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Cantos Ocidentais (1880), a poesia machadiana naRevistaBrasileira

Cantos Ocidentais (1880), machadian poetry in Revista Brasileira

Resumos

O presente ensaio apresenta o estudo de Cantos ocidentais, um conjunto de seis poemas publicados na Revista Brasileira em janeiro de 1880, na mesma edição em que saíram os primeiros nove capítulos de Memórias póstumas de Brás Cubas. A partir da leitura de "Suave mari magno", do nexo com "A nova geração" (1879), é proposta uma leitura dessa poesia machadiana não mais como clássica ou parnasiana, mas como moderna.

Machado de Assis; Cantos ocidentais; Nova geração; Memórias póstumas de Brás Cubas


This paper presents the study of Cantos ocidentais, six poems published in Revista Brasileira in January 1880, in the same issue that came out in the first nine chapters of Memórias póstumas de Brás Cubas. Based on the reading of "Suave mari magno" in relation to "A nova geração" (1879), we propose an analysis of Machado’s poetry that is not so classic or Parnassian, but rather, modern.

Machado de Assis; Cantos ocidentais; Nova geração; Memórias póstumas de Brás Cubas


O ano de 1880 é fundamental para definir a obra de Machado de Assis. Em março desse ano, na Revista Brasileira, é iniciada a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas (MPBC). É possível falar de unanimidade crítica quanto ao valor dessa obra-prima, mas não se pode deixar de comentar a diversidade de leituras. Em 1881, o romance é publicado em livro, com algumas alterações, e se consolida como divisor de águas da obra machadiana. O magnetismo atraiu de tal forma o olhar dos críticos, que deixou a poesia praticamente esquecida.

O presente ensaio tem intenção de interrogar uma faceta um tanto apagada de Machado de Assis, a do poeta. Mais especificamente, o interesse recai sobre o lugar de seis poemas, publicados na edição de janeiro da revista dois meses antes de aparecerem os nove primeiros capítulos de MPBC. Na hemeroteca da Biblioteca Nacional, osCantos ocidentais aparecem no mesmo tomo que reúne os volumes que vão de janeiro a março de 1880 da Revista Brasileira.1 1 Trata-se do Terceiro tomo, 1o ano, janeiro a março de 1880 da Revista Brasileira. Note-se que, conforme o índice de matérias, os Cantos ocidentais iniciam na página 135 do volume, enquanto asMemórias póstumas de Brás Cubas iniciam na página 353. De que modo esses poemas dialogam com a viravolta na obra machadiana? De que modo se articulam com a renovação deMemórias póstumas? A partir dessa questão, cabe uma releitura desses Cantos ocidentais no contexto da Revista Brasileira. Eles aparecem da página 135 até a 140, nesta sequência: "Uma criatura", "A mosca azul", "O desfecho", "Spinoza", "Suave mari magno" e "No alto". Mesmo que, no correr do artigo, o foco não recaia na sequência, interessa precisar que o primeiro poema pode ser visto como antecipação de Pandora, mãe e madrasta de MPBC. De certo, há uma concepção de natureza, indiferente ao homem. O último poema parece indicar uma passagem de Ariel, entidade aérea e pura, para Caliban, criatura baixa e incontrolável.

UMA HOMENAGEM A LUCRÉCIO OU MERO LUGAR COMUM?

Suave mari magno

Lembra-me que, em certo dia,

Na rua, ao sol de verão,

Envenenado morria

Um pobre cão.

Arfava, espumava e ria,

De um riso espúrio e bufão,

Ventre e pernas sacudia

Na convulsão.

Nenhum, nenhum curioso

Passava, sem se deter,

Silencioso,

Junto ao cão que ia morrer,

Como se lhe desse gozo

Ver padecer.2 2 ASSIS, A poesia completa. As citações dos poemas partem dessa edição.

Num dos raros estudos sobre a poesia machadiana, Cláudio Murilo Leal parte da leitura biográfica por Lúcia Miguel Pereira, em que o autor mostraria o horror de sofrer um ataque epilético e cair na rua. No breve trecho dedicado ao poema, o crítico diz que "'Suave mari magno' reflete o pessimismo do autor, o seu ceticismo em relação à concepção de bondade natural do homem".3 3 Leal, O círculo virtuoso: a poesia de Machado de Assis, p. 146. Mário Curvello4 4 CURVELLO, Falsete à poesia de Machado de Assis. não chega a se referir a esse poema. Analisa o conjunto de poemas de Ocidentais, publicados em 1901, como ponto de chegada da trajetória do poeta e, de certo modo, como expressão mais clássica (com predomínio do soneto) e marcada pela "volúpia do aborrecimento", que se mostra em "O desfecho". Não há referência ao título do poema, "Suave mari magno", verso retirado de um trecho do livro Danatureza, de Lucrécio:

É bom quando os ventos revolvem a superfície do grande mar, ver da terra os rudes trabalhos por que estão passando os outros; não porque haja qualquer prazer na desgraça de alguém, mas porque é bom presenciar os males que não se sofrem. É bom também contemplar os grandes combates de guerra travados pelos campos sem que haja da nossa parte qualquer perigo.5 5 LUCRÉCIO, Da natureza, p. 47.

No início do livro II, o filósofo romano usa a imagem, a fim de mostrar o lugar do filósofo, afastado das lides humanas, da paixão, da inveja, do apego ao poder ou à riqueza, para contemplar de longe o movimento desordenado dos homens na escura ignorância. Sua intenção é atacar o medo da morte, mostrando como o mundo natural se ordena ao acaso, por si, em sua materialidade, sem a presença de deuses. Depois da morte, o espírito e a alma morrem junto com o corpo, pois também são materiais. Não haveria, no entanto, o que temer, pois os átomos oriundos da decomposição fariam surgir um novo corpo. A sabedoria estaria em contemplar ao longe a tempestade dos males humanos. Note-se desde já a importância de mostrar como o medo da morte penetra a alma e impede qualquer prazer; ao mesmo tempo, gera o apego à honra (opinião dos outros), ao poder (convicção de dominar os outros, o mundo e a vida) e à riqueza.

Talvez a frase latina apareça aí por outra razão:

Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant consules é um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum. Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não te aconselho esse artifício: seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil.6 6 ASSIS, Papéis avulsos, p. 91.

No trecho acima, o pai de Janjão, em "Teoria do medalhão", aconselha o filho sobre o melhor modo de falar sem obrigar os outros ao esforço inútil de pensar.Suave mari magno pode ser vista com uma dessas frases, cujo emprego adequado se dava quando o indivíduo, de um lugar seguro, observava uma situação catastrófica ou um mero problema.7 7 Fleurs latines des dames et des gens du monde, ou Clef des citations latines que l’on rencontre fréquemment dans les ouvrages des écrivains français, 1874, p. 417-418. Trata-se de coleção de frases latinas muito usadas, com a correspondente tradução e o uso por alguns autores reconhecidos. As duas sentenças sugeridas pelo pai de Janjão estão nessa coleção: Si vis pacem para bellum (p. 407-408) eCaveant consules (p. 62-63). Note-se que esse tipo de frase, pelo uso cotidiano, perdia o contexto original e a autoria. De certo modo, algo similar à situação vivida por Xavier em "O anel de Polícrates".8 8 ASSIS, Papéis avulsos, p. 175. A frase ganha vida própria, a autoria perde-se.

A alegoria da tempestade reaparece no poema machadiano. Em primeiro lugar, o título, como um véu, recobre o sentido literal dos versos do poema. Citado em latim, sem referência de autor, e de modo incompleto, o poema separa o título dos versos, cuja ligação se pode dar pela interpretação alegorizante. Há um forte vínculo entre Machado de Assis e a concepção materialista de Lucrécio, radical em sua negação de toda religião, misticismo ou explicação sobrenatural para a vida humana. Sua convicção está no poder da razão, capaz de esclarecer os homens, mostrando o caráter arbitrário e casual da natureza. Por meio de seu discurso, esclarece os homens a fim de se afastarem dos males da ignorância, tanto do apego às paixões quanto do vínculo à religião.

Esse soneto traz um ritmo leve e melódico próprio da redondilha maior, que ganha forma peculiar pelo final de cada estrofe com um verso de quatro sílabas poéticas. Não é o ritmo do verso alexandrino, como ocorre em outros poemas, mais próprio para a recitação "lenta e grave" de um "poema sério".9 9 AUERBACH, As flores do mal e o sublime, p. 304-305. O ritmo é adequado à matéria cotidiana que não comporta a forma elevada de um alexandrino.

No corpo do poema, então, o assunto é a morte de um cachorro na rua, a quem ninguém deixa de lançar um olhar. No primeiro verso ("Lembra-me"), temos a posição do eu poético que recupera uma cena particular por ele vivida, um acontecimento marcado na memória. Nos quartetos, o foco está posto no cachorro que, envenenado, morre em convulsão. O aspecto inusitado é seu "riso espúrio e bufão", a atribuição de marcas humanas, do humor ilegítimo próprio de um fanfarrão, de um bobo. Nos tercetos, o olhar se desloca para cada passante que parava silencioso junto ao cão que ia morrer, "como se lhe desse gozo/ ver padecer". Note-se que, na primeira edição em 1880, o penúltimo verso era "Quem sabe? É delicioso".

Em uma primeira leitura, pode-se ver a narração de um fato curioso, gravado na memória do sujeito. Num segundo momento, percebe-se que as pessoas passavam pelo cão envenenado, detinham-se e olhavam, atraídas pela morte do animal. Na descrição do cão, o eu poético projeta-lhe um riso bufão e espúrio, como se ele ou respondesse ao olhar dos passantes, rindo da pretensa distância, ou risse de seu próprio fim. Não é demais observar que a convulsão não produz um riso, mas um ricto, uma contração forçada que se assemelha ao riso. O eu poético, no entanto, mistura a objetividade da cena (convulsão) a seu olhar subjetivo (riso espúrio e bufão).

De um modo ou de outro, essa cena particular ganha um sentido renovado na ligação com o título que lhe antecede. O véu descoberto permite ver um exemplo da tradição de Lucrécio. Aos homens parece agradável ver o cão morrer, pois estariam vendo de longe o sofrimento e dor de outro ser. Essa distância torna a morte do animal agradável, pois lembra ao passante sua condição de vivo. A imagem, ao ser lembrada pelo eu poético, coloca ironicamente o cão em relação aos passantes, mostrando que a morte só é suave vista à distância.

A distância entre os homens e o animal é contingente, pois ambos estão submetidos ao mesmo princípio da morte. O riso poderia estar partindo do cão, que, na praia da morte, abandona a vida e vê o tumulto dos homens agitados pelas paixões. Esse sentido é coerente com o todo do poema, se relacionado a Lucrécio, em que a morte não deve ser temida, pois é mera desagregação da matéria em átomos. Ao mesmo tempo, ela é idêntica para homens e animais. Assim, os homens penalizam-se do cão moribundo; e este ri dos primeiros.

A cena cotidiana é destituída de singularidade a fim de se mostrar a força alegórica, como expressão de sentido geral, quando interpretada a partir de Lucrécio. A ênfase está no quadro pintado pelo eu poético e o título indica uma reflexão a partir do acontecimento singular. Aqui se cristaliza uma dualidade em que a ligação da imagem com o sentido se dá pelo olhar alegórico que inventa um nexo entre cena e sentido, à espera de decifração. Nesse caminho, o eu poético estaria na praia da reflexão filosófica, longe do turbilhão da rua e da falta de consciência do cão. Tranquilo, coloca-se de fora da cena e compreende o movimento da vida e seu destino inelutável, a morte.

Não se pode esquecer, no entanto, algo da fatura poética, o estilo misturado, tal como Erich Auerbach estuda na poesia de Baudelaire. O traço clássico é visto como característico do poeta de Ocidentais, tal como apontado por Mário e Cláudio Murilo Leal. A citação truncada da tradição clássica ganha feição irônica quando trazida para o cotidiano urbano. A elevação filosófica, própria da reflexão de Lucrécio, ganha expressão solene na imagem da tempestade em alto-mar quando vista da terra... E perde quando o eu poético traz essa dimensão para o chão da rua e para algo repulsivo (um cão em convulsão) e cômico (um riso espúrio). De modo talvez discreto, então, o eu poético de Machado de Assis inova também na poesia.

A discrição talvez não seja tão grande, se pensarmos o modo como esse poema se coloca em sutil diálogo com As flores do mal. Em "A nova geração", publicado em dezembro de 1879, também na Revista Brasileira, Machado de Assis havia criticado uma apropriação indevida de Baudelaire pelos novos poetas:

Quanto a Baudelaire, não sei se diga que a imitação é mais intencional do que feliz. O tom dos imitadores é demasiado cru; e aliás não é outra a tradição de Baudelaire entre nós. Tradição errônea. Satânico, vá; mas realista o autor deD. Juan aux enfers e da Tristesse de la lune! Ora, essa reprodução, quase exclusiva, essa assimilação do sentir e da maneira de dois engenhos, tão originais, tão soberanamente próprios, não diminuirá a pujança do talento, não será obstáculo a um desenvolvimento maior, não traz principalmente o perigo de reproduzir os ademanes, não o espírito – a cara, não a fisionomia? Mais: não chegará também a tentação de só reproduzir os defeitos, e reproduzi-los exagerando-os, que é a tendência de todo o discípulo intransigente?10 10 ASSIS, A nova geração, p. 1263.

Quando Machado se refere aos dois engenhos, fala de Victor Hugo,11 11 Certamente o estudo de Cantos ocidentais poderia tomar como referência o diálogo entre Machado de Assis e Victor Hugo, tal como a escolha do título da coleção parece indicar. Para isso, no entanto, seria necessário um espaço maior. tratado antes, e de Baudelaire, para o qual nos voltamos. Machado demonstra um conhecimento bastante agudo de As flores do mal, citadas não apenas nesse momento, quando avalia o equívoco de caracterizar Baudelaire como realista. Creio que, de fundo, haja condenação da apropriação apressada e não digerida que reproduz "a cara, não a fisionomia". A imitação não refletida dos novos poetas se apega aos trejeitos, deixando de lado a natureza da poesia baudelairiana.

Os baudelairianos do decênio de 1870 foram portanto uma espécie depré-parnasianos, sobretudo na medida em que aprenderam com o seu inspirador o cuidado formal, o amor pelas imagens raras, a recuperação do soneto e outras formas fixas. Mas são antiparnasianos no relativo gosto pelo moderno, bem como na atitude geral de contestação, que os levou a rejeitar o passado e adotar os ideais republicanos como matéria de poesia. N’As flores do mal encontraram um tratamento não convencional do sexo, um lutuoso spleen e um senso refinado da análise moral; mas refugaram ou não sentiram bem a coragem do prosaísmo e dos torneios coloquiais. Também não se interessaram pelos espaços externos da vida contemporânea, inclusive o senso penetrante da rua e da multidão; ficaram quase sempre dentro de casa e mais especialmente do quarto de dormir.12 12 Candido, A educação pela noite, p. 38, grifo meu.

O estudo de Antonio Candido valoriza a geração de 1870, dando ênfase para Carvalho Júnior, Fontoura Xavier e Teófilo Dias. Esses dois últimos, iniciantes, viriam a publicar suas obras principais nos anos de 1880, em período posterior à crítica machadiana. Candido destaca o modo como se apropriaram de Baudelaire, dando valor à revolta, tanto na ordem política quanto nos costumes. A ressalva importante diz respeito ao que esses baudelairianos deixaram de lado, tal como o prosaísmo e a rua. Um passo importante, então, é pensar no diálogo de Machado com Baudelaire. É possível imaginar o diálogo de "Suave mari magno"com dois poemas: "Sed non satiata"e "Uma carniça". No primeiro caso, é possível perceber o mesmo gesto de construir um poema cujo título é um verso latino, sem tradução, cuja fonte não é referida. "Satisfeita, não saciada" é parte de uma sátira de Juvenal. Trata-se de um soneto, em que o eu poético se dirige a uma interlocutora negativamente caracterizada.

Vejamos, agora, a abertura do segundo exemplo:

Uma carniça

Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos

Numa bela manhã radiante;

Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,

Uma carniça repugnante.

As pernas para cima, qual mulher lasciva,

A transpirar miasmas e humores,

Eis que as abria desleixada e repulsiva,

O ventre prenhe de livores.13 13 BAUDELAIRE, Flores do mal, p. 126. Devido à brevidade do presente artigo, não cabe discutir a tradução apresentada. Vale atentar, entretanto, ao uso da segunda pessoa feito por Baudelaire. O eu poético usa o imperativo, “Rappelez-vous”, logo na abertura do poema e voltando-se para o interlocutor com o uso formal do vous, aparentando um tratamento respeitoso da mulher amada. Na tradução para o português, a opção foi utilizar a segunda pessoa do singular, tu.Manteve-se a interlocução, mas se perdeu a distância implicada novous.

Na abertura do poema, o eu poético invoca a interlocutora, "monâme", a relembrar uma espécie de passeio ao campo, feito pelo casal. Nessa manhã de verão, viram uma carniça. A descrição traz a dimensão repulsiva, na aparência e no cheiro, do corpo em decomposição. Ao final do poema, há uma quebra:

– Pois hás de ser como essa coisa apodrecida,

Essa medonha corrupção,

Estrela de meus olhos, sol de minha vida,

Tu, meu anjo e minha paixão!

[...]

Então, querida, dize à carne que se arruína,

Ao verme que te beija o rosto,

Que eu preservei a forma e a substância divina

De meu amor já decomposto!14 14 Ibidem.

No poema há um deslizamento da cena realista, precisa, para uma espécie de lição que é tirada do episódio. O eu poético mostra a carniça como espelho da interlocutora, como expressão do destino a que ela está condenada, à morte do corpo. No conselho final, recomenda que a interlocutora diga ao verme "que vos comerá de beijos"15 15 “Qui vous mangera de baisers”. Optou-se por uma tradução mais literal para marcar a presença do vous, vós. que o eu poético vai preservá-la na sua forma e essência divina. Há na dimensão formal do "vós" uma elevação da interlocutora, para logo a seguir rebaixá-la na carniça em que ela vai se decompor. Essa tensão está no corpo do poema, quando a descrição da carniça aparece elevada pelo uso de expressões como negros batalhões de larvas, além da subjetivação do olhar em: "as formas se desfaziam e não eram mais que um sonho". De um lado, a realidade repulsiva contrasta com vocabulário elevado; de outro, a descrição realista se dilui na subjetividade poética.

Talvez a simples retomada do poema de Baudelaire já evidenciasse o diálogo que Machado de Assis estabelece com "Sed non satiata", no jogo entre título latino e poema em francês, que abre para uma leitura cheia de humor do modo como a mulher é caracterizada. No segundo caso, parece que Machado reconstrói uma cena similar ao poema dedicado a uma carniça, aproveitando inclusive o nexo com a morte. De certo modo, Machado de Assis, em janeiro de 1880, retoma o problema analisado em dezembro de 1879, quando criticava os poetas da nova geração. Nesse momento, ele desloca da crítica para a criação poética, um modo de dialogar com Baudelaire, sem imitá-lo. O gesto moderno que aparece no poeta francês é retomado, mesmo que em outra chave, por Machado de Assis.

NEM REALISTA, NEM ROMÂNTICA, NEM PARNASIANA: UMA POESIA MODERNA

Conforme destaca Péricles E. Ramos,16 16 RAMOS, Consciência estética e aspiração à forma, 1994. as críticas machadianas, cobrando "correção métrica e gramatical, precisão vocabular, economia da composição e sobriedade de imagens", influenciam diretamente no surgimento do grupo parnasiano no Brasil, com o qual Machado manterá sempre amistosas relações. A poesia plástica, artesanal, da palavra justa e o culto à forma estavam já em gérmen em "A nova geração". Nesse ensaio, por exemplo, o conselho a Alberto de Oliveira para que deixe a ideia nova de lado será seguido. Creio que talvez haja um equívoco em tal comentário, pois se perde a força provocativa do gesto poético de Machado.

Enfim, a passagem de uma fase a outra entende-se ainda melhor quando lidos alguns poemas de Ocidentais, já parnasianos pelo sóbrio do tom e pela preferência dada às formas fixas: em "Uma criatura", em "Mundo interior" e no célebre "Círculo vicioso", uma linguagem composta e fatigada serve à expressão de um pessimismo cósmico que toca Schopenhauer e Leopardi pelo retorno ao mito da Natureza madrasta (imagem central no "Delírio de Brás Cubas").17 17 BOSI, História concisa da literatura brasileira, p. 78.

Essa indicação de Alfredo Bosi permite aproximar a crítica literária da poesia machadiana. A correção da linguagem, a sobriedade do tom, as formas fixas, o verso alexandrino, a objetividade seriam traços machadianos que antecipariam o Parnasianismo. O nexo entre "Uma criatura" e o delírio de Brás Cubas traz uma importante indicação de como a poesia e a prosa dialogavam em janeiro e março de 1880. Parece que houve, no entanto, um equívoco em vincular a crítica e a poesia machadianas ao parnasianismo, por causa do rigor formal, como se perdessem a força moderna, presente no tema e no prosaísmo baudelairianos. Em "A nova geração", a atenção do crítico dada à nova produção poética, em sua diversidade, revela o escritor atento ao lugar em que sua obra se insere. Na poesia, por sua vez, a força parece concentrar-se não na acomodação formal parnasiana, mas na tensão entre vocabulário cuidado, forma fixa, de um lado, e tema rebaixado e procedimento de citação truncada, de outro.

Em "Uma criatura", Machado cria uma alegoria da natureza:

Sei de uma criatura, antiga e formidável,

Que a si mesma devora os membros e as entranhas

Com a sofreguidão da fome insaciável.

[...]

Pois essa criatura está em toda a obra:

Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;

E é nesse destruir que as suas forças redobra.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;

Começa e recomeça uma perpétua lida,

E sorrindo obedece ao divino estatuto.

Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.

Ao longo do poema, temos a descrição de uma criatura descomunal, um ser assustador, que a tudo devora, do chacal ao colibri, que está dentro de tudo e se fortalece através da destruição. Pela aparência, ao final, o poema conduz o leitor ao equívoco, a nomear essa criatura de Morte ("Tu dirás que é a Morte"). O eu lírico desfaz o engano dando o verdadeiro nome, Vida. O conceito construído de vida privilegia o aspecto corporal dos seres vivos, sem distinção entre homem e animal. Todos os seres nascem fadados à destruição, princípio da própria natureza.

A Vida, com letra maiúscula, representa o conceito geral do poema. A figura traçada é enorme, onipresente, fria, extremamente forte. Sua descrição exclui qualquer semelhança com alguma criatura natural. Sua estranheza leva à interpretação da imagem não como mimética, mas como alegórica. Como a alegoria barroca,18 18 BENJAMIN, Origem do drama barroco alemão. a criatura mostra seu reverso, a metamorfose do vivo em morto. Para representar o seu contrário, o objeto é privado da organicidade inerente. No caso, o exagero das partes faz com que a criatura seja inverossímil.

Em uma concepção de natureza a-histórica, o poema poderia levar à conclusão de que o homem vive num mundo destituído de sentido, que não permite crença em um princípio organizador. Não há a proposição de síntese em que o homem supere a natureza, mas subordinação ao mundo natural. O ser, pelo simples fato de existir, ruma para a destruição. O movimento não é ascensão espiritual mas queda na decomposição. Machado contraria o princípio de expressão em que o organismo forma um todo pela integração dos membros.

A imagem da natureza de "Uma criatura"é retomada em "Mundo interior", soneto publicado em 1886. Dividido em dois movimentos, nos quartetos, o eu poético refere aquilo que ouve da natureza externa ("Ouço que a natureza"), marcada pela luz (fulgor), em uma escala de vida que ilumina do sol à menor candeia; ao mesmo tempo seduz com sua beleza e intimida com seus monstros. No segundo movimento, o eu poético fecha os olhos e num mergulho interior vê outro mundo, outro sol, outro abismo.19 19 Também aqui seria possível pensar um diálogo com Baudelaire. Em "A nova geração", Machado faz a seguinte referência: "não podia seguir o seu modelo, alcunhado realista, que confessa um rouge idéal e que o encontra em Lady Macbeth, para lhe satisfazer o coração,profond comme un abîme". Ele se refere aIdeal, para comparar o poema com a "Profissão de fé", de Carvalho Júnior. A imagem do coração como abismo reaparece nesse mundo interior. Especularmente, também rola um eterno cataclismo, que traz um segredo que atrai e desafia. Há uma relação especular entre o mundo interior e o exterior, já que em sua subjetividade encontra o mesmo cataclismo e o mesmo segredo. O segredo pode ser lido tanto como a morte, como o movimento próprio da vida, com o destino de toda criatura, destruição. Note-se o exagero, atípico em Machado de Assis, em que adjetiva a vida de "imortal", o cataclismo de "eterno" e o segredo de "enorme". O exagero ressalta o mistério da morte individual e seu significado.

Os dois poemas, "Uma criatura" e "Mundo interior", constroem uma concepção de natureza indiferente ao homem, vazia de sentido humanizante, trazendo em si a lembrança da miserável condição humana. A noção de cataclismo, e de ausência de espiritualidade, leva à expressão alegórica, pois a imagem particular não traz espontaneamente sentido natural, não é livre expressão da subjetividade. Não é sentimento, nem sensação, nem intuição em que o eu lírico se afirma a si mesmo. Ao contrário, são temas objetivos como a Vida, uma cena, uma fábula, um personagem mítico (Prometeu), um filósofo (Spinoza). O processo de despersonalização retira o sujeito de cena e mostra um mundo esmagador, por sua inexorável negatividade. Machado não preenche a natureza de um sentido humano. No homem a natureza, materialidade finita, revela-se, destinando-o à morte.

Não vou me concentrar em "A mosca azul", interessante fábula poética, que narra a história de um poleá (um pária) que descobre uma mosca azul e, através dela, vê a si mesmo como um rei. Ao dissecar a mosca, curioso de seu segredo, perde a imagem projetada. Termina louco, vagando atrás da mosca. Deixo de lado a mosca azul e me volto para "Desfecho", soneto em que Machado retoma a imagem de Prometeu, da tragédia de Ésquilo, Prometeu acorrentado. No caso, sobreviveu apenas a primeira das tragédias. As outras se perderam.

O desfecho

Prometeu sacudiu os braços manietados

E súplice pediu a eterna compaixão,

Ao ver o desfilar dos séculos que vão

Pausadamente, como um dobre de finados.

Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilião,

Uns cingidos de luz, outros ensanguentados...

Súbito, sacudindo as asas de tufão,

Fita-lhe a água em cima os olhos espantados.

Pela primeira vez a víscera do herói,

Que a imensa ave do céu perpetuamente rói,

Deixou de renascer às raivas que a consomem.

Uma invisível mão as cadeias dilui;

Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;

Acabara o suplício e acabara o homem.

Machado de Assis preenche, de certo modo, o vazio deixado pelo desaparecimento das outras tragédias da trilogia de Ésquilo, ao se fixar no final do herói mitológico. Cabe retomar a figura de Prometeu, fundamental para a origem da humanidade na mitologia grega. No caso, Prometeu estabelece a divisão entre o mundo dos deuses e o dos homens, instituindo o sacrifício: aos deuses, embrulhado em sebo (aparência atraente), cabe um monte de ossos; aos homens, embrulhada em vísceras (aparência repugnante), cabe a carne. Os deuses têm a parte perene do corpo, que permanece após a morte; os homens têm a parte perecível. Prometeu também é aquele que traz o fogo em um galho de funcho (semente de fogo) atrás do verde dos galhos externos; no caule seco, onde ele esconde o fogo humano que morre se não for alimentado, ao contrário do fogo imortal de Zeus. No final, depois da invenção de Pandora e da liberação dos males, Prometeu é punido por Zeus. Ficará preso em uma rocha até ser libertado por Héracles. Durante o dia, uma águia come seu fígado; à noite, este se recompõe. Assim, o castigo se repete de modo cíclico, de tal maneira que, imortal, ele não pode escapar, nem lutar, nem evitar que se repita a cada dia.20 20 Cf. VERNANT, Mito e tragédia na Grécia antiga, 1991.

Prometeu, no soneto de Machado, é identificado como alegoria da humanidade, tal como indica o verso final; o fim de um corresponde ao fim da segunda. O suplício de Prometeu está em ver os séculos passarem, sempre preso, sem condição de voltar os olhos ou de morrer. Pede compaixão, "compaixão eterna". O poema se concentra no momento final, no epílogo e em como isso define toda a condição humana.

A história é concebida como "dobre de finados". É uma marca incongruente, discrepante do ambiente do mito. É um tempo humano, uma indicação de que as gerações se definem não apenas pela repetição cíclica dos mesmos passos, dos mesmos gestos, das mesmas aspirações... Definem-se pela finitude. A morte aparece como bênção, fruto da compaixão pelo sofrimento sem fim de Prometeu. A finitude deixa de ser algo temido, para se tornar apetecível.

É provável que o leitor de Brás Cubas, que já identificou o motivo de Pandora em "Uma criatura", agora veja também o personagem acompanhando o passar dos séculos, cujo termo final era invariavelmente a campa. As imagens têm sentidos diversos, obviamente, mas interessa agora indicar a recorrência da cena. Do mesmo modo, podemos lembrar "Viver", conto de 1886, publicado em Várias histórias, de 1896, em que acontece o diálogo entre Prometeu e Ahasverus, o judeu errante.

Quanto ao quinto poema a ser comentado, trata-se de mais um soneto, "No alto".

No alto

O poeta chegara ao alto da montanha,

E quando ia a descer a vertente do oeste,

Viu uma cousa estranha,

Uma figura má.

Então, volvendo o olhar ao sutil, ao celeste,

Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,

Num tom medroso e agreste

Pergunta o que será.

Como se perde no ar um som festivo e doce,

Ou bem como se fosse

Um pensamento vão,

Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.

Para descer a encosta

O outro estendeu-lhe a mão.

Esse soneto tem uma métrica peculiar. Os primeiros versos do quarteto e o primeiro dos tercetos são compostos em alexandrino, verso solene, próprio para temática elevada. Os outros versos, hexâmetros, parecem cortar pela metade um alexandrino, como um gesto de quebra da dicção solene. Nesse poema narrativo, o poeta chega ao alto da montanha, acompanhado por Ariel. Para descer, recebe a mão do outro. Na primeira edição, os versos que descreviam o outro eram os seguintes: "Viu uma cara estranha/ dura, terrena e má". De certo modo, mais detalhada, parece mais evidente a referência a Caliban.

Logo depois de Ariel, vem Caliban. A imagem também faz parte do prefácio à segunda parte de A lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo. A raiz está em A tempestade, de W. Shakespeare. Ariel é a criatura mágica que, libertada por Próspero, torna-se servidor fiel que executa as vontades do mestre com a promessa de liberdade. Caliban, criatura baixa, herdeiro da ilha aonde Próspero, duque de Milão, e sua filha Miranda chegam depois do exílio. Poderoso, conhecedor das ciências ocultas, Próspero se adona da ilha e Miranda ensina Caliban a falar. Depois, Próspero vai torná-lo escravo, pois Caliban tentara violentar sua filha. Ariel, espírito aéreo, elevado, capaz de magia, opõe-se ao desobediente, baixo e vulgar Caliban. A peça de Shakespeare é mais rica e complexa do que é possível abordar aqui. Essa referência sumária, porém, permite supor como Machado refereA tempestade, como se dá a passagem do alto para o baixo. Mudança similar à que se dá da primeira para a segunda parte do livro de Álvares de Azevedo.

Por fim, escolhi comentar "Spinoza".

Spinoza

Gosto de ver-te, grave e solitário,

Sob o fumo de esquálida candeia,

Nas mãos a ferramenta de operário,

E na cabeça a coruscante ideia.

E enquanto o pensamento delineia

Uma filosofia, o pão diário

A tua mão a labutar granjeia

E achas na independência o teu salário.

Soem cá fora agitações e lutas,

Sibile o bafo aspérrimo do inverno,

Tu trabalhas, tu pensas, e executas

Sóbrio, tranquilo, desvelado e terno,

A lei comum, e morres, e transmutas

O suado labor no prêmio eterno.

Nesse soneto, o eu poético faz o elogio da figura do filósofo. São as duas faces do filósofo. De um lado, há o trabalho manual do polidor de lentes, com "a ferramenta do operário". De outro, há na cabeça a "coruscante ideia". Esses dois aspectos são complementares, pois o trabalho manual dá independência dos movimentos exteriores para que o filósofo construa sua filosofia. Esse poema traz de modo cifrado uma referência importante para se pensar a viravolta machadiana. Muito se fala de seu moralismo, tal como La Bruyère, La Rochefoucauld ou Vauvenarges, também se coloca a tragicidade (Pascal), seu ceticismo (Montaigne), a força determinante do desejo obscuro (Schopenhauer). Miguel Reale21 21 Cf. Reale, A filosofia de Machado de Assis, 2005. mostra a pertinência e o limite de cada aproximação, pois Machado filtra e adapta essas leituras. Seu humor diluiria tanto a tragicidade quanto o determinismo. Em todo caso, faz falta a referência a Spinoza. Machado tinha em sua biblioteca a edição das obras completas, dos anos 1870.

Interessa lembrar que esse filósofo marrano, cuja família fugiu da perseguição na Espanha e depois em Portugal, é excluído da comunidade judaica de Amsterdã. Para ficar apenas em dois exemplos, vale atentar para o Tratado teológico-político, em que defende um método de leitura livre das escrituras, a partir da história e da concepção de que cada ação humana tem uma causa (explicável e humana). As escrituras não seriam fruto de revelação ou voz divina, mas expressão moralista de homens. Mostra que a tentativa de sacralizar o texto como voz de Deus, com sentido revelado e obscuro aos homens comuns, é fruto do poder e do modo como as religiões se instituem para submeter os fiéis pelo medo e pela esperança. Quanto à Ética, a grande obra de Spinoza, publicada apenas postumamente, Deus passa a ser concebido como imanente, como infinito (como causa de si mesmo) e como sendo a própria natureza. Na quarta parte, ao estudar as paixões humanas, divididas naquelas que provocam alegria ou tristeza, Spinoza analisa o modo como os homens se escravizam a seus desejos e têm dificuldade de emancipação. O gesto lembra Lucrécio, uma luta contra a superstição.

Nessas indicações sumárias sobre Spinoza, a quem Machado pode ter chegado pela leitura de Goethe (Poesia e verdade: memórias), é possível pensar que o filósofo deixou a lição de uma liberdade de leitura da tradição religiosa. Trata-se de gesto iconoclasta para destruir superstições e afirmar um riso irônico, como forma de quebrar a elevação séria ou a tragicidade da existência. Vale, então, destacar o caráter inovador e provocativo de Machado ao contrapor a leitura da natureza de Lucrécio e Spinoza, de um lado, e dos filósofos modernos, de outro. De certo modo, a imagem de Spinoza, que trabalha, pensa e executa a lei comum e morre, parece ecoar o olhar tranquilo que permite uma apropriação criativa da tradição. Assim, onde o interlocutor diz que a criatura é a morte, o eu poético afirma que é a própria vida.

Poesia e provocação em Cantos ocidentais

Voltemos, então, ao ano de 1880 e à Revista Brasileira. Aparentemente apenas a prosa de MPBC seria revolucionária, enquanto a poesia dos Cantos ocidentais seria conservadora. Ao reposicionar os poemas entre a escrita de "A nova geração" (dezembro de 1879) e a publicação dos primeiros capítulos de Memórias póstumas (março de 1880), é possível mostrar, além de alguns pontos de aproximação, o quanto um poema como "Suave mari magno"traz marcas modernas, visíveis se usarmos a lente própria do século XIX em que junção de tema elevado e matéria baixa gera um curto-circuito na divisão dos estilos.22 22 AUERBACH, cit.

Cantos ocidentais podem representar, então, um gesto provocativo similar à prosa de MPBC. Como resposta à nova geração, que projetava o paraíso no fim, Machado se volta melancolicamente para a origem, a partir da qual estabelece como princípio recorrente a pontualidade da campa, a finitude. Ou, para usar os termos de "Uma criatura", a vida traz dentro de si o princípio da destruição. Ao contrário de se voltar para a ciência de sua própria época, Machado resgata Lucrécio e Spinoza para trazer outra concepção de natureza diferente daquela defendida pela ideia supostamente nova do Naturalismo.

O distanciamento crítico parece ser o norte do trabalho de Machado de Assis, algo que aparece na cisão entre autor e narrador do romance. De certo modo, a concepção desiludida, irônica, corrosiva e melancólica está também em sua poesia. Assim, no exercício de pensar esse diálogo entre prosa e poesia, encontramos não mais o poeta clássico, mas o leitor moderno da tradição. Não se vê mais uma poesia parnasiana, mas uma escrita poética rigorosa que se abre para a mistura estilística. Assim, na escrita de "Suave mari magno", o gesto moderno está na citação truncada de um verso latino. Pode ser um aproveitamento lúdico de um dito, que se transformou em pecúlio comum, apagando o contexto da citação e o autor da obra. Também é possível cogitar uma leitura alegórica da cena cotidiana, em que Lucrécio aparece de cabeça para baixo quando perde o tom elevado de De rerum naturae ganha a dicção leve e anedótica. Esse aspecto de sua poesia pode ser aproximado de Baudelaire, pelo modo como Machado faz a leitura de As flores do mal, em "A nova geração".

Essa dicção desencantada já estava ensaiada em Americanas (1875), mas ganha forma propriamente nos poemas de Cantos ocidentais. Não parece um acidente apenas, presente em "Suave mari magno", mas um procedimento que reaparece nos outros poemas aqui apresentados, tal como "Desfecho", em que Prometeu, figura forte no romantismo, é relido por Machado. No fim, o soneto dedicado a Spinoza parece indicar mais uma fonte preciosa para pensar a liberdade com que Machado lida com a tradição, que se soma a sua leitura de Luciano, Schopenhauer, Montaigne, Diderot... A concepção de natureza indiferente ao homem, o estudo das paixões, o modo de interpretação de textos são alguns pontos que a leitura da Ética spinoziana e a do Tractadus podem ajudar a esclarecer. Não se trata de propor a Chave (maiúscula) para ler a obra madura de Machado de Assis, não apenas por se tratar de pretensão risível, mas principalmente de atentar para sua poesia, uma nova face, a partir da qual se pode pensar o nexo com sua prosa.

Referências

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  • VERNANT, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga São Paulo: Brasiliense, 1991.
  • 1
    Trata-se do Terceiro tomo, 1o ano, janeiro a março de 1880 da Revista Brasileira. Note-se que, conforme o índice de matérias, os Cantos ocidentais iniciam na página 135 do volume, enquanto asMemórias póstumas de Brás Cubas iniciam na página 353.
  • 2
    ASSIS, A poesia completa. As citações dos poemas partem dessa edição.
  • 3
    Leal, O círculo virtuoso: a poesia de Machado de Assis, p. 146.
  • 4
    CURVELLO, Falsete à poesia de Machado de Assis.
  • 5
    LUCRÉCIO, Da natureza, p. 47.
  • 6
    ASSIS, Papéis avulsos, p. 91.
  • 7
    Fleurs latines des dames et des gens du monde, ou Clef des citations latines que l’on rencontre fréquemment dans les ouvrages des écrivains français, 1874, p. 417-418. Trata-se de coleção de frases latinas muito usadas, com a correspondente tradução e o uso por alguns autores reconhecidos. As duas sentenças sugeridas pelo pai de Janjão estão nessa coleção: Si vis pacem para bellum (p. 407-408) eCaveant consules (p. 62-63).
  • 8
    ASSIS, Papéis avulsos, p. 175.
  • 9
    AUERBACH, As flores do mal e o sublime, p. 304-305.
  • 10
    ASSIS, A nova geração, p. 1263.
  • 11
    Certamente o estudo de Cantos ocidentais poderia tomar como referência o diálogo entre Machado de Assis e Victor Hugo, tal como a escolha do título da coleção parece indicar. Para isso, no entanto, seria necessário um espaço maior.
  • 12
    Candido, A educação pela noite, p. 38, grifo meu.
  • 13
    BAUDELAIRE, Flores do mal, p. 126. Devido à brevidade do presente artigo, não cabe discutir a tradução apresentada. Vale atentar, entretanto, ao uso da segunda pessoa feito por Baudelaire. O eu poético usa o imperativo, “Rappelez-vous”, logo na abertura do poema e voltando-se para o interlocutor com o uso formal do vous, aparentando um tratamento respeitoso da mulher amada. Na tradução para o português, a opção foi utilizar a segunda pessoa do singular, tu.Manteve-se a interlocução, mas se perdeu a distância implicada novous.
  • 14
    Ibidem.
  • 15
    Qui vous mangera de baisers”. Optou-se por uma tradução mais literal para marcar a presença do vous, vós.
  • 16
    RAMOS, Consciência estética e aspiração à forma, 1994.
  • 17
    BOSI, História concisa da literatura brasileira, p. 78.
  • 18
    BENJAMIN, Origem do drama barroco alemão.
  • 19
    Também aqui seria possível pensar um diálogo com Baudelaire. Em "A nova geração", Machado faz a seguinte referência: "não podia seguir o seu modelo, alcunhado realista, que confessa um rouge idéal e que o encontra em Lady Macbeth, para lhe satisfazer o coração,profond comme un abîme". Ele se refere aIdeal, para comparar o poema com a "Profissão de fé", de Carvalho Júnior. A imagem do coração como abismo reaparece nesse mundo interior.
  • 20
    Cf. VERNANT, Mito e tragédia na Grécia antiga, 1991.
  • 21
    Cf. Reale, A filosofia de Machado de Assis, 2005.
  • 22
    AUERBACH, cit.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    05 Nov 2014
  • Aceito
    15 Mar 2015
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