Acessibilidade / Reportar erro

Quando as paixões se encontram: o futebol em Irmãos Coragem (Janete Clair, 1970/1971)

The meeting of two passions: soccer in Irmãos Coragem (Janete Clair, 1970/1971)

Resumos

Este estudo tem por objetivo discutir as representações do futebol em Irmãos Coragem, escrita por Janete Clair, dirigida por Daniel Filho e Milton Gonçalves, exibida pela Rede Globo nos anos de 1970 e 1971, a primeira vez em que, no Brasil, a modalidade ocupou espaço relevante na ficção dramatúrgica televisiva. Para alcance do objetivo, trabalha-se com a versão compacta da telenovela, recém-lançada em DVD. Espera-se lançar um olhar sobre a presença do futebol em um momento-chave da história recente do país: em um dos períodos mais tensos do regime de exceção que se iniciara em 1964, a seleção brasileira sagrou-se tricampeã na Copa do Mundo do México, tornando-se detentora da Taça Jules Rimet..

História do Esporte; Futebol; Telenovela


Considering that the Brazilian soap operas build narratives about the nation and incorporate social issues, this study aimed to discuss the representation of soccer in Irmãos Coragem, written by Janet Clair, directed by Daniel Filho and Milton Gonçalves, broadcasted by Globo in 1970 and 1971, the first time in Brazil that the sport took up considerable space in television fiction. To reach the objective, we worked with the compact version of the soap opera. It was expected to take a look at the presence of soccer in a key moment of the country's recent history: in one of the tensest periods of the regime that had begun in 1964, the Brazilian national team has won the Mexico World Cup, becoming the holder of the Jules Rimet Trophy.

Sport history; Soccer; Soap opera


ARTIGOS ORIGINAIS ORIGINAL ARTICLES

Quando as paixões se encontram: o futebol em Irmãos Coragem (Janete Clair, 1970/1971)

The meeting of two passions: soccer in Irmãos Coragem (Janete Clair, 1970/1971)

Victor Andrade de Melo

Doutor. Professor do Departamento de Didática da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Victor Andrade de Melo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo de São Francisco, 1, sala 311 (secretaria) 20051-070 - Rio de Janeiro-RJ, Brasil E-mail: victor.a.melo@uol.com.br

RESUMO

Este estudo tem por objetivo discutir as representações do futebol em Irmãos Coragem, escrita por Janete Clair, dirigida por Daniel Filho e Milton Gonçalves, exibida pela Rede Globo nos anos de 1970 e 1971, a primeira vez em que, no Brasil, a modalidade ocupou espaço relevante na ficção dramatúrgica televisiva. Para alcance do objetivo, trabalha-se com a versão compacta da telenovela, recém-lançada em DVD. Espera-se lançar um olhar sobre a presença do futebol em um momento-chave da história recente do país: em um dos períodos mais tensos do regime de exceção que se iniciara em 1964, a seleção brasileira sagrou-se tricampeã na Copa do Mundo do México, tornando-se detentora da Taça Jules Rimet..

Palavras-chave: História do Esporte. Futebol. Telenovela.

ABSTRACT

Considering that the Brazilian soap operas build narratives about the nation and incorporate social issues, this study aimed to discuss the representation of soccer in Irmãos Coragem, written by Janet Clair, directed by Daniel Filho and Milton Gonçalves, broadcasted by Globo in 1970 and 1971, the first time in Brazil that the sport took up considerable space in television fiction. To reach the objective, we worked with the compact version of the soap opera. It was expected to take a look at the presence of soccer in a key moment of the country's recent history: in one of the tensest periods of the regime that had begun in 1964, the Brazilian national team has won the Mexico World Cup, becoming the holder of the Jules Rimet Trophy.

Keywords: Sport history. Soccer. Soap opera.

INTRODUÇÃO

26 de março de 2012. Embaladas pela música de Arlindo Cruz (Meu lugar), as primeiras cenas apresentam o espaço onde as principais histórias desenrolarão: Divino, um fictício bairro do subúrbio carioca, no qual o futebol é importante constituinte do cotidiano, jogado nas ruas, quadras e campos, acompanhado pelos meios de comunicação. É uma das principais diversões, um dos elementos que caracteriza o local, um fator de identidade, até mesmo por ser possibilidade de ascensão e distinção social.

Há um motivo especial que estimula ainda mais o interesse pelo velho esporte bretão. Tufão (Murilo Benício), "cria do bairro", cuja carreira começou no clube local, tornou-se a grande esperança de vitória do Flamengo no campeonato carioca de 1999. A final do campeonato será disputada no mítico Maracanã, contra o Real Cruz, mobilizando os habitantes de Divino, que de alguma forma se sentem representados pelo craque.

Essa partida, inclusive os tensos momentos que a antecedem, atravessa o primeiro capítulo de Avenida Brasil (escrita por João Emanuel Carneiro). As belas imagens (dos jogadores, da torcida, do estádio e da imprensa), os recursos de edição (alternando o que se passa no Maracanã, o que ocorre no bairro e outras tramas da novela que está sendo apresentada) e o uso da sonoplastia (inclusive há trechos narrados por Cléber Machado, um dos locutores esportivos da Rede Globo) contribuem para a construção de uma narrativa épica, uma estratégia comum nas iniciativas audiovisuais que incorporam/abordam o esporte (MELO, 2006a). O Flamengo começa perdendo, mas, graças à atuação do craque Tufão, autor de dois gols, vira o jogo e torna-se campeão para a glória dos moradores de Divino, que celebram a conquista e aguardam com ansiedade a chegada do herói para as festas de comemoração.

Quando Tufão entrou em campo, João Emanuel Carneiro, ainda que não necessariamente de maneira intencional, estava recriando cenas de uma das mais importantes telenovelas brasileiras, Irmãos Coragem, escrita por uma de nossas mais celebradas dramaturgas, Janete Clair. A coincidência entre as duas abordagens do futebol foi, aliás, amplamente observada em muitos sítios e blogs.

8 de junho de 1970. A torcida que lota o Maracanã prepara-se para assistir a final do campeonato carioca: Flamengo versus Botafogo. Duda (Claudio Marzo) vestia a camisa 10, a grande esperança de gol da equipe rubro-negra, entra em campo saudado pela assistência. Mesmo com os parcos recursos técnicos da época (se comparados aos atuais), a emoção é latente, graças à boa edição, às belas imagens e ao empolgante frevo de Renato Luís Lobo (Flamengo, Flamengo), interpretado por Maria Creuza: "Vamos descendo a ladeira, que a tarde é sol sobre a bola, esqueça o trabalho e a escola, vou ver meu Flamengo jogar, Maracanã em delírio, o drible me envolve, me arrasta, arquibancada me basta, o jogo já vai começar". Como era esperado, o craque, um dos irmãos Coragem, decide a partida para o orgulho da sua cidade natal, Coroado, de onde saiu jovem para tentar a carreira de jogador.

Essas são as primeiras cenas de Irmãos Coragem, antecedendo até mesmo a abertura da novela, que entra em seguida, apresentando um conjunto de referências bastante distintas do mundo do futebol: o rural, a natureza, os personagens do campo, imagens embaladas pela bela composição de Nonato Buzar e Paulinho Tapajós (a princípio apresentada em versão instrumental, posteriormente interpretada por Jair Rodrigues): "Manhã despontando lá fora/Manhã, já é sol, já é hora/E os campos se abrindo em flor/E é preciso coragem/Que a vida é viagem/Destino do amor/Irmão, é preciso coragem".

Irmãos Coragem, uma das novelas mais longas da televisão brasileira (328 capítulos, exibidos durante mais de um ano, pela Rede Globo, no horário das 20h), narrou a saga de uma família humilde (com especial enfoque para as ações de três irmãos, Duda/Cláudio Marzo, Jerônimo/Cláudio Cavalcanti e João/Tarcísio Meira) que luta contra as injustiças e violências cometidas pelo Coronel Pedro Barros (Gilberto Martinho), todo-poderoso da cidade de Coroado. Trata-se de um faroeste com ares tupiniquins.

Estrelada por alguns dos mais importantes atores e atrizes da televisão brasileira (além dos já citados, Glória Menezes, Regina Duarte, Lúcia Alves, entre outros que integraram o maior elenco de telenovelas até então reunido), dirigida por Daniel Filho e Milton Gonçalves, tornou-se o primeiro grande sucesso da Rede Globo (SCOVILLE, 2008). Mais ainda, marca um novo momento da emissora:

Fruto da combinação paradoxal de profissionais de ideologias e intenções diversificadas, trabalhando em condições desfavoráveis sob forte censura e numa empresa que crescia, a ponto de se tornar num conglomerado competitivo em nível internacional, as novelas inesperadamente passaram a constituir o principal produto da Rede Globo (HAMBURGER, 1998, p. 468).

Entre as inovações que marcaram a produção, podemos destacar a construção da primeira cidade cenográfica da teledramaturgia brasileira e o fato de que Janete Clair criou muitas tramas distintas, uma estratégia para diversificar o interesse do público e lidar com a pesada censura da ocasião. Irmãos Coragem marcou a consolidação da carreira da escritora.

Essa não foi a primeira vez que, no Brasil, apareceu uma referência ao futebol nesse gênero da ficção televisiva. Pelé já atuara em Os Estranhos, de Ivanir Ribeiro, exibida em 1969, na TV Excelsior. Dirigida por Gonzaga Blota e Gianfrancesco Guarnieri, a novela contou com um grande elenco (Regina Duarte, Rosamaria Murtinho, Stênio Garcia, entre outros) e tinha um curioso enredo.

Tratou-se de uma ficção científica, aproveitando o momento em que o primeiro homem tinha pisado na lua: extraterrestres contatam a Terra tendo como intermediário Plínio Pompeu, um escritor interessado em discos voadores, representado pelo célebre jogador de futebol, que, na verdade, não teve grande presença na trama, embora seu personagem fosse importante. Assim como no cinema (MELO, 2006b), Pelé, no futuro, voltaria muitas vezes às novelas.

Em Irmãos Coragem, foi, certamente, a primeira vez que o futebol ocupou um espaço relevante numa telenovela, o primeiro encontro dessas duas paixões nacionais. Janete Clair, para compor o personagem Duda e as cenas da prática, contou com a assessoria de João Saldanha, que, aliás, apareceu em um dos capítulos, representando ele mesmo ao comentar a lesão do personagem-jogador.

Curiosamente, outro esporte já estivera presente na novela anterior de Janete Clair, seu primeiro sucesso na Rede Globo, a primeira em que, na trilha de Beto Rockfeller, (escrita por Bráulio Pedroso, exibida na Tupi entre os anos de 1968 e 1969), ensaiou mudanças na narrativa do gênero, como a ambientação na área urbana (com locações em espaços conhecidos do Rio de Janeiro) e o caráter realista/folhetinesco do enredo: Véu de Noiva (1969/1970), também dirigida por Daniel Filho, estrelada por Regina Duarte, sua estreia na emissora, e Cláudio Marzo, que representou Marcelo Montserrat, um piloto de Fórmula 3, que sonhava em chegar à Fórmula 1, um personagem inspirado em Emerson Fittipaldi, que começava a trilhar sua trajetória de sucesso. Já na abertura havia referências à modalidade, nas imagens e na música: Mil Milhas, do grupo Azimuth, que chegou a ser usada nas coberturas automobilísticas da emissora.

É possível perceber que Janete Clair estava atenta ao esporte, situando-o como um fenômeno tipicamente urbano. O que a teria motivado a inserir o futebol em uma trama marcada por um pronunciado caráter rural, uma novela claramente concebida como um faroeste? Que representações teria a dramaturga construída sobre a modalidade?

Considerando que as telenovelas brasileiras, a partir de certo momento, passaram a construir narrativas sobre a nação e a incorporar mais explicitamente temas candentes na sociedade do momento em que foram produzidas (WANDERLEY, 2006; LOPES, FREIRE, 2008), esse estudo tem por objetivo discutir as representações do futebol em Irmãos Coragem. Espera-se lançar um olhar sobre a prática em um momento-chave da história recente do país: em um dos períodos mais tensos do regime de exceção que se iniciara em 1964, a seleção brasileira sagrou-se tricampeã na Copa do Mundo do México, tornando-se detentora da Taça Jules Rimet. Foi também um momento em que houve relativo sucesso econômico, o que facilitou a aquisição de bens de consumo, entre os quais aparelhos de televisão (ALMEIDA; WEIS, 1998).

Temos em conta o que sugere Alencar (2005, p. 108): "Pensar na formação de uma memória do povo brasileiro é pensar obrigatoriamente em dois elementos culturais que, por intermédio da televisão, já fazem parte da nossa história mais recente: o futebol e a telenovela". Para esse autor, ambos igualmente emocionam e envolvem o público, promovendo uma relação de proximidade e afetividade.

Em nossa análise/interpretação, afastamo-nos da ideia de que o esporte teria linear e exclusivamente servido aos intuitos do regime de exceção, funcionando somente como propaganda governamental ou mesmo um "ópio do povo". Estamos, assim, de acordo com Couto (2010, p. 2):

o futebol, assim como outros fenômenos sociais de grande abrangência, tornou-se um espaço de ampla interlocução política. Capaz de atrair a atenção de milhões de espectadores e consumidores, o esporte se mostrou, especialmente no contexto da ditadura, um ambiente altamente propício para a reprodução das tensões ideológicas presentes no imaginário político brasileiro. Além de favorecer a disseminação das ideologias governamentais, sobretudo pela veiculação da seleção brasileira via propaganda oficial, o universo do futebol também possibilitou que as ideologias da esquerda fossem publicizadas, mesmo que individualmente, por meio das atitudes dos jogadores simpatizantes do ideário progressista disseminado na juventude do país.

Da mesma forma, estamos de acordo com Hamburger (2007, p. 160): "interpretar o fenômeno da novela no Brasil implica justamente reconhecer que, para além dos projetos governamentais, comerciais e ideológicos envolvidos, o gênero definiu rumos e significados imprevistos e não planejados".

Irmãos Coragem já chamou a atenção de outros pesquisadores, inclusive no que se refere à presença do futebol. A diferença deste estudo, além das possíveis reavaliações advindas de outros olhares teóricos sobre o objeto, reside também no fato de que se trabalhou efetivamente com o material audiovisual, fazendo uso do DVD que foi recentemente lançado. Ainda que não se trate da versão integral da novela, que se perdeu nos incêndios que atingiram a Rede Globo nos anos 1970, trata-se de um material bem amplo: cerca de 28h de gravação.

Considerando a natureza desse material, vale a pena começarmos por discussões de caráter metodológico.

A telenovela como fonte

São grandes as potencialidades que cercam o uso de fontes audiovisuais, especialmente para os investigadores que se debruçam sobre fatos contemporâneos, em função da força que os meios de comunicação adquiriram no decorrer do século XX.

Nesse âmbito, não se pode negar a relevância da televisão. Sua importância fica clara quando sabemos que, nos últimos anos, se estabeleceu como a principal alternativa de lazer da população brasileira. No nosso país, aliás, nos lares há mais televisões do que geladeiras; somos o quarto do mundo em número de aparelhos e o único do Hemisfério Sul entre as oito maiores audiências do planeta (HAMBURGER, 1998, p. 436). De fato, como sugere Wanderley (2006): "A programação televisiva no Brasil transformou-se, desde a década de 1970, em ponto de referência da constituição de um sistema simbólico por meio do qual segmentos da sociedade percebem e elaboram cultura política".

A despeito de tamanha presença e importância, há, no Brasil, muito a ser feito no que se refere à percepção da televisão, tanto como um objeto de pesquisa quanto como uma fonte para estudos históricos. Napolitano (2005, p. 247) chama a atenção: "Não se trata apenas de uma questão de preconceito temático ou dificuldade metodológica. A própria televisão, talvez devido a seu caráter de produto cultural volátil, tem muita dificuldade em guardar e sistematizar a sua própria memória".

No caso do estudo do esporte esse aspecto salta aos olhos. A prática, desde os anos 1960, tem se constituído em um dos principais produtos da indústria televisiva, ocupando espaço privilegiado na programação. Para além daqueles programas centralmente dedicados ao tema, ele também está presente em humorísticos, minisséries, seriados, telejornais e, nosso assunto central, telenovelas. Como investigar esse rico material sem acesso ao que foi exibido?

Alguns lançamentos recentes têm minimizado esse problema. Por exemplo, está disponível em DVD o seriado Armação Ilimitada (Rede Globo, 1985-1988), que marcou época na TV brasileira e tinha o surfe como tema importante (RAMOS, 1995). Todavia, muitos são os programas que permanecem inacessíveis ao pesquisador, alguns mesmo tendo se perdido em função da falta de uma política de preservação ou acidentes (como incêndios) que houve em muitas emissoras.

Uma saída comumente utilizada pelos estudiosos que investigam a televisão é o uso de material da imprensa escrita para recuperar as peculiaridades, imagens e repercussões das produções na época de sua exibição. A isso se pode somar o acesso a depoimentos dos envolvidos (atores, diretores e equipe técnica), bem como a dados: índices de audiência, custos, relação com patrocinadores, entre outros. Esse tipo de abordagem não poderia, todavia, substituir a observação sistemática e atenta do programa, devendo ser, na verdade, uma estratégia para complementar a investigação, inclusive para que possamos discutir um aspecto fundamental que cerca o audiovisual, a recepção, para o qual podemos também lançar mão de um material que comumente se encontra disperso (como cartas, documentos de fã-clubes, entre outros) (NAPOLITANO, 2005).

Para Napolitano (2005, p. 236), ao trabalhar com fontes audiovisuais, devemos evitar tanto posições "objetivistas" (a compreensão de que o emitido é uma expressão da verdade) quanto "subjetivistas" (a compreensão de que o emitido carece de qualquer objetividade, sendo apenas expressão de uma subjetividade absoluta). Considerando que há sempre um relacionamento complexo entre o que é produzido, a sociedade em que é produzido e aqueles que acessam o produzido, a questão é observar o material empírico a partir de "suas estruturas internas de linguagem e seus mecanismos de representação de realidade, a partir de seus códigos internos".

Nesse sentido, trata-se de "entender a natureza específica dos gêneros televisuais e como eles operacionalizam as regras gerais do audiovisual" (NAPOLITANO, 2005, p. 278), os meios pelos quais podem "registrar, informar, promover e comunicar valores, eventos, processos sociais e históricos" (NAPOLITANO, 2005, p. 279). Quais seriam as peculiaridades das telenovelas que devemos ter em conta em nossa análise/interpretação?

Para Alencar (2005), uma das características do produto é sua capacidade de fazer um elo entre a ficção e a realidade, mediando a construção de representações entre os indivíduos e o coletivo. Não poucas vezes essa fronteira se dilui, ainda mais quando consideremos a produção a partir dos anos 1970: "sem deixar de lado sua vocação melodramática, as novelas exageraram na veia folhetinesca, ou seja, sua relação íntima com o universo extra-diegético, com o mundo exterior à narrativa" (HAMBURGER, 2007, p. 160). Tornou-se comum mesclar o ficcional com o que estava efetivamente acontecendo na sociedade do momento, criando-se a impressão de haver uma linha de continuidade entre ambos.

No caso do futebol, não poucas vezes os personagens se confundiram com a "vida real". Nos momentos que antecederam uma partida entre o Flamengo e o Paraná, pelo campeonato brasileiro de 1999, quando foram gravadas algumas cenas de Suave Veneno (de autoria de Aguinaldo Silva), Rodrigo Faro, representando o jogador Renildo, percebendo a empolgação dos torcedores (que gritavam o nome do personagem), de forma improvisada entrou em campo e chutou uma bola ao gol, sendo efusivamente saudado. Ao final, o clube carioca foi derrotado, os rubro-negros, de forma provocativa, pediram a entrada do "craque da novela" no time.

Caso semelhante já ocorrera antes com o personagem Luca, interpretado por Mário Gomes em Vereda Tropical (Carlos Lombardi, 1984/1985). Algumas cenas foram gravadas numa partida do campeonato brasileiro (Corinthians x Vasco). Na ocasião, quando Serginho Chulapa marcou o segundo gol do clube paulistano, o ator/personagem invadiu o campo, comemorando com os jogadores, recebendo, surpreendentemente, um cartão vermelho do controverso árbitro José de Assis Aragão. Ao final, os corintianos gritaram o nome de Luca, indignados com a má apresentação do time no empate em dois tentos.

As mudanças na narrativa das telenovelas brasileiras, observadas a partir dos anos 1970, de forma alguma estavam desarticuladas da construção de representações que se relacionavam ao contexto político. Ao falar especificamente de Irmãos Coragem, não se pode esquecer que a telenovela foi exibida no momento em que a Rede Globo, criada em 1965, a princípio tendo uma fraca recepção por parte do público, consolidava seu prestígio e liderança, contando com incentivos do governo de exceção, que desejava usar o meio para consolidar um imaginário para o país (HAMBURGER, 1998; WANDERLEY, 2006).

Isso não significa que a atuação da emissora estivesse isenta de conflitos ou fosse linearmente alinhada ao regime, até mesmo em função da trajetória de alguns dramaturgos, atores ou técnicos. De toda forma, sugere Wanderley (2006, p. 443): "Não que houvesse uma identidade total entre a empresa e o governo, mas as diferenças foram sendo lapidadas pelo uso da censura - e por adaptações de ambos os lados, que correspondiam a mudanças de conjuntura".

Assim, compreende-se que no conjunto de mudanças que caracterizou as telenovelas da emissora naquela década se encontre o trato de temas que estavam relacionados à ideia de um Brasil novo, urbanizado e industrializado, abordando-se os conflitos desencadeados pela dicotomia tradição-modernidade. Deve-se ter em conta que esse momento é também marcado, inclusive no âmbito das políticas públicas, por preocupações com os impactos do crescimento urbano no cotidiano dos cidadãos (MELO; DIAS, 2009).

Irmãos Coragem, claramente, expressa essas inovações e as marcas de um conjunto de investimentos que a Rede Globo fez nas telenovelas: a preocupação com a qualidade técnica, a ampliação das regiões em que as histórias eram situadas (lembremos que a fictícia Coroado, localizava-se na divisa de Goiás com Minas Gerais), a tematização das contradições e conflitos sociais, a busca de ampliar o público e a expectativa de exportação do produto (LOPES, 2007).

O futebol em Irmãos Coragem

Quando estreou a telenovela Irmãos Coragem, em 8 de junho de 1970, a Copa do Mundo de Futebol do México já tinha começado (31 de maio) e a seleção brasileira já fizera dois jogos, contra a Tchecoslováquia (3 de junho, vitória por 4 x 1) e contra a Inglaterra (7 de junho, vitória por 1 x 0). Foram cheios de percalços os momentos que antecederam a competição, crescera a expectativa de vitória com as belas atuações do escrete nacional.

A Rede Globo integrara o pool de emissoras que pela primeira vez transmitiu ao vivo os jogos da Copa do Mundo. Além disso, o assunto ocupou espaço pronunciado nos principais telejornais da ocasião, inclusive no Jornal Nacional, que dedicava um bloco especial à competição. João Saldanha foi contratado como comentarista principal que fora técnico da seleção nas eliminatórias e demitido pela Confederação Brasileira de Futebol, depois de conflitos diversos.

Na ocasião, o esporte já era tema comum nas emissoras de televisão. A própria Rede Globo, no ano de inauguração, lançara dois programas esportivos, Por Dentro da Jogada, exibido aos sábados, apresentado por Teixeira Heizer e Luis Alberto, e Em cima do Lance, exibido aos domingos, dedicado à rodada de futebol do fim de semana.

Tendo em conta que nas novelas dos anos 1970 passou a ser comum a mistura de referências da ficção e da realidade, pode-se introdutoriamente entender, em Irmãos Coragem, a inserção de um dos temas que mais motivava o público de então. De fato, ao redor do futebol encontramos os momentos mais documentais da novela, a possibilidade de situar a trama em um tempo e espaço concretos: o Brasil do início dos anos 1970.

Vejamos as condições de produção das primeiras cenas da novela, mencionadas na introdução. Os takes da torcida foram tomados do público que se preparava para assistir o clássico Flamengo X Botafogo e contribuiu ao aplaudir tanto a entrada em campo de Duda/Cláudio Marzo quanto às jogadas da partida simulada que antecedeu o jogo real.

O grande tempo destinado à exibição da participação da torcida nessa sequência inicial teria várias motivações. De um lado, eram imagens mais "genuínas", mais reais, efetivamente foram captadas as expressões dos torcedores, ao contrário das cenas do jogo simulado, sempre mais "artificiais" (MELO, 2006c). Além disso, se algo expressa a emoção das partidas, isso é o envolvimento dos adeptos, sem o qual, inclusive em função dos limites da captação de imagens, o que se vê na tela é bastante mecânico. Por fim, era uma forma de saudar o grande público, de buscar uma identificação da novela que estreava com o telespectador, de criar uma empatia imediata.

Em muitos outros momentos, salta aos olhos referências explícitas ao que ocorria no mundo futebolístico. Por exemplo, quando Duda está retirando a barba que deixara crescer como promessa para que se recuperasse de uma lesão, lembra-se de Afonsinho, no momento um personagem polêmico no meio futebolístico, reconhecido por ser indisciplinado, por se recusar a seguir determinadas ordens de dirigentes e técnicos (FLORENZANO, 1998; COUTO, 2009).

O jogador de Irmãos Coragem, de fato, é caracterizado por sua indisciplina, por seu enfrentamento com as estruturas de poder. Ao redor dessa postura, a autora simultaneamente problematiza a modalidade e reforça o perfil da família protagonista: Duda é um Coragem, mesmo que não estivesse em Coroado. No campo ou na cidade, muitas são as injustiças a serem enfrentadas.

O sonho de Duda é o mesmo de muitos brasileiros, momento em que o futebol, ainda que não da mesma forma que hoje, já era encarado como uma possibilidade de ascensão social. O personagem abandona a vida dura do garimpo, mas isso não significa um caminho fácil: deixar sua cidade significa enfrentar muitas dificuldades, encarar uma trajetória heroica, cheia de sofrimentos, até que possa lograr êxito.

Há, aliás, um personagem secundário que merece ser citado, Neco (Antônio Andrade), companheiro de Duda no Flamengo, um jogador reserva, que não tem a mesma trajetória gloriosa do protagonista, tornando-se, portanto, mais comumente refém das exigências dos clubes. Ele é a lembrança de que nem sempre as coisas acontecem da forma desejada, a possibilidade de fracasso é iminente.

Alguns dos percalços que cercam a carreira dos jogadores de futebol são tematizados por Janete Clair (que contou com a consultoria de João Saldanha). Por exemplo, na novela está presente a pressão que se abate sobre os atletas quando estão lesionados e/ou passam por fases de fraco desempenho.

Nessas ocasiões, os jogadores são considerados os principais responsáveis pela recuperação, devendo controlar para tal, sua vida desregrada (sempre uma suspeita que paira sobre eles, estereotipadamente relacionada à sua falta de educação para lidar com o enriquecimento e a fama). Como diz um médico do Corinthians, depois de identificar a gravidade da lesão que impedia Duda de jogar bem: "nós o colocaremos de novo em forma, desde que ele se empenhe".

Aliás, nesse momento da trama a realidade invade a novela. A produção vinha encontrando problemas com o Flamengo, locação de boa parte das cenas de futebol: parte da equipe técnica estava incomodada com a quebra da rotina causada pelos técnicos e atores da Rede Globo. Janete Clair aproveitou a lesão do personagem como motivo para ele ter sido vendido ao Corinthians, resolvendo o problema logístico e agradando outra grande torcida nacional. Além disso, essa transferência de clubes permitiu que abordasse os problemas que cercam uma negociação dessa monta.

Considerando essas abordagens, se de um lado poderia argumentar que o trato do tema ia ao encontro dos interesses do governo de exceção, que procurou capitalizar a conquista da Copa de 1970 como um sinal da grandeza do país, não se pode fechar os olhos para o fato de que não foi das melhores a imagem construída do futebol, no mínimo muito mais contraditória do que poderia desejar um regime autoritário. Aliás, deve-se ter em conta que a carreira de Janete Clair não foi isenta de tensões com a censura, até mesmo por abordar temas que, no âmbito dos costumes, incomodavam os conservadores, uma parte dos quais aboletados nos órgãos de poder.

Outro motivo que explicaria a introdução do futebol em Irmãos Coragem seria o desejo de Janete Clair, em conjunto com a Rede Globo, de atrair o público masculino, rompendo a ideia de que se tratava de um programa destinado somente às mulheres: "[...] era preciso dinamizar um simbolismo que pudesse despertar a atenção dos homens para as telenovelas e, ao mesmo tempo, fazia-se necessário conservar o repertório de imagens de interesse para o público feminino" (PAIVA, 1998, p. 2). Essa também seria uma das motivações de ter sido adotado o formato de faroeste, um diálogo com um gênero cinematográfico tipicamente masculino (BORELLI, 2001; LOURO, 2008).

De um lado, os índices de audiência e os depoimentos da equipe e da imprensa da época dão conta de que foi alcançado o objetivo de envolver mais os homens como público (ORTIZ; BORELLI; RAMOS, 1988). De outro lado não se pode ter certeza absoluta de que isso se deveu à introdução do velho esporte bretão na trama. Borelli (2001, p. 12) levanta uma série de outros motivos que ajudariam entender o maior interesse masculino: "uma ampliação considerável da audiência em geral, decorrente do aumento de aparelhos de televisão nos lares brasileiros; (...) a diversificação da programação e do padrão de qualidade; (...) a consolidação do hábito de ver TV", além das mudanças narrativas das telenovelas.

Vale lembrar que, inclusive, esse núcleo temático foi sendo reduzido no decorrer da novela, sequer chegando ao final, com a saída de Cláudio Marzo e Regina Duarte (que representava Ritinha, a esposa de Duda,) para assumir os papéis protagonistas em Minha Doce Namorada (Vicente Sesso, 1971/1972). É possível que Janete Clair, sempre atenta ao público, tenha percebido a queda de interesse pelo tema, ou ao menos que a audiência não dependia do assunto.

Se um dos interesses de Clair era estabelecer um diálogo com o público masculino, podemos perguntar que perspectiva de gênero terá construído ao redor do futebol. Devemos lembrar que, com diferentes ênfases e enfoques, certos investigadores argumentam que a programação televisiva destinada às mulheres, como eram originalmente as telenovelas, reforçavam os papéis tradicionais femininos. De outro lado, há autores que inferem que a televisão potencializou o trânsito de repertórios, induzindo a diversificações no que tange aos comportamentos socialmente aceitos (HAMBURGER, 2007).

No caso de Irmãos Coragem, se o futebol é apresentado como um tema de interesse generalizado, não só restrito aos homens, e mesmo que em outros núcleos os papéis femininos sejam diversificados e complexificados, o fato é que a abordagem do esporte reforça os papéis sociais tradicionais. Trata-se de um mundo masculino, de negócios, rude, no qual as mulheres só entram numa condição subalterna. Se é esposa, deve se conformar com o espaço do lar e com a ausência do marido, sempre envolvido com seus compromissos profissionais. Pode ser o que hoje se denomina de "maria chuteira", interessadas no prestígio e fama dos jogadores. Trata-se de uma recriação simulada da velha oposição mulher honesta-prostituta.

Uma cena explicita a condição de restrição: Ritinha, estimulada pela perversidade de Paula (Myriam Pérsia), amante de Duda, vai à concentração do Flamengo falar com o jogador e se surpreende ao saber que não pode entrar: não entende que ali se trata de território sagrado do masculino, obliterado às mulheres.

Da mesma forma, as cenas de concentração são fundamentais para explicitar as políticas corporais que cercam os homens no mundo futebolístico. Duda, ao burlar várias vezes o rígido controle dos clubes, uma marca de seu caráter indômito, equivocadamente, do ponto de vista da equipe técnica, deixa que os problemas de "fora" interfiram em sua atuação.

Outra hipótese aventada para explicar a introdução do futebol na trama de Janete Clair seria sua preocupação com a temática rural da novela: o público se sentiria atraído? Assim, ao redor do velho esporte bretão constituiu-se um núcleo urbano, que, a propósito, servia bem para marcar os choques entre o moderno e o tradicional, como vimos um tema candente no país daquela década. Como de costume desde o século XIX, uma vez mais o esporte foi mobilizado para expressar urbanidade, progresso, modernidade (MELO, 2010).

Ao final do seu primeiro grande jogo (o já citado Flamengo X Botafogo), quando foi entrevistado e perguntado sobre seus projetos futuros, a resposta de Duda foi categórica: pedir ao clube uma licença para visitar sua cidade natal, para rever sua mãe e seus irmãos. O repórter comenta: "Vejam telespectadores, que magnífico exemplo".

Essa será uma tônica da novela: mesmo com conflitos, percalços, problemas, a família deve ser valorizada, ela é a célula-mater, o fim maior, sem a qual a sociedade corre risco. Duda, mesmo vivendo na cidade grande, jamais se descolou dos problemas de Coroado. Mais ainda, em muitos momentos será o elo que re-equilibrará os Coragens, momentaneamente estremecidos por confusões diversas.

Quando volta a sua velha Coroado, depois de muitos anos fora, Duda é recebido com emoção por sua família. Seus pais e irmãos, mais do que se orgulharem com suas conquistas, se comprazem de ter de volta o seu convívio. O discurso do jogador é ambíguo. Sente falta da vida do campo, mas também está feliz por poder oferecer aos entes queridos certos confortos da cidade grande.

Coroado também o recebe com festa, faixas na praça, banda de música, discursos de políticos: é, afinal, um filho da terra que orgulha a todos. Sua fama é capaz, mesmo que momentaneamente, de suplantar as rivalidades políticas, de pairar sobre essas mazelas. O Coronel Pedro Barros se irrita com as homenagens a Duda, organizadas pelo prefeito, seu assecla servil, que pondera que não se trata de uma homenagem à família Coragem, mas sim a uma personalidade. No baile em sua homenagem, o craque observa: "cheio de gente estranha, né prefeito?". Quem ali está não são seus amigos, sequer os irmãos estão presentes, mas sim a elite local que tanto o desprezou no passado. Duda não é mais Duda Coragem, é o Duda do Flamengo.

Apesar disso, é sempre olhado com desconfiança, como se fora portador dos males da metrópole, mensageiro da tentação e do pecado. Ao passar a noite conversando com Ritinha, uma namorada de infância, mesmo que nada mais tenha acontecido, é chamado de "cachorro da cidade" e obrigado pelo pai da mesma (Maciel, representado por Ênio Santos) a casar, tendo que se submeter a tal decisão não só por pressão do inimigo, o Coronel Pedro Barros (que ameaça: se Duda não obedecer, "o clube do Flamengo vai perder um grande jogador"), como dos próprios irmãos, que não querem ver o nome da família desonrado. Fraqueja o seu amor pelo local: "Estou arrependido de ter voltado a essa terra de louco".

Uma cena é emblemática desses desencontros. Ao se engajar com o irmão Jerônimo em uma vingança a uma violência cometida contra o seu pai, Duda enfrenta um dos capangas de Pedro Barros, Juca Cipó (Emiliano Queirós). Juca puxa a arma, Duda quer resolver "na mão". Juca afirma não gostar de futebol e pergunta: "você veio da cidade para me ensinar a brigar?", observando a petulância do craque.

Duda, enfim, mesmo contrariado, se casa com Ritinha, que com ele vai para o Rio de Janeiro. Todavia, já tinha uma amante, a frívola e interesseira Paula, que não os deixara em paz. O jogador durante muito tempo ficara na dúvida entre a mansidão e a vida estável da mulher do campo e a excitação e agitação da mulher da cidade. Sua decisão definitiva somente se dá quando descobre as falcatruas de Hernani, seu empresário e irmão de Paula. Só depois de muito tempo decifrará a esfinge da metrópole.

A tensão do romance entre Duda e Ritinha será a expressão dos conflitos cidade-campo. Quando longe da esposa, o craque tende a fracassar, não consegue se estabilizar, se rende às tentações, ainda maiores por ser um famoso jogador de futebol: bebida, festas, mulheres interesseiras, belas roupas, acesso a bens inimagináveis para quem veio de uma situação de pobreza, tudo contribui para desviá-lo de seu caminho heroico. Trata-se, de fato, de um tema comumente abordado na produção audiovisual que aborda o esporte (MELO, KJINIK, 2009).

Uma cena merece ser destacada: Ritinha, atormentada com o que vive com Duda no Rio de Janeiro, escreve à família Coragem. A mãe (Sinhana/Zilka Salaberry) e Jerônimo vêm de Coroado para ajudá-la. O craque, novamente, foge da concentração para recebê-los. Ao chegar em casa, encontra uma festa organizada por Hernani e Paula. Em meio a "moderninhos" dançando rock e bebendo, com comportamentos lascivos, Ritinha fala ao irmão do jogador: "você tinha razão, isso aqui é um outro mundo, não é mundo para nós não". É a mãe que toma uma atitude: expulsa os convidados, a fim de recuperar a placidez do lar. É ela também que descobre que Paula está dando "um golpe da barriga", fingindo estar grávida. A matriarca é que vem do campo para re-estruturar a vida de Duda na cidade. Há esperanças: descobre-se que Ritinha espera, de fato, um filho.

A carreira de Duda só se estabiliza quando, depois de muitas tentativas e conflitos, ele se acerta com Ritinha e com a filha Gabriela: a família permite que alcance plenamente seus fins. Só assim se justifica que tenha deixado sua cidade, sua mãe, seus irmãos: só a composição de um novo núcleo familiar justifica a dissolução de outro.

A afirmação de Hamburger (2007, p. 163), enfim, resume bem uma dimensão claramente abordada em Irmãos Coragem, o trato da dicotomia tradição-modernidade "em termos de bens de consumo, meios de transporte e comunicação e convenções de comportamento, sexualidade e relações de gênero e estrutura familiar". Lembremos que se tratava de uma novela exibida às 20h, horário tradicionalmente utilizado pela emissora para tratar de temas mais "pesados", questões mais complexas e "ousadas", ao contrário daquelas exibidas às 18 e 19h, histórias mais leves e bem humoradas (da mesma forma que o futuro horário das 22h seria dedicado a exibições mais ousadas) (LOPES, 2007).

Nesse sentido, o núcleo constituído ao redor do futebol ocupou claramente uma função pedagógica: demonstrar, em meio ao conjunto de mudanças da sociedade brasileira, seus riscos e as posturas adequadas esperadas dos cidadãos.

CONCLUSÃO

Novela e futebol largamente constituíram narrativas sobre a nação (no caso do velho esporte bretão, abordam tal tema, entre outros, Antunes (2004) e Gastaldo e Guedes (2006)). Inegavelmente se relacionaram aos contextos políticos. Isso não significa que foram produtos homogêneos, que estivessem linearmente a serviço de determinados regimes. Há que se entender a complexidade de ambos para que se prospecte melhor o seu papel na construção de representações.

Mesmo sendo uma novela lançada em período auge do ufanismo propugnado pelo regime de exceção em vigor, sentimento fortalecido ao redor do futebol pela conquista da Copa de 1970, e uma produção de uma emissora que mantinha inequívocas relações com o governo militar. Em Irmãos Coragem, o esporte não é representado somente pelos seus aspectos positivos,. é apresentado sim como um campo de tensões, que expressa os desejos e os conflitos de um contexto específico.

Há que se ter em mente que uma parte da população, notadamente pertencente à classe média, estabeleceu uma relação ambígua com o futebol: de um lado era encarado como instrumento da ditadura a serviço da alienação e de outro era tido como uma típica expressão popular. Difícil mesmo para alguns, mesmo com toda "consciência", foi ficar inerte a euforia que tomou conta do país com a conquista do tricampeonato.

Para além de todos os motivos elencados, a inserção do futebol tem a ver com a relevância do fenômeno na sociedade de seu tempo. Janete Clair, uma das responsáveis pelas mudanças na forma de escrever novelas, não ficou inerte à força da prática. Não se tratava mais de, como na novela de Ivani Ribeiro, apenas usar a figura pública de um jogador, mas sim incorporar à dinâmica de uma modalidade que bem expressava um conjunto de contradições sociais. Era a "novidade" do momento, devidamente registrada pela dramaturga atenta às coisas de seu tempo.

O que parece mais claro é que na obra de Clair o futebol funciona mesmo com um fim pedagógico: chamar a atenção para os problemas da grande cidade. Não que o campo fosse isento deles, a autora mostra isso bem, mas por lado ainda havia uma série de princípios que não poderiam ser abandonados pelo país que crescia, almejando tornar-se uma grande nação. Entre esses, havia o valor da família, isso sim apresentado como algo inegociável, seja qual for o caminho que tomaria o país..

Recebido em 12/05/2012

Revisado em 04/11/2012

Aceito em 05/12/2012

  • ALENCAR, Mauro. Memoria coletiva e memória histórica (e suas relações com o futebol e a telenovela). Revista latinoamericana de ciencias de la comunicación, São Paulo, ano 2, n. 2, p. 106-115, jan./jun. 2005.
  • ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de; WEIS, Luiz. Carro zero e pau de arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no Brasil 4 São Paulo: Companhia das Letras, 1998. cap. 5. p. 319-410.
  • ANTUNES, Fátima Martin Rodrigues Ferreira. "Com brasileiro, não há quem possa!" São Paulo: Ed. da Unesp, 2004.
  • BORELLI, Silvia Helena Simões. Telenovelas brasileiras: territórios de ficcionalidade, universalidades, segmentação. In: DOWBOR, Landislaw et al. (Orgs.). Desafios da comunicação Petrópolis: Vozes, 2001. cap. 4. p. 127-141.
  • COUTO, Euclides de Freitas. Jogo de extremos: futebol, cultura e política no Brasil (1930-1978). Tese (Doutorado em História)-Programa de Pós-Graduação em História, FAFICH/Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.
  • COUTO, Euclides de Freitas. A esquerda contra-ataca: rebeldia e contestação política no futebol brasileiro (1970-1978). Recorde: Revista de história do esporte, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 1-22, jun. 2010.
  • FLORENZANO, José Paulo. Afonsinho e Edmundo: a rebeldia no futebol brasileiro. São Paulo: Musa, 1998.
  • GASTALDO, Édison L., GUEDES, Simoni Lahud (Orgs.). Nações em campo: Copa do Mundo e identidade nacional. Niterói: Intertexto, 2006.
  • HAMBURGER, Ester. Diluindo fronteiras: a televisão e as novelas do cotidiano. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da vida privada no Brasil 4 São Paulo: Companhia das Letras, 1998. cap. 7. p. 439-488.
  • HAMBURGER, Ester. A expansão do "feminino" no espaço público brasileiro: novelas de televisão nas décadas de 1970 e 80. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 15, n. 1, p. 153-175, jan./abr. 2007.
  • LOPES, Paulo Fernando de Carvalho. Telenovela: o erotismo como produtor de sentidos. In: COLÓQUIO BRASIL-CHILE, 1., 2007, Santiago. Anais.. Santiago: [s.n.], 2007. Disponível em: . Acesso em: 27 abr. 2012.
  • LOPES, Maria Immacolata Vassallo de; FREIRE, Denise de Oliveira. A telenovela como narrativa da nação: notas para uma experiência metodológica em comunidade virtual. In: INTERCOM CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 31., 2008, Natal: Anais.., Natal: [s.n.] 2008. Disponível em: . Acesso em: 27 abr. 2012.
  • LOURO, Guacira Lopes. Cinema e Sexualidade. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 81-98, 2008.
  • MELO, Victor Andrade de. Esporte e cinema: diálogos. Rio de Janeiro: Aeroplano/Faperj, 2006a.
  • MELO, Victor Andrade de. Garrincha X Pelé: futebol, cinema, literatura e a construção da identidade nacional. Revista brasileira de educação física e esporte, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 281-295, out.-dez. 2006b.
  • MELO, Victor Andrade de. Futebol e cinema: relações. Revista portuguesa de ciências do desporto, Porto, v. 6, n. 3, p. 362-371, set./dez. 2006c.
  • MELO, Victor Andrade de; DIAS, Cleber Augusto. Lazer e urbanização no Brasil: notas de uma história recente (décadas de 1950/1970). Movimento, Porto Alegre, v. 15, n. 3, p. 249-271, 2009.
  • MELO, Victor Andrade de. Esporte e lazer: conceitos. Rio de Janeiro: Apicuri/Faperj, 2010.
  • MELO, Victor Andrade de; KNIJNIK, Jorge Dorfman. Futebol, cinema e masculinidade: uma análise de Asa Branca, um sonho brasileiro (1981) e Onda Nova (1983). Revista portuguesa de ciências do desporto, Porto, v. 9, n. 2-3, p. 183-191, 2009.
  • NAPOLITANO, Marcos. Fontes audiovisuais - a História depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas São Paulo: Contexto, 2005. cap. 7. p. 235-290.
  • ORTIZ, Renato; BORELLI, Silvia Helena Simões; RAMOS, José Mário Ortiz. Telenovela: história e produção. São Paulo: Brasiliense, 1988.
  • PAIVA, Cláudio Cardoso. Dionísio e os Garimpeiros. Leitura de Irmãos Coragem. Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação, Lisboa, v. 1, n. 1, p. 1-15, 1998. Disponível em: <www.bocc.ubi.pt cardoso-claudio-garimpeiros.pdf="" pag="">. Acesso em: 27 maio 2012.www.bocc.ubi.pt>
  • RAMOS, José Mario Ortiz. Televisão, publicidade e cultura de massa Petrópolis: Vozes, 1995.
  • SCOVILLE, Eduardo Henrique M. L. de. Na barriga da baleia: a rede globo de televisão e a música popular brasileira na primeira metade da década de 1970. Tese (Doutorado em História)-Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 2008.
  • WANDERLEY, Sonia. História e TV: produção e difusão do saber - a televisão como cenário de representação política. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco; FERREIRA, Tânia Maria Bessone da C. (Orgs.). História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A/Faperj, 2006. p. 436-447.
  • Endereço para correspondência:
    Victor Andrade de Melo
    Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
    Universidade Federal do Rio de Janeiro
    Largo de São Francisco, 1, sala 311 (secretaria)
    20051-070 - Rio de Janeiro-RJ, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      12 Maio 2012
    • Aceito
      05 Dez 2012
    • Revisado
      04 Nov 2012
    Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, 87020-900 Maringá - PR, Tel.: (55 44) 3011 4470 - Maringá - PR - Brazil
    E-mail: revdef@uem.br