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A VEROSSIMILHANÇA DO GÊNERO FANTÁSTICO EM "O SEGREDO DO BONZO", DE MACHADO DE ASSIS

THE LIKELIHOOD OF THE FANTASTIC GENRE IN "O SEGREDO DO BONZO," BY MACHADO DE ASSIS

Resumo

Este artigo analisa a retórica de "O segredo do bonzo", de Machado de Assis, demonstrando a natureza linguageira das imagens fantásticas do seu discurso, fruto de uma técnica responsável pela elocução das coisas ridículas, produtora de efeitos cômicos. Posicionamo-nos contra uma proposta de leitura dos escritos de Machado de Assis fundada em um suposto realismo e visamos a demonstrar os efeitos de sentido das metáforas que são replicadas em "O segredo do bonzo", formalizando, assim, a alegoria, tropo de pensamento que é aqui entendido como causa eficiente dessa narração.

retórica; fantástico; Machado de Assis; alegoria; cômico

Abstract

This article analyzes the rhetoric in Machado de Assis’s "O segredo do Bonzo" by demonstrating the linguistic nature of the fantastic images of its discourse, the result of a technique that accounts articulating the ridiculous and thus producing a comic effect. Our stance opposes a reading of Machado de Assis’s texts founded in an assumed realism, and we aim to show the metaphors’ effects of meaning that are replicated in "O segredo do Bonzo," thus formalizing the allegory and trope of thought that is understood here as an efficient driver for this narration.

rhetoric; fantastic; Machado de Assis; allegory; comic

A asserção de que as narrativas de Machado de Assis evidenciam a realidade do mundo oitocentista fluminense é muito comum na sua tradição crítica.1 1 É lugar-comum na tradição crítica da literatura oitocentista vincular a obra de Machado de Assis aos textos literários consagrados pela tradição realista. Roberto Schwarz (2000, p. 11), por exemplo, considera que "o dispositivo literário (machadiano) capta e dramatiza a estrutura do país, transformada em regra de escrita". Essa tradição fez escola no Brasil, e reivindicou que "todo escritor nacional na hora presente está carregado do imperioso dever de dizer a verdade a nosso povo" (ROMERO apud SCHWARZ, 2000, p. 188). Segue-se a referência citada por Schwarz: ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro, Garnier, 1902. v. 1. Na abordagem que se tornou hegemônica, sobrevaloriza-se a representação que enforma as cores do país pela revelação linguisticamente plena de suas contradições morais, sociais e econômicas em detrimento do estudo do procedimento técnico, cuja figuração aponta para a crise dos modelos de representação fundados na estética do realismo. Ademais, por esse caminho, a noção de verossimilhança,2 2 Neste artigo, entendemos por verossimilhança "o efeito semântico produzido quando o leitor relaciona o texto não com a realidade empírica, mas com outros discursos que constituem o campo semântico geral das explicações consideradas verdadeiras em sua sociedade" (HANSEN, 2014, p. 40). própria do campo das artes poéticas, subordinou-se à vontade de verdade de leitores que leram essas narrativas a partir dos interesses axiológicos reproduzidos pelas normas dos seus respectivos campos disciplinares. Nesse caminho, o verossímil continuou, entre nós, vinculado à perspectiva de uma abordagem secundária, sem forças para enfrentar o abalo sofrido, desde Platão, e, depois, com os escritos de René Descartes, com o domínio de um pensamento clássico, logo depois filosófico e iluminista, que entendeu "como falso tudo quanto era apenas verossímil" (PERELMAN, 1996PERELMAN, Chaim. Tratado da argumentação. Prefácio de Fábio Ulhôa Coelho. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996., p. 1). Com efeito, neste artigo, consideramos que Machado de Assis pode ser lido por uma outra tradição,3 3 Vale ressaltar que não estamos confundindo, neste artigo, as diferenças existentes entre mímesis, representação, entre poesia enquanto imitação de ações de agentes caracteres, imitação da natureza e realismo burguês, uma vez que "Mimesis and Realism are completely separate concepts, and that a proper theory of realism did not emerge before the 19th century" (BRUCK, 1982, p, p. 189). Na imitação de agentes caracteres, "the aesthetic representation of people in action was determined by definite codes and conventions which prescribed the theme, content and style of artistic production and led to a strict separation of genre corresponding to the separation of classes" […]. Whithin this tight social and epistemological order, a notion of realism could not arise. Each genre represented the reality to which it was appropriate, and there was no question that comedy could be more 'realistic' than tragedy". Por outro lado, a natureza "for the Enlightenment theorist did not mean the material physical reality of which we would nowadays think, but was a metaphor for the rational structure of the world, the natural and social order created by God and, with his help, by Man, where everything had its proper, pre-established place and worked according to a pre-designed plan, like a clock. Since natura was racional, the writer merely needed to imitate – and thereby reveal – the natural order". Por último, em linhas gerais, "the first and central criterion of the realist aesthetic was objectivity, the imperative that reality should be represented exactly and truthfully, 'as it really is'" (BRUCK, 1982, p, p. 198). e não somente pela clássica ou realista, que sublimou a seriedade filosófica em detrimento do riso poético, que deu forma à distinção, desde a obra platônica, entre o verdadeiro e o falso, o ser e o não ser, entre arte icástica e arte fantástica.4 4 De acordo com Ricoeur (2007, p, p. 31), "a distinção feita em O Sofista entre arte eicástica e arte fantástica é veementemente afirmada. […] Outrossim, ao longo do debate em torno da sofística, o estatuto epistemológico e ontológico atribuído à falsidade pressupõe a possibilidade de arrancar o discurso verdadeiro à vertigem da falsidade e de seu real não-ser. Assim, ficam preservadas as possibilidades de um ícone verdadeiro".

Nossa proposta de leitura se posiciona na contramão desse modelo teórico e pressupõe o seu desnudamento, a partir do entendimento de que a história da produção de sentido desses objetos compreende a existência de instâncias simbólicas e estéticas anteriores que de alguma forma os condicionam.5 5 De acordo com Jobim, quando interpretamos um texto num sentido determinado, está implícita nesta atividade uma referência às normas que regulam a prática interpretativa vigente na comunidade de Letras, as quais de alguma maneira nos constrangem a seguir certos caminhos (em vez de outros), e a considerar estes caminhos como corretos. "Portanto, tanto a história da produção quanto da interpretação textual nos mostram que há sempre instâncias anteriores ao texto (normas, práticas e tradições preexistentes, formas de representação etc.) que de alguma forma o condicionam" (JOBIM, 2003, p. 165). Nessa hipótese, é um modelo discursivo6 6 A referência a esse modelo discursivo não significa que conjeturamos uma unidade nos conceitos de mímesis, imitação da natureza e realismo burguês nessa tradição que é objeto de análise neste trabalho, mas que existe uma vontade de verdade que é própria de uma tradição poética que estabelece, desde os escritos de Platão, uma vigilância sobre a força do pseûdo no âmbito da poesia. de longa duração que entra em jogo na efetivação e naturalização de uma proposta de leitura que consagra a ficção desse escritor no cânon da estética realista. Esse modelo discursivo é de matriz platônica e marcou, no ocidente, a vitória da alétheia7 7 O período clássico da Filosofia grega é "atravessado por uma controvérsia acerca da linguagem: a logolatria sofística, conducente à absolutização do estudo/domínio das articulações da linguagem (daí a Retórica, Ciência e tecnologia do discurso), versus a crítica socrático-platônico-aristotélica, empenhada em apontar/acolher uma verdade independente do jogo relacional das formas linguísticas". "Tão difundida é a postulação do antagonismo referido, e tamanho é o consenso da posteridade quanto à vitória do ponto de vista socrático-platônico-aristotélico, que os sofistas são usualmente apresentados como filósofos menores" (SOUZA, 1987, p, p. 36). sobre o pseûdo, da vontade de verdade de uma filosofia cuja proposição inteligível pretendeu, com o uso rigoroso da razão,8 8 Em A república (PLATÃO, 2000), "o julgamento condenatório dos poetas é a hybris platônica da seriedade, e também a permanente tentação da filosofia" (LIMA, 1980, p, p. XIV). Portanto, "a dobra da palavra mimética há de ser controlada pela unanimidade que lhe empresta a alétheia extraída do mundo das Ideias" (LIMA, 1980, p, p. 34). dizer "um Ser que existe, Ser que é único, eterno, não gerado, indestrutível, estático e imutável; Ser que exclui o não-ser, pois se o Ser é, então o não-ser é e não pode ser dito" (NASSARO, 2010NASSARO, Sílvio Lúcio Franco. A pluralidade da verdade em Erasmo. 2010. 375 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 86). Contra essa tradição e contra esse modelo discursivo, este artigo visa a demonstrar em que medida o estatuto da ficção machadiana está centralmente fundamentado no pseûdo,9 9 De acordo com Hansen, o gênero conto "tem regras específicas: é uma ficção falsa, ou seja, ficção sobre coisas impossíveis e improváveis". Assim, "quando a narração se refere a algo que realmente existe e o relaciona com um evento que não ocorreu em parte alguma, tem-se a 'ficção primeira'. Por exemplo, com a referência à existência de uma pessoa conhecida, Machado de Assis, inventa-se a ficção de algo que nunca ocorreu, como uma viagem à Inglaterra, onde Joaquim Maria faz contatos com uma leitora de Otelo chamada Capitolina. Tem-se a 'ficção segunda' quando a narração se refere somente à essência dos seres; com a referência à essência, é possível inventar uma ficção verdadeira, como vera fictio, e uma ficção falsa, como falsa fictio. Como exemplo desta, imaginemos uma história absurda, onde um inseto infinito voa num espaço que, teoricamente, deverá estar todo ocupado por seu corpo; ou uma personagem que tem uma alma quadrada. Ou, ainda, um homem imortal" (HANSEN, 2006b, p. 58-59). elegendo o não-ser que constitui o falso como a principal problemática a ser percebida nos enunciados produzidos pelos seus agentes ficcionais, o que implica entender qual regime ou gênero de discurso estrutura a retórica de produção de sentidos no conto que ora será analisado.

Propomos uma análise do conto "O segredo do bonzo" com vistas à exposição dos elementos constitutivos do gênero a que pertence essa estória ficcional machadiana, aqui entendida na forma de discursos narrativos cujas imagens subvertem os modos de leitura fundados no pressuposto de que a linguagem é instrumento de acesso ao mundo, e que este, por sua vez, seria independente, pelo seu caráter ontológico,10 10 Ainda no mundo platônico, podemos perceber que "uma das fontes da ontologia das essências é a recusa do subjetivismo e do historicismo da linguagem" (RICOEUR, 2014, p, p. 14). dos efeitos de sentido condicionados pela materialidade da estrutura ficcional que o narra e significa. Opomo-nos, então, à tese do essencialismo linguístico da filosofia, que impede que tudo na linguagem seja invenção arbitrária. Na raiz desse pensamento, pautado no realismo das significações, "a linguagem imita as realidades", pois "o sentido preexiste à palavra", ele "é a primeira transcendência do ser no aparecer". Constituindo a essência, o sentido se identifica com o ser, enquanto as palavras se identificariam com o parecer, compreendendo as sombras das essências, cabendo a elas somente o título de subordinadas ao disciplinamento da dialética11 11 De acordo com Fiorin (2014, p, p. 12), "a dialética trata dos enunciados em sua relação com os objetos que supostamente eles representam e, por isso, tem a finalidade de distinguir o verdadeiro do falso". que as preside. Contrapor-se a esse essencialismo linguístico se faz necessário, para entender a tradição que orienta a retórica dos enunciados machadianos.

Com efeito, é no gênero fantástico que encontramos as imagens que constituem a ordem enunciativa que formaliza a retórica do discurso narrativo em análise. Esta realiza a adequação entre a técnica de sua elocução e a finalidade do seu gênero. Essa técnica é marcada por enunciados que justapõem o sério à galhofa e o sublime ao ridículo, os quais, traduzindo a desproporção de crenças, ideias e valores em imagens determinadas somente pelas convenções do gênero cômico e satírico, efetuam a unidade do estilo numa ordenação discursiva cuja verossimilhança é o efeito semântico captado por um modelo de leitura que conhece a tradição que não menospreza o pseûdo em função da alétheia, mas que reconhece o não-ser como a palavra em dobra, que consegue converter o inverossímil e o contraditório em representação proporcionada e verossímil. Esse modelo de leitura se consolida em função do compartilhamento dos códigos linguísticos, das convenções poéticas e das tópicas retóricas efetivados pelos interlocutores da enunciação. Com efeito, o leitor que deseja tornar inteligível essa ficção precisa buscar, ao longo da cadeia sintagmática que fundamenta sua retórica,12 12 "Ao reconhecer que existe uma retoricidade geral na linguagem, ou seja, uma dimensão argumentativa e uma dimensão tropológica em todo ato de linguagem, o que se admite é que a tradição retórica tem muito a nos ensinar. A verdade é efeito de sentido. A objetividade é também efeito de sentido e, então, o discurso não é medido pela adaequatio ad rem (= adequação à coisa, à realidade), mas pela força persuasiva" (FIORIN, 2014, p, p. 23). a recorrência de imagens que formam a isotopia das categorias sêmicas que garantem a unidade da técnica do gênero fantástico nas narrativas do escritor de Quincas Borba.

Em "O segredo do bonzo", o narrador conta a estória de uma doutrina que deve ser "divulgada a todas as repúblicas da cristandade" (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 119). O segredo dessa doutrina supõe, em nossa hipótese, a sua leitura, pela inversão paródica, do método dialético platônico, responsável pela perfeita determinação das ideias e de sua divisão por gêneros, que realça, numa cidade ideal, a luta da episteme contra a doxa, da sabedoria contra o principal vício da alma: a ignorância e o seu principal objeto, que seria a opinião e o não-ser. A estória é narrada na cidade de Fuchéu, capital do reino de Bungo. Nela, sucede que um dia, andando a passeio com Diogo Meireles, naquele ano de 1552, o narrador se depara com "um ajuntamento de povo, à esquina de uma rua, em torno a um homem da terra, que discorria com grande abundância de gestos e vozes" (ASSIS, 2007, pASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 119). Cerca de cem pessoas ficaram embasbacadas com a descoberta científica desse homem, chamado Patimau, que ia repetindo: "Que ele não queria outra coisa mais do que afirmar a origem dos grilos, os quais procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova"; e esse descobrimento, "impossível a quem não fosse, como ele, matemático, físico e filósofo, era fruto de dilatados anos de aplicação, experiência e estudo, trabalhos e até perigos de vida" (ASSIS, 2007, pASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 120). A multidão levantou um tumulto de aclamações, bradando: "Patimau, Patimau, viva Patimau que descobriu a origem dos grilos!" (ASSIS, 2007, pASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 120).

Mais adiante, outra multidão de gente foi encontrada, em outra esquina, escutando a outro homem, que repetia, "com grande admiração e aplauso da gente que o cercava, que enfim descobrira o princípio da vida futura, […] e era nada menos que uma certa gota de sangue de vaca" (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 120). Esse descobrimento, "ele podia afirmar com fé e verdade, por ser obra de experiências repetidas e profunda cogitação". Persuadindo a todos que ali estavam, Languru obteve a benevolência do povo, que fez o mesmo alarido venerando-o "com obséquios iguais aos que faziam a Patimau". Com efeito, aqui nos deparamos com um procedimento retórico que medeia a relação entre o orador e o seu público, que coaduna a autoridade de quem fala com a disposição das paixões daqueles que ouvem, com base numa arte que dobra os signos pela invenção de imagens paradoxais, evidenciando o artifício de uma linguagem que não é transparente, pois "sua ordem não é homóloga à do mundo", constituindo-se enquanto "autônoma em relação à realidade" (FIORIN, 2015, pFIORIN, José Luiz. Argumentação. São Paulo: Contexto, 2015., p. 24).

O leitor que conhece a técnica nota a inanidade do fundamento que sustenta a defesa da origem dos grilos, bem como a metáfora que figura o princípio da vida futura. No primeiro caso, a falta de similitude entre os gêneros e as suas espécies é evidente, pois a família dos insetos não se harmoniza com a família dos vegetais, o que impossibilita tomar a segunda como causa eficiente da primeira sem o seu entendimento como alegoria dos princípios científicos que formavam a base interdiscursiva cuja episteme modelava os olhos do leitor oitocentista. No segundo caso, ainda mais absurdo, temos uma metáfora que exclui o termo terceiro que nos permitiria fazer a adequada ligação que atestaria a similitude pressuposta, uma vez que os termos "vida futura" e "sangue de vaca" não "apresentam uma intersecção sêmica" cujos traços comuns estabeleceriam "uma compatibilidade predicativa por similaridade" (FIORIN, 2014FIORIN, José Luiz. Figuras de retórica. São Paulo: Contexto, 2014., p. 34). Por esse caminho, a proposição de Languru não constitui uma representação icástica do objeto referido, mas o oposto, visto ser a metáfora um instrumento de conhecimento que, ao produzir uma predicação não pertinente, permite o estabelecimento de relações entre coisas cada vez mais distantes. Em resumo, ambas as proposições são fantásticas, não obstante serem veneradas pelas multidões. Eis a dúvida que levará Diogo Meireles e Titané, outro personagem dessa estória, a entender o que permite o sucesso dessa doutrina, cujo enigma pode ser revelado pelo bonzo Pomada, homem de muito saber, "morador em umas casas pegadas ao monte Coral" (ASSIS, 2007, pASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 121):

– Haveis de entender, começou ele, que a virtude e o saber, têm duas existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou contemplam. Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de todo contato com outros homens, é como se eles não existissem. Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os gostar, valem tanto como as urzes e plantas bravias, e, se ninguém os vir, não valem nada; ou, por outras palavras mais enérgicas, não há espetáculo sem espectador. [...]

Neste ponto, afiamos os ouvidos e ficamos pendurados da boca do bonzo, o qual, como lhe dissesse Diogo Meireles que a língua da terra me não era familiar, ia falando com grande pausa, porque eu nada perdesse. E continuou dizendo:

– Mal podeis adivinhar o que me deu ideia da nova doutrina; foi nada menos que a pedra da lua, essa insigne pedra tão luminosa que, posta no cabeço de uma montanha ou no píncaro de uma torre, dá claridade a uma campina inteira, ainda a mais dilatada. Uma tal pedra, com tais quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém jamais a viu; mas muita gente crê que existe e mais de um dirá que a viu com os seus próprios olhos. Considerei o caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente. (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 122)

Não havendo espetáculo sem espectador, também não é possível que algo seja sem o reconhecimento da opinião e o que pode vir a constituir o seu objeto, sendo ou não sendo, como a "insigne pedra", que, "com tais quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém jamais a viu; mas muita gente crê que existe e mais de um dirá que a viu com os seus próprios olhos". Aqui, a virtude e o saber não são frutos de um raciocínio dialético, que discrimina o que é do que não é, mas dependem do opinável, do consentimento daqueles que as considerem, atribuindo-lhes existência. Assim, esses dois bens, considerados divinos13 13 Para Platão (1999, p, p. 75), "entre os bens menores a saúde em primeiro lugar, a beleza em segundo, o vigor em terceiro, necessário à corrida e todos os demais exercícios corporais; segue-se o quarto bem, a riqueza, não a riqueza cega, mas aquela de visão aguda, que tem a sabedoria por companheira. A sabedoria, a propósito, ocupa o primeiro lugar entre os bens que são divinos". na filosofia platônica, são profanos e devem a sua legitimidade aos limites da razão determinada pelas lentes dos seus espectadores. Ao depender de duas existências que são paralelas, a do sujeito que enuncia e a do público que contempla, os bens "divinos" são redutíveis ao não-ser, posto que eles devem, inexoravelmente, figurar na imaginação daqueles que os compartilham. Portanto, não há aqui uma razão que preexiste às opiniões determinadas pelo consenso, tampouco palavras que se subordinam ao mito de um ser que existe independentemente de sua configuração retórica, mas um conjunto de enunciados que figuram o verdadeiro como efeito dos artifícios empregados para a persuasão.

Nessa lógica, o não-ser pode figurar o ser, de modo que "se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente". A episteme do bonzo nos coloca em confronto com a tese do essencialismo linguístico platônico; ela metaforiza a teoria da verossimilhança que Aristóteles consagra em sua Poética. Ao parafrasear este último, Machado nos lembra que em se tratando de retórica e de poética, mais vale um inverossímil que persuade do que um verossímil que não persuade. Com efeito, "Patimau e Languru, varões astutos, com tal arte souberam meter estas duas ideias no ânimo da multidão, que hoje desfrutam a nomeada de grandes físicos e maiores filósofos, e têm consigo pessoas capazes de dar a vida por eles" (ASSIS, 2007, pASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 122). O mesmo procedimento pode ser adotado para a análise das imagens fantásticas; são nelas que identificamos onde residem as crenças reproduzidas pelos enunciados que materializam as falas desses personagens. Após o bonzo revelar o segredo de sua doutrina, será a vez de Titané e Diogo Meireles realizarem o mesmo que a multidão, admirando a eficácia de tão sublime doutrina: "Não sabíamos em que maneira déssemos ao bonzo as mostras do nosso vivo contentamento e admiração" (ASSIS, 2007, pASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 122).

Com "a alma de pomadistas", ambos combinaram em "pôr por obra uma ideia tão judiciosa quão lucrativa, pois não é só lucro o que se pode haver em moeda, senão também o que traz consideração e louvor, que é outra e melhor espécie de moeda" (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 122). Como um grande sofista, Titané buscou meter no ânimo da cidade de Fuchéu certa convicção e se mostrará hábil na condução do povo para a compra de suas alparcas, mercadorias cujas qualidades foram enaltecidas "com muitas e extraordinárias anedotas". Obedecendo ao principal de sua doutrina, Titané revela: "não estou persuadido da superioridade das tais alparcas, antes as tenho por obra vulgar, mas fi-lo crer ao povo, que as vem comprar agora, pelo preço que lhes taxo" (ASSIS, 2007, pASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 124). Como visto, Titané faz penetrar nos espíritos uma opinião que não têm, um pseûdo que obtém sua credibilidade devido aos efeitos dos artifícios técnicos de uma linguagem que o converte na realidade a ser ouvida e crida pelos habitantes de sua cidade. Nessa doutrina, as coisas extraordinárias tornam-se comuns, quando recebem o contorno agudo dos argumentos que se dispõem a lidar com as paixões que movem esses cidadãos. Essa fórmula nos permite analisar "a mais engenhosa de todas as [...] experiências", a que pretende confirmar a eficácia do segredo do bonzo Pomada: a experiência de Diogo Meireles.

Lavrava então na cidade uma singular doença, que consistia em fazer inchar os narizes, tanto e tanto, que tomavam metade e mais da cara ao paciente, e não só a punham horrenda, senão que era molesto carregar tamanho peso. [...] Diogo Meireles, que desde algum tempo praticava a medicina, segundo ficou dito atrás, estudou a moléstia e reconheceu que não havia perigo em desnarigar os doentes, antes era vantajoso por lhes levar o mal, sem trazer fealdade, pois tanto valia um nariz disforme e pesado como nenhum; não alcançou, todavia, persuadir os infelizes ao sacrifício. Então ocorreu-lhe uma graciosa invenção. Assim foi que, reunindo muitos físicos, filósofos, bonzos, autoridades e povo, comunicou-lhes que tinha um segredo para eliminar o órgão; e esse segredo era nada menos que substituir o nariz achacado por um nariz são, mas de pura natureza metafísica, isto é, inacessível aos sentidos humanos, e contudo tão verdadeiro ou ainda mais do que o cortado; cura esta praticada por ele em várias partes, e muito aceita aos físicos de Malabar. O assombro da assembleia foi imenso, e não menor a incredulidade de alguns, não digo de todos, sendo que a maioria não sabia que acreditasse, pois se lhe repugnava a metafísica do nariz, cedia entretanto à energia das palavras de Diogo Meireles, ao tom alto e convencido com que ele expôs e definiu o seu remédio. Foi então que alguns filósofos, ali presentes, um tanto envergonhados do saber de Diogo Meireles, não quiseram ficar-lhe atrás, e declararam que havia bons fundamentos para uma tal invenção, visto não ser o homem todo outra coisa mais do que um produto da idealidade transcendental; donde resultava que podia trazer, com toda a verossimilhança, um nariz metafísico, e juravam ao povo que o efeito era o mesmo. (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 125)

O segredo do bonzo trabalha com o falso, desde que este possa persuadir crédulos e incrédulos. Para viabilizar a cura dos enfermos da cidade de Fuchéu, Diogo Meireles lhes apresentou o extraordinário, os narizes de "pura natureza metafísica", inacessíveis "aos sentidos humanos". Com o apoio da autoridade de grandes filósofos, o inacessível se tornaria verdadeiro e a invenção seria aclamada pela assembleia, que considerou crível a máxima segundo a qual "o homem todo" não seria "outra coisa mais do que um produto da idealidade transcendental; donde resultava que podia trazer [Diogo Meireles], com toda a verossimilhança, um nariz metafísico, e juravam ao povo que o efeito era o mesmo". Aqui não há limite entre o falso e o verossímil, pois o segredo do bonzo não presume "uma teoria do verossímil que forneceria as armas para a retórica contra seus próprios abusos, dissociando-a da sofística e da erística" (RICOEUR, 2000RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 2000., p. 22). Pelo contrário, esse segredo pressupõe o fantástico como fórmula adequada para persuadir um público afetado pelo vício da ignorância. Não estamos diante de uma teoria lógica da verossimilhança, aquela que revela o grande mérito de Aristóteles, a que o fez "elaborar esse vínculo entre o conceito retórico de persuasão e o conceito lógico de verossímil, e construir sobre essa relação todo o edifício de uma retórica filosófica" (RICOEUR, 2000, pRICOEUR, Paul. A metáfora viva. Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 2000., p. 22), mas de uma narrativa que expõe o extraordinário das opiniões do bonzo, de Patimau, de Languru, de Titané e de Diogo Meireles como ridículas, figurando o cômico pelos seus efeitos fantásticos.

Em síntese, o fantástico persuade e os doentes aceitaram a metafísica do nariz, cedendo "à energia das palavras de Diogo Meireles". Bem distantes do verossímil e próximos do não-ser, esses enfermos buscaram a cura, sendo desnarigados com "muitíssima arte". Após a extração, Diogo Meireles "estendia delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter os narizes substitutos, colhia um e aplicava-o ao lugar vazio" (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 125). Por fim, os enfermos vão nos fornecer a prova da eficácia da doutrina do bonzo, visto que, "assim curados e supridos, olhavam uns para os outros, e não viam nada no lugar do órgão cortado; mas, certos e certíssimos de que ali estava o órgão substituto, e que este era inacessível aos sentidos humanos" (ASSIS, 2007, pASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 125). Portanto, mais uma vez as imagens fantásticas suplantam as imagens realistas, e a doxa se sobrepõe à episteme, convertendo-se em sua causa eficiente, uma vez que "não há realismo nas misturas satíricas porque são misturas e não têm a unidade implícita na noção de reflexo pressuposta no termo" (HANSEN, 2004, pHANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora da Unicamp, 2004., p. 364). Estamos diante do cômico em um discurso narrativo que metaforiza a crise da representação realista, passível de ser identificada na leitura desses enunciados dispostos pela voz do seu narrador, que destaca, nessa narrativa, o reconhecimento do povo obtido pelos personagens que se valem da oratória persuasiva com vistas à defesa das suas opiniões falsas sobre questões relativas à natureza e ao universo. Machado expõe ao cômico todos os artifícios retóricos utilizados por esses oradores durante a ilustração da eficácia dessa doutrina.

Portanto, é preciso propor uma leitura cuja verossimilhança possa ser reconhecida numa semântica de enunciados14 14 De acordo com Fiorin (2014, p, p. 46), "o que determina um plano de leitura de um texto é um conjunto de recorrências semânticas que se distribuem ao longo do tecido linguístico". que formam as verdades doxais e os seus efeitos persuasivos por intermédio de metáforas, a partir das quais é possível tornar inteligíveis os dispositivos técnicos que possibilitam a eficácia do sistema retórico revelado pela doutrina do bonzo. Com efeito, esses enunciados, por assim dizer metafóricos, produzem a alegoria,15 15 "Ao passo que a metáfora é tropo do léxico, valendo por um termo isolado que substitui – por exemplo: "O navio do Estado" –, a alegoria equivale a um enunciado: "Ó nave, levam-te ao mar novas ondas". Ela vale, portanto, pelo "pensamento" que poderia ser expresso por um discurso simples, sem ornamento: "Novas guerras civis ameaçam a República". [...] Do ângulo do tropo, ela é uma transposição. Retoricamente, o tropo é a transposição semântica de um signo em presença (convencionado aqui por S) para um signo em ausência (S). A transposição baseia-se na relação possível entre um ou mais traços semânticos dos significados de S e S. A relação pode ocorrer por metáfora (semelhança), por sinédoque (inclusão), por metonímia (causalidade), por ironia (oposição). [...] Como discurso 2o em relação a um 1o, há graus de afastamento também previstos, isto é, um dispositivo que regula e julga a sua prática, indo do permitido e elogiável, verossímil e decoroso, até o criticável, inverossímil, incoerência ou hermetismo. Por isso, os campos sêmicos da alegoria, com seu léxico, temática e fraseologia, foram ordenados em lugares comuns (loci ou topoi) alegóricos pela Retórica." (HANSEN, 2006a, p. 30) que "é a metáfora continuada como tropo de pensamento e consiste na substituição do pensamento em causa por outro pensamento, que está ligado, numa relação de semelhança, a esse mesmo pensamento" (LAUSBERG16 16 LAUSBERG, Heinrich. Manual de retórica literaria: fundamentos de una ciencia de la literatura. Madrid: Gredos, 1976. apud HANSEN, 2006aHANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Hedra; Campinas: Editora da Unicamp, 2006a., p. 7). Nessa perspectiva, se a metáfora consiste em um dispositivo técnico produtor de predicações não pertinentes, a alegoria, como tropo de pensamento, nos distancia ainda mais da mímesis como representação da realidade nessa narrativa. Com efeito, esse procedimento de leitura alegórico nos leva para o domínio do fantástico, que por sua vez nos leva para o domínio do arbitrário na atividade funcional de atribuição de sentido, possibilitando a percepção do verossímil da técnica adequada à finalidade do gênero fantástico.

Referências

  • ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • BRUCK, Jan. From Aristotelean Mimesis to ‘Bourgeois’ Realism. Poetics, North-Holland Publishing Company, v. 11, p. 189-202, 1982.
  • FIORIN, José Luiz. Figuras de retórica São Paulo: Contexto, 2014.
  • FIORIN, José Luiz. Argumentação São Paulo: Contexto, 2015.
  • HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora da Unicamp, 2004.
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  • HANSEN, João Adolfo. "O imortal" e a verossimilhança. Teresa – Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 6/7, p. 56-78, 2006b.
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  • PERELMAN, Chaim. Tratado da argumentação Prefácio de Fábio Ulhôa Coelho. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
  • PLATÃO (427-347 a.C.). As leis, ou da legislação e epinomis. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 1999.
  • PLATÃO. A república Trad. Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2000.
  • RICOEUR, Paul. A metáfora viva Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
  • RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento Trad. Alain François. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
  • RICOEUR, Paul. Ser, essência e substância em Platão e Aristóteles; curso ministrado na Universidade de Strasbourg em 1953-1954; texto verificado e anotado por Jean-Louis Schlegel. Trad. Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.
  • SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
  • SOUZA, Roberto Acízelo. Formação da teoria da literatura Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico; Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1987.
  • 1
    É lugar-comum na tradição crítica da literatura oitocentista vincular a obra de Machado de Assis aos textos literários consagrados pela tradição realista. Roberto Schwarz (2000SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000., p. 11), por exemplo, considera que "o dispositivo literário (machadiano) capta e dramatiza a estrutura do país, transformada em regra de escrita". Essa tradição fez escola no Brasil, e reivindicou que "todo escritor nacional na hora presente está carregado do imperioso dever de dizer a verdade a nosso povo" (ROMERO apud SCHWARZ, 2000, p. 188). Segue-se a referência citada por Schwarz: ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro, Garnier, 1902. v. 1.
  • 2
    Neste artigo, entendemos por verossimilhança "o efeito semântico produzido quando o leitor relaciona o texto não com a realidade empírica, mas com outros discursos que constituem o campo semântico geral das explicações consideradas verdadeiras em sua sociedade" (HANSEN, 2014HANSEN, João Adolfo. Representação e avaliação na literatura de Machado de Assis. Ciência Hoje, São Paulo, v. 43, n. 253, 2014., p. 40).
  • 3
    Vale ressaltar que não estamos confundindo, neste artigo, as diferenças existentes entre mímesis, representação, entre poesia enquanto imitação de ações de agentes caracteres, imitação da natureza e realismo burguês, uma vez que "Mimesis and Realism are completely separate concepts, and that a proper theory of realism did not emerge before the 19th century" (BRUCK, 1982, pBRUCK, Jan. From Aristotelean Mimesis to ‘Bourgeois’ Realism. Poetics, North-Holland Publishing Company, v. 11, p. 189-202, 1982., p. 189). Na imitação de agentes caracteres, "the aesthetic representation of people in action was determined by definite codes and conventions which prescribed the theme, content and style of artistic production and led to a strict separation of genre corresponding to the separation of classes" […]. Whithin this tight social and epistemological order, a notion of realism could not arise. Each genre represented the reality to which it was appropriate, and there was no question that comedy could be more 'realistic' than tragedy". Por outro lado, a natureza "for the Enlightenment theorist did not mean the material physical reality of which we would nowadays think, but was a metaphor for the rational structure of the world, the natural and social order created by God and, with his help, by Man, where everything had its proper, pre-established place and worked according to a pre-designed plan, like a clock. Since natura was racional, the writer merely needed to imitate – and thereby reveal – the natural order". Por último, em linhas gerais, "the first and central criterion of the realist aesthetic was objectivity, the imperative that reality should be represented exactly and truthfully, 'as it really is'" (BRUCK, 1982, pBRUCK, Jan. From Aristotelean Mimesis to ‘Bourgeois’ Realism. Poetics, North-Holland Publishing Company, v. 11, p. 189-202, 1982., p. 198).
  • 4
    De acordo com Ricoeur (2007, pRICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. Campinas: Editora da Unicamp, 2007., p. 31), "a distinção feita em O Sofista entre arte eicástica e arte fantástica é veementemente afirmada. […] Outrossim, ao longo do debate em torno da sofística, o estatuto epistemológico e ontológico atribuído à falsidade pressupõe a possibilidade de arrancar o discurso verdadeiro à vertigem da falsidade e de seu real não-ser. Assim, ficam preservadas as possibilidades de um ícone verdadeiro".
  • 5
    De acordo com Jobim, quando interpretamos um texto num sentido determinado, está implícita nesta atividade uma referência às normas que regulam a prática interpretativa vigente na comunidade de Letras, as quais de alguma maneira nos constrangem a seguir certos caminhos (em vez de outros), e a considerar estes caminhos como corretos. "Portanto, tanto a história da produção quanto da interpretação textual nos mostram que há sempre instâncias anteriores ao texto (normas, práticas e tradições preexistentes, formas de representação etc.) que de alguma forma o condicionam" (JOBIM, 2003JOBIM, José Luís. Formas da teoria: sentidos, conceitos, políticas e campos de força nos estudos literários. 2. ed. Rio de Janeiro: Caetés, 2003., p. 165).
  • 6
    A referência a esse modelo discursivo não significa que conjeturamos uma unidade nos conceitos de mímesis, imitação da natureza e realismo burguês nessa tradição que é objeto de análise neste trabalho, mas que existe uma vontade de verdade que é própria de uma tradição poética que estabelece, desde os escritos de Platão, uma vigilância sobre a força do pseûdo no âmbito da poesia.
  • 7
    O período clássico da Filosofia grega é "atravessado por uma controvérsia acerca da linguagem: a logolatria sofística, conducente à absolutização do estudo/domínio das articulações da linguagem (daí a Retórica, Ciência e tecnologia do discurso), versus a crítica socrático-platônico-aristotélica, empenhada em apontar/acolher uma verdade independente do jogo relacional das formas linguísticas". "Tão difundida é a postulação do antagonismo referido, e tamanho é o consenso da posteridade quanto à vitória do ponto de vista socrático-platônico-aristotélico, que os sofistas são usualmente apresentados como filósofos menores" (SOUZA, 1987, pSOUZA, Roberto Acízelo. Formação da teoria da literatura. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico; Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1987., p. 36).
  • 8
    Em A república (PLATÃO, 2000)PLATÃO. A república. Trad. Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2000., "o julgamento condenatório dos poetas é a hybris platônica da seriedade, e também a permanente tentação da filosofia" (LIMA, 1980, pLIMA, Luiz Costa. Mímesis e modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980., p. XIV). Portanto, "a dobra da palavra mimética há de ser controlada pela unanimidade que lhe empresta a alétheia extraída do mundo das Ideias" (LIMA, 1980, pLIMA, Luiz Costa. Mímesis e modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980., p. 34).
  • 9
    De acordo com Hansen, o gênero conto "tem regras específicas: é uma ficção falsa, ou seja, ficção sobre coisas impossíveis e improváveis". Assim, "quando a narração se refere a algo que realmente existe e o relaciona com um evento que não ocorreu em parte alguma, tem-se a 'ficção primeira'. Por exemplo, com a referência à existência de uma pessoa conhecida, Machado de Assis, inventa-se a ficção de algo que nunca ocorreu, como uma viagem à Inglaterra, onde Joaquim Maria faz contatos com uma leitora de Otelo chamada Capitolina. Tem-se a 'ficção segunda' quando a narração se refere somente à essência dos seres; com a referência à essência, é possível inventar uma ficção verdadeira, como vera fictio, e uma ficção falsa, como falsa fictio. Como exemplo desta, imaginemos uma história absurda, onde um inseto infinito voa num espaço que, teoricamente, deverá estar todo ocupado por seu corpo; ou uma personagem que tem uma alma quadrada. Ou, ainda, um homem imortal" (HANSEN, 2006bHANSEN, João Adolfo. "O imortal" e a verossimilhança. Teresa – Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 6/7, p. 56-78, 2006b., p. 58-59).
  • 10
    Ainda no mundo platônico, podemos perceber que "uma das fontes da ontologia das essências é a recusa do subjetivismo e do historicismo da linguagem" (RICOEUR, 2014, pRICOEUR, Paul. Ser, essência e substância em Platão e Aristóteles; curso ministrado na Universidade de Strasbourg em 1953-1954; texto verificado e anotado por Jean-Louis Schlegel. Trad. Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014., p. 14).
  • 11
    De acordo com Fiorin (2014, pFIORIN, José Luiz. Figuras de retórica. São Paulo: Contexto, 2014., p. 12), "a dialética trata dos enunciados em sua relação com os objetos que supostamente eles representam e, por isso, tem a finalidade de distinguir o verdadeiro do falso".
  • 12
    "Ao reconhecer que existe uma retoricidade geral na linguagem, ou seja, uma dimensão argumentativa e uma dimensão tropológica em todo ato de linguagem, o que se admite é que a tradição retórica tem muito a nos ensinar. A verdade é efeito de sentido. A objetividade é também efeito de sentido e, então, o discurso não é medido pela adaequatio ad rem (= adequação à coisa, à realidade), mas pela força persuasiva" (FIORIN, 2014, pFIORIN, José Luiz. Figuras de retórica. São Paulo: Contexto, 2014., p. 23).
  • 13
    Para Platão (1999, pPLATÃO (427-347 a.C.). As leis, ou da legislação e epinomis. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 1999., p. 75), "entre os bens menores a saúde em primeiro lugar, a beleza em segundo, o vigor em terceiro, necessário à corrida e todos os demais exercícios corporais; segue-se o quarto bem, a riqueza, não a riqueza cega, mas aquela de visão aguda, que tem a sabedoria por companheira. A sabedoria, a propósito, ocupa o primeiro lugar entre os bens que são divinos".
  • 14
    De acordo com Fiorin (2014, pFIORIN, José Luiz. Figuras de retórica. São Paulo: Contexto, 2014., p. 46), "o que determina um plano de leitura de um texto é um conjunto de recorrências semânticas que se distribuem ao longo do tecido linguístico".
  • 15
    "Ao passo que a metáfora é tropo do léxico, valendo por um termo isolado que substitui – por exemplo: "O navio do Estado" –, a alegoria equivale a um enunciado: "Ó nave, levam-te ao mar novas ondas". Ela vale, portanto, pelo "pensamento" que poderia ser expresso por um discurso simples, sem ornamento: "Novas guerras civis ameaçam a República". [...] Do ângulo do tropo, ela é uma transposição. Retoricamente, o tropo é a transposição semântica de um signo em presença (convencionado aqui por S) para um signo em ausência (S). A transposição baseia-se na relação possível entre um ou mais traços semânticos dos significados de S e S. A relação pode ocorrer por metáfora (semelhança), por sinédoque (inclusão), por metonímia (causalidade), por ironia (oposição). [...] Como discurso 2o em relação a um 1o, há graus de afastamento também previstos, isto é, um dispositivo que regula e julga a sua prática, indo do permitido e elogiável, verossímil e decoroso, até o criticável, inverossímil, incoerência ou hermetismo. Por isso, os campos sêmicos da alegoria, com seu léxico, temática e fraseologia, foram ordenados em lugares comuns (loci ou topoi) alegóricos pela Retórica." (HANSEN, 2006aHANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Hedra; Campinas: Editora da Unicamp, 2006a., p. 30)
  • 16
    LAUSBERG, Heinrich. Manual de retórica literaria: fundamentos de una ciencia de la literatura. Madrid: Gredos, 1976.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2018
  • Data do Fascículo
    Dez 2018

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2018
  • Aceito
    24 Set 2018
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