MOVIMENTOS TECNOCIENTÍFICOS NA AMÉRICA LATINA E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS

MOVIMIENTOS TECNOCIENTÍFICOS EN AMÉRICA LATINA Y SUS APORTES A LA INVESTIGACIÓN EN EDUCACIÓN EN CIENCIAS

TECHNOSCIENTIFIC MOVEMENTS IN LATIN AMERICA AND THEIR CONTRIBUTIONS TO RESEARCH IN SCIENCE EDUCATION

RESUMO:

A pesquisa tem como objetivo identificar e analisar estudos latino-americanos, que se pautam em aspectos como a participação social no desenvolvimento científico-tecnológico e a concepção de agendas de pesquisa no contexto da Educação em Ciências, no contexto da perspectiva do Pensamento Latino-Americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PLACTS) e da Tecnologia Social. Para isso, localizamos pesquisas publicadas em periódicos nos países da América Latina, nas seguintes bases de dados: Scielo e Redalyc. Os estudos foram analisados com base na Análise Textual Discursiva, tendo como categorias a Participação Social e a Ressignificação de agendas de pesquisa. Dentre os resultados, evidenciamos nos estudos que a Participação Social potencializa a reconstrução de relações sociais coletivas e tem contribuído para a mudança de postura de atores sociais no fazer ciência e tecnologia; e a Ressignificação de agendas de pesquisa propiciaram o direcionamento para o desenvolvimento científico-tecnológico, latino-americano, aderente às especificidades locais, contribuindo para uma Educação em Ciências crítica e emancipatória.

Palavras-chave:
Paulo Freire; Educação em Ciências; Movimentos Tecnocientíficos

RESUMEN:

La investigación tiene como objetivo identificar y analizar los estudios latinoamericanos, que se fundamentan en aspectos como la participación social en el desarrollo científico-tecnológico y la concepción de agendas de investigación en el contexto de la Educación en Ciencias, en el marco de la perspectiva del Pensamiento Latinoamericano en Ciencia, Tecnología y Sociedad (PLACTS) y Tecnología Social. Para ello, hallamos investigaciones publicadas en revistas de países de América Latina, en las siguientes bases de datos: Scielo y Redalyc. Se analizaron los estudios a partir del Análisis Textual Discursivo, teniendo como categorías la Participación Social y la Resignificación de las agendas de investigación. Entre los resultados, evidenciamos en los estudios que la Participación Social ha potenciado la reconstrucción de las relaciones sociales colectivas y ha contribuido al cambio de actitud de los actores sociales al hacer ciencia y tecnología; y la Resignificación de agendas de investigación orientó el desarrollo científico-tecnológico, latinoamericano, adherido a las especificidades locales, contribuyendo a una Educación en Ciencias crítica y emancipadora.

Palabras clave:
Paulo Freire; Educación en Ciencias; Movimientos Tecnocientíficos

ABSTRACT:

The research aims to identify and analyze Latin American studies, which are based on aspects such as social participation in scientific-technological development and the conception of research agendas in the context of Science Education, in the context of the perspective of Thought Latin America in Science, Technology and Society (PLACTS) and Social Technology. For this, we located research published in journals in Latin American countries, in the following databases: Scielo and Redalyc. The studies were analyzed based on the Discursive Textual Analysis, having as categories the Social Participation and the Reframing of research agendas. Among the results, we evidenced in the studies that Social Participation has potentiated the reconstruction of collective social relations and contributed to the change of attitude of social actors in doing science and technology; and the reframing of research agendas provided direction for Latin American scientific-technological development, adherent to local specificities, contributing to a critical and emancipatory Science Education.

Keywords:
Paulo Freire; Science Education; Technoscientific Movements

INTRODUÇÃO

A necessidade de promover um desenvolvimento científico-tecnológico em uma perspectiva crítica tem sido discutida por diversos autores que buscam redimensionar suas agendas de pesquisa, ampliar o debate sobre a participação social e potencializar a inserção de contradições sociais locais em processos produtivos/formativos/educativos, no contexto da Educação em Ciências, na América Latina. Dentre esses autores, destacam-se: Amílcar Herrera, Jorge Sábato, Oscar Varsavsky, na Argentina; José Leite Lopes, Renato Dagnino, Décio Auler, Roseline Strieder, no Brasil; Miguel Wionczek, no México; Francisco Sagasti, no Peru; Máximo Halty Carrere, no Uruguai e Marcel Roche, na Venezuela. Além do mais, Dagnino, Thomas e Davyt apresentam significativas contribuições no que diz respeito às relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), na América Latina (Medeiros, Strieder & Machado, 2021; Rosa, 2019; Roso, 2017). Esses autores têm contribuído para a problematização do modelo linear/hegemônico de progresso científico, transferência e importação tecnológica, o determinismo tecnológico e a suposta neutralidade da Ciência e Tecnologia (CT), Na sociedade, sobretudo no Hemisfério Sul (Auler, 2021).

As manifestações relacionadas à CTS buscavam um redirecionamento do desenvolvimento da CT, com o intuito de promover modelos democráticos no processo de produção de CT, na tentativa de contrapor o modelo hegemônico, excludente, tecnocrático e nocivo ao meio ambiente (Auler, 2018). Esse movimento CTS reverberou na América Latina, em especial na Argentina, nas décadas de 1960 e 1970, por professores e pesquisadores da área de Ciências Naturais, que buscavam uma reorientação na agenda científica, pois, em seu país, era predominante a transferência de tecnologias oriundas dos países do Hemisfério Norte, as quais não condiziam com suas realidades (Dagnino, 2010; Herrera, 1971; Varsavsky, 1969).

Roso e Auler (2016) apontam que o Pensamento-Latino-Americano em Ciência-Tecnologia-Sociedade (PLACTS) surgiu, tendo como horizonte a inserção das demandas e dos interesses sociais locais nas agendas tecnocientíficas. E, com isso, o PLACTS viabilizou a tomada de decisões em uma perspectiva democrática nos processos de produção do conhecimento científico-tecnológico (Dagnino, 2010). Auler (2021) e Medeiros, Strieder & Machado (2021) também explicitam que o PLACTS ampliou a discussão na problematização da pós-definição de agendas de pesquisa, na participação pós-consumo e nos processos formativos e educativos, que contribuíram para viabilizar a participação democrática na constituição de agendas científicas e nos currículos educacionais, bem como superar a problemática social.

Essas discussões sinalizam para a construção de um cenário desejável socialmente, de maior equidade, justiça social e sustentabilidade ambiental, uma vez que essas dimensões estão diretamente associadas à produção da CT (Roso, Auler & Delizoicov, 2020). Desse modo, há indícios de que aspectos do movimento PLACTS estão em sintonia com o movimento da Tecnologia Social (TS), pelo fato de compartilharem a forma humanizadora no fazer CT e criticarem a Política Científica e Tecnológica (PCT) Latino-americana, visando a constituição a um modo de produção compatível com a cultura de participação, pluralidade cultural, multiplicidade de conhecimentos e a diversidade de atores sociais, principalmente, aqueles que estão às margens da sociedade (Archanjo & Gehlen, 2020; Dagnino, 2020; Rosa & Strieder, 2021).

As discussões apresentadas sobre a TS explicitam a importância de promover um desenvolvimento tecnocientífico adequado ao desenvolvimento social local. Diferente da lógica linear e determinista, como explicitam Dagnino (2010) e Auler (2018), em que o Desenvolvimento Científico gera o Desenvolvimento Tecnológico, que contribui para o Desenvolvimento Econômico que, por sua vez, gera o benefício no Desenvolvimento Social. Em oposição a essa lógica capitalista, faz-se necessário um reprojetamento e adequação sociotécnica no conhecimento tecnocientífico no âmbito da PCT, a fim de redirecionar o campo educacional para reconstruir uma sociedade em outros parâmetros, em modelos socioeconômicos distintos dos atuais (Auler, 2021). A adequação sociotécnica visa reorientar a concepção tecnocientífica para a construção de uma sociedade mais equânime e inclusiva, bem como para uma Educação em Ciências humanizadora. Usaremos, aqui, a nomenclatura Movimento/s Tecnocientífico/s para representar as perspectivas CTS, PLACTS e TS.

O redimensionamento de valores que constituem a CT, como os aspectos sócio-histórico, cultural, político e econômico das atividades concretas e práticas voltadas para o contexto da sociedade, podem promover uma concepção tecnocientífica humanizadora e problematizar a partir das demandas sociais, silenciadas historicamente, especialmente, nas regiões periféricas ou nos países do Hemisfério Sul (Auler, 2018; Valladares, 2021). Segundo Castro e Monteiro (20219), para repensar a produção do conhecimento científico no contexto da Educação em Ciências é necessário reconhecer os aspectos hegemônicos que são (re)produzidos no espaço educacional e problematizar a concepção eurocêntrica de neutralidade, universalidade e única, bem como a sua implicação na formação de atores sociais, oriundos dessa sociedade hegemônica. Sendo assim, as ideias de Paulo Freire (Freire, 1987) são fundamentais para problematizar o modelo de educação hegemônica/bancária, que ignora as contradições sociais vivenciadas pelos sujeitos que estão à margem da sociedade, oprimindo-os nessa relação de poder. Essa concepção freiriana possibilita uma visão crítica aos sujeitos para atuarem politicamente na transformação de suas realidades.

Alguns pesquisadores da América Latina, a exemplo de Defago e Ithuralde (2021), Franco-Avellaneda e Corrales-Caro (2021), Delizoicov e Silva (2021), Centa e Muenchen (2018), Archanjo e Gehlen(2021) e Auler (2018, 2021) têm pautado seus estudos nos pressupostos teórico-metodológicos freireanos, no contexto da Educação em Ciências, com objetivo de promover uma educação problematizadora que visa superar a condição de sujeitos passivos e telespectadores, diante dos problemas concretos das suas realidades e potencializar uma formação emancipatória, para que eles possam contribuir na transformação da sociedade que estão imersos (Silva, 2004). Isso, porque os pressupostos freireanos podem corroborar para a reorientação curricular, no âmbito do Ensino de Ciências. Por exemplo, o processo de obtenção de Temas Geradores - por meio da Investigação Temática - possibilita evidenciar as contradições sociais locais que constituem tais temas (predominantemente presentes nos países do Hemisfério Sul) (Silva, 2004). Para Roso e Auler (2016), essas discussões ainda são embrionárias, especialmente, no currículo escolar, não havendo mudanças significativas no fazer CT no contexto do Hemisfério Sul.

Roso, Auler e Delizoicov (2020) chamam atenção para a insuficiência de demandas sociais nas agendas de pesquisas no Ensino de Ciências e sinalizam a predominância da comunidade científica na produção da CT. Dagnino (2015), também, problematiza a relação das universidades com as comunidades locais/regionais, no que concerne à produção científica e tecnológica, apontando a falta de outros atores sociais e outros saberes nesse processo. Diante do exposto, vale destacar a necessidade de ampliar a participação social, a tomada de decisões e a inserção de demandas sociais locais na produção do conhecimento tecnocientífico a partir de valores democráticos, principalmente, em uma perspectiva crítico-emancipadora freireana, no âmbito da Educação em Ciências, uma vez que tem sido pouco explorada e/ou explicitada (Archanjo e Gehlen, 2021).

Nesse sentido, tornou-se urgente e necessário discutir uma concepção de educação científico-tecnológica mais democrática, em que aspectos sociais possam ser inseridos não apenas nas discussões, mas, também, nas suas agendas de pesquisa, nas PCT, no currículo, bem como nos processos formativos, educativos e produtivos do desenvolvimento de CT (Auler, 2021). Atores como Roso, Auler e Delizoicov (2020), Rosa e Strieder (2021), Medeiros, Strieder & Machado (2021) e Auler (2021) chamam atenção para a necessidade da participação social em processos decisórios no desenvolvimento científico-tecnológico na América Latina, assim como a reconfiguração das agendas de pesquisa, uma vez que esses aspectos são fundamentais para ressignificar a educação científica latino-americana. Esses aspectos podem contribuir na superação do modelo vigente de educação científica latino-americana, que por sua vez está pautado na cultura do silêncio (Freire, 1987), implicando em uma concepção de educação fragmentada, hierárquica, tecnocrática e hegemônica (Auler, 2021).

Diante das proposições apresentadas, faz-se necessário aprofundar a investigação de modo que possibilite ampliar a discussão acerca das questões explicitadas pelos autores latino-americanos sobre o desenvolvimento da ciência e tecnologia, em uma perspectiva democrática. Para isso, vale destacar os seguintes questionamentos: de que forma os estudos latino-americanos, pautados na perspectiva do PLACTS e TS, têm abordados a inserção de aspectos sociais e a participação social no desenvolvimento científico-tecnológico? Além disso, qual compreensão é explicitada nesses estudos sobre as agendas científicas no âmbito da Educação em Ciências? Há uma preocupação dos autores latino-americanos sobre a ressignificação dessas agendas de pesquisa? Assim, o objetivo desta pesquisa, consiste em identificar e analisar pesquisas latino-americanas, que se pautam em aspectos como a participação social no desenvolvimento científico-tecnológico e a concepção de agendas de pesquisa no contexto da Educação em Ciências, no contexto da perspectiva do PLACTS e da TS.

O foco da presente pesquisa está no PLACTS e na TS, uma vez que essas são oriundas da América Latina. Além disso, Strieder, Torija e Quilez (2017) sinalizam haver uma necessidade na valorização de aspectos relacionados à PLACTS, como a aproximação de temas sociais do conhecimento científico no contexto escolar, a problematização do desenvolvimento científico-tecnológico e a necessidade de se discutir os aspectos associados aos produtos da ciência e tecnologia.

O MOVIMENTO TECNOCIENTÍFICO PLACTS E SUA RELAÇÃO COM PAULO FREIRE

Alguns estudos brasileiros, a exemplo de Roso (2017), Santos e Auler (2019), Rosa e Strieder (2021) e Auler (2021), Medeiros, Strieder & Machado (2021) têm discutido relações entre PLACTS e Paulo Freire, na área de Educação em Ciências, na tentativa de abarcar e potencializar discussões epistemológicas, sociológicas e filosóficas relacionadas ao desenvolvimento científico-tecnológico coerente às especificidades de cada região. Assim, emerge desse contexto, a necessidade de promover uma relação dialógica entre os diferentes sujeitos participantes, de forma que promovam ações educativas humanizadoras e transformadoras.

Para isso, as proposições entre o PLACTS e Freire, no cenário do Hemisfério Sul, constituem-se de modo compatível com a pluralidade cultural, a multiplicidade de conhecimentos e a diversidade de atores sociais, principalmente, aqueles que estão inseridos em áreas periféricas da América Latina, como no Brasil (Auler, 2021). Essas proposições também têm sido abordadas por Auler e Santos (2019):

[...] Freire ajuda-nos a compreender que, para a constituição de uma cultura de participação, torna-se fundamental uma leitura crítica da realidade. Leitura crítica possibilitada por uma compreensão crítica das interações entre Ciência, Tecnologia-Sociedade - problematização e superação da suposta neutralidade - aspecto que encontra contribuições no campo CTS. Apoiados em Dagnino, Lacey e o PLACTS, aprofundamos a compreensão de que o direcionamento dado ao processo científico-tecnológico não é neutro, mas marcado por valores e interesses. Não sendo neutro, pelas convicções assumidas, postulamos uma participação social mais ampla. (Santos & Auler, 2019, p. 6)

Diante da compreensão explicitada pelos autores, constata-se que há uma convergência na relação entre o movimento PLACTS e Freire. A exemplo da busca por uma maior participação social em assuntos relacionados à produção científica, em que os sujeitos deixam de ser passivos e assumem uma postura de protagonistas, diante dos problemas sociais que afligem as suas realidades, além de contribuir para desconstruir a visão de neutralidade da ciência, pela sociedade. Rosa e Strieder (2021) explicitam que:

[...] balizados pelas aproximações dos referenciais do PLACTS e dos pressupostos teórico-filosóficos de Paulo Freire, e orientados pelas fundamentações dos autores anteriormente mencionados, defendemos a constituição de uma cultura de participação fundamentada pela análise sobre diferentes dimensões que envolvem ciência-tecnologia, pela busca de uma leitura crítica sobre os problemas/temas sociais vividos, pela ampliação dos atores sociais, atuação em busca de transformação desses problemas e reinvenção de modelos de sociedade, de ciência-tecnologia e educação. (Rosa & Strieder, 2021, p. 9).

A partir da visão das autoras sobre a relação PLACTS e Freire, fica perceptível a busca pela relação horizontal, problematizadora e dialógica, em que a participação dos atores sociais na construção de uma nova concepção de educação e organização social, torna-se fundamental na promoção da coaprendizagem e autonomia de seus atores sociais. Auler (2021) chama a atenção para relações entre o PLACTS e Freire, ao discutir que essas perspectivas se aproximam na efetivação de práticas educativas que visam contribuir significativamente para a democratização em processo de tomada de decisões, valorização dos conhecimentos populares/tradicionais. Para o autor, o PLACTS surge como uma forma de reivindicar a importação de tecnologias (e valores hegemônicos agregados) do Hemisfério Norte, os quais são inadequados à realidade da América Latina, e tendo como possibilidade a essa lógica, o desenvolvimento de CT coerente às demandas locais. Do mesmo modo, o autor destaca que o pensamento freiriano contrapõe um modelo de educação bancária, em que uns elaboram um currículo escolares e outros os executam, tornando-se inadequado à realidade escolar.

Semelhantemente, Tobón, Giraldo e Carmona (2021) explicitam que no contexto da América Latina, a educação científica é particularmente sensível aos temas sociais, sendo que essa relação se reverbera diretamente no currículo das Ciências Naturais, nos diferentes níveis da educação, promovendo uma perspectiva transversal e contribuindo para uma concepção crítica dos sujeitos, no seu contexto social. Sendo assim, pensar na democratização ampliada da ciência-tecnologia, na perspectiva do PLACTS, fundamentada nos pressupostos teórico-metodológicos freireanos, possibilita a construção de uma educação científica pautada em currículos temáticos. Assim, tendo como ponto de partida a realidade local, a interdisciplinaridade, como dimensão fundamental na construção do sujeito crítico, e na construção da cultura de participação em processos decisórios (Roso & Auler, 2016).

O fazer educativo em Freire e o fazer pesquisa no PLACTS concebem uma educação científica orientada por outros valores, pautada em demandas historicamente relegadas e com a participação efetiva da sociedade, nos vários níveis de ensino, com o intuito de formar sujeitos críticos (Auler & Delizoicov, 2015). Nesse sentido, a identificação, legitimação e inserção de demandas locais, historicamente negligenciadas no currículo escolar, pode ser um caminho para o desenvolvimento de uma educação transformadora. Para isso, alguns autores (Auler, 2021; Medeiros, Strieder & Machado, 2021; Rosa & Strieder, 2021; Roso, 2017; Archanjo & Gehlen, 2020) têm buscado subsídios teórico-metodológicos em Paulo Freire, especialmente, no processo de Investigação Temática (IT), a fim de desenvolver uma proposta educativa dialógica, problematizadora e humanizadora (Freire, 1987).

A IT foi proposta por Paulo Freire para obtenção de Temas Geradores a serem trabalhados no contexto da educação informal (Freire, 1987) e uma reconfiguração foi realizada por Delizoicov (1982; 1991) para o âmbito escolar. A investigação é sistematizada em cinco etapas, quais sejam: 1) Levantamento Preliminar: investigação e reconhecimento local da comunidade; 2) Codificação: análise e escolha de contradições sociais, compreendidas por situações-limites, vivenciadas pelos envolvidos; 3) Descodificação: representada pelo momento em que se legitima uma situação-limite presente no contexto social do sujeito e constatam-se as situações significativas para a comunidade, que representam os Temas Geradores; 4) Redução Temática: seleção do conteúdo programático para melhor compreender o Tema Gerador, bem como o planejamento de atividades de sala de aula; 5) Desenvolvimento em Sala Aula: implementação de atividades em sala de aula. Os Temas Geradores, obtidos neste processo de investigação, além de representarem situações-limite, podem compreender demandas sociais/locais da comunidade e serem abordados na Educação em Ciências, com o intuito de desencadear uma nova visão de mundo e superar as contradições sociais locais que constituem tais temas (Silva, 2004).

As discussões explicitadas sobre a IT, articuladas às dimensões do PLACTS, podem contribuir na promoção de uma visão mais crítica com relação à produção de CT e sua articulação com a sociedade. A exemplo de uma possível reorientação das agendas científicas e currículos temáticos, no contexto do Ensino de Ciências, a partir de temas sociais presentes no Hemisfério sul, buscando postular processos decisórios mais democráticos no contexto do Ensino de Ciências, aderente às realidades da América Latina (Medeiros, Strieder & Machado, 2021). Assim, buscam adequar às especificidades locais de cada região, como os aspectos sociais, econômicos, culturais, ambientais e políticos, na constituição de agendas de pesquisa (Dagnino, 2020).

O MOVIMENTO TECNOCIENTÍFICO DA TS E A PERSPECTIVA FREIREANA

A TS se constitui como uma alternativa ao modelo hegemônico de CT presente nos países latino-americanos e busca contribuir para mudanças significativas nas agendas científicas no cenário educacional (Dagnino, 2010). Essa concepção está pautada em valores democráticos, como a participação ativa dos atores sociais no desenvolvimento científico, na valorização de conhecimentos, crenças, culturas, identidades e histórias locais e regionais, de modo que ampliem a coprodução, a coaprendizagem, a autonomia e a tomada de decisões em processos democráticos do fazer CT (Badallo & López, 2019; Archanjo & Gehlen, 2020).

Diferente das concepções científico-tecnológicas hegemônicas, que estão pautadas na universalidade, homogeneidade, neutralidade, dentre outros, a TS se constitui como uma tecnociência voltada para a realidade local, de forma heterogênica e imbuída de valores democráticos (Archanjo & Gehlen, 2021). Nesse sentido, alguns estudos destacam a importância de estruturar a TS como uma oposição ao sistema vigente, a exemplo de Batista e Freitas (2018):

[...] a TS apresenta como condição essencial à construção individualizada para cada caso, ou seja, não se pode simplesmente buscar uma solução pronta e aplicá-la à situação problema, sem uma devida adequação da tecnologia e consideração do impacto desta nos valores locais. Desta forma, a TS deve ser compreendida como uma solução tecnológica de transformação social projetada para cada realidade específica, diferentemente de uma solução pronta e acabada. (Batista & Freitas, 2018, p.9).

Os autores explicitam que os pressupostos da TS têm sido fundamentais para repensar o modelo tecnocientífico dominante e linear, que constituem as suas agendas científicas a priori, sem considerar as especificidades locais. Batista e Freitas (2018) explicitam o potencial da TS articulada aos pressupostos freireanos na educação:

Embora a tecnologia e a educação possam representar um interesse de classe específico, a serviço de determinados interesses, elas também podem ter uma concepção progressista na formação de um sujeito reflexivo e consciente, constituindo-se de um meio para sua mudança e libertação (FREIRE, 1967). O uso da TS na educação vem ao encontro da necessidade de entender a ciência não como uma atividade neutra e autônoma, mas de realçar a relação de interdependência entre ciência, tecnologia e sociedade (CTS), diante de uma realidade de injustiças e de exclusão social. (Batista & Freitas, 2018, p.6).

Diante da concepção dos autores, evidencia-se que os aspectos que compõem a TS não são neutros, mas sim políticos e se opõem aos interesses hegemônicos. Essas dimensões, articuladas aos pressupostos freireanos, podem contribuir para a superação do modelo responsável pelas relações de exclusão e desumanização na sociedade e sinalizar caminhos alternativos para a constituição de uma sociedade diferente da dominante. Os Movimentos Tecnocientíficos buscam questionar a relação do ser, do saber e do poder, concebida em uma perspectiva eurocêntrica para a produção do conhecimento dominante, opressor e excludente, que está intrínseco à realidade da sociedade atual, sendo, também, reproduzido nos espaços educacionais. Essas proposições discutidas aproximam-se dos estudos de Castro e Monteiro (2019).

Essa relação entre a TS e Freire também é destacada por Soffner (2014):

Para Freire, a tecnologia é expressão do processo de engajamento do homem no mundo, para sua transformação. Ainda, a tecnologia é meio de afirmação de uma sociedade, provida de uma dimensão política devido ao fato de ser uma prática humana, e certamente influenciada por ideologias, pois serve a interesses múltiplos: ela não é, portanto, neutra - acompanha a visão de mundo da sociedade que a produz e a utiliza. (Soffner, 2014, p. 3).

O autor chama atenção para o fato da não neutralidade da CT, que são concebidas de valores ideológicos em sua dimensão política, assim como são responsáveis pela organização social, pois são constituídas conforme os interesses da sociedade que a produz. Diante dessas preposições constituídas de valores capitalistas, os pressupostos freireanos tornam-se são fundamentais para promover algumas problematizações, que possibilitem refletir criticamente sobre o modelo tecnocientífico hegemônico vigente na sociedade e como essa concepção é reproduzida nas instituições de ensino.

Alguns estudos (Adal & Cakiroglu, 2022; Badallo & López, 2019; Dagnino, 2010; Medeiros, Strieder & Machado, 2021; Roso, 2017; Archanjo & Gehlen, 2020; Valladares, 2021) destacam a importância de subverter essa lógica por meio da democratização de processos decisórios nas agendas científicas. Pois, constituir uma concepção de CT, como a TS, que busca uma produção tecnocientífica a partir dos aspectos sociais, econômicos, culturais, ambientais, políticos, do contexto local, nas agendas de pesquisa e no currículo escolar, tendo como horizonte a emancipação e formação de atores sociais críticos, diante das contradições que afligem as suas realidades, pode ser um avanço significativo para a superação da hegemonia tecnocientífica. Para isso, alguns pressupostos de Paulo Freire podem ser fundamentais para a constituição de uma concepção de CT mais humanizada, uma vez que esses pressupostos possibilitam valorizar os saberes locais e a participação efetiva em todas as etapas do fazer ciência e tecnologia, tornando-as coerentes às necessidades e interesses locais.

Dentre essa perspectiva de ciência e tecnologia mais humanizada, vale destacar as aproximações entre a TS e a perspectiva de Paulo Freire por propiciarem possíveis alternativas para constituir currículos temáticos e abordagens interdisciplinares, de modo que possibilitem, no âmbito da educação científica e social, a formação crítica dos sujeitos, para que esses possam se emancipar e atuar criticamente na transformação das suas realidades (Archanjo & Gehlen, 2021). Um exemplo da possibilidade das relações entre a TS e alguns aspectos da perspectiva freireana é o estudo de Archanjo e Gehlen (2020) que desenvolveu a replicação de uma Fossa Séptica Ecológica na perspectiva da TS, em uma comunidade escolar e local, orientada pelo processo de IT, tendo como ponto de partida as contradições sociais locais. A proposta contou com a participação ativa de diversos atores sociais (pesquisadores, alunos, professores e moradores locais), potencializando a produção do conhecimento coerentemente aos valores e interesses da comunidade local, alinhando-se aos valores propostos por um modelo tecnocientífico progressista (Archanjo & Gehlen, 2020).

Sendo assim, o Movimento Tecnocientífico da TS, articulado aos pressupostos freireanos, apresenta indicativos imprescindíveis para potencializar a participação social a reivindicar as inserções de contradições sociais na produção de ciência e tecnologias, tendo como elemento fundante o diálogo entre diferentes atores sociais, abarcar a diversidade cultural local, a multiplicidade de conhecimentos e pluralidade cultural, na tentativa de redimensionar os currículos escolares, a partir das demandas locais.

O Quadro 1 apresenta uma síntese de alguns aspectos que envolvem os Movimentos Tecnocientíficos críticos, na perspectiva do PLACTS e a TS, que visam apresentar suas dimensões, como a participação social e a ressignificação de agendas de pesquisa e suas implicações no desenvolvimento tecnocientífico latino-americano.

Quadro 1
As dimensões hegemônicas dos Movimentos Tecnocientíficos críticos

Destaca-se no Quadro 1 as dimensões que envolvem valores democráticos, que têm como horizonte uma educação científica, transformadora e emancipadora, pautada nos pressupostos freireanos. São dimensões numa perspectiva crítica do Movimento Tecnocientífico, no contexto latino-americano, tornando-se fundamentais na constituição da CT coerente com as especificidades dos países latino-americanos (Auler, 2021; Badallo e López, 2019; Medeiros, Strieder & Machado, 2021; Rosa & Strieder, 2021; Roso, 2017; Strieder, Torija & Quilez, 2017).

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para compreender a concepção de participação social e agenda de pesquisa, seguindo a perspectiva do PLACTS e da TS, em pesquisa realizadas na América Latina, buscou-se identificar estudos publicados em duas bases de dados: a) Redalyc - Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal - que promove o acesso à literatura científica publicada em periódicos editados nos países da América Latina, Caribe, Espanha e Portugal e b) Scielo - Scientific Electronic Library Online, que consiste em uma base de dados eletrônicos cooperativos de periódicos científicos, que possibilita o acesso eletrônico aos artigos completos de revistas da América Latina. A busca pelas pesquisas se deu por meio dos descritores: CTS; Ciência, Tecnologia e Sociedade; PLACTS e Tecnologia Social, entre os anos de 2000 até 2020, pelo fato de ser o período em que houve uma maior produção e divulgação destas (Auler, 2021; Dagnino, 2020).

Utilizando os descritores: CTS; Ciência, Tecnologia e Sociedade; PLACTS e Tecnologia Social, foram localizados ao total de 3.271 estudos na perspectiva da CTS, PLACTS e Tecnologia Social. Após a localização destes estudos, conforme o quantitativo explicitado sobre CTS, PLACTS e Tecnologia Social, realizou-se novos levantamentos com o foco, apenas, nas perspectivas PLACTS e Tecnologia Social, pelo fato dessas concepções serem oriundas da América Latina e ser cerne da presente investigação sobre as questões relacionadas à participação social e agenda de pesquisa, no contexto latino-americano. Para isso, foram realizados os seguintes procedimentos: i) Leitura de todos os resumos; ii) Organização dos estudos por ano de publicação; iii) Organização dos estudos por país de origem da publicação; iv) Organização dos estudos sobre PLACTS e TS nos países latino-americanos, que contém um número igual ou superior a 4 (quatro) de produções, pois, a partir desse número de trabalhos é possível contemplar os países que apresentaram um maior índice de publicações em pesquisas na perspectiva PLACTS e Tecnologia Social, como exemplo: o Brasil, Argentina, México, Colômbia e Chile. As concepções PLACTS e TS foram escolhidas pelo fato de serem oriundas da América Latina. Nesta etapa, na qual o foco se restringiu à perspectiva PLACTS e à Tecnologia Social, localizamos 149 pesquisas, como apresentadas na Tabela 3. Esses estudos foram lidos na íntegra e analisados por meio da Análise Textual Discursiva (ATD) (Moraes & Galiazzi, 2011), a fim de identificar a concepção dos autores latino-americanos sobre a participação social em processos decisórios no desenvolvimento científico-tecnológico e na ressignificação de agendas de pesquisa. Esse processo, da realização dos recortes dos trabalhos identificados, consistiu na definição do corpus, atendendo o mesmo campo semântico e possibilitando estabelecer as unidades de sentido. Para isso, foram realizadas as etapas da ATD, quais sejam: i) Unitarização: consistiu na fragmentação do corpus dos 149 trabalhos em unidades de significados, a partir dos descritores PLACTS e TS, por meio de uma leitura sistemática sobre a temática, ou seja, relacionados aos fragmentos que apareciam nas discussões referentes aos descritores. b) Categorização é constituída a partir das discussões teóricas realizadas, assim como as informações dos estudos que foram organizadas por semelhanças semânticas, tendo como referência duas categorias a priori: i) Participação Social; ii) A Ressignificação de agendas de pesquisa, que possibilitaram a reorganização das unidades e verificar possíveis aproximações da participação social e ressignificação das agendas de pesquisa, no contexto latino-americano, no âmbito da Educação em Ciências. Em síntese, a seleção dos trabalhos foi realizada a partir das semelhanças identificadas, nos corpus dos mesmos, sobre participação social e ressignificação das agendas de pesquisa e c) Metatexto foi estruturado na busca do novo emergente, que possibilitou na identificação e promoção de novos valores, como: a democratização do conhecimento científico e valorização dos conhecimentos populares, as decisões democráticas na constituição de CT, presentes nos Movimentos Tecnocientíficos em uma perspectiva crítica, visando uma compreensão ampla sobre a ressignificação das agendas de pesquisa por meio de uma participação social mais efetiva e plural. Uma síntese desse processo da ATD é apresentado no Quadro 2.

Quadro 2
Síntese das etapas da ATD realizadas no presente estudo

O Quadro 2 explicita uma síntese das etapas da ATD, visando tornar mais compreensível os processos metodológicos desta pesquisa. A partir das interpretações e descrições baseadas nas unidades de significado e nas referidas categorias a priori, pautadas nas discussões teóricas e nos trabalhos localizados, constituiu-se o metatexto. Essas compreensões são apresentadas na seção a seguir.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Para melhor compreender as discussões sobre os Movimentos Tecnocientíficos constituídos por CTS, PLACTS e TS na América Latina, a Tabela 1 apresenta o número de trabalhos localizados no período de 2000 até 2021, publicados por autores latino-americanos. Vale destacar que o cálculo do percentual de trabalhos teve como referência o número total de trabalhos localizados na perspectiva CTS, PLACTS e TS.

Tabela 1
Total de trabalhos localizados na perspectiva da CTS, PLACTS e TS

Trabalhos localizados por ano - na América Latina
Ano de publicação	CTS		PLACTS		TS
	Nº de trabalhos	% do total de trabalhos	Nº de trabalhos	% do total de trabalhos	Nº de trabalhos	% do total de trabalhos
2021	198	6,4	03	5,2	07	6,9
2020	203	6,5	05	8,8	06	5,9
2019	213	6,8	05	8,8	03	2,9
2018	202	6,5	04	7,0	08	7,8
2017	241	7,8	02	3,5	10	9,8
2016	217	7,0	07	12,3	10	9,8
2015	194	6,2	06	10,5	07	6,9
2014	199	6,4	07	12,3	05	4,9
2013	218	7,0	01	1,8	08	7,8
2012	168	5,4	02	3,5	13	12,7
2011	166	5,3	03	5,2	09	8,8
2010	160	5,1	04	7,0	04	3,9
2009	151	4,9	02	3,5	01	1,0
2008	139	4,5	03	5,2	05	4,9
2007	107	3,4	01	1,8	01	1,0
2006	88	2,8	00	00	01	1,0
2005	109	3,5	01	1,8	01	1,0
2004	65	2,1	01	1,8	02	2,0
2003	34	1,1	00	00	00	00
2002	16	0,5	00	00	00	00
2001	12	0,4	00	00	01	1,0
2000	12	0,4	00	00	00	00
Total	3.112	100%	57	100%	102	100%
Total de trabalhos (CTS, PLACTS e TS)	3.271

• Fonte: Os autores.

Na Tabela 1, é notável uma significativa produção de artigos relacionados à temática CTS, na América Latina, representando uma porcentagem significativa em relação à PLACTS e TS. Assim, a identificação das produções sobre CTS, no âmbito do Ensino de Ciências, consiste em um total de 3.271 pesquisas. Alguns estudos, como Böck et al. (2022), destacam haver um aumento de trabalhos sobre CTS em nível nacional e internacional, atrelado ao fato de que os autores latino-americanos compreenderam a importância de ampliar a discussão sobre essa perspectiva, principalmente, no contexto da Educação em Ciências, dando subsídio para que novos trabalhos sejam desenvolvidos nessa concepção. Isso sinaliza uma preocupação de pesquisadores em evidenciar discussões dessa perspectiva, no contexto latino-americano, ainda que incipientemente, para uma mudança significativa na educação, contudo aponta uma possível alternativa para constituição de uma educação científica distinta da hegemônica.

Além disso, as informações da Tabela 1 mostram que houve um aumento nessas pesquisas a partir do ano de 2004, contabilizando um percentual significativo das produções, com relação aos anos anteriores, o que pode estar atrelado à ampla divulgação nos fóruns de debates sobre essa perspectiva. No entanto, há um decréscimo nas produções a partir de 2018, o que pode estar relacionado à polissemia existente na compreensão, discussão e materialização desta concepção no âmbito acadêmico, implicando em um distanciamento da pesquisa sobre CTS sinalizado, por exemplo, por Dagnino (2020).

Quanto às pesquisas relacionadas ao PLACTS foram localizados 57 trabalhos, havendo uma crescente produção a partir de 2004, que pode estar atrelado à ampliação na divulgação dessa perspectiva tecnocientífica nos espaço acadêmicos. Constatamos, também, uma oscilação entre os anos de 2004 e 2021, pelo fato dessas discussões estarem em constante mudanças, quanto à sua compreensão, e sua inserção no contexto do Ensino de Ciências (Medeiros, Strieder & Machado, 2021; Rosa & Strieder, 2021). Isso indica a necessidade de mudanças significativas nas agendas de pesquisa, no cenário acadêmico, a partir da inserção de valores democráticos na constituição da mesma, na tentativa de subverter o negligenciamento das demandas sociais locais (Auler, 2018; Varsavsky, 1969).

Quanto à TS, foram localizados ao total de 102 artigos, tendo início em 2001 com o trabalho de Molón (2001) que começou a discutir a possibilidade de uma ciência e tecnologia adequada às demandas sociais locais. Em seguida, nos anos 2002 e 2003, não foi localizado nenhum trabalho e somente a partir de 2010 há, pelo menos, mais de 3 artigos publicados por ano. Roso (2017) também aponta a incipiência de estudos relacionados à TS, no contexto do Ensino de Ciências, o que pode estar relacionado à compreensão insuficiente sobre a sua relevância para a área, bem como a falta de divulgação da mesma nos espaços acadêmicos (Archanjo & Gehlen, 2021). Essa carência de estudos que utilizam aspectos da TS na Educação em Ciências sinaliza para a necessidade de ampliar a discussão e produção de pesquisas desta natureza, na tentativa de potencializar a participação social na tomada de decisões sobre as agendas científicas, entre outros (Dagnino, 2020).

Além do mais, as proposições sobre TS foram discutidas nos fóruns de debates, especialmente, em instituições de ensino, na América Latina, por meio de pesquisas científicas, e divulgadas em revistas científicas, por volta dos anos 2000 (Dagnino, 2010), o que está em sintonia com os resultados da Tabela 1, quando as produções no início dos anos 2000, ainda, são incipientes, tendo um significativo crescimento a partir do ano de 2005. Outro aspecto que identificamos nos estudos que abordam CTS, PLACTS e TS, foi o país de origem da publicação dos trabalhos, como ilustra o Tabela 2.

Tabela 2
Trabalhos localizados em países latino-americanos

Trabalhos localizados por países
CTS			PLACTS			TS
Países em que os trabalhos foram localizados	Total por país	% de trabalhos por país	Países em que os trabalhos foram localizados	Total por país	% de trabalhos por país	Países em que os trabalhos foram localizados	Total por país	% de trabalhos por país
Brasil	868	27,9	Brasil	22	38,6	Brasil	88	86,3
Argentina	761	24,4	Argentina	20	35,1	Chile	05	4,9
Colômbia	591	19,0	México	05	8,8	Colômbia	04	3,9
México	326	10,5	Colômbia	05	8,8	Uruguai	01	0,98
Venezuela	168	5,4	Equador	02	3,5	Venezuela	01	0,98
Costa Rica	133	4,3	Costa Rica	02	3,5	Bolívia	01	0,98
Cuba	85	2,7	Chile	01	1,7	Costa Rica	01	0,98
Chile	79	2,5	Cuba	00	0	Argentina	01	0,98
Equador	44	1,4	Equador	00	0	Equador	00	0
Peru	29	1,0	Peru	00	0	Peru	00	0
Rep. Dominicana	12	0,39	Rep. Dominicana	00	0	Rep. Dominicana	00	0
Uruguai	12	0,39	Uruguai	00	0	México	00	0
Porto Rico	01	0,03	Porto Rico	00	0	Porto Rico	00	0
Bolívia	03	0,1	Bolívia	00	0	Cuba	00	0
Total	3.112	100%	Total	57	100%	Total	102	100%
Total de trabalhos (CTS, PLACTS e TS)	3.271

• Fonte: Os autores.

Para visualizar melhor esses resultados, também sistematizamos o percentual de trabalhos publicados por país, no período de 2000 até 2021. Diante dos resultados constatados, o que chama atenção é que alguns países, a exemplo do Brasil, lideram o maior número de publicação sobre CTS, PLACTS e TS, isso pode estar atrelado ao fato desses países serem pioneiros sobre essas discussões na América Latina (Dagnino et al., 2004). Além do mais, isso pode propiciar uma maior compreensão dos pesquisadores oriundos desses países sobre à necessidade de produzir CT adequada às suas realidades, bem como potencializar a problematização do modelo de sociedade vigente e, sobretudo, ampliar as discussões sobre a participação social para a tomada de decisões democráticas (Auler, 2021; Medeiros, Strieder & Machado, 2021; Rosa & Strieder, 2021; Valladares, 2021;).

Para melhor compreender os aspectos relacionados ao Movimento Tecnocientífico na América Latina, em especial, sobre o PLACTS e a TS, selecionamos os trabalhos também publicados no Brasil, Argentina, México, Colômbia e no Chile, os quais contêm um número igual ou superior a 4 (quatro) produções, no período analisado, totalizando 149 pesquisas, como apresenta a Tabela 3.

Tabela 3
Trabalhos localizados sobre PLACTS e TS

PLACTS			Tecnologia Social
País	Nº de trabalhos por País	% de trabalhos por país	País	Nº de trabalhos por País	% de trabalhos por país
Brasil	22	42,3	Brasil	88	90,7
Argentina	20	38,5	Chile	05	5,2
México	05	9,6	Colômbia	04	4,1
Colômbia	05	9,6
Total	52	100%		97	100%
Total de trabalhos (PLACTS e TS)	149

• Fonte: Os autores.

Essas 149 pesquisas foram lidas na íntegra, a fim de compreender as concepções de autores dos respectivos países sobre as dimensões: participação social e ressignificação de agendas de pesquisa. Vale salientar que, apenas alguns desses trabalhos foram selecionados e analisados, especialmente, aqueles que se aproximam mais das referidas categorias, a) Participação Social; b) A Ressignificação das agendas de pesquisa, na tentativa de compreender a concepção dos autores latino-americanos sobre a presente temática e de que forma essas concepções estão imbricadas no ensino de Ciências.

A) PARTICIPAÇÃO SOCIAL

A participação social tem sido um dos aspectos mais enfatizados pelos estudos com foco no PLACTS e na TS (Medeiros, Strieder & Machado, 2021; Rosa & Strieder, 2021). Nesse sentido, alguns autores têm destacado sua importância para a democratização em processos decisórios na produção de CT e, também, possíveis contribuições para uma nova organização social. Roso e Auler (2016), por exemplo, sinalizam que as “pesquisas passam a identificar e problematizar o alcance limitado da participação social postulada. Uma participação que, em linhas gerais, limita-se ao “pós”, pós-definição da agenda de pesquisa, pós-execução de projetos. (Roso & Auler, 2016, p. 3, grifo nosso). Isto é, a participação social passa a ser foco de discussão e problematização, uma vez que essa limita-se ao pós-definição e pós-execução. Os autores chamam atenção que a participação social deve ocorrer em todas as etapas do processo, desde o planejamento, até à etapa final da produção de CT, para contemplar os interesses e as necessidades locais, por meio uma ação educativa e formativa democrática.

Outros autores, como Pérez-Bustos, Prieto e Avellaneda (2012), sinalizam que a participação social possibilita a reconstrução das relações sociais entre a sociedade e a CT permitindo, assim, a configuração de novos tipos de relações coletivas.

Nessa medida, esse tipo de proposta (produção de ciência e tecnologia em uma perspectiva democrática) reconhece a participação dos usuários como construtores de tecnologia, o que possibilita problematizar a distinção entre designer e usuário, e reconstruir relações sociais relevantes que cruzam as fronteiras entre esses papéis. (Pérez-Bustos, Prieto & Avellaneda, 2012, p. 10. Grifo e tradução nossa).

A compreensão dos autores sobre a participação social chama atenção para a superação das relações tecnocráticas vigentes na produção científico-tecnológica que, por sua vez, essa concepção reverbera em outros espaços sociais, especialmente, no contexto educacional. A participação social como um meio de potencializar valores democráticos, tanto no âmbito tecnocientífico quanto social, segundo os autores, possibilita reconstruir relações sociais relevantes que cruzam as fronteiras, ou seja, a participação social pode contribuir para uma nova organização social, como têm apontado Auler (2018).

Semelhantemente, Badallo e López (2019) discutem que a participação social propicia possíveis mudanças de postura dos sujeitos, bem como busca “promover projetos de pesquisa em que vários grupos de cidadãos participem ativamente, transformando-se de público receptor em atores do sistema científico” (Badallo & López, 2019, p.9, tradução nossa). Ao compreender a participação social como um meio para superar uma postura passiva dos sujeitos, os autores sinalizam que os valores presentes na produção da ciência e tecnologia, não são neutros, mas contribuem para moldar o comportamento social. Discussões sobre a neutralidade da CT são abordagens amplamente discutidas pelos autores latino-americanos, especialmente, por Varsavsky (1969), Herrera (1971) e Dagnino (2010), além do mais, a participação social apresenta-se como uma alternativa a superar essa concepção. Sendo assim, ações educativas, formativas e produtivas tecnocientíficas, em outra perspectiva (distintas da hegemônica), podem tornar-se um caminho viável para subverter a lógica dominante e propiciar aos seus atores sociais uma percepção crítica sobre os seus posicionamentos no fazer CT, sobretudo diante dos conflitos sociais inerentes às suas relações sociais (Auler, 2021; Rosa & Strieder, 2021; Valladares, 2021).

Para Andrade e Dias (2017), essa participação social, contrapõe as escolhas de demandas realizadas a priori por determinados grupos, a fim de atender aos seus interesses.

O que leva a inferir que a instrumentação da ação pública não pode ser compreendida por escolhas feitas a priori, mas pelos efeitos gerados, que, conforme a Teoria Ator-Rede, são sempre provisórios. Assim, devem ser considerados na análise da instrumentação alguns pressupostos sugeridos por Callon (2004) na análise de dinâmicas participativas. Isto é, (1) deve-se levar em conta a amplitude e a variedade de atores envolvidos na ação pública; (2) o novo não deve estar limitado à satisfação de necessidades e demandas, mas orientado à “construção de novos tipos de vida coletiva”; e (3) é necessário melhor reconhecer a importância de comunidades híbridas na construção de nosso mundo futuro. (Andrade & Dias, 2017, p.8).

O entendimento de Andrade e Dias (2017) sobre a participação social considera alguns aspectos fundamentais para a efetivação do fazer ciência e tecnologia, como: a importância da participação social quanto uma alternativa ao modelo hegemônico que desenvolve suas agendas a priori; a inserção de distintos atores sociais em todo o processo tecnocientífico; ações coletivas aderentes às demandas locais; bem como uma visão plural, heterogênea e crítica com relação às especificidades locais, na tentativa de superar as suas demandas. As explicitações apresentadas pelos autores sinalizam possíveis caminhos para superar a ausência da sociedade na produção tecnocientífica e propiciar uma nova educação científica pautadas em valores democráticos (Auler, 2018).

Em síntese, constamos que a participação social nos estudos analisados tem sido foco de discussões que compreendem a problematização de sua utilização na pós-produção (Roso e Auler, 2016), possibilita a reconstrução de relações sociais coletivas (Pérez-Bustos, Prieto & Avellaneda, 2012) e contribui para a mudança de postura dos atores sociais diante do fazer ciência e tecnologia (Badallo & López, 2019). Além disso, evidenciamos que a participação social pode contrapor escolhas de demandas, realizadas a priori por determinados grupos, a fim de atender os seus próprios interesses (Andrade & Dias, 2017). Essas compreensões dos autores apresentam aproximações com o Movimento Tecnocientífico da TS, a exemplo da participação social, sendo uma dimensão fundamental no desenvolvimento desta concepção, que por sua vez potencializa a democratização do conhecimento científico e a valorização dos conhecimentos populares/tradicionais e contribui para a criticidade dos atores sociais locais (Archanjo & Gehlen, 2021).

B) A Ressignificação da agenda de pesquisa

As agendas de pesquisa se originam de um processo decisório no qual os atores envolvidos materializam seus projetos políticos (Dagnino, 2010). Sendo assim, discussões relacionadas à reconfiguração de agendas de pesquisa, a partir da participação social, também são foco de alguns estudos. Por exemplo, Giacomazzo (2015, p. 9), ao discutir que “é necessário para tensionar a PCT e a agenda da pesquisa universitária, fazendo com que dela participem aqueles que continuam sendo excluídos da produção do conhecimento”. O autor destaca que a participação social, especialmente dos excluídos, torna-se fundamental para tensionar a PCT, bem como a agenda de pesquisa, a fim de que os interesses e necessidades da sociedade periférica sejam atendidos.

Já Carrozza e Brieva (2017) explicitam o redimensionamento da agenda de pesquisa para a inclusão social, e destacarem que:

Na última década (2006 a 2016), na América Latina, novas capacidades e instrumentos de gestão foram gerados nos processos de inovação e desenvolvimento tecnológico para inclusão social, que reposicionou a ciência, a tecnologia e a inovação (IST) na agenda política dos países orientados à inclusão social, à redução da desigualdade e à sustentabilidade ambiental. (Carrozza & Brieva, 2017, p. 2, tradução nossa).

Os autores chamam atenção para algumas mudanças na agenda política dos países latino-americanos, no sentido de viabilizar um redirecionamento no desenvolvimento tecnocientífico mais equitativo, de modo que atendam as demandas sociais locais e possibilite a dignidade humana. Essa discussão apresentada por Corrozza e Brieva (2017)converge com a percepção de Dagnino (2015) e Auler (2021), ao sinalizarem que a participação social é primordial para a constituição de uma agenda que atendam aos interesses e às necessidades da população marginalizadas, especialmente, na América Latina. Repensar em outra forma de agenda de pesquisa também requer discutir uma concepção de CT contra-hegemônica, visando uma nova percepção de educação científica no contexto latino-americano, como explicitam Batista e Freitas (2018) ao enfatizar a TS:

[…] a TS apresenta como condição essencial à construção individualizada para cada caso, ou seja, não se pode simplesmente buscar uma solução pronta e aplicá-la a situação problema, sem uma devida adequação da tecnologia e consideração do impacto desta nos valores locais. Desta forma, a TS deve ser compreendida como uma solução tecnológica de transformação social projetada para cada realidade específica, diferentemente de uma solução pronta e acabada. (Batista & Freitas, 2018, p. 8, grifo nosso).

Os autores sinalizam a importância de superar as agendas de pesquisas a priori ao explicitarem que “não se pode simplesmente buscar uma solução pronta e aplicá-la a situação, sem uma devida adequação da tecnologia”. Essa compreensão de Batista e Freitas (2018) indica que conceber uma CT adequada às especificidades locais, possibilita a inserção dos valores locais que, por sua vez, são excluídos das agendas de pesquisa capitalistas. Compreender as demandas sociais locais como ponto de partida para constituição das agendas de pesquisa, a participação social torna-se primordial, ao poder estabelecer a interação entre a ciência e tecnologia e a sociedade (Medeiros, Strieder & Machado, 2021; Rosa & Strieder, 2021).

É importante lembrar que a participação social na constituição de agendas científicas possibilita repensar a produção científico-tecnológica no contexto latino-americano, em especial, no Ensino de Ciências (Rosa & Strieder, 2021). Sobretudo, a participação social propicia redirecionar essa produção do conhecimento tecnocientífico, para que se adeque aos interesses e necessidades da população local, a fim de potencializar uma educação aderente às realidades locais e regionais, principalmente no contexto da Educação em Ciências, capaz de contribuir com a cultura de participação em todas as etapas dos processos formativos, educativos e produtivos (Valladares, 2021).

Alguns autores têm pautado seus estudos nos pressupostos freireanos, a fim de discutir a sua importância na superação do modelo de agenda de pesquisa hegemônica, a exemplo de Auler (2021), Rosa e Strieder (2021) e Queiroz, Silva e Prudêncio (2018).

Na concepção educacional bancária, foco principal da crítica de Freire, alguns concebem o currículo, outros o executam. No campo da Ciência-Tecnologia (CT), executa-se, no contexto latino-americano, segundo os representantes do PLACTS, uma agenda de pesquisa concebida no Hemisfério norte. Em ambos os referenciais, o ponto de partida, sinalizando novos horizontes, está em romper com essa separação entre conceber e executar, subvertendo a essência da lógica capitalista. (Auler, 2021, p. 9).

[...] deveria haver uma preocupação com a participação da sociedade nas agendas de pesquisa, na formulação de políticas públicas para a ciência-tecnologia e, também, a superação da cultura do silêncio, que impossibilita a leitura crítica da realidade, portanto, a constituição de sujeitos que tenham voz. Essa perspectiva fundamenta-se nos pressupostos do educador brasileiro Paulo Freire e de referenciais ligados ao Pensamento Latino-Americano em CTS (PLACTS). (Rosa & Strieder, 2021, p. 3).

O PLACTS tem incorporado os pressupostos educacionais freireanos na medida em que visa superar os mitos ligados ao desenvolvimento científico tecnológico (AULER; 2007), além de contribuir para mudanças significativas nas agendas de pesquisa sobre Educação CTS no cenário latino-americano. (Queiroz, Silva & Prudêncio, 2018, p.5. Grifo nosso).

Auler (2021) chama atenção para um ponto de convergência entre Freire e o PLACTS, em que tanto o currículo (concebido a priori) quanto a agenda de pesquisa, na concepção da CTS, carecem de ações educativas, formativas e produtivas em uma perspectiva democrática, a exemplo da participação social nos processos decisórios, para poderem promover a interação entre os distintos atores, por meio do diálogo, a fim atender aos interesses e às necessidades das realidades locais e, assim, superar a lógica capitalista. Nessa mesma direção, Rosa e Strieder (2021) destacam que o papel da participação social nas agendas torna-se fundamental para superação da cultura do silêncio, imposta pela lógica capitalista, a qual impossibilita a criticidade dos sujeitos. Para as autoras, os pressupostos freireanos podem contribuir para ampliar a visão dos sujeitos sobre as suas realidades e potencializar a interação entre a ciência e a sociedade, subvertendo, assim, o modelo vigente.

Para Queiroz, Silva e Prudêncio (2018), os pressupostos freireanos podem potencializar a superação de compreensões equivocadas a respeito do desenvolvimento científico tecnológico e possíveis contribuições nas agendas de pesquisa, no âmbito da educação científica, no contexto da América Latina. Ressignificar as agendas de pesquisa, tendo o pensamento freireano como o pilar da relação estabelecida entre o campo científico e a sociedade, pode propiciar ações educativas, formativas e produtivas de forma dialógica, horizontal e emancipadora (Roso, Auler & Delizoicov, 2020).

Em síntese, constatamos que o papel da participação social nas agendas de pesquisa pode contribuir para a inserção de demandas sociais de grupos marginalizados (Giacomazzo, 2015), de forma que possibilite o redimensionamento dessas agendas para a equidade social (Carrozza & Brieva, 2017) e, assim, possa superar o modo tecnocientífico dominante, que concebem as agendas a priori (Batista & Freitas, 2018). Além disso, evidenciamos que alguns autores têm recorrido aos pressupostos freireanos, a fim de superar alguns paradigmas relacionados ao desenvolvimento tecnocientífico, bem como ressignificar as agendas de pesquisa, para poderem estabelecer uma relação entre o campo científico e a sociedade, de forma dialógica e transformadora (Auler, 2018; Queiroz, Silva & Prudêncio, 2018; Rosa & Strieder, 2021). É importante destacar que a ressignificação da agenda de pesquisa consiste em promover um processo coletivo de aprendizagem, por meio da participação social ampliada, de modo que propicie sua gênesis a partir de demandas de segmentos sociais historicamente negligenciados. E, sobretudo, discutir os valores democráticos no direcionamento dado ao desenvolvimento científico-tecnológico, a exemplo do PLACTS e da TS, na constituição do currículo para um Ensino de Ciências emancipatório (Auler, 2021; Archanjo & Gehlen, 2021).

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Os estudos desenvolvidos no contexto da América Latina, relacionados aos Movimentos Tecnocientíficos PLACTS e TS evidenciam haver um crescimento de pesquisas nessa perspectiva no México, Colômbia, Chile, especialmente, no Brasil, como apontam os resultados das Tabelas 1, 2 e 3. Esse crescimento pode estar atrelado ao fato desses países serem os pioneiros nessas discussões, no âmbito da Educação em Ciências, tendo como parâmetro o número de trabalhos localizados e explicitados nas Tabelas 1 e 2. Assim, os resultados sobre as pesquisas relacionadas à perspectiva do PLACTS no Brasil (42,3%) e na Argentina (38,5%) sinalizaram um percentual superior aos demais países, principalmente, comparado ao número de publicações do México (9,6%) e da Colômbia (9,6%). Esses resultados podem ser compreendidos para além do número de produção explicitados, pois as suas implicações na sociedade e nos processos educativos, formativos e produtivos podem contribuir para o desenvolvimento científico-tecnológico mais coerentes com as especificidades locais desses países e a formação do sujeito participativo em questões relacionadas à ciência, à PCT, bem como políticas sociais.

Quanto a perspectiva TS, o Brasil é o país que mais tem publicado artigos nessa temática, apresentando um percentual de 90,7% de produção com relação aos demais países, como foi explicitado nas tabelas, especialmente na Tabela 3. Isso, sinaliza a importância de discussões que envolvem a relevância dos valores democráticos no fazer CT, como a participação social, a ressignificação de agendas de pesquisa, dentre outros. Com relação aos demais países latino-americanos, como a Colômbia que representa um total de 4,1% das publicações e, o Chile com uma produção de 5,2%, apresentaram um menor percentual, comparado ao número de publicações sobre o PLACTS e a TS no Brasil. Diante disso, pode-se constatar, que nesses países que apresentaram um índice menor de pesquisas, a necessidade de ampliar a produção, divulgação e debate da ciência e tecnologia em uma perspectiva crítica torna-se urgente, para que os atores sociais sejam partícipes em todo o processo do desenvolvimento científico-tecnológico, e que esse fazer ciência e tecnologia seja direcionado pelas necessidades e interesses reais das comunidades locais.

Quanto aos aspectos relacionados à Participação Social, constatamos que os estudos latino-americanos apontam que ela deve ocorrer em todas as etapas do desenvolvimento científico-tecnológico e não apenas no pós-produção e pós-execução. Além disso, evidenciamos que a participação social, na compreensão de alguns autores, possibilita a reconstrução de relações sociais coletivas no fazer CT, sobretudo, contribui para a mudança de postura dos atores sociais diante dos problemas oriundos de seu contexto social. Também constatamos que em alguns estudos a participação social pode contrapor escolhas de demandas, realizadas a priori por determinados grupos, a fim de atender aos seus próprios interesses (Badallo & López, 2019; Pérez-Bustos, Prieto & Avellaneda, 2012; Roso & Auler, 2016). Essas compreensões dos estudos latino-americanos sobre o Movimento Tecnocientífico, PLACTS e TS, em uma perspectiva freireana, sinalizaram ser possível potencializar uma participação social no redimensionamento dos objetivos das pesquisas de ciência e tecnologia, nos processos de formação de professores e na constituição de currículos no Ensino de Ciências, a partir da valorização da pluralidade cultural, a multiplicidade de conhecimentos e do diálogo entre a diversidade de atores sociais, no contexto educacional e, assim, formar sujeitos críticos e emancipados.

Já a ressignificação de agendas de pesquisa possibilita a inserção de demandas sociais de grupos marginalizados, de forma que contribua para equidade social, ao buscar superar o modo tecnocientífico dominante, que concebe as agendas a priori, e subverter essa lógica por meio da participação de distintos atores sociais em diversos espaços sociais, especialmente, no contexto educativo, nos processos de formação docente, na constituição de currículo, de modo que corrobore com a formação de sujeitos críticos e emancipados (Batista & Freitas, 2018; Carrozza & Brieva, 2017; Giacomazzo, 2015). Além disso, evidenciamos que alguns autores que discutem sobre os Movimentos Tecnocientíficos PLACTS e TS têm recorrido aos pressupostos freireanos para ressignificar as agendas de pesquisa tendo como ponto de partida a inserção dos aspectos econômicos, sociais, culturais e socioambientais locais/regionais, a fim de estabelecer uma relação entre o campo científico, especialmente, o Ensino de Ciências e a sociedade, de forma dialógica e transformadora (Auler, 2021; Rosa & Strieder, 2021).

Compreendemos que para a ressignificação de uma agenda de pesquisa e para reorientação curricular no Ensino de Ciências, a participação social é fundamental, uma vez que essa dimensão que compõe o Movimento Tecnocientífico PLACTS e TS pode promover mudanças de postura dos atores sociais, diante das contradições sociais locais, assim como contribuir para que ações coletivas e colaborativas, sobretudo de interesses da população marginalizada, sejam desenvolvidas no contexto educacional, especialmente, no desenvolvimento de ciência e tecnologia. Os pressupostos teórico-metodológicos freireanos articulados ao PLACTS e à TS sinalizaram novos caminhos para o desenvolvimento tecnocientífico, por meio de uma educação ético-crítica no Ensino de Ciências, capaz de problematizar e inserir demandas de segmentos sociais excluídos na constituição de agendas de pesquisa e currículos produzidos na América Latina, de modo que atendam ao interesse e às necessidades da sociedade latino-americana, especialmente, aquela marginalizada.

Também é importante destacar que discussões pautadas na participação social e na agenda de pesquisa podem apresentar implicações na formação de professores, sendo na formação inicial ou permanente, fomentando a constituição do “Ser Mais” (Freire, 1987) e a superação dos Obstáculos Gnosiológicos (Alves & Silva, 2015). Isso contribui para o docente ampliar sua concepção sobre o contexto em que está imerso e promove ações político-pedagógicas pautadas nas interações entre os diferentes saberes, nos aspectos socioculturais locais. Sendo assim, a ressignificação da formação docente, especialmente no ensino de Ciências, pode ocorrer a partir de uma perspectiva dialógica, crítica e problematizadora no contexto escolar, sobre as demandas oriundas do seu contexto social.

Entendemos, assim como Auler (2021) e Rosa e Strieder (2021), que a participação da sociedade na produção do conhecimento tecnocientífico pode contribuir para democratização do conhecimento científico e viabilizar a coaprendizagem, coparticipação, coprodução, autonomia e emancipação dos atores sociais, por meio de um diálogo horizontal e plural, pela valorização dos conhecimentos populares. É fundamental que essa participação social seja abordada no Ensino de Ciências, em uma perspectiva freireana, por exemplo, na organização do currículo, na formação docente e no desenvolvimento de atividades didático-pedagógicas, a exemplo daquelas que envolvem a inserção de demandas sociais/locais (Archanjo & Gehlen, 2021; Auler, 2021; Centa & Muenchen, 2018; Rosa & Strieder, 2021). Mas, de que forma pode-se ampliar os debates sobre a participação social, reconfiguração de agenda de pesquisa, nos processos formativos e educativos e na reorientação curricular no Ensino de Ciências, no contexto latino-americano? De que maneira isso tem ocorrido nas instituições de ensino, para poderem produzir CT aderente às realidades locais e regionais e potencializar uma nova concepção de educação científica? Essas são questões que ainda necessitam ser abordadas no contexto da pesquisa em Educação em Ciências, assim como é importante aprofundar discussões tecnocientíficas em espaços acadêmicos, a fim de constituir uma Tecnociência crítico-transformadora capaz de promover uma relação com a sociedade horizontal, tornando-se uma alternativa viável para a superação do conhecimento dominante no espaço educacional, principalmente, no âmbito da Educação em Ciências. Isso indica que os Movimentos Tecnocientíficos, pautados nos pressupostos freireanos, no contexto da Educação em Ciências, podem ser uma alternativa para a constituição de conhecimento científico-tecnológico diferente do hegemônico, bem como para o desenvolvimento social que proporcione a sustentabilidade econômica, política, cultural e ambiental, viabilizando uma organização social distinta da hegemônica, como também a promoção dos processos formativos e educativos em uma perspectiva crítico-transformadora.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem à CAPES, CNPq (número do processo: 409900/2022-2) e FAPESB.

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DECLARAÇÃO

• 3
  Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

• O CECIMIG agradece ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico) e à FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais) pela verba para a editoração deste artigo.

Editado por

Editor responsável: Glauco dos Santos Ferreira da Silva

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  03 Jul 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  15 Ago 2022
• Aceito
  09 Maio 2023