletir durante uma tarefa em andamento. A reflexão na ação permite pensar criticamente sobre o que pode ter acarretado uma situação inesperada e, nessa reflexão, pensar em estratégias de ação e de compreensão de fenômenos para poder lidar com essas situações no momento em que estão ocorrendo. Logo, a reflexão na ação tem uma função crítica que permite questionar os pressupostos dos atos de conhecer durante a ação. A reflexão na ação é um processo que fazemos sem precisar dizer o que estamos fazendo (Schön, 2000SCHÖN, D. A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2000., p. 35). Feitosa e Dias (2017FEITOSA, R. A.; DIAS, A. M. I. Décadas do surgimento do practicum reflexivo: por teoria(s) e prática(s) articuladas na formação e na ação docentes. In: SHIGUNOV NETO, A.; FORTUNATO, I. (Org.). 20 anos sem Donald Schön: o que aconteceu com o professor reflexivo? São Paulo: Edições Hipóteses, p. 13-32, 2017.) comentam que por meio dessa reflexão o professor constrói novos saberes, “tornando-se um profissional maleável e acessível aos desafios impostos pela complexidade da interação com a prática, criando estratégias para potencializar a reflexão na ação” (p. 17). Porém, a dinamicidade da atividade docente torna a reflexão na ação difícil de ser descrita. Em capítulo publicado no livro “Os professores e sua formação”, Schön (1995)SCHÖN, D. A. Formar professores como profissionais reflexivos NÓVOA, A. Os professores e a sua formação. 2ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 1995. relata um exemplo de como um professor reflexivo pode desenvolver o processo de reflexão na ação:

Existe, primeiramente, um momento de surpresa: um professor reflexivo permite-se ser surpreendido pelo que o aluno faz. Num segundo momento, reflete sobre esse fato, ou seja, pensa sobre aquilo que o aluno disse ou fez e, simultaneamente, procura compreender a razão por que foi surpreendido. Depois, num terceiro momento, reformula o problema suscitado pela situação [...]. Num quarto momento, efetua uma experiência para testar a sua nova hipótese; por exemplo, coloca uma nova questão ou estabelece uma nova tarefa para testar a hipótese que formulou sobre o modo de pensar do aluno. Este processo de reflexão na ação não exige palavras (Schön, 1995SCHÖN, D. A. Formar professores como profissionais reflexivos NÓVOA, A. Os professores e a sua formação. 2ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 1995., p. 83).

Por sua vez, a reflexão sobre a reflexão na ação considera um processo reflexivo já instaurado e se dá após a ação reflexiva do professor. Segundo Schön (1995SCHÖN, D. A. Formar professores como profissionais reflexivos NÓVOA, A. Os professores e a sua formação. 2ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 1995.), o professor pode pensar no que aconteceu após a aula, no que foi observado e na prática adotada. Nesse caso, o professor reconstrói mentalmente a ação com o intuito de analisá-la, percebendo o que ocorreu antes e depois da ação e como os “problemas” surgidos foram solucionados (Feitosa; Dias, 2017FEITOSA, R. A.; DIAS, A. M. I. Décadas do surgimento do practicum reflexivo: por teoria(s) e prática(s) articuladas na formação e na ação docentes. In: SHIGUNOV NETO, A.; FORTUNATO, I. (Org.). 20 anos sem Donald Schön: o que aconteceu com o professor reflexivo? São Paulo: Edições Hipóteses, p. 13-32, 2017.). Refletir sobre a reflexão na ação “é uma ação, uma observação e uma descrição, que exigem o uso de palavras” (Schön, 1995SCHÖN, D. A. Formar professores como profissionais reflexivos NÓVOA, A. Os professores e a sua formação. 2ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 1995., p. 17). Concordamos com Feitosa e Dias (2017)FEITOSA, R. A.; DIAS, A. M. I. Décadas do surgimento do practicum reflexivo: por teoria(s) e prática(s) articuladas na formação e na ação docentes. In: SHIGUNOV NETO, A.; FORTUNATO, I. (Org.). 20 anos sem Donald Schön: o que aconteceu com o professor reflexivo? São Paulo: Edições Hipóteses, p. 13-32, 2017. quando afirmam que, ao desenvolver esse tipo de reflexão, os professores podem desenvolver novas formas de agir, pensar e resolver problemas, uma vez que é possível tomar consciência dos erros e tentar agir de outra forma.

Pimenta (2005PIMENTA, S. G. Professor reflexivo: construindo uma crítica. In: PIMENTA, S. G.; GHEDIN, E. (Org.). Professor Reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. 4 ed. São Paulo: Cortez , p. 17-52, 2005.) afirma que a partir da publicação do livro Educating the Reflective Practitioner as pesquisas sobre a prática reflexiva proliferaram, tanto na formação inicial quanto na formação continuada de professores. Com isso, críticas também surgiram e o conceito de professor reflexivo, proposto por Schön (1987SCHÖN, D. A. Educating the Reflective Practitioner: Toward a New Design for Teaching and Learning in the Professions. San Francisco: Jossey-Bass, 1987.), foi apontado por alguns pesquisadores como um bordão vazio no campo da formação de professores, já que foi apropriado de forma generalizada e descontextualizada, tornando-se um modismo (Shigunov Neto; Fortunato, 2017SHIGUNOV NETO, A.; FORTUNATO, I. Donald Schön e o “professor reflexivo”. In: SHIGUNOV NETO, A. S.; FORTUNATO, I. (org.). 20 anos sem Donald Schön: o que aconteceu com o professor reflexivo? São Paulo: Edições Hipótese, p. 5-12, 2017.). No mesmo sentido, Pimenta (2005)PIMENTA, S. G. Professor reflexivo: construindo uma crítica. In: PIMENTA, S. G.; GHEDIN, E. (Org.). Professor Reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. 4 ed. São Paulo: Cortez , p. 17-52, 2005. sustenta que o conceito tem se confundido com um adjetivo e não como uma teoria de compreensão do trabalho docente. Ela afirma que essas críticas se centraram nos seguintes aspectos: (a) Schön considerou a atividade reflexiva como um processo solitário e isolado do processo como um todo, o que certamente cria um grave problema, pois essa situação isolada impossibilita um diagnóstico real do contexto em que a situação ocorreu; e (b) a proposta de professor reflexivo estaria centrada apenas na atividade em si, sem levar em consideração a dimensão contextual que cerca a atividade docente.

Embora consideremos as críticas, ressaltamos que em contraposição à racionalidade técnica na formação de professores está a certeza de que ser professor vai, sempre, depender do contexto. Nesse sentido o que se faz em uma sala de aula pode não servir para a sala de aula seguinte e a solução de um problema em uma escola pode não ser a mesma em outra escola, embora o problema seja da mesma natureza. A docência, portanto, tem muito de imprevisível, de relacional, de humano. E nesse sentido, as soluções precisam ser pensadas para a situação em que ocorrem e, para isso, o processo reflexivo tem muito a contribuir.

Neste trabalho nos apropriamos de algumas características da formação de professores defendida por Nóvoa (2009NÓVOA, A. Para una formación de profesores construida dentro de la profesión. Revista de Educación, n. 350, p. 203-218, 2009.; 2014). Partimos da hipótese de que a prática como componente curricular (PCC) e os estágios curriculares, da maneira como acontecem em nossos cursos de formação de professores, poderiam servir de lócus para que o professor se inicie na reflexão da sua própria prática à luz de tendências contemporâneas de ensino e aprendizagem. No caso deste trabalho, inserimos os futuros professores em experiências didáticas que foram usadas para promover a reflexão e a autorreflexão sobre o vivido. Nesse sentido, nossos professores em formação foram envolvidos no ato de conhecer na ação, de forma que pudessem refletir sobre a ação pensando de forma retrospectiva em relação ao ato realizado. Com isso era esperado que suas novas ações fossem mais refletidas, tanto no planejamento quanto durante a ação. Para tanto também nos atentamos para o princípio da aprendizagem reflexiva proposto por Schön (2000SCHÖN, D. A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2000.), que defende a formação de profissionais que saibam refletir sobre a própria prática, na expectativa de que essa reflexão se torne um instrumento de desenvolvimento do pensamento e da ação. A reflexão, na maior parte dos casos, foi ancorada em teorias de ensino e aprendizagem.

Para este trabalho os estudos teóricos desenvolvidos por Nóvoa (2009NÓVOA, A. Para una formación de profesores construida dentro de la profesión. Revista de Educación, n. 350, p. 203-218, 2009.; 2014PÉREZ GÓMEZ, A. O pensamento prático do professor - A formação do professor como profissional reflexivo. In: NÓVOA, A. (Org.) Os professores e a sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 3ª ed. p. 93-114, 1997.) são complementados pelos estudos de Schön (1987SCHÖN, D. A. Educating the Reflective Practitioner: Toward a New Design for Teaching and Learning in the Professions. San Francisco: Jossey-Bass, 1987.; 1995SCOTT, P. H.; MORTIMER, E. F.; AMETLLER, J. Pedagogical Link-making: A Fundamental Aspect of Teaching and Learning Scientific Conceptual Knowledge. Studies in Science Education, v. 47, n. 1, p. 3-36, 2011.; 2000SHIGUNOV NETO, A.; FORTUNATO, I. Donald Schön e o “professor reflexivo”. In: SHIGUNOV NETO, A. S.; FORTUNATO, I. (org.). 20 anos sem Donald Schön: o que aconteceu com o professor reflexivo? São Paulo: Edições Hipótese, p. 5-12, 2017.) à medida que a formação se dá na prática, ancorada pelo processo reflexivo.

METODOLOGIA

Lüdke e André (2013)LUDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. 2ª. ed. Rio de Janeiro: E.P.U., 2013. afirmam ser cada vez mais evidente o interesse dos pesquisadores da área de Educação pelo uso de metodologias qualitativas. Segundo Minayo (1994MINAYO, M. C. S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 21ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1994. 80 p.), esse tipo de pesquisa explora os significados, as aspirações, as crenças, os valores, as atitudes, enfim, as “relações, processos e fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (p. 22).

Bogdan e Biklen (1994BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto, 1994., p. 47) destacam cinco características da pesquisa qualitativa: I. A fonte de dados é o ambiente natural, no qual o investigador se introduz e despende grande quantidade de tempo em escolas, famílias e outros locais com o objetivo de elucidar questões educativas; II. A investigação é descritiva, ou seja, os dados recolhidos são em formas de palavras ou imagens e não somente de números; III. O foco de interesse é o processo, no qual a negociação de significados é maior do que o interesse pelos resultados e pelo produto; IV. Os dados são analisados de forma indutiva; V. O significado desempenha papel importante e o interesse dos investigadores é entender como esses significados são construídos e ganham sentidos. Bogdan e Biklen (1994)BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto, 1994. nos lembram que nem todas as investigações qualitativas patenteiam todas essas características, ou seja, algumas delas são desprovidas de uma ou mais características.

Este estudo qualitativo, que tem algumas características de estudo de caso, foi realizado na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), localizada em Diamantina, na região norte do estado de Minas Gerais, envolvendo um grupo de professores em formação, do curso de Licenciatura em Química, e três instituições da Educação Básica. As escolas do município em que ocorreu a investigação foram contatadas e três delas se mostraram disponíveis a realizar essa parceria. Com elas combinamos os turnos em que as atividades aconteceriam ao longo do semestre e deixamos sob responsabilidade da escola a seleção das turmas/estudantes participantes. Em seguida apresentamos a proposta a um grupo de licenciandos que participavam do PIBID/Química. Entre os vários interessados, apenas sete tinham disponíveis os turnos necessários para essa participação e esses foram os selecionados para essa investigação.

O grupo investigado era composto de jovens cuja idade variava entre 20 e 25 anos e que cursava Licenciatura em Química na UFVJM, sendo que um estava no 2º semestre letivo (Sara), um no 3º (Cristina), dois no 4º (Roberta e Sandra), dois no 6º (Amélia e Paulo) e um no 10º (Lúcia). Portanto, tínhamos estudantes no início do curso, que não tinham qualquer tipo de experiência como docente e uma única estudante que já havia cursado disciplinas de estágio curricular, sendo essa a sua experiência como docente. Nesse grupo, apenas um deles exercia atividade formal no mercado de trabalho, sem relação com a docência, atividade essa que não prejudicou a sua participação. Vale ressaltar que a grade curricular do curso de Licenciatura em Química está organizada em oito semestres, mas não é comum os estudantes cumprirem todos os créditos no período estipulado.

Para a produção de dados organizamos essa investigação em três etapas, descritas a seguir:

a) Workshop envolvendo o ensino a partir de temas do contexto

Nessa proposta foram abordadas três sequências didáticas temáticas (Quadros, 2016QUADROS, A. L.; SILVA, G. F.; MARTINS, D. C. S. As plantas e o Ciclo dos Elementos (Coleção Temas de Estudo em Química). 1ª ed.Belo Horizonte: Didática Editora do Brasil Ltda., 2016.; Quadros; Silva, 2016Silva A. S. F; MORTIMER, E. F.; FREITAS, J. C.; QUADROS, A. L. 2016 As Relações Pedagógicas de Duas Professoras da Educação Básica nas Aulas de Termoquímica. In: XVIIIENCONTRO NACIONAL DE ENSINO DE QUÍMICA 2016 . Anais... Florianópolis, SC,. Disponível em: <Disponível em: http://www.eneq2016.ufsc.br/anais/resumos/R1686-1.pdf >. Acesso em:29 ago. 2018.
http://www.eneq2016.ufsc.br/anais/resumo...
; Quadros, Silva; Silva, 2016)QUADROS, A. L. Entendendo o Ciclo da Água (Coleção Temas de Estudo em Química). 1. ed. Contagem - MG: Didática Editora do Brasil Ltda., 2016.e uma quarta sequência envolvendo o conteúdo de ligações químicas. Essas sequências foram desenvolvidas em um workshop, por uma das autoras da proposta e envolveu os oito professores em formação. O workshop foi gravado em vídeo para que os licenciandos pudessem ter acesso às dicas e sugestões dadas pela autora do material, quando fossem elaborar suas aulas.

b) Planejamento e Desenvolvimento de um curso

A partir do workshop, os oito licenciandos iniciaram o planejamento de um curso a ser ministrado a três turmas de estudantes do Ensino Médio, sendo uma turma de cada uma das escolas parceiras. Esse curso foi organizado em quatro turnos, que aconteceriam a cada duas semanas, de 4 a 5 h cada um, totalizando um mínimo de 16 horas-aula. Em cada um desses turnos seria usado um subtema para que alguns conceitos químicos fossem introduzidos. A Figura 1 mostra os subtemas e os principais conceitos que fizeram parte desse planejamento.

Figura 1
Principais conceitos presentes no curso

Além da organização do tema e dos subtemas a serem desenvolvidos, os professores em formação realizaram, junto com as pesquisadoras, o estudo de algumas tendências contemporâneas de ensino e aprendizagem que deveriam nortear as aulas.

As aulas aconteceram no turno inverso ao das aulas formais dos estudantes. As turmas foram organizadas pelos professores regentes de cada escola, algumas delas com estudantes de diferentes séries do Ensino Médio, como forma de reforço à aprendizagem. Cada uma das turmas, que tinham em média 30 estudantes, recebeu o material “Coleção Temas de Estudo em Química (versão do aluno)”. Considerando que cada subtema foi desenvolvido em uma sequência de 4 a 5 horas-aula, em um único turno, a equipe foi formada por três licenciandos, os quais dividiram o planejamento em partes, ficando cada um deles responsável por uma dessas partes. Essas aulas foram gravadas em vídeo, para facilitar a análise.

c) Reuniões de avaliação compartilhada e reflexiva das aulas

Como as aulas do curso para os estudantes da Educação Básica aconteceram a cada duas semanas, a equipe - uma professora pesquisadora e os licenciandos - se reunia na semana de intervalo para a avaliação da aula ocorrida na semana anterior. Antes dessa reunião as pesquisadoras analisavam as aulas e selecionavam fragmentos dos vídeos que representassem a prática de cada um. Durante a reunião os fragmentos de vídeo foram apresentados e analisados em conjunto, como tentativa de promover a reflexão em torno da ação de cada um dos licenciandos em sala de aula e de confrontar essa prática com algumas tendências contemporâneas de ensino e aprendizagem.

As reuniões também foram gravadas em vídeo e foram usadas como parâmetro para que as pesquisadoras pudessem analisar a prática dos professores em formação durante as aulas seguintes. Em alguns casos, mesmo sendo aulas de subtemas diferentes, foi possível identificar mudanças nas práticas oriundas do processo reflexivo. Exploramos, neste trabalho, duas categorias que envolveram estudos teóricos realizados durante o workshop e o planejamento das aulas (interações discursivas e natureza da Ciência) e duas outras categorias que emergiram a partir das aulas desenvolvidas pelos licenciandos (relações pedagógicas e dificuldades conceituais).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para este trabalho analisamos: (a) como os professores em formação, ao serem envolvidos em um processo reflexivo sobre a própria prática, se apropriaram das interações discursivas ao assumirem a docência, (b) qual o entendimento que possuíam e que construíram em relação à Ciência, (c) como lidaram com as relações pedagógicas e, ainda, (d) algumas dificuldades conceituais que apresentaram ao desenvolver as aulas. Passamos ao entendimento que tivemos em relação a esses fatores/características.

a) As interações discursivas em sala de aula

Durante o período de planejamento das aulas os professores em formação realizaram estudos referentes às interações discursivas, baseados na proposta de Mortimer e Scott (2002MORTIMER, E. F.; SCOTT, P. H. Atividade discursiva nas salas de aula de ciências: uma ferramenta sociocultural para analisar e planejar o ensino. Investigações em Ensino de Ciências. v. 7, n. 3, p. 283-306, 2002.; 2003MORTIMER, E. F.; SCOTT, P. H. Meaning making in secondary science classrooms. Maidenhead: Open University Press, 2003.). Para esses pesquisadores o desenvolvimento de significados para o conteúdo desenvolvido nas aulas depende também do discurso. Nesse sentido, eles apontam duas perspectivas para o discurso. Na primeira, a aula pode ser mais interativa (com a participação ativa dos estudantes) ou menos interativa (o discurso fica centrado no professor), considerando a interação verbal. Na segunda, o discurso pode ser dialógico (quando diferentes ideias são consideradas) ou de autoridade (quando apenas a ideia científica é considerada).

A partir desse estudo, os professores em formação foram orientados a estimular e promover a participação ativa dos estudantes, valendo-se de perguntas. Ao planejar as aulas, várias perguntas já faziam parte do planejamento. Após o primeiro conjunto de aulas (Ciclo da água) foi feita a análise dessas perguntas e observado que as respostas dos estudantes nem sempre eram consideradas. As professoras pesquisadoras selecionaram fragmentos da aula de Paulo, na qual isso foi observado, apresentando-os aos professores em formação na reunião de avaliação compartilhada e reflexiva. A seguir reproduzimos um trecho do diálogo que aconteceu após eles assistirem ao vídeo.

Professora pesquisadora: O que Paulo está fazendo aqui?

Sara: Respondendo às próprias perguntas!

Paulo: Eu queria fazer isso mesmo, porque eu ia voltar nelas mais para frente. Era planejado isso aí, nesse momento foi proposital.

Professora pesquisadora: Você percebeu que quando você perguntou a aluna lá do canto começou a responder? Você percebeu isso?

Paulo:É... ((respondendo sem convicção)).

A Professora pesquisadora mostra o vídeo novamente.

Roberta: A aluna respondeu aí.

Paulo: Foi mesmo. Foi isso mesmo que aconteceu.

(Fragmento da reunião de avaliação compartilhada e reflexiva do módulo I)

A partir dessa discussão, a professora pesquisadora retomou a proposta de Mortimer e Scott (2003MORTIMER, E. F.; SCOTT, P. H. Meaning making in secondary science classrooms. Maidenhead: Open University Press, 2003.), ressaltando a diferença entre uma aula mais interativa e uma menos interativa, e entre um discurso de autoridade e um discurso dialógico. Nas aulas seguintes observamos que não apenas Paulo, mas também os demais licenciandos passaram a lidar melhor com as respostas dos estudantes. A seguir destacamos um trecho da aula de Sara.

Sara:A nossa natureza, será que ela é constituída só de substâncias? (Aguarda respostas).

Sara:Do que mais vocês acham que ela é constituída? ((não há respostas)). Esse grupo está muito caladinho. Podem responder, gente. [....]

Sara: Se eu tenho uma substância e junto a ela outra substância, o que eu vou ter?

Estudante 1:Mistura ((responde falando bem baixinho)).

Sara: Fala mais alto!

Estudante 1:Mistura. ((os alunos aplaudem)).

Sara: Então o que é uma mistura?

Estudante 2: Quando tem mais de duas substâncias.

Sara: Vocês concordam?

(Fragmento das aulas do módulo II - Escola A).

Podemos observar que Sara, no conjunto seguinte de aulas, incentivou a participação dos estudantes. Ela refez as próprias perguntas, aguardou as respostas e, ao ouvir a palavra “mistura” não avaliou a resposta, optando por checar o entendimento dos estudantes em relação àquele conceito. Trata-se de um exemplo de mudança na prática dos professores em formação decorrente provavelmente de uma tomada de consciência em relação à própria prática. Acreditamos que o processo reflexivo (Nóvoa, 2014NÓVOA, A. O regresso dos professores. Campo Grande: OMEP/BR/MS. 88 p.; 21cm. ISBN: 978-85-67986-00-5, 2014.) que aconteceu no ambiente coletivo foi importante para que essa mudança acontecesse. Os professores em formação refletiram sobre a própria prática (Schön, 1995SCHÖN, D. A. Formar professores como profissionais reflexivos NÓVOA, A. Os professores e a sua formação. 2ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 1995.), compararam-na com os estudos teóricos realizados e puderam perceber outras possibilidades de ação docente.

Durante a última reunião coletiva realizada pelo grupo, Paulo pediu a palavra e fez um comentário em relação a fazer perguntas aos estudantes, dando tempo/espaço para que eles possam responder. Ele disse: “Eu planejei perguntas para fazer aos estudantes e depois precisei entender que eles precisavam de tempo para responder. Mas eu nunca imaginei que eles fariam tantas perguntas para nós”. Esse comentário dele recebeu o apoio de outros professores em formação, o que pode ser um indício de que eles perceberam que os estudantes têm dúvida em relação ao que é tratado em sala de aula e que o discurso dialógico (Mortimer; Scott, 2003MORTIMER, E. F.; SCOTT, P. H. Meaning making in secondary science classrooms. Maidenhead: Open University Press, 2003.) pode favorecer a identificação dessas dúvidas e a reorganização da aula, de forma que elas possam ser sanadas.

b) Aspectos relacionados à natureza da Ciência

Muitos pesquisadores (por exemplo Cachapuz et al., 2005CACHAPUZ, A.; GIL-PÉREZ, D.; CARVALHO, A. M. P.; PRAIA, J; VILCHES, A. Superação das visões deformadas da ciência e da tecnologia: um requisito essencial para a renovação da educação científica. In: CACHAPUZ, A.; GIL-PÉREZ, D.; CARVALHO, A. M. P.; PRAIA, J.; VILCHES, A. (Org.). A necessária renovação do ensino das ciências. São Paulo: Cortez Editora, p. 37-70. 2005.; Gil-Pérez et al., 2001GIL-PÉREZ, D.; MONTORO, I. F.; ALÍS, J. C.; CACHAPUZ, A.; PRAIA, J. Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação, v. 7, n. 2, p. 125-153, 2001.; Mansour, 2009MANSUOR, N. Science-Technology-Society (STS). A New Paradigm in Science Education. Bulletin of Science Technology & Society. v. 29, n. 4, p. 287 -297, 2009.; Silva; Machado; Tunes, 2010SILVA, R. R.; MACHADO, P. F. L.; TUNES, E. Experimentar Sem Medo de Errar. In: SANTOS, W. L. P. S; MALDANER, O. A. (Org.). Ensino de Química em Foco. Ijuí: Ed. Unijuí, 2010. p. 231-261.) têm apontado o despreparo dos professores de Ciências em lidar com a natureza do conhecimento científico. Acreditamos que uma compreensão mais adequada da Ciência seja condição importante para os professores e para a sociedade em geral. Desse modo, perceber e refletir sobre as próprias crenças em relação à Ciência se mostrou viável para que os licenciandos evoluíssem nas suas concepções.

Ao analisarmos as aulas notamos que, em alguns momentos, os professores em formação apresentavam crenças equivocadas em relação à Ciência. Lúcia, por exemplo, ao desenvolver as aulas do módulo II, tratou de diferentes materiais e afirmou que se aqueles materiais fossem observados com auxílio de um microscópio seria possível ver a diferença entre os átomos neles presentes. Elaboramos um slide transcrevendo essa e outras falas, sem identificar os autores, para ser trabalhado na segunda reunião. A professora pesquisadora que conduziu a reunião retomou alguns conceitos básicos envolvendo a natureza da Ciência e enfatizou a impossibilidade de fazer o que os licenciandos tinham sugerido em aula e no quanto eles poderiam estar contribuindo para que os estudantes da Educação Básica tivessem uma ideia equivocada da Química.

Ela também ressaltou a Ciência Química como uma forma de explicar o mundo físico e retomou a equação da fotossíntese, já explorada no workshop, como um exemplo de explicação científica equivocada, que precisou ser revista pela Ciência a partir de estudos mais avançados. Os licenciandos, durante essa segunda reunião, apenas acompanharam as explicações da professora pesquisadora e aparentemente concordaram, pois não teceram comentários sobre as falas destacadas no slide.

Nas aulas envolvendo o conteúdo de Ligações Químicas, que haviam sido planejadas para que as ligações fossem ensinadas como uma explicação para a propriedade de condutividade elétrica, buscamos observar a performance dos licenciandos ao desenvolvê-las. Logo no início da aula, na escola A, Roberta realizou o experimento de condutividade elétrica e, em todas as suas falas, enfatizou a palavra “modelo” ao tratar dos tipos de ligações químicas. Os dois fragmentos transcritos a seguir dão uma ideia das falas de Roberta, considerando que ela participou das aulas de duas escolas (A e C):

Roberta: Há vários modelos para a ligação química. Tem a iônica, a metálica e a qual a outra?

Estudante: Covalente.

Roberta: Isso. Covalente.

[...]

Roberta:Agora a Sandra vai explicar para vocês a próxima ligação. Lembrando que são modelos que a Ciência criou para explicar as propriedades dos materiais .

(Fragmento das aulas sobre Ligações Químicas - Escola A)

Roberta: O prego conduziu eletricidade. A Ciência criou modelos para poder explicar isso. Para os metais é o modelo de ligação....

Estudantes: Metálica.

Roberta: Tem os líquidos que conduziram [...]. Por que eles conduziram?

Estudante: Porque tem íons.

Roberta: E qual o modelo criado para explicar?

Estudante: Ligação iônica.

Roberta: E os que não conduziram? Por quê?

Estudante: Não possuem íons.

Roberta: E como que chama esse modelo criado para explicar? Vocês sabem?

Estudante: Covalente

(Fragmento das aulas sobre Ligações Químicas - Escola C)

Assim como aconteceu com Roberta, Lúcia também desenvolveu parte da aula de ligações químicas, mas na escola B. No módulo anterior, como já dissemos, ela havia se referido ao uso do microscópio para observar “entidades” químicas (diferentes átomos). Em aula, Lúcia falou das representações químicas como modelos para um mundo infinitamente pequeno, que não pode ser enxergado. Um estudante questionou-lhe em relação a essa representação química, perguntando se ela poderia estar “errada”, ao que Lúcia respondeu: “Errado não, o certo é falar que o modelo não serviria mais para explicar”.

De certa forma, ela comunicou aos estudantes a ideia de que a Química tem uma maneira própria de explicar os materiais existentes na natureza. Outros professores também forneceram evidências de que entenderam melhor a natureza da Ciência e tentaram construir um discurso coerente com esse saber. É possível que a discussão e a reflexão realizadas na segunda reunião tenham contribuído para que eles tomassem consciência do próprio discurso e o melhorassem. A reflexão (Schön, 2000SCHÖN, D. A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2000.) realizada de forma coletiva se tornou um instrumento de desenvolvimento do pensamento e da ação.

c) Relações pedagógicas de continuidade

Considerando a necessidade de o estudante relacionar os conhecimentos entre si e esses com o contexto (social, científico e/ou profissional), pesquisas (Quadros, Silva, Mortimer, 2018QUADROS, A. L.; SILVA, A. S. F.; MORTIMER, E. F. Relações pedagógicas em aulas de ciências da Educação Superior. Química Nova, vol. 41, n. 2, p. 227-235, 2018.; Silva et al., 2016Silva A. S. F; MORTIMER, E. F.; FREITAS, J. C.; QUADROS, A. L. 2016 As Relações Pedagógicas de Duas Professoras da Educação Básica nas Aulas de Termoquímica. In: XVIIIENCONTRO NACIONAL DE ENSINO DE QUÍMICA 2016 . Anais... Florianópolis, SC,. Disponível em: <Disponível em: http://www.eneq2016.ufsc.br/anais/resumos/R1686-1.pdf >. Acesso em:29 ago. 2018.
http://www.eneq2016.ufsc.br/anais/resumo...
) têm evidenciado que a divisão desse conhecimento em unidades e temas demandam do professor a realização de relações pedagógicas entre os diversos conceitos do currículo, o que exige que o professor esteja familiarizado com a organização curricular.

Scott, Mortimer e Ametller (2011SCOTT, P. H.; MORTIMER, E. F.; AMETLLER, J. Pedagogical Link-making: A Fundamental Aspect of Teaching and Learning Scientific Conceptual Knowledge. Studies in Science Education, v. 47, n. 1, p. 3-36, 2011.) desenvolveram estudos envolvendo as relações pedagógicas, dividindo-as em três grupos principais: a) relações para apoiar a construção do conhecimento, que envolvem relações entre a Ciência e o contexto, a explicação científica e a cotidiana, a Ciência e os fenômenos, entre os diferentes conceitos, entre os diferentes níveis de representação e as analogias; b) relações de continuidade, que envolvem o professor fazer relações do conteúdo/conceitos que estão sendo trabalhados naquele momento com conteúdo/conceitos que já foram trabalhados em outros momentos; e, c) relações para encorajar o envolvimento emocional. Esses pesquisadores afirmam que essas relações são fundamentais para o ensino e a aprendizagem das Ciências e que conhecê-las pode propiciar aos professores a reflexão e a análise da sua própria prática docente.

Nesse momento nos detemos nas relações de continuidade, que nos fornecem uma ideia acerca do entendimento desses licenciandos sobre a proposta didática do material temático utilizado e de como eles estabeleceram essas relações nas aulas que foram por eles desenvolvidas. Para haver continuidade, o professor deve estabelecer relação do conteúdo que está trabalhando com conteúdos que já foram trabalhados em outros momentos, em sala de aula.

Como notamos que em alguns momentos as relações de continuidade estavam acontecendo, optamos por levar esse tema para a discussão do grupo, na segunda reunião de avaliação das aulas. Selecionamos alguns fragmentos de aulas e, em seguida, transcrevemos o fragmento da aula de Paulo, na qual ele testava a condutividade elétrica de vários líquidos.

Paulo:Vamos testar com água destilada ((testa e os alunos acompanham)).

Paulo:Água destilada não conduziu suficiente para acender a lâmpada. Onde a gente encontra água destilada na natureza? Vocês lembram? ((pausa aguardando as respostas)). É do primeiro módulo, vamos ver se vocês estão com a memória fresca.

Estudante: O que a gente aprendeu no primeiro módulo?

Paulo: O ciclo da água, a água evapora, a água condensa....

Estudante: Ah ... A água da chuva!

(Fragmento das aulas sobre Ligações Químicas - Escola B)

Após assistir a esses fragmentos os licenciados não se manifestaram, ao que parece por não terem identificado a intenção da professora formadora. A professora formadora, então, perguntou a Paulo por qual motivo ele optara por fazer perguntas sobre a água destilada, se isso já havia sido tratado. Transcrevemos parte desse diálogo entre a professora formadora e Paulo.

Professora pesquisadora: Nesse momento da aula, tinha necessidade de voltar a essa discussão? Estava previsto no planejamento isso?

Paulo: Não, mas....

Professora pesquisadora: Por que você optou por fazer isso?

Paulo:Porque, tipo... não sei se vou conseguir explicar. Eu pensei o seguinte: os módulos não podem ser trabalhados independentes. Eles ((estudantes)) não vão sair de um módulo aprendendo, por exemplo, todos os conceitos de ligações químicas. Mas esse módulo não está independente, ele está ligado a conteúdos que nós trabalhamos em módulos anteriores. Então, eu fui trabalhar com a água destilada, foi uma forma de ver se eles estavam entendendo de uma forma independente ou se eles estão conseguindo “linkar” os assuntos de um módulo com o outro.

(Fragmento da reunião de análise compartilhada e reflexiva das aulas de Ligações Químicas)

Ao construir sua explicação, Paulo deixou claro um conhecimento construído por ele em relação ao material didático: as aulas têm relação entre si. Assim, ele construiu relações de continuidade exatamente para identificar se os estudantes estavam conseguindo perceber a relação entre os conteúdos de diferentes aulas.

A partir disso realizamos um estudo dessas relações com os professores em formação, baseados em Scott, Mortimer e Ametller (2011SCOTT, P. H.; MORTIMER, E. F.; AMETLLER, J. Pedagogical Link-making: A Fundamental Aspect of Teaching and Learning Scientific Conceptual Knowledge. Studies in Science Education, v. 47, n. 1, p. 3-36, 2011.), enfatizando o quanto essas relações podem auxiliar a aprendizagem, na medida em que relacionam diferentes conteúdos e que, ao fazê-las, é possível diminuir a tão criticada fragmentação dos conteúdos.

Em vários outros momentos da sequência didática essas relações de continuidade apareceram, alguns já indicados no material didático usado como base e outros construídos pelos licenciandos. Nesse caso, o estudo teórico foi realizado em função de uma prática percebida pela pesquisadora, tanto como forma de colocar em evidência o protagonismo de Paulo e outros, quanto para reforçar a indissociabilidade de estudos teóricos com a prática docente.

d) Dificuldade conceitual

Ao longo da análise das aulas fomos notando alguns problemas conceituais presentes no discurso dos professores em formação, os quais podem ter surgido em função de um certo “nervosismo” ao assumirem a docência. Com o objetivo de chamar a atenção dos licenciandos para desvios conceituais observados em suas aulas, a professora pesquisadora apresentou, na segunda reunião de avaliação compartilhada e reflexiva, alguns slides contendo os principais erros cometidos por eles, sem identificação de autoria. Deixamos de apresentar fragmentos das aulas por entendermos que poderia causar constrangimentos. Durante essa reunião, a professora pesquisadora mostrou para o grupo um slide com uma figura desenhada no quadro (pela licencianda Lúcia), no desenvolvimento das aulas do módulo II. A figura representava um béquer que continha a mistura de óleo e água e ao lado do béquer havia a indicação de que se tratava de um exemplo de “solução heterogênea”. A professora pesquisadora perguntou aos licenciandos se eles percebiam algum erro conceitual na figura. Nesse momento, Lúcia se manifestou dizendo que fora ela quem cometera o erro e que o correto seria escrever “mistura heterogênea” ao lado do béquer, mas que ela não tinha atentado para o erro até então. Percebemos que Lúcia se deu conta desse erro conceitual apenas no momento em que a professora pesquisadora mostrou a imagem.

Continuando a discussão, a professora pesquisadora afirmou que, com exceção de Sara, todos os licenciandos fizeram “confusão” com o conceito de mistura durante as explicações, pois perguntavam diversas vezes aos estudantes por qual motivo água e óleo não “se misturavam”. No workshop e no planejamento das aulas havia sido enfatizado que os conceitos de miscibilidade/imiscibilidade deveriam ser empregados quando fosse avaliada a formação de misturas por duas ou mais substâncias no estado líquido e que a mistura heterogênea entre dois líquidos só acontece se eles forem imiscíveis. Portanto, eles foram orientados a explicar aos estudantes que água e óleo formam duas fases, por serem imiscíveis. Amélia e Lúcia, durante a reunião, se mostraram bastante surpresas ao perceberem o que havia acontecido durante a aula.

Professora pesquisadora: Acabamos de discutir que água e óleo formam misturas heterogêneas. Então, vocês concordam que água e óleo são misturas?

Amélia:Sim ((também balançando a cabeça de forma positiva)).

Professora pesquisadora:Apareceu nas aulas a seguinte pergunta: “Por que água e óleo não se misturam?” ((risos))

Amélia: Se eles são uma mistura, né?, que coisa!

Professora pesquisadora: Entendem o que eu estou falando?

Lúcia: Aham, parece que usamos o senso comum, né? A gente nem percebe essas coisas.

(Fragmento da reunião de avaliação compartilhada e reflexiva do módulo II)

Ao que nos parece, o workshop e o planejamento não foram suficientes para que os licenciandos superassem as explicações pautadas no senso comum. Assim como Lúcia, outros também não haviam percebido que usavam uma linguagem que poderia confundir os estudantes da Educação Básica. É possível que alguns conceitos trabalhados em aula não estavam suficientemente claros para eles, apesar de serem básicos. Porém, termos chamado a atenção para o fato pode ter contribuído para o desenvolvimento profissional desses professores (Nóvoa, 2014NÓVOA, A. O regresso dos professores. Campo Grande: OMEP/BR/MS. 88 p.; 21cm. ISBN: 978-85-67986-00-5, 2014.), em função da reflexão coletiva instaurada. Somente Sara havia atentado para esse aspecto durante as suas explicações. A seguir, apresentamos a transcrição de um trecho de sua aula.

Sara:E no segundo experimento, o que aconteceu? ((se referindo ao experimento da água e óleo)). Quantas fases consigo ver?

Estudantes: Duas fases.

Sara: Isso. Por quê?

Estudantes: Não se misturaram.

[...]

Sara: Mas a gente não pode simplesmente falar que água e óleo não se misturam. Nós não fizemos essa mistura?

Estudante: Sim, sei lá.

Sara:Não falamos que mistura é tudo que contém mais de uma substância? Temos mais de uma substância aí ((apontando para o béquer contendo água e óleo)). Só que elas não são miscíveis. Quando acontece isso, podemos falar que o óleo não é miscível na água.

(Fragmento das aulas do módulo II - Escola A)

Sara havia sido criticada pelos colegas na primeira reunião coletiva por ter lido parte do conteúdo durante a sua aula e solicitado aos estudantes que acompanhassem a leitura. Durante a análise coletiva os colegas consideraram os estudantes da turma em que Sara deu a primeira aula como bastante desanimados. É possível que essas críticas tenham contribuído para que Sara repensasse a própria prática e se preparasse melhor para a aula. Quando a pesquisadora afirmou que apenas Sara havia tratado do conceito de mistura heterogênea conforme havia sido orientado, ela afirmou que assistiu novamente ao vídeo do workshop, como forma de preparação. Schön (2000SCHÖN, D. A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2000.) argumenta que, ao desenvolver a reflexão, o professor pode desenvolver novas formas de agir, uma vez que é possível tomar consciência dos erros e tentar agir de forma diferente, o que parece ter acontecido com Sara.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desenvolvemos este trabalho com a intenção de analisar possíveis contribuições de processos coletivos de reflexão para a prática docente de professores em formação. Embora tenhamos ciência de que isso não garante mudanças na prática futura, quando assumirem a profissão, acreditamos que refletir sobre a própria prática é um processo que precisa ser instaurado em algum momento e a formação inicial é um tempo/espaço privilegiado para que isso aconteça.

Usamos os estudos de Nóvoa e Schön de forma complementar, levando os sujeitos participantes para uma experiência docente acompanhada de um processo reflexivo e ancorada em estudos teóricos. Essa prática reflexiva aconteceu no coletivo, considerando vários aspectos da sala de aula. É claro que um trabalho mais extenso poderia considerar ainda outros aspectos que envolvem a educação como um todo.

Em nenhum momento buscamos “soluções” para situações que ocorreram nas aulas, uma vez que elas precisam ser pensadas para a situação em que ocorrem. Essas “soluções”, porém, exigem a reflexão em relação à prática pedagógica e, como diz Nóvoa (2014NÓVOA, A. O regresso dos professores. Campo Grande: OMEP/BR/MS. 88 p.; 21cm. ISBN: 978-85-67986-00-5, 2014.), elas dependem de uma vontade de mudança. Os dados obtidos a partir da análise das aulas e das reuniões reflexivas nos mostraram que, ao serem inseridos em uma proposta de aulas a partir de temas do contexto que considerassem algumas tendências contemporâneas de ensino e aprendizagem, os professores em formação foram percebendo o sentido dos conhecimentos teóricos para a prática docente. E essa produção de sentidos se deu a partir da reflexão coletiva sobre a ação. Essa reflexão mostrou aos professores em formação que os estudantes da Educação Básica participaram mais e deram um retorno melhor em termos de entendimentos quando o professor usou determinadas estratégias. Isso os fez defender a necessidade de mudanças nas aulas, embora tenhamos percebido que o conflito entre a quantidade de conteúdo e as ações mais inovadoras sempre esteve presente.

Ao realizar discussões teóricas ancoradas na prática, os professores em formação puderam mais facilmente analisar a própria prática e perceber o quanto os estudos teóricos poderiam contribuir para mudanças reais nessa prática. Esse resultado traz implicações importantes tanto para os cursos de formação de professores, tanto na dimensão de Prática como componente Curricular quanto nos estágios curriculares, uma vez que eles representam uma oportunidade privilegiada de relacionar os estudos teóricos com a atividade docente, fortalecendo a formação de professores.

Portanto, concordamos com Nóvoa (2014NÓVOA, A. O regresso dos professores. Campo Grande: OMEP/BR/MS. 88 p.; 21cm. ISBN: 978-85-67986-00-5, 2014.) quando afirma que as propostas teóricas (como foi o caso do ensino a partir de temas do contexto) só serão apropriadas a partir de uma reflexão dos professores sobre o seu próprio trabalho. E essa reflexão, acreditamos, deve começar na formação inicial e, sendo coletiva, propicia o compartilhamento de experiências e de aprendizagens.

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Editado por

Editor responsável: Ana Carolina Araújo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2020
  • Aceito
    15 Fev 2021
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