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O Humanitismo em Machado: Entre Spinoza, Voltaire e Leopardi

Humanitism in Machado: Between Spinoza, Voltaire and Leopardi

Resumo

O entendimento, por parte de Voltaire, das ideias de Spinoza sobre Deus foi distorcido por atribuições errôneas e desconhecimento. Baseando-se no famoso artigo de Bayle, sobre o filósofo, Voltaire constrói uma caricatura polêmica que repete em vários lugares de sua obra e correspondência envolvendo a ideia de Deus, da substância única e da Natureza. Nessa caricatura, no entanto, não seria difícil reconhecer a filosofia humanitista de Quincas Borba e o delírio de Brás Cubas. Por outro lado, nessa mesma confluência, Leopardi também fornece a Machado elementos de ligação entre Spinoza e Voltaire. Machado, entretanto, refrata o debate filosófico acrescentando-lhe elementos que o desestabilizam. Seria negar à Natureza seu mandado de renovação da espécie o grande trunfo positivo no capítulo de negativas da vida individual humana?

Humanitismo; Spinoza; Voltaire; Leopardi; teísmo; ateísmo

Abstract

Voltaire's understanding of Spinoza's ideas was distorted by erroneous attributions and a shallow understanding of the philosopher's idea of God, Nature, and Monism. Voltaire based his bias on the famous article by Bayle and on his own theism. As such, Voltaire built a polemical caricature of Spinoza's ideas that gets repeated in his works and correspondence. In this caricature, however, it would not be difficult to recognize Quincas Borba's Humanitism. One would also recognize elements in Brás Cubas's delirium. On the other hand, there is a convergence of these same ideas in Leopardi, who will also furnish Machado with another prism on how to engage Spinoza and Voltaire. Machado, however refracts the debate by undermining, rearranging, and introducing new elements in it. Would it be upsetting to Nature to deny it its own mandate: the renewal of the species? In the "chapter of negatives," would this denial be the only positive action allowed an Individual?

Humanitism; Spinoza; Voltaire; Leopardi; theism; atheism

La sagesse n’est pas la méditation de la mort, mais de la vie.

Spinoza (IV, 67)

Volto ao tema do Humanitismo, agora o examinando a partir de dois contextos aparentemente disjuntos mas que em realidade são complementares e iluminadores. Voltaire, desde seu viés teísta, na carta sobre Spinoza (Carta 10) ao príncipe de Brunswick1 1 Esta carta faz parte da coleção destinada ao príncipe de Brunswick. Lettres à S. A. Mrg Le Prince de *** sur Rabelais et sur d’autres auteurs accusés d’avoir mal parlé de la réligion chrétienne (VOLTAIRE, Mélanges). critica o filósofo da seguinte maneira: se, com efeito, Spinoza admitisse um Deus, este teria que ser ao mesmo tempo matéria e pensamento. Retomando a crítica de Bayle,2 2 BAYLE, Spinoza. Voltaire salienta que Deus não pode ser "ao mesmo tempo agente e paciente, causa e sujeito, fazendo o mal e o sofrendo, amando-se e odiando-se a si próprio; matando-se, comendo-se [...] pois, segundo Spinoza, os que dizem: Os alemães mataram 10 mil turcos, falam mal e falsamente; eles deveriam dizer: Deus, modificado em 10 mil alemães, matou a Deus, modificado em dez mil turcos".3 3 O trecho completo da carta se lê: "Il est absurde, como Bayle l’a très bien prouvé, de supposer que Dieu soit à la fois agent et patient, cause et sujet, faisant le mal et le souffrant; s’aimant, et se haïssant lui-même; se tuant, se mangeant. Un bon esprit, ajoute Bayle, aimerait mieux cultiver la terre avec les dents et les ongles que de cultiver une hypothèse aussi choquante et aussi absurde: car, selon Spinoza, ceux qui disent: Les Allemands ont tué dix mille Turcs, parlent mal et faussement; ils doivent dire: Dieu, modifié en 10 mille Allemands, a tué Dieu, modifié en 10 mille Turcs" (VOLTAIRE, Mélanges, p. 1222).

Voltaire, então, argumenta que Bayle estaria certo se fosse o caso de Spinoza reconhecer um Deus, mas ocorre que ele assim não o faz, e que apenas se serve "desse nome sagrado" para não assustar demasiadamente os seres humanos. Como Descartes, também Spinoza abusa do termo Deus.

Voltaire prossegue atacando a noção, que considera "incompreensível e antifísica", de que tudo é pleno e de que há apenas uma substância, apenas "um só poder que raciocina em todos os homens, sente e se lembra em todos os animais, faísca no fogo, corre nas águas, rola nos ventos, ruge no trovão, vegeta na terra, estende-se em todo o espaço".4 4 "Il s’est imaginé qu’il ne peut exister qu’une seule substance, un seul pouvoir qui raisonne dans les hommes, sent et se souvient dans les animaux, étincelle dans le feu, coule dans les eaux, roule dans le vents, gronde dans le tonnerre, végète sur la terre, est étendu dans tout l’espace" (Ibidem). Compare-se com a proposição de Spinoza:0 "Il n’y a dans l’entendement divin d’autre substance ni d’autres attributs que ceux qui existent formellement dans la Nature" (SPINOZA, Œuvres de Spinoza, p. 53).

E completa: "Segundo ele, tudo é necessário, tudo é eterno; a criação é impossível; [não há] nenhum desígnio na estrutura do universo, na permanência das espécies, e na sucessão dos indivíduos".5 5 VOLTAIRE, Mélanges, p. 1222.

Para Voltaire, os pontos principais de sua crítica a Spinoza recaem na questão da imanência, na ignorância da física e no "abuso mais monstruoso da metafísica".6 6 Ibidem.

Em seu teísmo,7 7 O teísmo de Voltaire, embora não faça parte direta da presente discussão, encaixa-se dentro do espírito de tolerância do filósofo. Na mesma carta, Voltaire envereda pela questão moral do ateísmo, e sustenta que o teísmo, "que perde, hoje em dia, tantas almas, não pode jamais fazer mal nem à paz dos Estados, nem à doçura da sociedade. A controvérsia fez escorrer o sangue em toda parte, e o teísmo o estancou" (1223). Vê-se aqui como, para Voltaire, Deus é um conceito filosófico. Sua transcendência não o faz interferir diretamente no destino individual do ser humano, sendo distante do Deus pessoal defendido pelos religiosos e fonte de intolerância e violência entre a cristandade devido à representação e ao caráter que lhe dão as variadas versões do cristianismo. Por isso mesmo, Voltaire criticava o culto a Cristo como Deus. Voltaire defende a transcendência divina, sendo que Deus cria a natureza mas mantém-se fora dela, embora deixe nela seus traços: "quanto mais se conhece a natureza, mais se adora seu autor".8 8 VOLTAIRE, Mélanges, p. 1223. A imanência spinozista implica um solipsismo, em que Deus é ao mesmo tempo causa e sujeito, agente e paciente.

Esse mal-entendido vem de que, como explica Émile Bréhier, segundo Spinoza,

[a] substância única e a inteligibilidade universal são uma só com a condição de que a relação da substância com seus atributos não seja simplesmente uma simples relação de sujeito e predicado, mas que a substância individual seja a razão que dá conta da existência dos modos em cada atributo. Há em todos os atributos, a despeito de suas diferenças de essência, um fundo idêntico.9 9 BRÉHIER, Histoire de la philosophie, p. 151.

Isso não quer dizer que haja em Spinoza uma essência integral primeira. A natureza de Deus deve ser captada geneticamente como a síntese ou união da infinidade de seus atributos.10 10 Ver: LESPADE, Substance et infini chez Spinoza, p. 319-347. E citando Spinoza: "Je conçois, nous dit Spinoza, l’unité de la substance comme établissant une liaison plus étroite de chacune des parties avec son tout" (Lettre XXXVII à Oldenburg. Ap. IV, p. 237). Portanto, "Deus não é uma unidade de simplicidade, mas uma unidade complexa e composta: a da união da infinidade de essências exprimidas por seus atributos" (LESPADE, 321).

Esta possibilidade, em Spinoza, vem do estudo da geometria cartesiana. A inteligibilidade universal implica que a substância seja "antes de mais nada a raiz da ordem única que se desdobra em cada atributo".11 11 BRÉHIER, cit., p. 152.

Vê-se que a filosofia de Spinoza oscila em conciliar a ideia cristã de um Deus criador que produz coisas a partir de uma vontade. Tudo isso não passa de fábula antropomórfica. "Deus não é diferente do que os filósofos chamam de natureza. (Deus sive natura)", escreve Spinoza.12 12 Ibidem. Por outro lado, como indica Brochard, em "Le Dieu de Spinoza", a tradição grega não atribui ao conceito de Deus o de infinito. Para os gregos, o infinito é uma forma imperfeita de existência. Para Platão, Deus é a Ideia do Bem, para Aristóteles, um pensamento que se pensa a si mesmo, e para os Estoicos, um logos imanente que trabalha para realizar o Belo. Para a tradição judaica, entretanto, o mundo é obra de Deus, que o cria ex nihilo a partir de sua vontade. Deus é, portanto uma força, um poder e uma vontade. Para Brochard, Spinoza, ao atribuir a Deus a infinitude – provavelmente a partir de Giordano Bruno, acaba unindo duas tradições. O Deus de Spinoza é uma vontade unida a uma inteligência. BROCHARD, Le Dieu de Spinoza, p. 129-163.

O antropomorfismo da fábula cristã, ao qual se refere Spinoza, nos põe no centro de uma das questões de base em Memórias póstumas de Brás Cubas. Um elo que une Pandora à filosofia Humanitista de Quincas Borba, mas que também arrasta para o centro da discussão a posição do memorialista Brás Cubas.

Tomemos o episódio da borboleta preta, que, ao entrar pela janela do quarto e deparar-se com nossa personagem, deduz que está diante de seu criador e, não contente em propiciar um agrado ao Filho, apela também ao retrato do Pai, imagem, ícone e símbolo do Criador. E Brás a mata, tal como Pandora o eliminará.13 13 "[a borboleta] descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo e viu que tinha […] um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: ‘Este é o inventor das borboletas’. A ideia subjugou-a, aterrou-a, mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa […]. Quando enxotada por mim […] viu dali o retrato de meu pai e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia." ASSIS, Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 552, grifos meus.

Não podemos deixar de ver nesse episódio uma fábula antropomórfica, ainda mais irônica porque deslocada para as deduções de um inseto voador que borboleteia pousando aqui e ali, reproduzindo a frivolidade humana.14 14 A borboleta é também o símbolo tradicional da alma humana, e vemos que, a cada nova associação, uma hierarquia de ironias se alastra e se expande. Seria a alma humana frívola, temerosa e criadora de fábulas tal como a borboleta? Assim, a borboleta toma o lugar do ser humano, que cria seu criador à sua própria imagem e semelhança – e não ao contrário, como descreve o Genesis.15 15 Em outro momento provocador quanto à fabulação e à ficcionalidade das escrituras, Machado põe Brás comparando suas Memórias com o Pentateuco: "Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. […] duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor. […] Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco" (p. 513). Como se vê, assim como as Memórias, o Pentateuco também não é senão literatura.

Interrogar-se simplesmente se Machado leu Spinoza, mesmo que em sua biblioteca constassem as Obras completas do autor,16 16 A indicação das Œuvres complètes de Spinoza, Paris, Librairie Hachette et Cie, 1873, vol. 1, e 1872, vol. 2, encontra-se em A Biblioteca de Machado de Assis, organizada por José Luis Jobim. é inútil. Não se trata de nos certificarmos se, profunda ou superficialmente, o autor se debruçou sobre a questão da imanência spinozista; ideias em filosofia voam como borboletas, e pousam aqui e ali.

Na mesma biblioteca estavam também dois volumes de Cartas escolhidas de Voltaire,17 17 A indicação dos dois volumes de Voltaire: Lettres choisies de Voltaire par Louis Moland. Paris, Garnier, 1876, encontra-se em A Biblioteca de Machado de Assis, cit. mas consultando a edição de 1876 da Garnier, organizada por Louis Moland, que é a edição encontrada na biblioteca de Machado, constata-se que a carta supracitada, dirigida ao príncipe de Brunswick, não está ali reproduzida.

Isso não necessariamente representa um problema, pois Voltaire repetia-se, e em vários outros textos18 18 Por exemplo, em sua "Ode sur le fanatisme", de 1732, no "Poème sur la loi naturelle", de 1752, em "Questions sur les miracles", de 1765, e sobretudo em "Le Philosophe ignorant" (cap. XXIV), de 1766, dentre outros. refere-se a Spinoza, quase sempre lhe elogiando a vida reta e moral, embora depreciando seu suposto ateísmo.19 19 Voltaire insistia, sobretudo porque via Spinoza como ateu, em afirmar que, a despeito de seu ateísmo, o filósofo era irrepreensível em sua vida moral. Gradativamente, a denominação de libertins, dada aos filósofos materialistas e ateus, acabou adquirindo conotações de imoralidade ou amoralidade, sobretudo sexual, como até hoje indica o termo libertino. Voltaire, como se afirma neste artigo, sustentava que os ateístas não possuíam um freio moral, mas fazia exceção a Spinoza. Esta insistência de Voltaire, sempre que escreve sobre Spinoza, parece conter algo de má-fé. Como se, ao enfatizar publicamente a vida moral de Spinoza, Voltaire exigisse de seu interlocutor ou leitor o reconhecimento do quanto Monsieur Voltaire era magnânimo, justo e imparcial, mesmo ao criticar um mero ateu. Paul Hazard comenta que no Traité de l’athéisme, por exemplo, Voltaire repete a crítica de que Spinoza usou o nome Deus para não assustar os homens, e que a ideia de haver uma só substância, um só poder que raciocina em todos os homens e sente em todos os animais é insustentável.20 20 HAZARD. Voltaire et Spinoza, p. 355.

Também no Le Philosophe ignorant, no capítulo sobre Spinoza, XXIV, Voltaire volta à carga, inclusive com mais veemência, comentando que Bayle, em vez de partes, deveria ter focalizado mais na palavra modalidade, que "Spinoza emprega sempre. Mas é igualmente impertinente, se não me engano, que o excremento de um animal seja uma modalidade ou uma parte do Ser supremo".21 21 VOLTAIRE, Mélanges, p. 898. "Peut-être Bayle devrait-il s’en tenir au mot de modalités et non pas de parties, puisque c’est ce mot de modalités que Spinoza emploie toujours. Mais il est également impertinent, si je ne me trompe, que l’excrément d’un animal soit une modalité ou une partie de l’Être suprême."

Outro ponto de discórdia diz respeito à questão do entendimento. Para Spinoza, a alma só pode passar ideias mutiladas e confusas.22 22 Evidentemente, inspirando-se aqui na alegoria da Caverna de Platão, Republica, 514a-520a; e provavelmente em São Paulo, Coríntios, 13:12. Voltaire, em sua confiança na Razão humana, sustenta o oposto: basta ver a capacidade de entendimento e inteligência de que somos dotados para ver nela um reflexo da inteligência divina. Em carta a madame du Deffand, ele escreve: "este Spinoza admitia, junto com toda a Antiguidade, uma inteligência universal; e é bem necessário que haja uma, pois que nós temos inteligência universal".23 23 "Ce Spinoza admettait, avec toute l’antiquité, une intelligence universelle; et il faut bien qu’il y en ait une, puisque nous avons de l’intelligence universelle." Carta 290, em VICHY-CHAMROND, Correspondance complète de la Marquise du Deffand, p. 560, grifo meu. Evidentemente sua ironia esconde dois entendimentos opostos quanto a essa inteligência universal: imanente, no caso de Spinoza, transcendente, na concepção de Voltaire. E é a imanência dessa inteligência e substância que convida Voltaire ao sarcasmo.

Inteligência universal, substância única, "Deus, modificado em 10 mil alemães, mat[ando] a Deus, modificado em 10 mil turcos", convenhamos, são noções muito próximas da filosofia de Quincas Borba. Como isso vem ao caso, em se tratando da imaginação machadiana? Ela podia transformar uma mera noção colhida aqui ou ali, talvez casualmente, talvez profundamente, em matéria literária de alta penetração.

É nessa instigante possibilidade, que entrelaça os fios das tramas as mais aparentemente distantes, que vemos mais claramente a imaginação literária de Machado. Podemos mesmo arriscar que há, num sentido lato, um trabalho metafórico que possibilita tal entrelaçamento. Entendendo metáfora no sentido que a ela lhe dá Ernst Cassirer em Language and Myth, quando define a "metáfora radical". Nela, Cassirer vê um papel fundador da estrutura mesma da linguagem e do mito, pois, como ele indica, essa metáfora não é mera transferência (metaphorá), mas uma transição para uma categoria diferente: μεταβασις εις αλλο γενος.24 24 CASSIRER, Language and Myth, p. 88. No caso presente, podemos inferir que a transição se dá do campo da filosofia para o da literatura satírica. A fertilização é transposta para um genos completamente diverso, e, nessa refração, acaba refundando um leque de significações que necessariamente passam a refletir no campo filosófico original.

Isso nos introduz diretamente no foco deste artigo: a carta de Voltaire intriga pelo muito que contém, em sua crítica a Spinoza, de semelhança com o Humanitismo de Quincas Borba. Diríamos até que, para Voltaire, Spinoza é Quincas Borba:

Nota que eu não faço do homem um simples veículo de Humanitas; não, ele é ao mesmo tempo veículo, cocheiro e passageiro; ele é o próprio Humanitas reduzido [...]. Assim, por exemplo, o algoz que executa o condenado [...] substancialmente é Humanitas que corrige em Humanitas uma infração da lei de Humanitas. O mesmo direi do indivíduo que estripa a outro; é uma manifestação da força de Humanitas.25 25 ASSIS, Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 615.

Em outro lugar,26 26 No capítulo 3, "Meros fantoches no drama da harmonia universal", de Variações sob a mesma luz. Machado de Assis repensado. busquei analisar a filosofia humanitista baseada nos conceitos aventados pela Teoria evolucionária: a luta da espécie para continuar a existir27 27 A expressão luta pela vida, tendo sido apropriada por Spencer para justificar seu Darwinismo Social, foi repudiada por Darwin, que já a partir da segunda edição de Origin of Species, fala de luta pela existência. Ou seja, a espécie, a partir de minúsculas variações que ocorrem em indivíduos, adquire ou não uma maior ou menor adaptabilidade. Se a adaptação favorece o indivíduo, ele passará adiante tal vantagem e a espécie sobreviverá. Machado, como já indiquei em meu livro, usa a expressão em inglês, struggle for life no sentido spenceriano. – e para tanto, a necessidade da morte individual; e a luta da consciência individual contra seu aniquilamento. O diálogo entre Brás e Pandora capta com concisão excepcional esse conflito:

– [...] eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.

Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale, [...] pareceu-me sentir a decomposição súbita de mim mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.

– Pobre minuto! – exclamou. – Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? [...] Que mais queres tu, sublime idiota?

– Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, senão tu? E, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me?

– Por que já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste.28 28 ASSIS, Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 522.

Pandora, entretanto, em sua impecável e inexorável explanação, prossegue o argumento contaminando-o, por assim dizer, com uma explicação extrínseca, e que foge à regra do argumento que até aqui desenvolve. Ela diz: "A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro, tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha".29 29 Ibidem. Ora, a questão entre ela e Brás exemplifica (aqui no sentido forte dos exempla filosóficos e morais da Antiguidade) o problema do indivíduo diante da vida e da morte. Pandora, essa personificação que ainda se mantém enquanto personificação quer a chamemos de Natureza, ou Deusa, ou qualquer outra denominação, responde pela continuidade tanto da vida quanto da morte. Estranha antropomorfização.

Essa relação indica que o ser humano está subsumido à continuidade da espécie, dela fazendo parte generativa e intrínseca. Ora, a introdução de outro nódulo de exemplum, o da onça e o do novilho, é argumento que foge à espécie. A onça não equivale à Natureza e Brás ao novilho. A morte do novilho é circunstancial e pode ser evitada. A morte enquanto mandado da espécie, não.

Infelizmente, a confluência desses dois argumentos incongruentes por parte de Pandora passa despercebida para Brás, mas é mais um exemplum da tremenda ironia machadiana, que detona assim dois tiros de canhão contra a complacência do leitor acomodado: um argumento pela espécie; outro, de quebra, pela luta pela sobrevivência – que era assim que a expressão foi entendida: não por Darwin, mas por Spencer – cujos livros constavam em massa da biblioteca machadiana.

A mesma falácia havia sido já anunciada acima, quando Pandora pergunta a Brás para que querer prosseguir vivendo. "Para devorar e seres devorado depois?".30 30 Idem, p. 322. Ora, esta é a noção evolucionista de Spencer, e não a visão evolucionária de Darwin. Os que devoram são os mais "fortes" e os devorados os mais "fracos". Daí a luta pela vida, que, como apontamos abaixo em nota, Machado usaria algumas vezes, repetindo a expressão em inglês: struggle for life.

Em Quincas Borba, a parábola do campo de batatas descreve uma situação darwiniana em termos de spencerismo (darwinismo social): "ao vencedor, as batatas". Em seu sentido literal, a alegoria de Quincas descreve a relação humana com o ambiente para dali extrair recursos de sobrevivência. Os recursos são escassos, daí a luta pelo campo de batatas.

[...] rigorosamente não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição de sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum [...]. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição [...]. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos [...] ao vencedor, as batatas.31 31 ASSIS, Quincas Borba, p. 648-9.

Entretanto, o pastiche da luta pela vida e pela sobrevivência ancora-se no fundamento da substância única. Ao final, não importa que uma ou outra tribo sobreviva porque é Humanitas que luta com Humanitas e sobrevive. É, então, para a provocadora questão dessa imanência, que tanto incomodou Voltaire, que busco chamar a atenção neste artigo. Vê-se que a questão filosófica abraça a evolucionista.

Gostaria, portanto, de entrelaçar ainda outros fios aos que anteriormente lancei nesse tear. Como passamos de Pandora ao Humanitismo? E tendo percebido quais as semelhanças, de onde mais vem a filosofia de Quincas Borba?

É fácil falar de pastiche e passar adiante. Mas como dar conta das questões essenciais do livro – que são todas filosóficas – sem tocar no Humanismo tanto de Pandora quanto de Quincas Borba?

Eis algumas delas: Pode haver algum apanhado geral da experiência individual humana que não seja póstumo? Qual o valor da consciência individual e de sua experiência diante da morte? Por que sofremos? Por que perdemos e somos perdidos?

A trama que me interessa seguir aqui reúne-se num cepo comum: Spinoza, Voltaire e Leopardi.

O Spinoza de Voltaire

A partir de 1765, Voltaire já com setenta e um anos realmente se engaja numa leitura de Spinoza. Antes dessa data, Voltaire citava o filósofo como exemplo de ateísmo que, todavia, havia conseguido manter-se moral, e o exaltava como exemplo de virtude: "Eh, bem! Lamentemos a cegueira de Benedito32 32 Benedito: Foi só mais tarde que Voltaire descobriu que o B. vinha de Baruch e iria a partir de então, sempre que possível, agarrar-se ao detalhe de que seria "errado" escrever Benedictus, Benoît, Benedict, pois Spinoza "não havia sido batizado" depois que fora expulso da comunidade judaica de Amsterdã. E que de "bendito" não tinha nada. Este apego pueril a detalhes que não passam de projeções ideológicas – aqui no caso o problema judaico em Voltaire – mostram uma faceta não desprezível da personalidade desta indubitável figura do Iluminismo. Spinoza, e imitemos sua moral: sendo mais esclarecidos que ele, sejamos, se possível, tão virtuosos quanto".33 33 Aqui citado por HAZARD, cit., p. 353. Como aponta Pierre Hazard, a refutação que faz Voltaire quanto à noção do pleno, atribuindo-a a Bayle, é, na verdade, do próprio Voltaire.34 34 Idem, p. 354. Émile Bréhier também indica como Bayle em seu Dictionnaire acusa Spinoza como "o primeiro que produziu um sistema de ateísmo" ["le premier qui ait réduit en système l’athéisme"]. Sua asserção, ali, de que não se pode dizer que "Les allemands ont tué 10 mille Turcs, mas que 'Dieu, modifié en Allemands a tué Dieu modifié en 10 mille Turcs'", que citamos acima, passou inteiramente para Voltaire e daí até para a Encyclopédie (BRÉHIER, Histoire de la philosophie, vol. 2, p. 173). Além disso, Voltaire jamais leu a Ética. Toda a sua refutação vem do Tractatus theologico-politicus, e como observa Hazard: "Voltaire é muito rápido, muito apressado, muito superficial para deter-se em suas partes [i.e. na filosofia de Spinoza] mais abstrusas e menos facilmente penetráveis".35 35 HAZARD, cit., p. 360. E ainda: "Era deísta, e os argumentos que vinham abalar seu deísmo, ele os rechaçava".36 36 Idem, p. 362.

A partir de 1760, sua crítica tornar-se-á cada vez mais gritante e fixada em denunciar o filósofo. Como conclui Hazard, "Haveria dois seres na história dos esforços do espírito mais profundamente opostos? De um lado, o Senhor de Ferney, do outro, o "pobre judeu exilado, vivendo com trezentos florins de renda na obscuridade a mais profunda",37 37 Esta citação vem do próprio Voltaire em Questions sur l'Encyclopédie par les amateurs, artigo "Dieu". Seção II, Examen de Spinoza, tomo 2, que na Colection complète des oeuvres de M. de Voltaire consta do tomo 22, Genève, 1774, p. 405-410. " Le pauvre Juif dépaysé, vivant avec trois cents florins de rente dans l’obscurité la plus profonde." contente em comer o seu mingau e polir suas lentes: nada mais que o infinito".38 38 HAZARD, cit., p. 364.

De fato, Voltaire não podia conciliar o pensamento de Spinoza com suas próprias ideias. O que os afastava não era apenas a questão envolvendo a ideia de Deus, mas o racionalismo literalista de Voltaire, que havia passado de metodologia a ideologia. Seus ataques, por exemplo, ao cristianismo, comparados às críticas de Diderot e D’Alembert, que, estes sim, eram ateus, são pueris porque baseados num literalismo cru, em nome de uma suposta racionalidade. Além do mais, a obsessão com que Voltaire repete seus toscos argumentos demonstra talvez uma sobredeterminação que vai além do debate filosófico.39 39 Vejamos este exemplo dentre tantos outros : "Alors un petit Juif, au long nez, au tenti blême,/ pauvre, mais satisfait, pensif et retiré,/ Esprit subtil et creux, moins lu que célébré,/ Caché sous le manteau de Descartes, son maître,/ Marchant à pas comptées, s’approche du Grand Être./ 'Pardonnez-moi, dit-til en lui parlant tout bas ;/ Mais je pense, entre nous, que vous n’existez pas./ Je crois l’avoir prouvé par mes mathématiques./ J’ai de plats écolier et de mauvais critiques: […]'". VOLTAIRE, Questions sur l’Encyclopédie, seção VI, "Les Systèmes", cit.

De tudo isso, é interessante aventar uma possibilidade: ao transformar a unidade do Deus spinozista, que é complexa, em uma unidade simplista, Voltaire fornece o caminho para Quincas Borba pensar sua filosofia humanitista. É como se Machado tomasse a simplificação voltairiana como a filosofia modelo de Quincas.

Ao tentar explicar o Humanitismo ao simplório Rubião, Quincas Borba assevera: "o bom Quincas Borba [aqui o cachorro] está olhando para mim? Não é ele, é Humanitas…".40 40 ASSIS, Quincas Borba, p. 648.

Rubião, intrigado [como o leitor, aliás], insiste: "– Mas que Humanitas é esse?",41 41 Idem, p. 648. e Quincas responde:

– Humanitas é o princípio. Há nas cousas todas certa substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível – ou, para usar a linguagem do grande Camões:

Uma verdade que nas cousas anda,

Que mora no visíbil e invisíbil.

Pois essa substância ou verdade, esse principio indestrutível é que é Humanitas. Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o homem. Vais entendendo?

– Pouco […].42 42 Ibidem.

Ou: "Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias".43 43 Idem, p. 649.

Encontra-se aqui claramente o que estamos propondo neste artigo: o Spinoza de Voltaire é a explicação estapafúrdia de Quincas. Isto, porém, não pode ser tomado como uma crítica a Spinoza. Haveria então, nesse Machado, um lampejo satírico contra o próprio Voltaire?

O que se pode afirmar com certeza é que, depois de ler Machado, já não podemos mais ler a crítica de Voltaire da mesma maneira. A ironia machadiana que desestabiliza as asserções filosóficas de Quincas também desestabiliza o contexto sério em que Voltaire afirma sua crítica. Ao querer transformar Spinoza em Quincas Borba, é Voltaire quem propala o Humanitismo.

Além do mais, o pastiche introduzido por Machado, ao citar Camões, finca suas raízes ainda mais fundo; remete ao platonismo renascentista: a verdade que habita o mundo invisível e perfeito do topos ouranous, mas que permeia o mundo sublunar e imperfeito do visível.

Na verdade, toda a linhagem do Idealismo em filosofia, de Platão a Hegel, acaba sendo atingida pelo Humanitismo de Quincas.

Porém, devemos refrear a tentação de entender Machado como um simples railleur de toda a filosofia. O que a sátira e a ironia machadianas no assunto Humanitismo revelam é mais claramente um ataque às pretensões individuais, sejam de filósofos ou de autoproclamados pensadores que julgam poder abarcar num pensamento sistematizador, ou numa ideologia única, toda a humanidade.

Essa tentação totalizante, como se sabe, levará Quincas à loucura. Ao contrário de Sócrates, que sabia o quanto não sabia, os Quincas Borbas da história humana satisfazem-se com suas próprias explicações (que nada explicam).

O contraste entre Razão e Natureza

O diálogo entre Brás e Pandora, como argumentamos, é a parábola – aqui entendida no sentido de metáfora extensa – de uma aporia. Por um lado, a necessidade de renovação, ditada pela espécie (Natureza), o que implica a morte do indivíduo; e por outro, o apego do indivíduo à vida, que também faz parte do ditame da Natureza, pois sem esse "amor à vida" a espécie também perece.

A tentativa de solução racional do dilema, pace Voltaire, como vimos com Quincas, leva à loucura. Mas como se sai Brás nesse diálogo? Já vimos que seu embate com Pandora é vão; e que perde uma preciosa oportunidade de criticar-lhe a falácia que reside em parte de seu argumento.

Mas isto não é tudo. Vejamos, para fins de comparação, o que nos diz Leopardi, em uma de suas Operette morali.

No Dialogo della Natura e di un islandese44 44 LEOPARDI, Dialogo della Natura e di un islandese. o islandês em questão, ao encontrar-se num lugar ermo, passando o Cabo da Boa Esperança onde Vasco da Gama se encontrou com o gigante Adamastor, viu de longe um busto grandíssimo. Ao aproximar-se, viu que era a figura imensa de uma mulher sentada. Segue-se um diálogo entre os dois, visto que a mulher é a própria figura da Natureza. Não sabendo de quem se trata, o islandês lhe diz que viaja para fugir da Natureza, ao que ela retruca: "Assim foge o esquilo da cascavel até que lhe caia na goela dela mesma. Sou aquela de quem foges".45 45 "Così fugge lo scoiattolo dal serpente a sonaglio, finché gli cade in gola da se medesimo. Io sono quella che tu fuggi." (Idem, p. 91). Ao ser perguntado por que foge, o islandês cai numa longa dissertação a respeito da imperfeição da vida humana, da impossibilidade do viver sem sofrimento, luta, doença, necessidade, privação, dor. A Natureza lhe responde: "Imaginavas, talvez, que o mundo fosse feito por tua causa? Ora saiba que [...] nas ordens e nas minhas operações [...] sempre tive e tenho outra intenção que a da felicidade ou infelicidade dos homens [...]. E finalmente, se até mesmo me acontecesse de extinguir toda a vossa espécie, nem mesmo me aperceberia".46 46 "Immaginavi tu forse che il mondo fosse fatto per causa vostra? Ora sappi che negli ordine e nelle operazioni mie, sempre ebbi ed ho l’intenzione a tutt’altro che alla felicità degli uomini, o all’infelicità. E finalmente, se anche mi avvenisse di estinguere tutta la vostra specie, io non me ne avvedrei." (Idem, p. 96).

A isso, o islandês replica: "Alguma vez te pedi que me pusesses neste universo? Ou nele me intrometi violentamente e contra tua vontade?";47 47 Ibidem. para ouvir da Natureza esta explicação: "Demonstras não ter entendido que a vida deste universo é um perpétuo circuito de produção e de destruição, ligadas ambas entre si de maneira que cada uma sirva continuamente à outra e à conservação do mundo, o qual sempre que cessasse ou uma ou outra acabaria em dissolução".48 48 Islandês: "t’ho io forse pregato di pormi in questo universo? O mi vi sono intromesso violentemente, e contro tua voglia?". E responde a Natureza: "Tu mostri non aver posto mente che la vita di quest’universo è un perpetuo circuito di produzione e distruzione, collegate ambedue tra sé di maniera che ciascheduna serve continuamente all’altra, ed alla conservazione del mondo, il quale sempre che cessasse o l’una o l’altra di loro, verrebbe parimente in dissoluzione" (Ibidem).

A parábola termina com o islandês sendo comido por dois leões famintos, que mal haviam reunido forças para devorá-lo. Mas, prossegue o texto, há controvérsia quanto a esse final, pois alguns negam o fato e contam que um forte vento sobreveio enquanto o islandês falava estendendo-o por terra, e sobre ele elevou-se um "soberbíssimo mausoléu de areia, sob o qual, ressecado perfeitamente e transformado numa bela múmia, foi, depois, reencontrado por certos viajantes e colocado no museu de não sei qual cidade da Europa".49 49 "Ma sono alcuni che negano questo caso, e narrano che un fierissimo vento, levatosi mentre che l’islandese parlava, lo stese a terra, e sopra gli edificò un superbissimo mausoleo di sabbia; sotto il quale colui diseccato perfettamente, e divenuto una bella mummia, fu poi ritrovato da certi viaggiatori, e collocato nel museo di non so quale città di Europa. " (Idem, p. 97).

Alguns fios em Leopardi alcançam a tecer o delírio de Brás:50 50 Otto Maria Carpeaux se pergunta em seu pioneiro comentário intitulado "Uma fonte da filosofia de Machado de Assis" se o autor teria lido Leopardi. Sabemos que sim. Constavam de sua biblioteca as Opere di Giacomo Leopardi. Canti, Frammenti, Operette morali. Leipzig, F. A. Brockhaus, 1877. O artigo de Carpeaux onde explora a conexão entre Machado e Leopardi se encontra em Respostas e perguntas. no diálogo entre o islandês e a Natureza, a justificativa para a presença humana no grande esquema da vida se dá desde o ponto de vista da finalidade humana. O para quê se vive. Segundo o ponto de vista do islandês, a vida não pode ser apenas sofrimento, dor, doença, privação. Daí a necessidade do mundo moral, que dê sentido à vida humana intrinsecamente.

Esse ponto de vista, como sabemos, e como argumentei em outra parte,51 51 V. cap. 3, passim. Variações sob a mesma luz. Machado de Assis repensado, cit. é exemplificado, em Memórias póstumas de Brás Cubas, pela história de d. Plácida, e a pergunta que ela faria aos "autores de seus dias":

Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam. – Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia.52 52 ASSIS, Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 586, grifo meu.

Da mesma maneira que a filosofia totalizadora de Quincas não responde pelo sentido da vida, constituindo-se numa paródia, fruto de um entendimento parcial do funcionamento do mundo, a tentativa de compreensão pelo lado racional também não atinge o cerne da questão. Como entenderia Voltaire a justificativa da Natureza em Leopardi, com a queixa do islandês? E a de D. Plácida?

Como vimos acima, uma das mais contundentes críticas de Voltaire a Spinoza é a da eliminação do desígnio divino. Mesmo no teísmo voltairiano, há desígnio na continuidade das espécies e na existência de cada indivíduo. Para ele, Deus era a garantia desse tipo de contrato. Não há contradição entre Natureza e Indivíduo. Ao morrer, o indivíduo acaba completamente, e o que importa é como vive. A sensibilidade romântica fará do ser-para-a-morte um dos dramas centrais. A contradição entre Natureza e Indivíduo, tal como a encontramos em Machado e Leopardi, tem algo comum; nesses autores, a dissonância entre os desígnios da Natureza e os desejos do indivíduo anima o drama humano de maneira vital e total.53 53 Devo a Hélio Guimarães a referência a uma carta de Machado a Magalhães de Azeredo, de 1898, em que o autor escreve: "Leopardi é um dos santos da minha igreja pelos versos, pela filosofia, e pode ser que por alguma afinação moral; é provável que também eu tenha a minha corcundinha". Em Machado ainda, tal dissonância vem matizada por Darwin e Spencer, e tanto melhor, pois responde à fábula da continuidade das espécies, que para Voltaire era tida como certa, pois garantida pela inteligência transcendente de Deus. Se há desígnio, então como se explica, teológica e moralmente, que Deus extermine algumas espécies? O grito levantado pelo islandês alcança uma Natureza que lhe responde com a perpetuidade de um ciclo: o da produção e da destruição. Assim também era o Humanitas de Quincas.

O gênio de Voltaire foi mais feliz em Candide, em que o grupo de amigos na Turquia, depois de visitar o dervixe e perguntar-lhe, não sobre o mecanismo harmonioso do universo, onde tudo se faz pelo melhor – pastiche da filosofia de Leibniz, à qual ainda se agarrava Pangloss –, mas por que o ser humano é o que é, e por que há tanto mal na Terra, o dervixe lhes responde: "Que importa [...] que haja mal ou bem? Quando sua alteza envia um navio ao Egito, importa-lhe se os camundongos no barco estejam à vontade ou não?".

Pangloss insiste e diz que gostaria de "raciocinar um pouco sobre os efeitos e causas do melhor dos mundos possíveis, da origem do mal, da natureza da alma e da harmonia preestabelecida. O dervixe, a estas palavras, fechou-lhes a porta na cara".54 54 VOLTAIRE, Candide, capítulo 30, p. 44. "De quoi te mêles-tu ? lui dit le derviche; est-ce là ton affaire. […] Qu’importe, dit le derviche, qu’il y ait du mal ou du bien ? quand sa hautesse envoie un vaisseau en Égypte, s’embarrasse-t-elle si les souris qui sont dans le vaisseau sont à leur aise ou non? Que faut-il donc faire, dit Pangloss. Te taire, dit le derviche. Je me flattais, dit Pangloss, de raisonner un peu avec vous des effets et des causes, du meilleur des mondes possibles, de l’origine du mal, de la nature de l’âme, et de l’harmonie préétablie. Le derviche, à ces mots, leur ferma la porte au nez."

Ora, a posição de "sua alteza", o príncipe dono do navio, é aparentemente a mesma da Natureza, tanto em Machado quanto em Leopardi. Personificação da suprema indiferença quanto aos camundongos no navio. Porém, uma nova possibilidade se abre a partir deste impasse que não pode ser resolvida pela Razão. O próprio teísmo voltairiano acaba abrindo espaço para que tais camundongos possam expressar suas queixas existenciais e para que, ao fazê-lo, se deem conta de que há perguntas úteis e perguntas inúteis, tal como se dá conta (ou não?) o camundongo Pangloss ao ver o dervixe fechar-lhe a porta na cara.

De certa forma é a repetição do dito de que a metafísica é como o cego procurando um gato preto num quarto escuro, que não está ali.

Mas é preciso procurar, para não encontrar.

Não sabemos se Pangloss difere de Quincas Borba em sua crença de mão única; em sua necessidade de explicação do mundo; em seu prazer em ver confirmadas suas ideias a despeito de toda a evidência em contrário. Mas a tentação da substância única os "une". Brás escreve sobre Quincas que "Morreu pouco tempo depois, em minha casa, jurando e repetindo sempre que a dor era uma ilusão, e que Pangloss, o caluniado Pangloss, não era tão tolo como o supõe Voltaire".55 55 ASSIS, Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 639.

Tal substância única, porém, nada tem a ver com a de Spinoza. Tivesse Voltaire refletido mais detidamente no Deus sive Natura do filósofo, acabaria tendo que admitir que o dervixe de sua própria história lhe fecharia também a porta na cara se insistisse na fábula antropomórfica do Criador, e a fortiori, por não acreditar nela, mas achá-la necessária à preservação do mundo moral, como uma providencial folha de parreira aplicada às partes íntimas.

Como se sairia Brás Cubas diante do dervixe? Brás resolve seu conflito com Pandora simplesmente pelo viver, e sobretudo pelo ter vivido. É assim que responde ao irrespondível. O último capítulo de suas memórias contém ali todos os elementos finais de um balanço formidável do fim de uma vida.56 56 Ao comentar o materialismo tanto de Machado quanto de Leopardi, via Epicuro, Carpeaux lembra que a finalidade ética do materialismo é "apenas a ausência da dor" (CARPEAUX, "Uma fonte da filosofia de Machado de Assis", p. 7). E completa: "O ‘cântico do galo silvestre’ ensinou ao poeta [Leopardi], despertando-o do sono das ‘imagens vãs’ a seguir o seu fado ‘com ânimo forte e sereno’. O outro [Machado de Assis], quando o galo da madrugada o despertou da agonia, pôde dizer ‘A vida é boa’. Pois então, não havendo mais futuro, é boa" (Idem, p. 8). Um balanço que é completo, final, pois feito além-túmulo.

De todas as negativas, o saldo positivo foi não ter filhos: "Não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria".57 57 ASSIS, Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 639. A espécie morre com Brás? Seria este seu grande trunfo contra Pandora?

É o que também se pergunta Leopardi. No diálogo com o islandês, "a natureza é madrasta cruel, que devora selvagemente os próprios filhos num ciclo mecânico de produção e destruição", como comenta Enzo Neppi.58 58 NEPPI, Ragione, natura e filosofia nelle Operette Morali, p. 37.

Dizem pouco os que, baseados num sociologismo sobredeterminado, trivializam Brás Cubas, tomando-o meramente como um "retrato exemplar de uma classe ociosa". Pelo contrário, Brás é o símbolo da negação dessa interpretação viciosa e fácil. Para cair nessa armadilha, aliás plantada pelo próprio Brás, é preciso escamotear a eficácia da instabilidade da sátira e da ironia que são matéria estrutural de suas memórias.

Em Memórias póstumas de Brás Cubas, temos ao menos dois Brás: um, o automaton de Spinoza – nossa conhecida personagem, que se pinta pior do que realmente é. O outro, entretanto, o defunto autor, ultrapassa a limitação da extensão finita, pois escreve post mortem e, com isso, longe dos apetites e desejos; da escravidão das paixões.59 59 "Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos [...] a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência […]. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Por que, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há plateia […]. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados." (ASSIS, Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 545-6). Teria Brás finalmente perdido sua limitação – aqui no sentido que lhe dá Spinoza? O póstumo não pode comportar novas edições.

Sua operetta morale, por assim dizer, dissimula e propositadamente camufla todo o processo de formação humana que está presente em sua narrativa. Além de ser sátira, romance, memorial fictício, as Memórias são também um Bildungsroman.

Referências

  • ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas Obra completa Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2006, vol. 1
  • ASSIS, Machado de. Quincas Borba Obra completa Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, vol. 1.
  • BAYLE, Pierre. Spinoza. In: Dictionnaire historique et critique Disponível em: http://gallica.bnf.fr/
    » http://gallica.bnf.fr/
  • BRÉHIER, Émile. Histoire de la philosophie Paris: Quadrige/PUF, 2006.
  • BROCHARD, Victor. Le Dieu de Spinoza. Revue de Métaphysique et de Morale, t. 16, n. 2, Mars 1908, p. 129-163.
  • CARPEAUX, Otto Maria. Uma fonte da filosofia de Machado de Assis. In: Respostas e perguntas Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1953. Série Os Cadernos de Cultura.
  • CASSIRER, Ernst. Language and Myth New York: Dover, 1953
  • HAZARD, Paul. Voltaire et Spinoza. Modern Philology, vol. 38, fev. 1941. Chicago, University of Chicago Press.
  • JOBIM, José Luis (Org.). A biblioteca de Machado de Assis Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.
  • LEOPARDI, Giacomo. Dialogo della Natura e di un islandese. In: Operette morali Milano: Rizzoli, 1951.
  • LESPADE, Jean-Michel. Substance et infini chez Spinoza. Revue de Métaphysique et de Morale, 96e année, n. 3, Histoire de la Philosophie, Julliet-Septembre 1991.
  • NEPPI, Enzo. Ragione, natura e filosofia nelle Operette morali Italianistica: Rivista di Leterattura Italiana, vol. 34, n. 2, maggio/agosto 2005.
  • OLIVER, Élide Valarini. Variações sob a mesma luz. Machado de Assis repensado. São Paulo: Edusp/Nankin, 2012.
  • SPINOZA, Baruch. Œuvres de Spinoza Trad. e anotadas por Charles Appuhn. Paris: Garnier, 1907.
  • VICHY-CHAMROND, Marie Anne de (Marquise du Deffand). Correspondance complète de la Marquise du Deffand Paris: Plon, 1875, tomo I.
  • VOLTAIRE. Candide Disponível em: http://www.ebooksgratuits.com/blackmask/voltaire_candide.pdf
    » http://www.ebooksgratuits.com/blackmask/voltaire_candide.pdf
  • VOLTAIRE. Lettres choisies de Voltaire par Louis Moland. Paris: Garnier, 1876. [Esses dois volumes de Voltaire, disponíveis em linha, são também encontrados na biblioteca de Machado de Assis].
  • VOLTAIRE. Mélanges Paris: Bibliothèque de la Pléiade, 1961.
  • VOLTAIRE . Questions sur l’Encyclopédie, seção VI, Les Systèmes; Questions sur l’Encyclopédie par les amateurs, artigo "Dieu", seção II; Examen de Spinoza (tomo 2); Ode sur le fanatisme, 1732; Poème sur la loi naturelle, 1752; Questions sur les miracles, 1765; Le Philosophe ignorant (cap. XXIV), 1766; Traité sur l’athéisme, 1767. Œuvres complètes: https://archive.org/details/oeuvrescomplete09voltgoog)
    » https://archive.org/details/oeuvrescomplete09voltgoog
  • 1
    Esta carta faz parte da coleção destinada ao príncipe de Brunswick. Lettres à S. A. Mrg Le Prince de *** sur Rabelais et sur d’autres auteurs accusés d’avoir mal parlé de la réligion chrétienne (VOLTAIRE, Mélanges).
  • 2
    BAYLE, Spinoza.
  • 3
    O trecho completo da carta se lê: "Il est absurde, como Bayle l’a très bien prouvé, de supposer que Dieu soit à la fois agent et patient, cause et sujet, faisant le mal et le souffrant; s’aimant, et se haïssant lui-même; se tuant, se mangeant. Un bon esprit, ajoute Bayle, aimerait mieux cultiver la terre avec les dents et les ongles que de cultiver une hypothèse aussi choquante et aussi absurde: car, selon Spinoza, ceux qui disent: Les Allemands ont tué dix mille Turcs, parlent mal et faussement; ils doivent dire: Dieu, modifié en 10 mille Allemands, a tué Dieu, modifié en 10 mille Turcs" (VOLTAIRE, Mélanges, p. 1222).
  • 4
    "Il s’est imaginé qu’il ne peut exister qu’une seule substance, un seul pouvoir qui raisonne dans les hommes, sent et se souvient dans les animaux, étincelle dans le feu, coule dans les eaux, roule dans le vents, gronde dans le tonnerre, végète sur la terre, est étendu dans tout l’espace" (Ibidem). Compare-se com a proposição de Spinoza:0 "Il n’y a dans l’entendement divin d’autre substance ni d’autres attributs que ceux qui existent formellement dans la Nature" (SPINOZA, Œuvres de Spinoza, p. 53).
  • 5
    VOLTAIRE, Mélanges, p. 1222.
  • 6
    Ibidem.
  • 7
    O teísmo de Voltaire, embora não faça parte direta da presente discussão, encaixa-se dentro do espírito de tolerância do filósofo. Na mesma carta, Voltaire envereda pela questão moral do ateísmo, e sustenta que o teísmo, "que perde, hoje em dia, tantas almas, não pode jamais fazer mal nem à paz dos Estados, nem à doçura da sociedade. A controvérsia fez escorrer o sangue em toda parte, e o teísmo o estancou" (1223). Vê-se aqui como, para Voltaire, Deus é um conceito filosófico. Sua transcendência não o faz interferir diretamente no destino individual do ser humano, sendo distante do Deus pessoal defendido pelos religiosos e fonte de intolerância e violência entre a cristandade devido à representação e ao caráter que lhe dão as variadas versões do cristianismo. Por isso mesmo, Voltaire criticava o culto a Cristo como Deus.
  • 8
    VOLTAIRE, Mélanges, p. 1223.
  • 9
    BRÉHIER, Histoire de la philosophie, p. 151.
  • 10
    Ver: LESPADE, Substance et infini chez Spinoza, p. 319-347. E citando Spinoza: "Je conçois, nous dit Spinoza, l’unité de la substance comme établissant une liaison plus étroite de chacune des parties avec son tout" (Lettre XXXVII à Oldenburg. Ap. IV, p. 237). Portanto, "Deus não é uma unidade de simplicidade, mas uma unidade complexa e composta: a da união da infinidade de essências exprimidas por seus atributos" (LESPADE, 321).
  • 11
    BRÉHIER, cit., p. 152.
  • 12
    Ibidem. Por outro lado, como indica Brochard, em "Le Dieu de Spinoza", a tradição grega não atribui ao conceito de Deus o de infinito. Para os gregos, o infinito é uma forma imperfeita de existência. Para Platão, Deus é a Ideia do Bem, para Aristóteles, um pensamento que se pensa a si mesmo, e para os Estoicos, um logos imanente que trabalha para realizar o Belo. Para a tradição judaica, entretanto, o mundo é obra de Deus, que o cria ex nihilo a partir de sua vontade. Deus é, portanto uma força, um poder e uma vontade. Para Brochard, Spinoza, ao atribuir a Deus a infinitude – provavelmente a partir de Giordano Bruno, acaba unindo duas tradições. O Deus de Spinoza é uma vontade unida a uma inteligência. BROCHARD, Le Dieu de Spinoza, p. 129-163.
  • 13
    "[a borboleta] descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo e viu que tinha […] um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: ‘Este é o inventor das borboletas’. A ideia subjugou-a, aterrou-a, mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa […]. Quando enxotada por mim […] viu dali o retrato de meu pai e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia." ASSIS, Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 552, grifos meus.
  • 14
    A borboleta é também o símbolo tradicional da alma humana, e vemos que, a cada nova associação, uma hierarquia de ironias se alastra e se expande. Seria a alma humana frívola, temerosa e criadora de fábulas tal como a borboleta?
  • 15
    Em outro momento provocador quanto à fabulação e à ficcionalidade das escrituras, Machado põe Brás comparando suas Memórias com o Pentateuco: "Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. […] duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor. […] Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco" (p. 513). Como se vê, assim como as Memórias, o Pentateuco também não é senão literatura.
  • 16
    A indicação das Œuvres complètes de Spinoza, Paris, Librairie Hachette et Cie, 1873, vol. 1, e 1872, vol. 2, encontra-se em A Biblioteca de Machado de Assis, organizada por José Luis Jobim.
  • 17
    A indicação dos dois volumes de Voltaire: Lettres choisies de Voltaire par Louis Moland. Paris, Garnier, 1876, encontra-se em A Biblioteca de Machado de Assis, cit.
  • 18
    Por exemplo, em sua "Ode sur le fanatisme", de 1732, no "Poème sur la loi naturelle", de 1752, em "Questions sur les miracles", de 1765, e sobretudo em "Le Philosophe ignorant" (cap. XXIV), de 1766, dentre outros.
  • 19
    Voltaire insistia, sobretudo porque via Spinoza como ateu, em afirmar que, a despeito de seu ateísmo, o filósofo era irrepreensível em sua vida moral. Gradativamente, a denominação de libertins, dada aos filósofos materialistas e ateus, acabou adquirindo conotações de imoralidade ou amoralidade, sobretudo sexual, como até hoje indica o termo libertino. Voltaire, como se afirma neste artigo, sustentava que os ateístas não possuíam um freio moral, mas fazia exceção a Spinoza. Esta insistência de Voltaire, sempre que escreve sobre Spinoza, parece conter algo de má-fé. Como se, ao enfatizar publicamente a vida moral de Spinoza, Voltaire exigisse de seu interlocutor ou leitor o reconhecimento do quanto Monsieur Voltaire era magnânimo, justo e imparcial, mesmo ao criticar um mero ateu.
  • 20
    HAZARD. Voltaire et Spinoza, p. 355.
  • 21
    VOLTAIRE, Mélanges, p. 898. "Peut-être Bayle devrait-il s’en tenir au mot de modalités et non pas de parties, puisque c’est ce mot de modalités que Spinoza emploie toujours. Mais il est également impertinent, si je ne me trompe, que l’excrément d’un animal soit une modalité ou une partie de l’Être suprême."
  • 22
    Evidentemente, inspirando-se aqui na alegoria da Caverna de Platão, Republica, 514a-520a; e provavelmente em São Paulo, Coríntios, 13:12.
  • 23
    "Ce Spinoza admettait, avec toute l’antiquité, une intelligence universelle; et il faut bien qu’il y en ait une, puisque nous avons de l’intelligence universelle." Carta 290, em VICHY-CHAMROND, Correspondance complète de la Marquise du Deffand, p. 560, grifo meu.
  • 24
    CASSIRER, Language and Myth, p. 88.
  • 25
    ASSIS, Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 615.
  • 26
    No capítulo 3, "Meros fantoches no drama da harmonia universal", de Variações sob a mesma luz. Machado de Assis repensado.
  • 27
    A expressão luta pela vida, tendo sido apropriada por Spencer para justificar seu Darwinismo Social, foi repudiada por Darwin, que já a partir da segunda edição de Origin of Species, fala de luta pela existência. Ou seja, a espécie, a partir de minúsculas variações que ocorrem em indivíduos, adquire ou não uma maior ou menor adaptabilidade. Se a adaptação favorece o indivíduo, ele passará adiante tal vantagem e a espécie sobreviverá. Machado, como já indiquei em meu livro, usa a expressão em inglês, struggle for life no sentido spenceriano.
  • 28
    ASSIS, Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 522.
  • 29
    Ibidem.
  • 30
    Idem, p. 322.
  • 31
    ASSIS, Quincas Borba, p. 648-9.
  • 32
    Benedito: Foi só mais tarde que Voltaire descobriu que o B. vinha de Baruch e iria a partir de então, sempre que possível, agarrar-se ao detalhe de que seria "errado" escrever Benedictus, Benoît, Benedict, pois Spinoza "não havia sido batizado" depois que fora expulso da comunidade judaica de Amsterdã. E que de "bendito" não tinha nada. Este apego pueril a detalhes que não passam de projeções ideológicas – aqui no caso o problema judaico em Voltaire – mostram uma faceta não desprezível da personalidade desta indubitável figura do Iluminismo.
  • 33
    Aqui citado por HAZARD, cit., p. 353.
  • 34
    Idem, p. 354. Émile Bréhier também indica como Bayle em seu Dictionnaire acusa Spinoza como "o primeiro que produziu um sistema de ateísmo" ["le premier qui ait réduit en système l’athéisme"]. Sua asserção, ali, de que não se pode dizer que "Les allemands ont tué 10 mille Turcs, mas que 'Dieu, modifié en Allemands a tué Dieu modifié en 10 mille Turcs'", que citamos acima, passou inteiramente para Voltaire e daí até para a Encyclopédie (BRÉHIER, Histoire de la philosophie, vol. 2, p. 173).
  • 35
    HAZARD, cit., p. 360.
  • 36
    Idem, p. 362.
  • 37
    Esta citação vem do próprio Voltaire em Questions sur l'Encyclopédie par les amateurs, artigo "Dieu". Seção II, Examen de Spinoza, tomo 2, que na Colection complète des oeuvres de M. de Voltaire consta do tomo 22, Genève, 1774, p. 405-410. " Le pauvre Juif dépaysé, vivant avec trois cents florins de rente dans l’obscurité la plus profonde."
  • 38
    HAZARD, cit., p. 364.
  • 39
    Vejamos este exemplo dentre tantos outros : "Alors un petit Juif, au long nez, au tenti blême,/ pauvre, mais satisfait, pensif et retiré,/ Esprit subtil et creux, moins lu que célébré,/ Caché sous le manteau de Descartes, son maître,/ Marchant à pas comptées, s’approche du Grand Être./ 'Pardonnez-moi, dit-til en lui parlant tout bas ;/ Mais je pense, entre nous, que vous n’existez pas./ Je crois l’avoir prouvé par mes mathématiques./ J’ai de plats écolier et de mauvais critiques: […]'". VOLTAIRE, Questions sur l’Encyclopédie, seção VI, "Les Systèmes", cit.
  • 40
    ASSIS, Quincas Borba, p. 648.
  • 41
    Idem, p. 648.
  • 42
    Ibidem.
  • 43
    Idem, p. 649.
  • 44
    LEOPARDI, Dialogo della Natura e di un islandese.
  • 45
    "Così fugge lo scoiattolo dal serpente a sonaglio, finché gli cade in gola da se medesimo. Io sono quella che tu fuggi." (Idem, p. 91).
  • 46
    "Immaginavi tu forse che il mondo fosse fatto per causa vostra? Ora sappi che negli ordine e nelle operazioni mie, sempre ebbi ed ho l’intenzione a tutt’altro che alla felicità degli uomini, o all’infelicità. E finalmente, se anche mi avvenisse di estinguere tutta la vostra specie, io non me ne avvedrei." (Idem, p. 96).
  • 47
    Ibidem.
  • 48
    Islandês: "t’ho io forse pregato di pormi in questo universo? O mi vi sono intromesso violentemente, e contro tua voglia?". E responde a Natureza: "Tu mostri non aver posto mente che la vita di quest’universo è un perpetuo circuito di produzione e distruzione, collegate ambedue tra sé di maniera che ciascheduna serve continuamente all’altra, ed alla conservazione del mondo, il quale sempre che cessasse o l’una o l’altra di loro, verrebbe parimente in dissoluzione" (Ibidem).
  • 49
    "Ma sono alcuni che negano questo caso, e narrano che un fierissimo vento, levatosi mentre che l’islandese parlava, lo stese a terra, e sopra gli edificò un superbissimo mausoleo di sabbia; sotto il quale colui diseccato perfettamente, e divenuto una bella mummia, fu poi ritrovato da certi viaggiatori, e collocato nel museo di non so quale città di Europa. " (Idem, p. 97).
  • 50
    Otto Maria Carpeaux se pergunta em seu pioneiro comentário intitulado "Uma fonte da filosofia de Machado de Assis" se o autor teria lido Leopardi. Sabemos que sim. Constavam de sua biblioteca as Opere di Giacomo Leopardi. Canti, Frammenti, Operette morali. Leipzig, F. A. Brockhaus, 1877. O artigo de Carpeaux onde explora a conexão entre Machado e Leopardi se encontra em Respostas e perguntas.
  • 51
    V. cap. 3, passim. Variações sob a mesma luz. Machado de Assis repensado, cit.
  • 52
    ASSIS, Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 586, grifo meu.
  • 53
    Devo a Hélio Guimarães a referência a uma carta de Machado a Magalhães de Azeredo, de 1898, em que o autor escreve: "Leopardi é um dos santos da minha igreja pelos versos, pela filosofia, e pode ser que por alguma afinação moral; é provável que também eu tenha a minha corcundinha".
  • 54
    VOLTAIRE, Candide, capítulo 30, p. 44. "De quoi te mêles-tu ? lui dit le derviche; est-ce là ton affaire. […] Qu’importe, dit le derviche, qu’il y ait du mal ou du bien ? quand sa hautesse envoie un vaisseau en Égypte, s’embarrasse-t-elle si les souris qui sont dans le vaisseau sont à leur aise ou non? Que faut-il donc faire, dit Pangloss. Te taire, dit le derviche. Je me flattais, dit Pangloss, de raisonner un peu avec vous des effets et des causes, du meilleur des mondes possibles, de l’origine du mal, de la nature de l’âme, et de l’harmonie préétablie. Le derviche, à ces mots, leur ferma la porte au nez."
  • 55
    ASSIS, Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 639.
  • 56
    Ao comentar o materialismo tanto de Machado quanto de Leopardi, via Epicuro, Carpeaux lembra que a finalidade ética do materialismo é "apenas a ausência da dor" (CARPEAUX, "Uma fonte da filosofia de Machado de Assis", p. 7). E completa: "O ‘cântico do galo silvestre’ ensinou ao poeta [Leopardi], despertando-o do sono das ‘imagens vãs’ a seguir o seu fado ‘com ânimo forte e sereno’. O outro [Machado de Assis], quando o galo da madrugada o despertou da agonia, pôde dizer ‘A vida é boa’. Pois então, não havendo mais futuro, é boa" (Idem, p. 8).
  • 57
    ASSIS, Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 639.
  • 58
    NEPPI, Ragione, natura e filosofia nelle Operette Morali, p. 37.
  • 59
    "Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos [...] a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência […]. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Por que, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há plateia […]. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados." (ASSIS, Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 545-6).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2016

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2016
  • Aceito
    10 Jul 2016
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