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O CASO DA VARA: FARSA E TRAGÉDIA NO ALVORECER DA REPÚBLICA

THE CANE: FARSE AND TRAGEDY AT THE DAWN OF THE REPUBLIC

Resumo

Este artigo aborda "O caso da vara", conto publicado por Machado de Assis em 1891, na Gazeta de Notícias, e posteriormente compilado no volume Páginas recolhidas (1899). O foco do ensaio é ponderar sobre alguns traços dramáticos do conto, fazendo notar a presença de elementos do trágico e do farsesco. A partir disso, o texto investe na historicização desses traços, tendo em vista o "caso" relatado, a violência contra uma escrava, e seu contexto de publicação, os primeiros anos da República. Desse movimento de análise, surge a hipótese de que o conto de Machado incitaria a reflexão sobre a passagem da Monarquia à República no Brasil, em suas íntimas relações com o fim (ao menos em termos políticos e jurídicos) da escravidão.

Machado de Assis; república; escravidão

Abstract

This paper addresses "O caso da vara" (The Cane), a short story published by Machado de Assis in 1891, in the newspaper, Gazeta de Notícias, and later compiled in the volume, Páginas recolhidas (1899). The focus of this essay is to ponder some of the dramatic traits in the short story and highlight the presence of elements of the tragic and the farce. Based on this, the text invests in the historicization of these traits, in view of the "case" reported, violence against a slave, and the context for its publication, the early years of the Brazilian Republic. From this analysis, the hypothesis arises the hypothesis that Machado’s short story would encourage reflection about Brazil’s shift from Monarchy to Republic in its intimate relationship with the end (at least in political and legal terms) of the slavery.

Machado de Assis; republic; slavery

[…] Vai andar o vício à tona? Que há de ser da mocidade… Pois na ancia do extermínio Ao vício a calma amollece-a? Quem há de salvar Lucrécia Contra a fúria de Tarquínio? Desculpe-me incommodar-te Na minha ignorancia extrema Resolve tu o problema. Julio Bellarte1 1 Retirado do poema "Amparo da virtude" (Gazeta de Notícias, 24 jan. 1891).

O caso da vara" foi publicado pela primeira vez em fevereiro de 1891, na Gazeta de Notícias. Oito anos depois, em setembro de 1899, veio a público novamente, desta vez abrindo o volume Páginas recolhidas. Trata-se, portanto, de um conto posterior à Abolição, em cujo horizonte está o leitor da incipiente República brasileira. Ainda assim, é um conto ambientado nos primórdios do Segundo Reinado, culminando em uma cena de violência típica da lógica escravista, a punição arbitrária de uma escrava doméstica. Em pleno florescer republicano, Machado escreve sobre o império e a escravidão. O motivo para fazê-lo está sugerido no prefácio ao volume de 1899: o assunto ainda agora interessava.

Mas qual a natureza do interesse?

Vamos à matéria.2 2 Há diferenças entre as versões publicadas na Gazeta de Notícias e no volume Páginas recolhidas. Opto aqui pela última versão. As alterações feitas pelo autor serão oportunamente indicadas.

Damião foge do seminário às onze da manhã de uma sexta-feira de agosto - o ano é incerto, "antes de 1850". Ao início do conto, nós o encontramos poucos minutos após a fuga, vexado, temendo os castigos paternos e cogitando refúgios. Lembra-se, então, de sinhá Rita, viúva amigada com João Carneiro, seu padrinho, e parte em busca de ajuda.3 3 Na versão publicada em jornal, é narrada a conversa entre o padre que recebe Damião e João Carneiro. Além disso, há uma descrição pontual do caráter do seminarista: "cativo do mundo e dos seus regalos", "tudo nele pendia para o mal". Seus desejos mundanos, aliás, são a causa da fuga (elidida na versão posterior). Damião perde-se em sonhos eróticos com a rainha do Sabá e as esposas de Salomão. O motivo para a supressão do trecho, penso, tem a ver com seu possível efeito de leitura. O personagem é definido como mau desde o início, o que tornaria sua decisão final presumível.

Da resolução, saltamos diretamente ao Largo do Capim, em casa de sinhá Rita, que, surpresa, acompanha a chegada do espavorido Damião. Cercada de suas crias, a quem ensina a fazer renda, crivo e bordado, sinhá Rita ouve a história do jovem seminarista, negando-se, contudo, a ajudá-lo. Aconselha-o a pedir ajuda ao padrinho, ao que Damião replica citando a suposta firmeza de João Carneiro. Subitamente "ferida em seus brios",4 4 ASSIS, Páginas recolhidas, p. 5. a viúva toma partido em favor do fugitivo, mandando chamar o padrinho.

Novo salto. A tensão inicial dá lugar ao riso. Enquanto esperam João Carneiro, Damião e sinhá Rita trocam anedotas. "Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos", faz rir uma das escravas, uma menina de onze anos, "negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda".5 5 Idem, p. 6. Junto ao riso da menina, sua nomeação, misturada à ameaça de sinhá Rita: "Lucrécia, olha a vara!".6 6 Idem, p. 5. Damião apieda-se, promete apadrinhar a escrava, caso não cumpra suas tarefas diárias.

Nisso chega João Carneiro. O foco volta ao drama do seminarista. O padrinho inquieta-se com a visão do afilhado. Prevê castigos. É confrontado por sinhá Rita, deve falar ao compadre, convencê-lo a tirar Damião do seminário. A tensão aumenta. João Carneiro se vê "entre um puxar de forças opostas",7 7 Idem, p. 6. a amizade do compadre, as graças da viúva. O peito ofegante, deseja a morte do afilhado, o fim da Igreja. Por fim cede e vai ter com o compadre. Com a promessa de desfecho favorável, Damião e sinhá Rita passam ao jantar.

A tarde avança. Sinhá Rita recebe visitas. Algumas moças, suas amigas. Mais anedotas. Apesar disso, Damião faz-se melancólico. Atribui desfechos catastróficos à conversa entre o pai e João Carneiro, planeja novas fugas. A viúva, no entanto, o consola.

A noite cai. Chega uma carta do padrinho. O negócio ia inconcluso, o pai, furioso. Nada de garantias. Sinhá Rita, impaciente com João Carneiro, escreve-lhe novo bilhete, desta vez com uma carinhosa ameaça, "Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos".8 8 Idem, p. 9. O drama de Damião, ao que tudo indica, está resolvido.

Mas é hora de recolher o trabalho das "crias da casa". Lucrécia, a escrava nomeada, atrasara-se (havia deixado o trabalho para rir da anedota de Damião). Sinhá Rita se enfurece e, tomando Lucrécia pela orelha, pede ao seminarista que lhe alcance uma vara. A menina chora, tosse e implora. Damião enxerga a vara escorada em uma marquesa. Hesita. Por fim, entrega o objeto à viúva.

Um conto doméstico, como se vê, ambientado no espaço híbrido entre a oficina de trabalho e a sala de instrução. O tempo, enxuto e bem marcado, desdobra-se ao longo de um dia, dividido em cinco momentos:

  1. as andanças de Damião após a fuga (quando se lembra de sinhá Rita);

  2. sua chegada à casa da viúva (cuja intervenção pode resolver o caso);

  3. a vinda de João Carneiro (quando o padrinho, aflito, é convencido a intervir junto ao pai do seminarista);

  4. o decorrer da tarde entre as amigas de sinhá Rita (momento em que a esperança de resolução arrefece no jovem fugitivo);

  5. o início da noite (quando, apesar das hesitações do padrinho, o caso se encaminha para o desfecho favorável a Damião).

Entre cada momento, uma pequena elipse.

O enredo de tom farsesco é movido a artifícios e interesses mesquinhos. Damião deseja consolidar a fuga e, para isso, aproveita-se do orgulho de sinhá Rita. À viúva interessa dominar o amante; ao padrinho, garantir a amizade do compadre e os amores de sinhá Rita. Ao largo dessas motivações, o apadrinhamento de Lucrécia, promessa de Damião, é por elas consumido, e o breve dilema moral do personagem cai por terra diante da conveniência (não desagradar à sua protetora).

Lucrécia, aliás, pouco vem ao primeiro plano do conto, ainda que figure enquanto presença constante e ponto de chegada da narrativa. Seu drama corre em paralelo ao de Damião, mas, sem padrinho ou auxílio possível, acaba punida. O motivo, o trabalho atrasado pelo riso compartilhado com Damião e sinhá Rita, isto é, pela entrada indevida na esfera sensível dos senhores.9 9 Baseio-me aqui nos comentários de Jacques Rancière sobre os mecanismos de "partilha do sensível". Para uma análise extensiva e substancial desses mecanismos, tal como os entende o autor, ver: RANCIÈRE, Aisthesis: Scenes from the Aesthetic Regime of Art. O "excesso" de Lucrécia impõe-lhe a pena. E se, prestes a ser fustigada, roga súplicas a Damião, apenas explicita, com isso, a distância que os separa e o destino incontornável que a espera.

A tragédia doméstica de Lucrécia ganha amplitude nas evocações de seu nome. Sua xará romana, descrita por Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso, tornou-se célebre no cânone ocidental não apenas pelo destino trágico, o suicídio após a violação do príncipe Sexto, mas também enquanto mito fundador da república romana. Em outras palavras, Lucrécia carrega em seu nome a evocação da violência arbitrária e desmedida, cuja vingança, ao menos no caso romano, pôs fim à monarquia.

Temos então que "O caso da vara" é um conto de ambientação doméstica, dividido em cinco momentos ao longo de um dia. O tom é farsesco, embora o dilema moral e o caráter trágico irrompam na figura de Lucrécia. Um conto republicano sobre a violência da escravidão, cuja principal vítima evoca um mito ocidental de transição entre a monarquia e a república.

II

Tratemos de interpretar os indícios.

Em termos de andamento narrativo, as cinco partes que compõem o conto lhe garantem uma estrutura bastante significativa. A primeira nos apresenta a personagem central (Damião), o tempo (antes de 1850), o espaço (a capital carioca) e o conflito da narrativa (assegurar a saída do seminário). A segunda faz aumentar a ação, criando obstáculos e complicações ao problema do personagem principal (a relutância inicial de sinhá Rita, a incerteza quanto à reação do padrinho). A terceira constrói um momento de clímax (a indecisão de João Carneiro) e uma viravolta nas ações (a intervenção do padrinho promete solucionar o caso). Na quarta a ação diminui e a resolução prevista anteriormente é posta em dúvida. Na quinta, temos o desfecho e a restauração da ordem (no caso, paternalista e escravocrata).

As cinco partes, entretanto, se distribuem em três segmentos: uma espécie de prólogo, o desenvolvimento do conflito rumo a seu clímax e o decréscimo da ação até seu desfecho. Como se vê, a estrutura assemelha-se à da tragédia.10 10 A divisão da tragédia em três atos remete aos argumentos de Aristóteles (Poética). A partir da Arte poética de Horácio, no entanto, o modelo aristotélico aparece redistribuído em cinco atos, ainda que o autor não discorra sobre a divisão das partes. Foi Gustav Freytag (Die Technik des Dramas), já no século XIX, quem o fez, redefinindo as três partes do modelo aristotélico (protásis, epitásis e catástrofe) em cinco (introdução, aumento da ação, clímax, declínio da ação e desenlace). O modelo de Freytag serviu como base, inclusive, para a divisão dos fólios de Shakespeare, que originalmente não apresentavam organização por atos. Seja como for, mesmo em sua roupagem burguesa, a tragédia não deixa de conter a forma geral de sua matriz clássica. E não somente por isso. As ações, decorridas ao longo de um dia, avançam por meio de diálogos, culminando na investigação moral.

A essa estrutura, no entanto, corresponde o tom farsesco das personagens. As motivações são mesquinhas (fugir do seminário, mostrar poder sobre o amante, manter amizades vantajosas), as resoluções, absurdas (matar o afilhado, ver dissolvida a Igreja, fugir pela porta dos fundos). A astúcia percorre os diálogos, configurando-se no manejo dos caprichos. Como invólucro de tudo, o cenário doméstico, repleto de comida, riso fácil e sugestões sexuais.11 11 As características apontadas baseiam-se no trabalho de Irley Machado, A farsa: um gênero medieval.

A exceção é Lucrécia, espécie de personificação da violência senhorial. Sua trajetória no conto é breve. A menina "excede-se" e é punida. Dois momentos decisivos: é o que basta para sua tragédia. Mas a "desmedida" tem origem na anedota de Damião, e o castigo, em sua negligência interessada. O trágico e o farsesco andam lado a lado.

O fim do conto une as pontas: o valor moral dilui-se na conveniência, ao mesmo tempo resolvendo a farsa e decretando a tragédia. Assim, no contexto do conto, a farsa e a tragédia não são de todo contraditórias, mas antes entrecruzadas e complementares.12 12 A esse respeito vale referir a transformação física e anímica de sinhá Rita ao fim do conto. A bela viúva, patusca e amiga de rir, torna-se colérica, "cara em fogo e os olhos esbugalhados" (ASSIS, cit., p. 10), enquanto pune Lucrécia. A linha que separa a dama farsesca do algoz trágico é das mais tênues. A farsa induz à tragédia, a tragédia sustenta a farsa.

III

A farsa nutre-se da tragédia, como o senhor do escravo. O aproveitamento de formas, em "O caso da vara", não é mero jogo estético, integra-se à objetivação da realidade histórica. Mas isso não equivale a dizer que se trate somente de um conto sobre os fundamentos da lógica escravista. O nome de Lucrécia e o contexto de publicação da narrativa nos permitem ir além dessa definição.

A personagem machadiana nos remete à da Antiguidade. A remissão inevitavelmente nos faz compará-las. A Lucrécia romana, vítima do arbítrio, defende a castidade com o suicídio, mas não sem antes clamar ao marido por vingança. A vendeta, pessoal e doméstica, tem efeitos políticos imediatos: o fim da monarquia e a instauração da república em Roma. A Lucrécia brasileira, por sua vez, sofre a injustiça sem ter quem a ampare. Damião, a quem a menina recorre, está comprometido com sua algoz, sinhá Rita. Não há vingança, tampouco gestos heroicos de abnegação ou ruptura. A ordem escravocrata, aparentemente afrontada na hesitação do seminarista,13 13 Vale notar que a proteção idealizada por Damião se traduz em apadrinhamento. Ou seja, a defesa oferecida pelo seminarista opera justamente com os pressupostos que engendram a violência contra Lucrécia. Daí a afronta citada não passar de aparência. triunfa no ambiente doméstico.

Agora se imagine um leitor em fevereiro de 1891. Tem diante de si uma edição da Gazeta. É domingo. Folheia as páginas desatento, catando aqui e acolá os rumores da vida republicana. Sobre a nova Constituição nada se fala,14 14 A primeira Constituição republicana foi aprovada em 24 de fevereiro de 1891. No documento, abundam os ataques, pelo menos em nível formal, aos privilégios legais da nobreza. Entre janeiro e fevereiro desse ano, a Gazeta de Notícias publicou artigos sistemáticos sobre o assunto. mas há o tratado anglo-germânico, a revolta no Porto, os brindes a Campos Salles. Logo em seguida, um conto do sr. Machado de Assis, que o leitor, agora mais desperto, acompanha com interesse. Ao cabo da leitura, e de uma espiadela em Tito Lívio, vem-lhe a comparação entre as Lucrécias. É em tudo idêntica à nossa, exceto por algumas cogitações das mais perspicazes. Vejamos.

Lucrécia não foi apenas o estopim de uma transformação política, pensa consigo o leitor, consagrou-se também como uma espécie de símbolo da passagem da monarquia à república em Roma. A resolução sangrenta de seu caso, em defesa da honra e da castidade, bem poderia caracterizar a própria repercussão histórica do evento, arrisca. Mas e a Lucrécia do sr. Machado de Assis – pergunta-se o leitor, dando com os olhos no próprio presente – caracteriza de alguma maneira a decadência de nossa monarquia e a instauração recente de nossa república? Sua tragédia doméstica reverbera na história nacional?

E eis que a escrava brasileira ganha sentido em contraste com a nobre romana.

O leitor viu nascer o estado republicano. Acompanhou a transição. Mas ainda assim coloca-se a pensar sobre o longo processo que a engendrou. Considera o Segundo Reinado, as medidas paulatinas contra a escravidão, a intervenção inglesa. Conclui o que lhe parece óbvio: que nossa monarquia, mesmo com a ação determinante de seus opositores, morreu velha, sem arroubos de heroísmo, e que os cativos, seu fundamento econômico e simbólico,15 15 Vale lembrar a formulação de Florestan Fernandes: "O senhor de escravo, por sua vontade e suas mãos, escravizava-se ao escravo e à ordem social que se fundara na escravidão, condenando-se a desaparecer quando esta fosse extinta" (FERNANDES, A revolução burguesa no Brasil, p. 133). quedaram formalmente livres, ainda que efetivamente excluídos da nova república.

De tão lenta, pensa o leitor, a transição ganha incômodos traços de continuidade.16 16 Novamente encontramos Florestan, segundo o qual a crise do trabalho servil levou consigo a ordem escravocrata e senhorial, "mas não o seu substrato social e político: a base oligárquica do poder autocrático dos 'ricos' e 'privilegiados'" (Idem, p. 209). Volta-se então à Lucrécia machadiana, cuja possibilidade de "vingança" se esvai em meio ao capricho dos senhores. Encontra na menina a caracterização - negativa, diga-se - do processo rememorado: sem defesa moral, sem justiça, sem heroísmos, sem ruptura. Um mero arranjo, infame e caprichoso, à revelia da tragédia dos cativos, como no caso da jovem escrava.

Hábil leitor. Sua interpretação é justa e produtiva. Falta-lhe, porém, um detalhe: a sexta-feira de um agosto anterior a 1850. Por um lado, podemos pensar, isso equivale a dizer que o caso de Lucrécia ocorre antes da Lei Eusébio de Queiroz. Ou seja, antes da primeira medida nacional realmente efetiva contra a escravidão e, por consequência, contra o antigo regime. Por outro, dada sua imprecisão, a data nos permite conjeturar: antes de 1850, mas quando exatamente?

Uma hipótese sedutora: garimpando os calendários do período, deparamos com uma sugestiva sexta-feira de agosto. O ano é 1845. Na Inglaterra é assinado o Bill Aberdeen,17 17 O decreto foi assinado em 8 de agosto de 1845. decreto que permite aos ingleses reterem os navios negreiros que rumam ao Brasil.18 18 Na versão publicada em jornal, a fuga ocorre em outubro. A data não deixa de ter relações com a assinatura do Bill Aberdeen, sobretudo se levarmos em conta a série de artigos publicada no Jornal do Comércio ao longo de todo o mês. Os ataques ao decreto inglês culminaram em uma edição especial (em português, francês e inglês) dedicada exclusivamente à "Nota de 22 de outubro", de autoria do ministro Antonio Limpo de Abreu. A edição veio a público em 29 de outubro de 1845. Tem início a longa decadência de nosso sistema escravista, ainda que, do ponto de vista da casa-grande, o período entre 1845 e 1850 seja antes de franca prosperidade.19 19 Sérgio Buarque de Holanda refere-se à criação de um verdadeiro sistema comercial empenhado em ludibriar a fiscalização inglesa. A compra de documentos oficiais e o suborno de funcionários possibilitaram inclusive o incremento do tráfico: "naquele ano de 1845, o total de negros importados fora de 19.363; em 1846, de 50.354; em 1847, de 56.171; em 1848, de 60 mil; em 1849, de 54 mil" (HOLANDA, Raízes do Brasil, p. 76).

Nos dois casos, enquanto inferência concreta ou hipotética, a escravidão vem à tona, evocada através de eventos que concorreram para encerrá-la. Assim, se Lucrécia remete à reflexão sobre a passagem da monarquia à república no Brasil, sua condição histórica e destino trágico enfatizam o fim da escravidão enquanto fundamento do processo.20 20 A dependência entre monarquia e escravidão parece sugerida no próprio cenário do conto. A vara, símbolo do poder escravista, encontra-se à cabeceira de uma marquesa, móvel que nos remete a um título de nobreza.

"O caso da vara", nessa perspectiva, pode ser também um conto sobre a transição entre o antigo regime e a república brasileira, em suas articulações diretas com o fim da escravidão.

IV

Nosso leitor, passando os olhos no que foi dito acima, não tardaria em afirmar o caráter alegórico do conto do sr. Machado de Assis. É evidente, diria, Damião, sinhá Rita e João Carneiro estão aí como representantes da monarquia. Lucrécia encarna a escravidão. O caso doméstico, em suas dimensões trágicas e farsescas, alegoriza o cenário nacional: a estultícia da monarquia, seu desdém e sua dependência frente ao sofrimento dos cativos, o lamento ainda latente dos escravizados. A sala de sinhá Rita é o Brasil!, diria, com o rosto afogueado.

O leitor tem lá sua razão, mas exagera em seus juízos. Esquece-se de que a generalidade alegórica anda aqui em permanente tensão com o registro realista. Não há como negar a singularidade histórica dos caracteres, a maneira como seus destinos são atravessados pela historicidade. Dessa perspectiva, vale dizer o óbvio: Damião é Damião, Lucrécia é Lucrécia. O seminarista conhece os meandros de sua classe. Usa as relações de compadrio e se safa. O auxílio à escrava, potencial afronta à sua posição e à de sinhá Rita, não passa de uma hesitação. Lucrécia deixa-se levar pelo ócio e pelo riso. Invade assim o mundo sensível dos senhores e é punida. Seu pedido de ajuda é mais desesperado que racional. A restituição da ordem, nesse caso, nada mais é do que a afirmação enfática das formas sociais escravistas.

Em outras palavras, a sala de sinhá Rita tem muito de Brasil, em termos alegóricos, mas é também o registro específico de sua historicidade, em sentido realista. A contradição permanece. Alegoria e realismo, sem possibilidade de síntese.21 21 Para uma análise detalhada dessa contradição ao longo da prosa machadiana, ver SANSEVERINO, Realismo e alegoria em Machado de Assis.

V

Em resumo, "O caso da vara" é um conto de moldura trágica e enredo farsesco. A farsa dos senhores encobre a tragédia dos cativos, dela aproveitando-se para a resolução de seus conchavos. Nas remissões e comparações que incita, amparadas na figura de Lucrécia e no contexto de publicação, a narrativa opera segundo um movimento de dupla historicidade, para citar a expressão de Sidney Chalhoub.22 22 CHALHOUB, Machado de Assis, historiador. Por um lado, vale-se de uma situação prosaica para referir os meandros do poder senhorial, em suas íntimas ligações com a experiência escravista, no período que antecede a Lei Eusébio de Queirós. Por outro, o conto parece apostar nos efeitos alusivos de Lucrécia para projetar o episódio narrado ao longo da história nacional, articulando-o dessa forma ao horizonte histórico imediato de seus leitores, a passagem da monarquia à república no Brasil, em suas estreitas relações com o fim da escravidão.

A história faz-se notar na vida doméstica: no caso singular de uma vara, lampejam os indícios do ocaso de todas.23 23 Aqui vale citar "O punhal de Martinha", crônica publicada n'A Semana em 5 de agosto de 1894. Nesse texto, ao retomar o caso de Lucrécia, Machado refere-se ao punhal em seu "duplo caráter de arma doméstica e pública", prestando-se "tanto a exaltar a virtude conjugal, como a dar força e luz à eloquência política" (ASSIS, O punhal de Martinha, p. 307). Caráter semelhante, podemos dizer, possui a vara de sinhá Rita, utensílio doméstico de tortura e símbolo público do poder escravista. Mas o tom não é laudatório. Antes pelo contrário. As circunstâncias vagarosas e elitistas do processo lançam-se à face do leitor nos lamentos de Lucrécia, clamor pendente de justiça, eco incômodo no teatro republicano.

Referências

  • ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1997.
  • ASSIS, Machado de. Páginas recolhidas São Paulo: Globo, 1997.
  • ASSIS, Machado de. O punhal de Martinha. In: SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  • BELLARTE, Julio. Amparo da virtude. Gazeta de notícias, 24 jan. 1891.
  • CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil São Paulo: Globo, 2005.
  • FREYTAG, Gustav. Die Technik des Dramas. Leipzig: S. Hirzel, 1863.
  • HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • MACHADO, Irley. A farsa: um gênero medieval. Revista Ouvirouver, Minas Gerais, n. 5, 2009. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/ouvirouver/article/view/3190 Acesso em: 20 dez. 2016
    » http://www.seer.ufu.br/index.php/ouvirouver/article/view/3190
  • RANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: Scenes from the Aesthetic Regime of Art. Tradução de Zakir Paul. New York: Verso, 2013.
  • SANSEVERINO, Antônio Marcos. Realismo e alegoria em Machado de Assis 1999. Dissertação (Mestrado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 1999. 240 f.
  • 1
    Retirado do poema "Amparo da virtude" (Gazeta de Notícias, 24 jan. 1891).
  • 2
    Há diferenças entre as versões publicadas na Gazeta de Notícias e no volume Páginas recolhidas. Opto aqui pela última versão. As alterações feitas pelo autor serão oportunamente indicadas.
  • 3
    Na versão publicada em jornal, é narrada a conversa entre o padre que recebe Damião e João Carneiro. Além disso, há uma descrição pontual do caráter do seminarista: "cativo do mundo e dos seus regalos", "tudo nele pendia para o mal". Seus desejos mundanos, aliás, são a causa da fuga (elidida na versão posterior). Damião perde-se em sonhos eróticos com a rainha do Sabá e as esposas de Salomão. O motivo para a supressão do trecho, penso, tem a ver com seu possível efeito de leitura. O personagem é definido como mau desde o início, o que tornaria sua decisão final presumível.
  • 4
    ASSIS, Páginas recolhidas, p. 5.
  • 5
    Idem, p. 6.
  • 6
    Idem, p. 5.
  • 7
    Idem, p. 6.
  • 8
    Idem, p. 9.
  • 9
    Baseio-me aqui nos comentários de Jacques Rancière sobre os mecanismos de "partilha do sensível". Para uma análise extensiva e substancial desses mecanismos, tal como os entende o autor, ver: RANCIÈRE, Aisthesis: Scenes from the Aesthetic Regime of Art.
  • 10
    A divisão da tragédia em três atos remete aos argumentos de Aristóteles (Poética). A partir da Arte poética de Horácio, no entanto, o modelo aristotélico aparece redistribuído em cinco atos, ainda que o autor não discorra sobre a divisão das partes. Foi Gustav Freytag (Die Technik des Dramas), já no século XIX, quem o fez, redefinindo as três partes do modelo aristotélico (protásis, epitásis e catástrofe) em cinco (introdução, aumento da ação, clímax, declínio da ação e desenlace). O modelo de Freytag serviu como base, inclusive, para a divisão dos fólios de Shakespeare, que originalmente não apresentavam organização por atos. Seja como for, mesmo em sua roupagem burguesa, a tragédia não deixa de conter a forma geral de sua matriz clássica.
  • 11
    As características apontadas baseiam-se no trabalho de Irley Machado, A farsa: um gênero medieval.
  • 12
    A esse respeito vale referir a transformação física e anímica de sinhá Rita ao fim do conto. A bela viúva, patusca e amiga de rir, torna-se colérica, "cara em fogo e os olhos esbugalhados" (ASSIS, cit., p. 10), enquanto pune Lucrécia. A linha que separa a dama farsesca do algoz trágico é das mais tênues.
  • 13
    Vale notar que a proteção idealizada por Damião se traduz em apadrinhamento. Ou seja, a defesa oferecida pelo seminarista opera justamente com os pressupostos que engendram a violência contra Lucrécia. Daí a afronta citada não passar de aparência.
  • 14
    A primeira Constituição republicana foi aprovada em 24 de fevereiro de 1891. No documento, abundam os ataques, pelo menos em nível formal, aos privilégios legais da nobreza. Entre janeiro e fevereiro desse ano, a Gazeta de Notícias publicou artigos sistemáticos sobre o assunto.
  • 15
    Vale lembrar a formulação de Florestan Fernandes: "O senhor de escravo, por sua vontade e suas mãos, escravizava-se ao escravo e à ordem social que se fundara na escravidão, condenando-se a desaparecer quando esta fosse extinta" (FERNANDES, A revolução burguesa no Brasil, p. 133).
  • 16
    Novamente encontramos Florestan, segundo o qual a crise do trabalho servil levou consigo a ordem escravocrata e senhorial, "mas não o seu substrato social e político: a base oligárquica do poder autocrático dos 'ricos' e 'privilegiados'" (Idem, p. 209).
  • 17
    O decreto foi assinado em 8 de agosto de 1845.
  • 18
    Na versão publicada em jornal, a fuga ocorre em outubro. A data não deixa de ter relações com a assinatura do Bill Aberdeen, sobretudo se levarmos em conta a série de artigos publicada no Jornal do Comércio ao longo de todo o mês. Os ataques ao decreto inglês culminaram em uma edição especial (em português, francês e inglês) dedicada exclusivamente à "Nota de 22 de outubro", de autoria do ministro Antonio Limpo de Abreu. A edição veio a público em 29 de outubro de 1845.
  • 19
    Sérgio Buarque de Holanda refere-se à criação de um verdadeiro sistema comercial empenhado em ludibriar a fiscalização inglesa. A compra de documentos oficiais e o suborno de funcionários possibilitaram inclusive o incremento do tráfico: "naquele ano de 1845, o total de negros importados fora de 19.363; em 1846, de 50.354; em 1847, de 56.171; em 1848, de 60 mil; em 1849, de 54 mil" (HOLANDA, Raízes do Brasil, p. 76).
  • 20
    A dependência entre monarquia e escravidão parece sugerida no próprio cenário do conto. A vara, símbolo do poder escravista, encontra-se à cabeceira de uma marquesa, móvel que nos remete a um título de nobreza.
  • 21
    Para uma análise detalhada dessa contradição ao longo da prosa machadiana, ver SANSEVERINO, Realismo e alegoria em Machado de Assis.
  • 22
    CHALHOUB, Machado de Assis, historiador.
  • 23
    Aqui vale citar "O punhal de Martinha", crônica publicada n'A Semana em 5 de agosto de 1894. Nesse texto, ao retomar o caso de Lucrécia, Machado refere-se ao punhal em seu "duplo caráter de arma doméstica e pública", prestando-se "tanto a exaltar a virtude conjugal, como a dar força e luz à eloquência política" (ASSIS, O punhal de Martinha, p. 307). Caráter semelhante, podemos dizer, possui a vara de sinhá Rita, utensílio doméstico de tortura e símbolo público do poder escravista.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2017
  • Aceito
    11 Set 2017
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