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Fisiologia profana: contribuição para a leitura do conto "a desejada das gentes"

Profane physiology: a contribution to the reading of the short story "a desejada das gentes"

Resumos

A partir da hipótese de que no conto "A desejada das gentes" se encontra o ponto mais extremo da negação do amor contida na ficção machadiana, considera-se o confronto entre a proposta de impassibilidade personificada em Quintília, a protagonista, e a voz do narrador, atravessada pela poesia da emoção erótica. Em acordo com essa direção, são também comentadas as complexas relações que Machado de Assis mantém com o Romantismo e com as tendências que, em seu tempo, lutavam contra a força magnética do legado romântico.

"A desejada das gentes"; negação do amor; emoção erótica; Romantismo


Based on the hypothesis that the most extreme point of the denial of love in Machado de Assis's fiction is to be found in the short story "A desejada das gentes", this article confronts the aloofness of Quintília, the main character, with the narrator's voice, suffused with the poetry of erotic emotion. In the same key, the article also comments on the complex relations between Machado and Romanticism and the aesthetic trends that at the time fought against the magnetic force of the romantic legacy.

"A desejada das gentes"; denial of love; erotic emotion; Romanticism


ARTIGOS

Fisiologia profana: contribuição para a leitura do conto "a desejada das gentes"

Profane physiology: a contribution to the reading of the short story "a desejada das gentes"

Mirella Márcia Longo

Universidade Federal da Bahia / CNPq, Salvador (BA), Brasil

RESUMO

A partir da hipótese de que no conto "A desejada das gentes" se encontra o ponto mais extremo da negação do amor contida na ficção machadiana, considera-se o confronto entre a proposta de impassibilidade personificada em Quintília, a protagonista, e a voz do narrador, atravessada pela poesia da emoção erótica. Em acordo com essa direção, são também comentadas as complexas relações que Machado de Assis mantém com o Romantismo e com as tendências que, em seu tempo, lutavam contra a força magnética do legado romântico.

Palavras-chave: "A desejada das gentes"; negação do amor; emoção erótica; Romantismo.

ABSTRACT

Based on the hypothesis that the most extreme point of the denial of love in Machado de Assis's fiction is to be found in the short story "A desejada das gentes", this article confronts the aloofness of Quintília, the main character, with the narrator's voice, suffused with the poetry of erotic emotion. In the same key, the article also comments on the complex relations between Machado and Romanticism and the aesthetic trends that at the time fought against the magnetic force of the romantic legacy.

Keywords: "A desejada das gentes"; denial of love; erotic emotion; Romanticism.

Em um texto de 1939, Mário Matos observa: "Machado de Assis filia-se entre os prosadores cuidadosos da forma e do gracioso dos pensamentos. Falta-lhe pathos. Não tem flama [...] se mostrou inábil para fixar as paixões veementes do coração humano."1 1 MATOS, Mário. Machado de Assis, contador de histórias. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. v.2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.18. Em versões atenuadas, esse juízo crítico aderiu-se à imagem do escritor, ainda que, em suas várias vertentes – poesia, romance, conto, teatro –, a obra literária de Machado o contrarie. A afirmação provavelmente é motivada pelo tratamento oblíquo que a paixão recebe na ficção machadiana. No entanto, há, de fato, uma força passional que, percorrendo com modulações toda a obra do escritor, nela adquire duas faces nítidas. Concernentes ao barro comum da humanidade, manifestam-se, nos mundos concebidos por Machado, amores vividos como conflito e fonte de tensões. Sombra que acompanha esses amores fulgurantes e sujeitos à finitude, a outra face da paixão constitui sede de harmonia e aversão às coisas finitas. Esse pathos domina seres excepcionais afinados com as estrelas, com a música e com a morte. Resistente às investidas da consciência lúcida, a paixão amorosa, em sua dupla face, desafia o trabalho analítico dos narradores machadianos, marcando especialmente aqueles contextos em que a incapacidade de amar e o alheamento em relação aos encantos do erotismo parecem adquirir dominância.

O caso mais evidente é, talvez, o do Conselheiro Aires, cuja renúncia ao amor é sintetizada num verso de Shelley traduzido de forma discutível: "Eu não posso dar o que os homens chamam amor" por "I can give not what men call love".2 2 A questão afetiva do conselheiro Aires e a sua relação com Shelley são minuciosamente tratadas em: LONGO, Mirella Márcia. Um último romance. In: FANTINI, Marli (Org.) Crônicas da antiga Corte: literatura e memória em Machado de Assis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 335-363. Apresentado como impossibilidade de eleição na área afetiva, novo matiz dessa recusa personifica-se em Maria Regina, protagonista do conto "Trio em Lá Menor", e radicaliza-se na natureza "inexplicável" de Flora, do romance Esaú e Jacó. Sem poder aderir amorosamente à matéria incompleta que compõe o coração da vida, Flora termina por revelar afinidade com a morte. Contudo, o ponto extremo dessa negação do amor fica certamente configurado no conto "A desejada das gentes".

Situada à margem das paixões, Quintília, tal como apresentada pelo narrador, incorpora, em sua atitude, aversão ao amor físico. Radical, sua recusa estabelece-se também como anulação da vasta gama de forças que Freud concentrou no termo "libido". Demonstrando preferência pelo narrador da história, com quem mantém amizade profunda, a moça preserva, durante longo tempo, o seu celibato. Sempre esperançoso de levá-la ao casamento, o pretendente não se afasta e sofre. Ironicamente, é Quintília quem insiste em casar, ao sentir a morte próxima. O contato físico dá-se, finalmente, quando o noivo a abraça depois de morta. Para asseverar a excepcionalidade desse caráter, o narrador observa: "Chame-lhe monstro, se quer, mas acrescente divino."3 3 Todas as citações do conto "A desejada das gentes" foram retiradas de: ASSIS, Machado de. Obra completa. v.3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 504-511.

Machado introduz o leitor no meio da conversa que o amador frustrado, passados alguns anos, trava com um amigo. Todo o relato dá-se durante o diálogo propulsionado pelos comentários do ouvinte que, junto com o leitor, vai tomando ciência da estranha relação. Os vínculos que aproximam o casal modulam-se, ao longo de quatro anos transcorridos entre 1855 e 1859. O caso tem início com uma aposta entre dois amigos, interessados ambos na beleza e na fortuna de Quintília. Aos poucos, ambição e cálculo desvanecem-se. Dominando os dois rapazes, a força passional apaga o espírito pragmático que inicialmente os movera. Eram amigos e passam a ser rivais. Desiludido, um deles morre. Impulsionado pela expectativa de tornar-se esposo, o segundo pretendente – aquele que narra a história – suporta a longa espera encerrada com uma "triste cerimônia." Lembrando os laços estabelecidos durante esse percurso, o amador, em sua "fisiologia de profano", conclui que a "moça tinha ao casamento uma aversão puramente física".

Como a grande maioria dos romancistas que escreveram na segunda metade do século XIX, Machado desenvolveu relações ambíguas com o Romantismo, construindo respostas dialéticas às suas linhas de força, sem chegar a ultrapassar completamente os materiais românticos, principalmente no que tange às preferências temáticas. Publicado pela primeira vez em 1886, o conto que, em 1896, passa a incorporar o livro Várias histórias inclui uma resposta tensa às suspeitas lançadas contra o magnetismo do legado romântico. Principalmente no campo da poesia, a literatura brasileira das últimas décadas do século XIX cedia espaço ao artifício e ao cultivo das formas. Uma crítica ao Romantismo fazia-se sentir, através da busca de expressões desligadas da individualidade e mais afinadas com padrões supostamente universais. Em "A desejada das gentes," Machado concentrou, na figura de Quintília, a ideia de indiferença em relação à paixão erótica. Essa força passional, sendo matéria com poder de atração em todos os tempos, obteve o seu apogeu no Romantismo.

Logo no início, o conto abriga uma tensão entre a força poética do sofrimento amoroso e os elementos que o contextualizam. Sempre tensionado pelas observações do interlocutor comprometido com a lucidez, o assunto impõe a lembrança do verso, embora seja tratado em prosa. Os desencadeantes da recordação não vêm da natureza, mas fazem parte da cidade, são as suas casas e as suas instituições. A retração do magnetismo romântico torna-se bastante nítida, quando o narrador, assumindo postura analítica, dá notícias das reações de Quintília, em sua condição de leitora. Sem sequer compreender os livros puramente amorosos, a moça reage a eles com tédio: "Foi então que a estudei muito; escutando as suas leituras, vi que os livros puramente amorosos, achava-os incompreensíveis e, se as paixões aí eram violentas, largava-os com tédio." Nesse particular aspecto, a personagem de Machado constitui uma antítese à mais famosa criatura de Flaubert. Protagonista do romance publicado em 1857, Emma Bovary transporta as imagens de romances carregados de ardência para o solo pouco receptivo da sua vida burguesa e, por isso, cumpre um destino trágico. Seguindo em direção contrária, Quintília não se deixa atingir pela força passional presente nas histórias que lê. A aura trágica existente no desfecho da sua trajetória surge, não por causa da sua impermeabilidade às influências que aqueceram e destruíram a vida de Emma, mas a despeito dela. Reforçando a evocação da matéria romântica, o conto invoca, ao tratar do destino funesto do outro pretendente, a figura de Werther:

– [...] ele, que tanto falara das vantagens do dinheiro, morreu apaixonado como um simples Werther.

– Menos a pistola.

– Também o veneno mata; e o amor de Quintília podia dizer-se alguma cousa parecida com isso; foi o que o matou, e o que ainda hoje me dói... Mas, vejo pelo seu dito que o estou aborrecendo...

Lembrando essa imagem emblemática do sofrimento amoroso e o tratamento que a matéria recebeu de Goethe, o discurso de Machado oscila entre a confirmação e a ironia. Através das palavras proferidas pelo interlocutor que, em vários momentos, interrompe o conselheiro, Machado registra, com realismo, um modo de pensar sintomático do seu tempo e, assim, dimensiona um contexto cultural avesso à densidade passional concentrada na imagem de Werther. Soa, na voz do interlocutor, aquilo que Hegel chamou "a prosa do mundo", contraposta, neste conto de Machado, a uma poesia interior emersa como recordação:

– Ah! Conselheiro, aí começa a falar em verso.

– Todos os homens devem ter uma lira no coração, ou não sejam homens. Que a lira ressoe a toda hora, nem por qualquer motivo, não o digo eu; mas de longe em longe, e por algumas reminiscências particulares [...]

À medida que o diálogo desenvolve-se, a relação entre os dois interlocutores oscila, enfrentando ondas feitas de distanciamento ou de aproximação. Em alguns momentos, a voltagem poética do narrador ainda apaixonado acentua-se, com prejuízo da comunicação: "Não lhe posso dizer, nem o senhor compreenderia nada, o que foram as horas que por ali passei, incorporando na minha vida toda a vida que jorrava dela". Outros trechos dão testemunho de um esforço feito no sentido de garantir o entendimento. O narrador recorre a imagens mundanas, visando a dimensionar, para o outro, uma assimetria afetiva que, presente na recordação, ainda fere: "Éramos dois sócios que entravam no comércio da vida com diferente capital: eu, tudo o que possuía; ela, quase um óbolo". Esse jogo tenso sugere, no plano do autor, o confronto entre emoção e consciência lúcida. Diante da paixão amorosa – como experiência e como escolha temática –, o sujeito divide-se e projeta o seu conflito em diálogo.

Na vida dos pretendentes, assim como na linguagem que a reconstitui, a paixão expande-se e impõe-se. Os dois apostadores que disputaram futilmente a preferência de Quintília deslocam-se dos jogos de interesse e alcançam solenidade própria aos destinos trágicos. Com esse direcionamento, o enredo termina por confirmar um poder passional capaz de impor alguma poesia ao mundo. Evidentemente, o conjunto de imagens e valores que entram em tensão, no conto de Machado, não se restringe ao questionamento do legado romântico feito no âmbito da poesia brasileira; ele traz ressonâncias mais vastas.

Estudando "José Matias" – conto publicado por Eça de Queirós na Revista Moderna em 1897 –, Isabel Pires de Lima identifica, na divisão entre espírito e matéria tornada axial nessa narrativa curta, ecos das polêmicas que idealistas e positivistas travavam na época.4 4 LIMA, Isabel Pires de. A fadiga / a delícia das coisas (im)perfeitas: Ulisses/Fradique Mendes/José Matias. In: < http://ler.letras.up.pt>. Acesso em 15/10/2012. Na trama de Eça, é o homem que, amando apaixonadamente uma mulher casada, recusa-se a desposá-la, depois que ela, viúva, propõe-lhe a realização do casamento. Resistindo à passagem dos anos, a contemplação extática de José Matias – compartilhada pela mulher, pelo menos em certa medida – resiste também à interferência de três homens que, de modos diversos, possuem a "Divina Elisa". Deixando-se consumir pela persistência de um desejo que evita consumar-se, José Matias perde bens materiais, status social, saúde e finalmente a vida. Para qualificar esse caráter que, à semelhança de Quintília, permanece "inexplicado", o narrador queirosiano observa: "era talvez muito mais que um homem – ou talvez ainda menos que um homem". Novamente, uma constatação de excepcionalidade situada abaixo ou acima do plano que abriga a humanidade.

O texto de Eça também se desenvolve como uma conversa entre dois amigos, embora não se exponha, ao leitor, uma segunda voz. Chega-lhe tão somente o discurso do narrador, um leitor de Hegel, falando com alguém, enquanto espera o enterro de José Matias. Os dois enredos contemplam adiamento contínuo e subsequente recusa de contato físico, além de qualificarem o amor como uma experiência paradoxal, cujo conhecimento resiste às investidas da razão. Incluindo ironia em suas óticas, os dois autores terminam por expressar, principalmente nos momentos finais, profundo fascínio pelas posturas que, em maior ou em menor grau, ironizam. Todavia, a despeito de exibirem elementos comuns, os dois textos trazem diferenças fundamentais.

A história de José Matias é narrada por um observador; o caso de Quintília é contado, embora com distância temporal, pelo homem que a amara e que a ela se mantivera preso por uma esperança continuamente malograda. Com sua carga emocional, a saudade torna-se, em Machado, uma presença marcante, tensionando e, consequentemente, sutilizando a atuação da ironia na composição do relato. Outras diferenças parecem advir do fato de haver, no centro do enredo de Eça, um culto amoroso realizado com suportes materiais significativos. Em análise minuciosa de "José Matias", Alana Freitas El Fahl identifica vários elementos que, integrando o culto amoroso, o revestem com sensualidade e erotismo: "O alfinete de coral e pérola, por exemplo, não deixa de surgir como um substituto do corpo masculino com seu poder de penetrar a carne branca de Elisa".5 5 EL FAHL, Alana Freitas. Singularidades narrativas: uma leitura dos contos de Eça de Queirós. Feira de Santana (BA): UEFS, 2012. p.197 Impedindo a saciedade e a consequente morte do desejo carnal, essa matéria substituta impede também que o corpo do desejante experimente uma privação absoluta. Eduardo Lourenço destaca, na ficção de Eça, a importância desse culto amoroso. Segundo Lourenço, sublimação e erotização participam de rituais que vestem o corpo amado com aura mítica, de modo a evitar que nele se manifeste a "inanidade" atribuída por Eça à experiência amorosa.6 6 Cf.: LOURENÇO, Eduardo . Eros e Eça. In: ______. O canto do signo: existência e literatura. Lisboa: Presença, 1994. p. 243-251. Todavia, na experiência focalizada por Machado, a sensualidade exclui-se totalmente, radicalizando-se a privação no plano físico. A relação de amizade travada pelo casal não altera a ascese imposta pela mulher.

Embora Quintília e Matias recusem o casamento, suas atitudes têm matrizes distintas. Partindo do Romantismo de Lamartine, Eça faz uma viagem de recuo pela vertente do idealismo amoroso até tocar as teorias neoplatônicas. Acentuando a divisão platônica entre Sensível e Inteligível, os neoplatônicos mantêm alguma ligação entre os dois mundos, pressupondo que uma mesma instância absoluta gerou todo o universo, inclusive a matéria. Em sua "aversão", Quintília sugere uma separação mais radical. A menção à ópera de Bellini – Os puritanos – soa, no conto de Machado, como uma cifrada referência à doutrina dos cátaros – puros, em grego. Para estes últimos, o universo material foi criado por um Deus do Mal, em oposição ao outro Deus Supremo, gerador do mundo divino. Realizado na hora da morte, o casamento de Quintília lembra o sacramento que, para os cátaros, inicia o processo de retorno à divindade. Em sua recusa radical, Quintília pode ser posta em conexão com várias doutrinas: Jansenismo e seu vasto campo de ressonâncias. Na atitude dessa mulher – que simulou, ao longo da vida, impassibilidade só concebível na morte –, ecoa mais diretamente a base cátara e, mais obliquamente talvez, o paliativo melancólico que Schopenhauer receitou contra os tormentos gerados pela Vontade.

De todo modo, em "A desejada das gentes", a amada, com sua excepcional aversão ao amor físico, propõe um enigma paralelo ao que o amador ordinário carrega consigo. Ambos resistem às explicações. O desfecho de "A desejada das gentes" confirma a visão de Benedito Nunes, que identifica em Machado de Assis uma espécie de zombaria da filosofia. Em sua "miséria intrínseca", a filosofia seria incapaz de desvendar a obscuridade inerente aos sentimentos e às atitudes humanas, menos ainda de solucionar as questões do homem em sua vida afetiva. Embora dissequem esses enigmas com insistência, os narradores machadianos não conseguem resolvê-los.7 7 Cf.: NUNES, Benedito. Machado de Assis e a filosofia. In: ______. No tempo do niilismo e outros ensaios. São Paulo: Ática,1993. p.129-144.

A essa figuração complexa do ascetismo chamada Quintília, Machado contrapôs um narrador nem monstruoso, nem divino, mas humano, e ainda atormentado pela ardência da paixão erótica. Embora sofra, ele não morre de amor, como Matias, como Werther e como João Nóbrega, o outro pretendente de Quintília. Sua história amorosa culmina com uma revelação duplamente negativa. Revela-se a sua própria condição distanciada da solução ascética que é proposta por Quintília. Revelam-se também os limites da sua compreensão. Certamente, matéria cara ao idealismo romântico, a paixão amorosa não cede à fisiologia dos naturalistas. Essa ciência duplamente esvaziada não abranda a dor que impulsiona a recordação e a poesia que nela se deixa conter. Caminhando nesse sentido, a ironia machadiana alcança a ideia do amor como via de acesso à Verdade.

Nome dado às estrofes de cinco versos, Quintília evoca a retórica, evocando particularmente Quintiliano, retórico e pedagogo que, durante o império de Vespasiano, apostou na emulação como método de incentivar a busca do conhecimento. Em várias passagens do seu relato, o conselheiro sugere que a moça estimulava a rivalidade entre os pretendentes: "Quintília não deixava ninguém estar só no campo [...]. Ela não favorecia a um mais que a outro; mas era lhana, graciosa e tinha essa espécie de olhos derramados que não foram feitos para homens ciumentos". Em perspectiva irônica, Machado acrescenta mais uma personagem à galeria de figuras femininas portadoras de mensagens transcendentes e afinadas com instâncias acima das inquietações que compõem a vida. É o caso de Arima, por exemplo, que, em "Menina e moça," de Bernardim Ribeiro, constitui, no plano terreno, "uma estrangeira", destinada a guiar o amado na travessia para a outra margem: "Verdade é que ela é muito formosa e acabada em tudo, mas é tanto do outro mundo, que não é para ninguém se namorar dela".8 8 RIBEIRO, Bernardim. Menina e moça. Lisboa: Europa-América. [s.d.]. p.151. Vistas sob esse prisma, as ações de Quintília integram pedagogia destinada a pavimentar o caminho na direção de um saber. Todavia, no desfecho do conto machadiano, esse saber revela-se vazio: "Casou meio defunta, às portas do nada".

Em suas relações com a mulher inacessível, o narrador passa por três etapas nas quais fica dimensionada, cada vez mais nitidamente, a sua condição de eleito. Centrada na palavra, a primeira etapa destaca a conversa do casal. Nesse tempo de Esperança, Quintília "tinha um ar de velha amiga". Na segunda etapa, é destacada a compaixão. Quintília perde o tio e, logo em seguida, o conselheiro perde o pai. A moça "estima a coincidência do golpe". Compartilhando as dores impostas pela natureza, os parceiros vinculam-se pela "simpatia moral" consolidada em exercícios de Caridade recíproca. Finalmente, a terceira etapa traz casamento e morte. A integração concernente à natureza das histórias cômicas embaraça-se ironicamente à dissolução contida nos desfechos trágicos. Tudo o que de fato se revela é a morte em sua manifestação imanente, isto é, a extinção da vida: "abracei-a pela primeira vez, feita cadáver". O corpo da mulher morta não constitui, como em muitas tramas de base mítica, um vaso comunicante com o Infinito. Pelo contrário, ele revela-se em sua finitude, de modo que a obtenção da , prenunciada nas etapas precedentes, plenas de Esperança e Caridade, não chega a acontecer.

Morta a mulher que amara, o conselheiro é marcado por uma dor que permeia todo o relato: "foi o amor de Quintília que o matou, e o que ainda hoje me dói [...]". Aparentemente, essa dor o conduz para a contínua sondagem de um objeto cuja natureza – viciada ou virtuosa – não se define. No entanto, uma vez esvaziada a expectativa mística, reverbera na lembrança de Quintília uma força poética que impulsiona a verbalização do conselheiro. O paradoxo, no cerne da experiência amorosa, só se traduz como ficção, saber específico de que participa o trabalho imaginativo: "é a lira que ressoa, e a imaginação faz o resto".

Evocando imagem que Chartier trouxera em poema do século XV, Keats escreveu, em 1819, sobre uma bela mulher impiedosa, jovem fada que encanta, suspirando docemente, sem nada conceder. Em seu complexo de imagens, "La belle dame sans merci" evoca o outono, aludindo simbolicamente ao declínio dos poderes vitais. A forma do poema é dialogada, sendo a recordação deflagrada por um passante que, admirado com a palidez de um cavaleiro, indaga as causas de sua dor. A esse passante, o cavaleiro relata o seu encontro com a bela sem piedade. Muitos intérpretes de Keats viram na jovem fada uma figuração da Morte; outros viram a Vida. A figura inventada por Machado tem, igualmente, um caráter outonal, já que Quintília designa também aquela que nasce no quinto mês do ano. Misto de impiedade monstruosa e mistério divino, Quintília parece mesmo figurar não propriamente a Morte, mas a Vida, portadora da própria extinção. Talvez por isso ressoe, nessa imagem, uma força poética similar àquela contida nos versos de "Uma criatura," poema presente no livro Ocidentais: "Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida."

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Recebido: 15/09/2012

Aprovado: 19/11/2012

Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, Mirella Márcia Longo é professora de Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade Federal da Bahia. Pesquisadora do CNPq, é autora dos livros Confidência Mineira: o amor na poesia de Carlos Drummond de Andrade (crítica literária), A Música liberta (crônicas), O curso das águas e A torre infinita (poemas). E-mail: <mirella.marcia@pq.cnpq.br>

  • ASSIS, Machado de. A desejada das gentes. In:______. Obra completa v.3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 504-511.
  • EL FAHL, Alana Freitas. Singularidades narrativas: uma leitura dos contos de Eça de Queirós. Feira de Santana (BA): UEFS, 2012.
  • LIMA, Isabel Pires de. A fadiga / a delícia das coisas (im)perfeitas: Ulisses/Fradique Mendes/José Matias. In: <http://ler.letras.up.pt>. Acesso em 15/10/2012.
    » link
  • LONGO, Mirella Márcia. Um último romance In: FANTINI, Marli (Org.) Crônicas da antiga Corte: literatura e memória em Machado de Assis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 335-363.
  • LOURENÇO, Eduardo. Eros e Eça In: ______. O canto do signo: existęncia e literatura. Lisboa: Presença, 1994. p. 243-251.
  • MATOS, Mário. Machado de Assis, contador de histórias. In: ASSIS, Machado de. Obra completa v.2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
  • NUNES, Benedito. Machado de Assis e a filosofia. In: ______. No tempo do niilismo e outros ensaios Săo Paulo: Ática,1993. p.129-144.
  • RIBEIRO, Bernardim. Menina e moça Lisboa: Europa-América. [s.d.
  • 1
    MATOS, Mário. Machado de Assis, contador de histórias. In: ASSIS, Machado de.
    Obra completa. v.2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.18.
  • 2
    A questão afetiva do conselheiro Aires e a sua relação com Shelley são minuciosamente tratadas em: LONGO, Mirella Márcia.
    Um último romance. In: FANTINI, Marli (Org.)
    Crônicas da antiga Corte: literatura e memória em Machado de Assis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 335-363.
  • 3
    Todas as citações do conto "A desejada das gentes" foram retiradas de: ASSIS, Machado de.
    Obra
    completa. v.3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 504-511.
  • 4
    LIMA, Isabel Pires de. A fadiga / a delícia das coisas (im)perfeitas: Ulisses/Fradique Mendes/José Matias. In: <
    http://ler.letras.up.pt>. Acesso em 15/10/2012.
  • 5
    EL FAHL, Alana Freitas.
    Singularidades narrativas: uma leitura dos contos de Eça de Queirós. Feira de Santana (BA): UEFS, 2012. p.197
  • 6
    Cf.: LOURENÇO, Eduardo
    . Eros e Eça. In: ______.
    O canto do signo: existência e literatura. Lisboa: Presença, 1994. p. 243-251.
  • 7
    Cf.: NUNES, Benedito. Machado de Assis e a filosofia. In: ______.
    No tempo do niilismo
    e outros ensaios. São Paulo: Ática,1993. p.129-144.
  • 8
    RIBEIRO, Bernardim.
    Menina e moça. Lisboa: Europa-América. [s.d.]. p.151.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      15 Set 2012
    • Aceito
      19 Nov 2012
    Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 sl 38, 05508-900 São Paulo, SP Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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